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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

Segredos de família em exposição: psicanálise e linguagens da arte contemporânea

 

Family secrets in exposition: psychoanalysis and languages of the contemporary art

 

 

João A. Frayze-Pereira*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo examina o manejo do tema da família no campo da arte contemporânea, considerando algumas obras em exposições visitadas pelo autor nos últimos anos. Tais mostras revelam a posição do artista contemporâneo como crítico de sua época. Nessa medida, os artistas recorrem à fotografia, ao cinema, ao vídeo e às instalações como linguagens privilegiadas para trabalhar formativamente com o transitório, a precariedade e a parcialidade de todas as situações. É sugerida a relação entre a postura interpretativa dos artistas e certo modo de trabalhar na psicanálise contemporânea.

Palavras-chave: Arte contemporânea.Arte-psicanálise. Família. Linguagens visuais.


ABSTRACT

The article examines the handling of the family theme in contemporary art field, considering some works in expositions which the author has visited for the past few years. These expositions reveal the position of the contemporary artist as his time critic. Therefore, different kinds of languages, such as photography, cinema, video and installation, are used to give form to the transitional, the precariousness and the bias of all situations. The relationship between artists’ interpretative attitude and a certain way of working in the contemporary psychoanalysis is suggested.

Keywords: Contemporary art. Art-psychoanalysis. Family. Visual languages.


 

 

Qual a relação existente entre o modo de vida do artista e as obras que criou? Pode-se dizer que a vida é o fator condicionante da obra de arte? Ou, ao contrário, é a obra de arte por fazer (como um objeto futuro) aquilo que determina a vida do artista (como seu passado)? Como se sabe, essas questões retomam um antigo tema da Teoria da Arte (o tema “vida de artista”), abordado pela primeira vez, no século XVI, por Vasari (Bazin, 1986, p. 25). Tendo por pressuposto essa ampla problemática, no decorrer dos anos 1980 realizei uma pesquisa com artistas plásticos cujo propósito era registrar histórias de vida artística. Foram seis os artistas entrevistados, em períodos distintos, durante aproximadamente cinco anos. E, a respeito deles, o que importa destacar é que são artistas de várias gerações, com inserções variadas no meio artístico, sobretudo em São Paulo, e no mercado de arte nacional e internacional, com graus variados de consagração de seu trabalho em linguagens como pintura, gravura, aquarela, cerâmica, instalação. E, embora muito diferentes, do ponto de vista de suas obras, tais artistas revelaram um aspecto básico comum: todos acabaram mostrando estar em busca de si mesmos mediante o processo de trabalho.

Um aspecto que merece ser destacado é que, para os entrevistados, faziam parte de suas famílias suas respectivas obras. Outro aspecto a lembrar é que o acompanhamento desses sujeitos foi muito intenso do ponto de vista emocional. Quer dizer, o fato de eu estar interessado na vivência singular dos artistas durante seu processo de trabalho – vivência que quase sempre procuram ocultar dos terceiros (é seu segredo) – transformou a minha posição de pesquisador na de testemunha dos aspectos dolorosos rememorados por eles, numa situação de proximidade afetiva crescente. Foi assim que me tornei o depositário de segredos pessoais, transformando a minha necessidade de pesquisa numa demanda de escuta da parte deles que, durante a semana, telefonavam para mim convidando-me a aparecer em seus ateliês, pois tinham algo a mostrar, o que quase sempre era algo a me falar pessoalmente (Frayze-Pereira, 2005).

Nesse sentido, cabe mencionar que entre os segredos relatados pelos artistas, além das descobertas perceptuais e técnicas envolvidas no processo de elaboração de suas obras, encontram-se as questões familiares, sempre relacionadas à arte. No decorrer de uma entrevista, por exemplo, uma artista diz o seguinte: “Tenho vivido intensamente a arte em todas as fases da minha vida e com todas as dificuldades pessoais, dificuldades de relacionamento, tudo isso que você já sabe. Todas essas coisas estão sendo jogadas nesses trabalhos que eu, às vezes, não comando. Eu não sei e não quero saber como se dá. Não me interessa, João. É como se eu tivesse descoberto com a arte o elixir da longa vida. Houve uma ocasião em que eu parei de trabalhar. Não conseguia. Eu queria saber por que isso aconteceu. Foi na época em que eu me separei do meu marido, fiquei sozinha com as minhas filhas e a minha obra... Dá pra desligar o gravador?”. [Tempo sem gravação, durante o qual a entrevistada narra as questões surgidas da triangulação entre ela, a arte e o marido.] Então, continua: “Só pintei dois trabalhos e depois fiquei fazendo isso, casas de tudo quanto é jeito. E não tem nada a ver com as minhas coisas. Não tem nenhuma acabada. Olha aqui que ridículo. Está vendo? Dá pra acreditar? Tem mais, têm muitas com umas cores diferentes, umas casas que eu não consegui acabar. Se existe alguma imagem de casa dentro da gente, não conseguia terminar a minha casa.Nessa ocasião fui até hospitalizada com um problema seriíssimo de pressão arterial... Era uma coisa que estava me deixando, não vou dizer louca, mas muito estranha. Fiquei seis meses sem conseguir trabalhar. E fiquei péssima porque eu não posso viver separada da minha obra”.

Dos seis artistas entrevistados, três possuíam filhos que se encaminharam para as artes. Destes, alguns iniciaram uma carreira e logo desistiram por motivos obscuros, cercados pelos entrevistados de uma aura de mistério. E um dos artistas, ao falar que tinha dois filhos que se tornaram artistas como ele, também ficou hesitante e por fim revelou que considerava um mais talentoso que o outro e, às vezes, mais talentoso do que ele próprio, considerações que deram lugar a uma espécie de romance familiar. Para esse artista, dado que todo criador tem seu mestre, que aparece num momento-chave da existência, quando se define o talento, a excepcional capacidade para o trabalho artístico, essa situação com os filhos era problemática, pois como poderia ele ter sido “mestre de dois filhos tão desiguais, um mais talentoso que o outro, sendo justamente o menos talentoso o que teve mais sucesso?”. Essa situação era considerada um segredo de família, revelado a mim com angústia e sempre com o gravador desligado, instrumento que se costuma utilizar nas pesquisas de caráter qualitativo e que, em pouco tempo, por decisão minha, foi definitivamente dispensado. E a questão do segredo, recorrente nas entrevistas com esses artistas, de fato, mostrou-se indicativa de uma temática muito mais ampla.

Segundo Denise Morel (1990), psicanalista que realizou uma pesquisa sobre o processo de criação em famílias de artistas, podem-se encontrar, numa mesma família, um “portador de talento” e um “portador de sintomas”, ou, ainda, um único membro que pode ser o portador de uma dupla função, sendo genial e louco, por exemplo.O fato é que, na maioria das famílias, encontramos traços de coisas mais ou menos claras ou confessáveis sobre as quais os interessados silenciam e cuja existência, às vezes, é esquecida. É nesse sentido que, numa entrevista, os segredos são evitados, passam por pesados silêncios, que invariavelmente se referem às situações que transformam tudo o que se liga à pessoa envolvida num tabu, em assunto a ser negado, como, por exemplo, o suicídio de um antepassado, o abuso sofrido, a violência cometida por outro... Não é o caso de entrar aqui na questão dos níveis de segredo, na questão da necessidade psíquica de áreas secretas que são abordadas na psicanálise (Frayze-Pereira, 2006, p. 119). O que é importante lembrar é que a maior parte dos acontecimentos familiares não é traumática, mas engendra um traumatismo psíquico se não puder ser pensada. Então, essa impossibilidade de pensar o acontecimento bruto dá lugar a uma clivagem entre o suposto acontecimento e o pensamento sobre ele que será recusado pelo sujeito. Essa não-integração determinará uma transmissão ao longo das gerações de parcelas não elaboradas do acontecimento transformado em tabu. Trata-se do que alguns autores chamam de “transmissão transgeracional”, cujos efeitos são reconhecidos no bloqueio da circulação de fantasias ou na emergência de sintomas (Silva, 2003). E são estes que muitas vezes atormentam o artista e o assaltam até que ele seja capaz de transformá-los em obra de arte. Sabemos que é próprio do artista procurar as palavras certas, as imagens mais expressivas, os sons mais significativos “para tentar dizer o indizível, representar o irrepresentável ou fazer ressoar o silêncio dos não-ditos” (Morel, 1990, p. 201). Nessa medida, cabe a ele, sendo ou não portador de sintomas, mas sempre portador de um talento, transformar o que precisa ser transformado para que os acontecimentos brutos, considerados traumáticos, constituam uma imagem assimilável. É nesse sentido que trabalham os artistas em qualquer campo, mesmo quando o campo percorrido por sua ação transformadora seja o campo da vida familiar.

Na posição de espectador, participante e crítico de sua época, os artistas contemporâneos trabalham com aslinguagens da fotografia, do cinema, do vídeo e das instalações, as quais são utilizadas como recursos privilegiados para dar forma ao transitório, à precariedade e à parcialidade de todas as situações. Assim, experimentando os fundamentos da cinematografia, como a edição da imagem e do som, a alteração de velocidade, a busca de novas soluções narrativas entre o documentário e a ficção, ou incorporando elementos da dança e do teatro para jogar com a noção de realidade, eles elaboram questões muito diversas, como a da supressão da palavra e a inacessibilidade de certos discursos; o inventário, a purgação e a semiparalisia provocados por traumas pessoais; a natureza precária da identidade individual e a ambigüidade do contato entre os membros de uma família ou ainda a reinvenção desse relacionamento como maneira de estar no mundo. Entre os artistas que entrevistei, alguns chegaram a fazer proposições plásticas que se referiam à elaboração dessas problemáticas pessoais. No entanto, dado o compromisso que contraí com eles, não é possível comentá-las, pois a exposição de suas obras inevitavelmente revelaria suas identidades. Assim, decidi considerar outros artistas cujo trabalho significativo foi possível observar nas exposições que visitei recentemente, em particular a última Bienal de Veneza (2005). E nelas, cabe notar, a atitude artística adotada pelos artistas, pela situação proposta e pela forma da indagação, lembra certo modo de trabalhar em psicanálise que, segundo Fabio Herrmann (2001, p. 59), se denomina “ruptura de campo”. Apresento a seguir alguns exemplos.

O primeiro deles é o trabalho da inglesa Gillian Wearing, que pertence à geração “YBA” (jovens artistas britânicos). Em geral, operando com vídeo e fotografia desde o início dos anos 1990, ela aborda estranhos nas ruas ou por meio de anúncios classificados em jornais e revistas e colabora com eles para criar narrativas sobre pessoas reais. Em parte inspirada pelos reality shows em que pessoas são filmadas dentro de suas próprias casas,Wearing explora a divergência entre identificação privada e expressão pública, entre aqueles aspectos de si mesmas que as pessoas tentam esconder e aqueles que querem revelar. Muitas de suas obras centram-se em torno da dinâmica psicológica formada pelas relações entre membros de uma mesma família. Sacha and Mum foi uma das primeiras obras em que Wearing usou atores para seguir seu roteiro, em vez de pedir a membros do público para revelar-lhe algo sobre eles mesmos. A utilização do vídeo faz o espectador crer que está diante de uma situação real, de uma reportagem.

A obra retrata a interação entre mãe e filha. Os sons originais são amplificados e tocados de trás para a frente, resultando em murmúrios perturbadores que impossibilitam a identificação do significado literal das palavras. A artista introduz essa situação e deixa surgir no espectador algum efeito de sentido. E, de fato, para o espectador, o sentido do que se diz no filme importa pouco, pois o caráter tenso da interação é evidente e a dificuldade que experimenta em tentar distinguir os gestos ternos e os violentos expressa a confusão, freqüentemente verificada nas relações familiares, em que amor e ódio podem ser muito difíceis de separar.

Em 2005, dentro do programa do Museu de Arte Moderna de Paris, a artista apresenta o resultado de um videoprojeto, em elaboração desde 2000, intitulado Trauma. Num espaço bastante pequeno, os espectadores se acotovelam para assistir a um vídeo em que pessoas ocultas por máscaras bizarras, quase inafetivas, relatam suas experiências traumáticas de infância, marcadas por abandono, humilhação, violência física e abusos sexuais. São indivíduos comuns, selecionados pela artista para participar do projeto. As máscaras servem não apenas para manter o anonimato, como também para evocar de maneira paródica a questão compartilhada por todas elas: uma infância morbidamente perdida no interior das próprias famílias. Apresentado num ambiente confessional claustrofóbico, o vídeo, direto e opressivo, pode levar o espectador ao limite do insuportável. E a crítica considerou esse trabalho, como quase toda a obra de Gillian Wearing, um retrato perturbador das relações interpessoais no interior das famílias ocidentais, urbanas e contemporâneas. Nessa direção, propõese um dos últimos projetos da artista: um trabalho ambicioso denominado Family history. Trata-se de uma videoinstalação apresentada em algumas cidades da Inglaterra, em 2006, que interroga a atual obsessão com a “realidade” e a “celebridade”, o velho conhecido “minuto de glória” celebrado por Andy Warhol e aspirado por muitos anônimos habitantes das metrópoles. O trabalho faz uma releitura da série-documentário da BBC, realizado em 1974, intitulado The family, que retratou a vida diária dos Wilkinses, uma família da classe trabalhadora inglesa. Com esse trabalho, Gillian Wearing acompanha os membros dessa família, indaga as conseqüências da série sobre suas vidas e deixa surgir insights provocativos acerca da natureza da identidade pessoal. E, com a linguagem do documentário, considera a questão das implicações nefastas para a identidade dos indivíduos, entre elas a despersonalização, quando o privado é tornado público, quando a exposição de si chega ao limite da obscenidade.

Cabe lembrar, entretanto, que a primeira exposição contemporânea a focar o tema da família aconteceu no Museum ofModern Art (MoMA), em Nova York, em 1955. The family of man foi uma exposição histórica que reuniu 503 fotógrafos de 68 países, abordando a diversidade humana segundo uma visão humanista, esperançosa e unitária, que destacava os pontos comuns entre os seres humanos de todo o planeta. O contexto dessa mostra é o pós-guerra. Nos anos 1990, contudo, essa exposição passou por uma releitura e resultou numa nova exposição, intitulada Images de l’homme dans l’art contemporain, em Luxemburgo (1997). A referência à mostra de 1955 é explícita, embora a perspectiva dos trabalhos seja outra: a concepção do mundo em que vivemos se mostra complexa e fragmentária, e interroga as implicações do desenvolvimento dos meios de comunicação e do processo de mundialização. De qualquer maneira, organizada em módulos temáticos, a exposição de 97 retoma os que nortearam a mostra de 55, celebrando a grande família humana: nascimento; infância; juventude; natureza e ambiente; cotidiano; alimentação; trabalho, arte e cultura; identidade; vida de casal e celibatários; casais e famílias; relacionamentos e indiferença; poder e política; velhice; morte e memória. No entanto, como bem observou Roland Barthes (1972), trata-se de uma exposição discutível, posto que nos remete ideologicamente ao mito ambíguo da família, sem nenhuma interrogação sobre sua origem. Escreve Barthes (pp. 114-115):

Este mito da “condição” humana repousa sobre uma mistificação muito antiga que consiste sempre em colocar a Natureza no fundo da História. Todo o humanismo clássico postula que, esgravatando um pouco a história dos homens, a relatividade de suas instituições, ou a diversidade superficial de sua pele (...) depressa se chega ao âmago profundo de uma natureza humana universal. O humanismo progressista, pelo contrário, deve sempre pensar em inverter os termos desta velhíssima impostura, em decapar incessantemente a natureza, as suas “leis” e os seus “limites”, para nela descobrir a História e estabelecer finalmente a própria natureza como histórica.

Eternizar os gestos do homem, como é proposto por essa exposição pseudo-antropológica cuja linguagem é simultaneamente lírica e documental, constrange essa mesma gestualidade num mito que ignora seu próprio fundo histórico-cultural.

É bom lembrar que a relação entre o tema da família e a linguagem da fotografia existe desde o advento da fotografia, no século XIX. Em 2005, sob a coordenação de Sophie Spencer-Woods, uma coleção de 175 fotografias das famílias de 56 fotógrafos de nacionalidades e épocas diferentes (do século XIX até a atualidade), produzidas por eles mesmos, deu origem a um livro de artista, publicado em Londres e em Nova York. O livro emociona porque é possível ao leitor reconhecer-se nele. Porém, à medida que nos aproximamos do presente, o lirismo dos primeiros fotógrafos cede lugar a uma perspectiva crítica, nada idealizada da família, perspectiva que apresenta sem retoques certas transformações e o processo do envelhecimento, intrínseco à inexorável passagem do tempo. E tais manifestações evidenciam a postura do artista contemporâneo como muito próxima da do repórter, do etnógrafo, da testemunha impiedosa de sua própria época – postura avessa a qualquer utopia (Foster, 1996).

Candice Breitz é uma artista importante nessa linha de trabalho. Sul-africana radicada em Berlim, ela busca interrogar e no limite destruir os estereótipos e as convenções visuais da cultura de massa. Apropriando-se de fotografias e fragmentos visuais de filmes, vídeos, propagandas, Breitz os recontextualiza em enquadres destituídos de qualquer glamour.

Numa instalação concebida especificamente para o Castelo de Rivoli, em Turim, e, depois, para a última Bienal de Veneza (2005), a artista interroga as funções materna e paterna no contexto da contemporaneidade. A instalação chama-se Mother+Father e questiona o cânone da crença sobre a família ideal, tal como a indústria cinematográfica produz e os filmes veiculam, podendo convencer o público a aceitar o que vêem na tela como realidade. A mãe é aquela que vive de renúncias e se deprime ou cai num estado de constante histeria. O pai é o homem economicamente bemsucedido, nem sempre satisfeito com esse sucesso, e superprotetor com relação aos filhos, mas nem sempre para com a esposa. Segundo Breitz sugere, Hollywood compõe um cast de personagens autoritários que pretendem plasmar e modelar o espectador à sua imagem.Nessas mostras, ela usa as imagens de Meryl Streep, Shirley MacLaine, Julia Roberts, Susan Sarandon, Faye Dunaway e Diane Keaton para a sessão Mother. E as imagens de Dustin Hoffman, Donald Sutherland, Tony Danza,Harvey Keitel, Steve Martin e John Voight para a sessão Father.

Recortadas de seus contextos fílmicos originários, as performances dos atores e atrizes compõem uma nova montagem, em telões distintos, um para cada intérprete, mas todos ao mesmo tempo, uns diante dos outros. Ou seja, cada ator/atriz é apresentado num fundo negro, separado de seus companheiros de cena. Porém, mantidas as performances originais de cada um, desenvolve-se uma interação diabólica na qual todos praticamente dizem as mesmas coisas uns para os outros, acompanhados de um repertório de gestos que é basicamente idêntico. Mães falam com mães e pais com pais. E nesse face a face narcísico violento, a estereotipia dos papéis implicados na maternidade e na paternidade da família hollywoodiana aparece nitidamente. Além disso, a desconstrução que Breitz opera com a reciclagem das imagens visa capacitar o espectador para a percepção do falso eu, para a crítica ao uso das imagens na mídia e para uma reflexão sobre os motivos que subjazem a esse uso.

Ainda dentro da perspectiva de problematização do viver junto, outro artista que chama a atenção é Mark Raidpere, participante da Bienal de Veneza de 2005. Fotógrafo e videasta do Leste europeu, Raidpere trabalha com temas transgressivos na Estônia, como o homoerotismo, a questão da vida privada e a comunicação entre membros de uma mesma família. Os vídeos Father (2001) e Voiceover (2004) apresentam a intimidade do pai do artista como um lugar de defesa em que a segurança precária do isolamento e da privacidade só é atingida com a alienação mental. Em Shifting focus (2004), apresenta-se uma conversa constrangedora entre mãe e filho. É o filho que visivelmente se constrange e se angustia ao falar de si para sua mãe, que permanece em silêncio, imóvel e inexpressiva. Nesse trabalho, como nos da britânica Gillian Wearing, denuncia-se a hipocrisia que caracteriza certos documentários realizados com famílias contemporâneas. E é na extrema atenção dada às nuances psicológicas da cena familiar que a dimensão absolutamente particular da obra de Raidpere adquire um caráter universal: o segredo ameaça ser dito, mas permanece como não-dito porque não pode ser ouvido. É a “banalidade do mal”, presente na arte e nas relações interpessoais contemporâneas, que dificulta os processos de comunicação e de identificação (Frayze-Pereira, 2006, p. 293).

Outro exemplo, sobre o qual cabe um comentário mais demorado, nos é dado pela obra da francesa Louise Bourgeois, que celebra mais de sessenta anos de projeto artístico muito produtivo. Na 51ª Bienal de Veneza (2005), Louise marcou presença com um conjunto de esculturas enigmáticas nas quais a espiral é a forma predominante. Tal forma possui duas direções, diz a artista: a concêntrica significa o medo de perder o controle, o terror do desaparecimento; e a excêntrica, a afirmação de si, a energia positiva. Com essas esculturas, a artista sugere que o ser se move em ambas as direções e que na arte, como na vida, não há um caminho linear a ser seguido para atingir o sentido. Essa idéia está presente em todo o percurso da artista, que se faz segundo o duplo movimento de concentração/expansão entre a obra e a sua própria vida.

Em São Paulo, no Museu de Arte Moderna, há uma obra de Louise Bourgeois – uma escultura em bronze, uma aranha que já ficou famosa e que ocupa inúmeros espaços públicos do mundo todo numa espécie de homenagem simultaneamente globalizada e singular à mãe da artista, que faleceu quando esta era muito jovem: o nome da peça não é aranha, mas justamente Maman.

Sobre sua obra, a artista tem o costume de fazer anotações, detalhando impressões, lembranças e aspectos do seu processo construtivo (Bourgeois, 2000). Sobre Maman, ela escreveu o seguinte: “Minha mãe era deliberadamente paciente, inteligente, razoável, sutil, calmante, delicada, indispensável, limpa e útil como uma aranha...” (Tranberg, 2001).1 Podemos pensar que há certa ironia fina nesse depoimento, considerando até que ponto as características enunciadas são compatíveis com os monstros criados pela artista, expostos nos locais públicos. Quer dizer, Louise engrandece sua mãe com a poderosa figura da aranha. A peça maior inclui um saco com ovos sob o abdômen, noutras peças os ovos foram esculpidos em mármore polido, material que lhes confere a qualidade de jóias. Tais detalhes podem dar, a princípio, uma idéia de que família e maternidade são questões importantes para essa artista...Mas ela narra a história de sua família como um romance que começa assim:

Fui criada num ambiente familiar disfuncional e promíscuo, no qual ninguém falava sobre sexo. Superficialmente, o sexo não existia. Mas, na verdade, não se pensava em outra coisa. Meu pai dormia com qualquer uma, inclusive Sadie, a tutora inglesa que morava em nossa casa (Tranberg, 2001/2007).

Louise nasceu em Paris, em 1911, e vive em Nova York há muitos anos. Sua família possuía e operava uma empresa de tapeçaria, o que permite fazer analogias entre o tear das tecelãs, inclusive o de sua mãe, e as teias e as aranhas que povoam sua obra. Em suas narrativas autobiográficas, a artista indica que a dor serviu de matéria para a sua poética. A esse respeito, ela diz:

Não se pode negar a existência das dores. Não proponho remédios ou desculpas. Simplesmente quero olhar para elas e falar sobre elas. Sei que não posso fazer nada para eliminá- las ou suprimi-las. Não sou capaz de fazê-las desaparecer; elas estão aí para sempre (...). O tema da dor é meu campo de trabalho. Dar significado e forma à frustração e ao sofrimento. O que acontece com meu corpo tem de receber uma forma abstrata e formal. Então, pode-se dizer que a dor é o preço pago pela libertação do formalismo (Bourgeois, 2000, p. 205).

São vários os incidentes dolorosos vividos e relembrados por ela na fatura de suas obras. Por exemplo, em certa ocasião o pai recortou a figura de uma menina na casca de uma laranja. Segurando-a no ar e chamando a atenção de todos, ele observa: “Esta é Louise, que não tem nada entre as pernas!”. Dado o intenso sentimento de humilhação diante da risada de todos, a resposta da artista foi pegar um pão branco, amassá-lo com saliva e modelar com ele a figura de seu pai para, em seguida, cortar os membros com uma faca. Bem mais tarde, Bourgeois cria uma peça sem título, inspirada na lembrança dessa primeira solução escultórica, que fez parte de uma série exposta em 2003 na galeria White Cube, em Londres. Podese pensar que as operações artísticas de Louise Bourgeois são elaborações de ações agressivas sobre certos objetos, isto é, operações que podem ter sido organizadas por um movimento de reparação, de restauração do objeto percebido como ameaçado ou destruído fantasiosamente (Nixon, 1997, p. 161).

Assim, sobre a monumental instalação em látex The destruction of the father (1974), que pude ver numa inusitada mostra temporária no Museu do Louvre, em 2000, a artista escreveu a seguinte fábula:

Há uma mesa de jantar... O pai está se pronunciando, dizendo à platéia cativa como ele é ótimo... Isso acontece dia após dia. Uma espécie de ressentimento cresce nas crianças. Chega o dia em que elas se irritam. Há tragédia no ar. Ele já fez demais esse discurso.As crianças o agarram e o põem sobre a mesa. E ele se torna a comida. Elas o dividem, o desmembram e o comem. E assim ele é liquidado... Trata-se de um drama oral... A irritação era sua constante agressão verbal. Então ele foi liquidado, da mesma maneira que havia liquidado seus filhos. A escultura representa ao mesmo tempo uma mesa e uma cama... Essas duas coisas contam na vida erótica de uma pessoa: a mesa de jantar e a cama. A mesa onde seus pais o fazem sofrer. E a cama onde você se deita com seu marido, onde seus filhos nasceram, onde você vai morrer (Bourgeois, 2000, p. 115).

Mais ainda, pode-se associar a instalação à caverna de um predador com estalactites, estalagmites, uma presa semidevorada ou um palco de teatro de marionetes que encenam a questão do canibalismo.De qualquer maneira, pode- se dizer que The destruction of the father é a cena ficcional de um crime recuperado pela arte.

Poderíamos pensar estarmos diante de uma artista portadora de sintoma, de uma obra que permite associações entre arte e loucura. No entanto, essa interpretação é muito pobre, em se tratando de uma leitora voraz de Freud e de Lacan e, sobretudo, de Melanie Klein, referência psicanalítica importante de sua obra. The destruction of the father, entretanto, inspira-se em Totem e tabu (Freud, 1913/1974). E Louise é uma dama politicamente envolvida com o movimento feminista desde os anos 1960, que não escreve livros nem defende teses acadêmicas, mas que é autora de uma obra que discute o lugar da mulher num mundo artístico falocêntrico. Foi depois da morte do marido, o historiador da arte Robert Goldwater, que ela passou a rever o seu passado traumático pela ótica do feminismo. The destruction of the father resulta desse período. E, como dizem os críticos, Bourgeois é a única capaz de fazer arte conceitual/abstrata que se apresenta como erótica. No retrato feito por Mapplethorpe, Playful mother [Mãe brincalhona] (1982), a artista embala outra obra dela mesma – Fillette (1968), um objeto concebido via surrealismo como um “objeto desagradável” no sentido de ser ambivalente – quando pendurado pelo arame, é um objeto de nojo, isto é, de ódio, um pedaço de carne castrado; mas no colo da artista parece um objeto de amor. E ela mesma dispensa qualquer interpretação psicanalítica convencional, ao expor sua articulação pessoal, baseada em Klein, entre bebê e pênis. Apesar disso, pode-se dizer que, com essa obra, psicanaliticamente, Bourgeois propõe uma apropriação do falo simbólico.

Analisando muito rapidamente o percurso de Louise Bourgeois, podemos ficar perplexos com a presença das concepções psicanalíticas na elaboração de sua obra. Assim, na fotografia feita por Mapplethorpe (1982), ao se apresentar como mãe da boneca-falo, segurando o objeto debaixo do braço, Louise faz um deslocamento da mãe patriarcal para a mãe brincalhona e agressiva. E, ao dar forma à fantasia de agressão para com o falo-bebê, demonstra como a artista-mãe pode se fazer sujeito através da agressividade. Nesse sentido, deve ser lembrado que a imagem fotografada por Mapplethorpe se tornou um ícone das exposições Bad girls em Los Angeles e em Nova York. Realizadas pela primeira vez nos anos 1960 e 1970, esses eventos construíram uma genealogia de bad girl’s mothers e, depois, em 1990, a genealogia das Bad girl’s daughters. Louise é considerada a mãe de todas as bad girls. Trata-se de uma matrilinhagem artística extensa e bem conceituada, que inclui, além de Louise Bougeois, Márcia Tanner, Artemísia Gentilescchi, Meret Oppenheim, Yoko Ono, Faith Ringgold, Linda Benglis, Cindy Sherman,Nancy Bowen, Ava Gerber, Rachel Witheread, Rona Pondick, entre outras... São nomes expressivos de artistas que, da década de 1960 até hoje, constituíram uma grande família artística através da qual o poder masculino, no campo da arte, foi não excluído, mas bastante questionado e reduzido (Nixon, 1997).

Na fotografia feita por Mapplethorpe, Louise fez de si mesma a imagem da mãe que sorri ironicamente para a supervalorização patriarcal do falo, que parodia a metonímia da criança e do pênis, em cujas mãos o falo se torna apenas um pênis, isto é, perde o status de significante privilegiado para se transformar em mais um objeto de agressão e de desejo. E essa não é uma fantasia psicanalítica per se, mas antes, uma fantasia artística provocativa que interroga a psicanálise. Ou seja, se na teoria kleiniana, a mãe não existe rigorosamente como sujeito, e sim como objeto das projeções agressivas da criança, Louise produz um sujeito maternal constituído como um sujeito criança, por meio de um jogo de introjeções e de projeções. Então, ao colocar a mãe contra a criança, a parte-objeto contra o falo, e o humor contra o fetiche – isto é, ao explorar a tensão entre os modelos kleiniano, lacaniano e freudiano, ela produz a mãe brincalhona-agressiva. Nessa medida, como observa Nixon (1997), pode-se dizer que não foi uma “mãe má”, figura fálica poderosa e persecutória que levou Louise a se tornar artista (cf. litogravura Bad mother, 1997); muito menos uma “mãe inteiramente boa”, figura idealizada e nutritiva (cf. escultura Bread, 1998). Ao contrário, ela tornou-se a artista que é graças à atividade de uma “mãe suficientemente má”.

Em suma, as manifestações artísticas que brevemente comentamos mostram que, no contexto da arte contemporânea, uma temática candente é a relação arte/vida e que a “dificuldade de viver junto” – expressão de Roland Barthes (2004) que inspirou os curadores da 27ª Bienal Internacional de São Paulo (2006) – é atravessada pela vida familiar. Alguns artistas contemporâneos interpretam esse tema, utilizando, de maneira muito pessoal, as linguagens da fotografia, do vídeo e da instalação, não apenas para apresentálo, como também para problematizá-lo, denunciando suas formas convencionais de realização cultural, seus compromissos político-ideológicos, seus pressupostos existenciais e suas implicações psicológicas. Cada uma das obras comentadas interroga o campo simbólico que estrutura secretamente as relações familiares, as funções pai e mãe, a identidade pessoal. Com isso, fica evidente que, na contemporaneidade, as obras de certos artistas subvertem o instituído e interpelam o público com uma linguagem visual que propõe algo desconhecido, nem sempre fácil, nem agradável, a ser pensado. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma analogia entre esse modo de fazer arte e certa tendência crítica da psicanálise contemporânea que se resume na idéia de que é próprio do saber não o ver ou o demonstrar, mas o problematizar, isto é, interrogar radicalmente os campos que inconscientemente fixam os modos de ser no mundo. E tal trabalho interrogativo, na verdade, significa interpretar, ou seja, romper ou desmontar tudo aquilo que impede o fluxo temporal da existência, tudo o que dificulta o advento da possibilidade de esta vir a ser pensada e transformada subjetiva e objetivamente.

 

Referências

Barthes, R. (1972). A grande família dos homens. In R. Barthes, Mitologias (pp. 113-116). São Paulo: Difusão Européia do Livro.        [ Links ]

Barthes, R. (2004). Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes.

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Endereço para correspondência
João Augusto Frayze-Pereira
Rua Joaquim Antunes, 727/72 – Pinheiros
05415-012 – São Paulo – SP
Tel.: 11 4702-4781
E-mail: joaofrayze@yahoo.com.br

 

 

* Psicanalista pelo Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 A tradução dos textos de D. Tranberg foi feita pelo autor.