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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

Reality game: violência contemporânea e desnaturação da linguagem

 

Reality game: contemporary violence and denaturation of language

 

 

Marion Minerbo*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora relaciona a violência contemporânea e a desnaturação da linguagem a partir de uma interpretação do filme Laranja mecânica. Este exibe um tipo de violência lúdica, um reality game, uma brincadeira de verdade, que tem como condição de possibilidade a fragilidade do símbolo.A violência, no filme, é ao mesmo tempo uma representação, uma brincadeira, e é a própria coisa, pois os protagonistas realmente matam pessoas. O filme mostra também o que acontece quando o laço simbólico que une um significante a um significado é desfeito. O significante continua existindo, mas esvaziado de seu significado original, ou então, significando outra coisa. Esta fratura do símbolo altera nossa sensibilidade, determinando um novo tipo de violência, determinado pela miséria simbólica.

Palavras-chave: Desnaturação da linguagem. Miséria simbólica. Reality game. Violência contemporânea.


ABSTRACT

The author relates contemporary violence and the denaturation of language, taking as a starting point the movie Orange clock, by Kubrick. The film shows a ludic violence, made possible because of the fragility of symbol. The acts of violence in this movie are at one and the same time, representation (play), and the thing itself (real). The movies also allow us to understand what happens when the symbolic tie that maintains together a signifier and a signification is broken. The signifier is still there, but empty of meaning, or with a new meaning ascribed to it. The consequence is a change in our sensibility, and this is a necessary condition for a certain kind of contemporary violence.

Keywords: Denaturation of language. Symbolic misery. Reality game. Contemporary violence.


 

 

Em Laranja mecânica, filme de Kubrick (1971), há uma cena particularmente perturbadora. No palco de um teatro abandonado a gangue de Alex vê outra gangue estuprando uma mulher. Por alguns segundos, não sabemos se é um ensaio, se eles estão representando, ou se aquilo é de verdade. O protagonista olha para a cena e comenta: “Estão fazendo o entra e sai”. Em minha interpretação do filme, relaciono certo tipo de violência contemporânea e a linguagem.

O filme trata de um tipo de violência que podemos denominar de “contemporânea”, pois, como veremos, o que está em jogo é a fragilidade do símbolo. Trata-se de uma violência lúdica, aparentemente imotivada,1 praticada por adolescentes contra alvos inocentes e fracos.Acode-nos à memória o caso da gangue que pôs fogo no índio em Brasília, e outros atos de vandalismo violento praticados em condomínios de luxo. O filme trata também da tentativa de curar esse tipo de violência com métodos científicos “modernos”. O condicionamento do comportamento pressupõe que o ser humano pode ser tratado como um animal destituído de linguagem; e que se pode ignorar a determinação simbólica da subjetividade, passando-se ao largo dela. Assim, a falta de confiança na força do símbolo parece determinar os dois lados da moeda: a própria violência e o tratamento proposto. Não pretendo me estender sobre este último aspecto.

Tenho estudado outros fenômenos contemporâneos que também me parecem determinados pela fragilidade do símbolo: a body art, os reality shows e os crimes contemporâneos (como o caso Suzane Richthofen – filhos que matam pais, e vice-versa). Em todos eles, uma nova relação entre a coisa e o símbolo parece estar em vigência: “o símbolo representa a coisa e, ao mesmo tempo, é a própria coisa”.

A Psicanálise é chamada, com freqüência, a se pronunciar sobre esse tipo de fenômeno. Acredito que, se há algo de novo na psicopatologia psicanalítica, é a fragilidade do símbolo na cultura contemporânea e o amplo espectro de fenômenos patológicos a ela relacionada. Ao analisar Laranja mecânica reencontro essa mesma lógica, mas agora determinando uma forma de violência que vou denominar reality game, híbrido de reality show e videogame. É o que pretendo desenvolver ao longo do texto.

 

Sinopse comentada

Apesar de ter sido filmado em 1971, o tipo de violência ali descrito continua atual. A alusão ao contemporâneo, no filme, está presente na ambientação e na estética futuristas. Na leiteria onde a gangue de adolescentes se encontra para decidir o programa da noite, o “leite” sai de seios de acrílico, imagem poderosa de uma maternagem funcional/operatória, e ao mesmo tempo excitante, pois se trata de um leite que já vem aditivado por drogas. A decoração das casas também é futurista. O mais notável, contudo, é o clima emocional desafetado e frio. Os protagonistas não parecem engajados em nenhum tipo de relação significativa. Uma exceção: Alex, o chefe da gangue, é fascinado pela nona sinfonia de Beethoven e adora seu animalzinho de estimação: uma cobra.

No início do filme os quatro amigos estão na leiteria tentando decidir o programa da noite. “Preparam-se”, com a ajuda de substâncias psicoativas, para melhor praticar e fruir a excitação proporcionada pelos atos de “ultraviolência”. É o programa predileto do grupo. Alex, que ainda não tem 18 anos, está inscrito num programa de reabilitação para jovens delinqüentes.

O rapaz tem casa, pai e mãe, vai à escola, tem amigos. Tem o que se convencionou chamar uma “família estruturada”, e está inserido no social. Mas seu bicho de estimação é uma cobra, o que nos dá a medida da frieza do contato afetivo e das relações desumanizadas na casa. A porta de seu quarto é trancada com cadeado, sugerindo um isolamento total da família, e uma vida mental da qual ninguém sabe nada.O clima emocional da casa é superficial e artificial. A mãe veste roupas ultramodernas de maneira estereotipada e ridícula.A decoração é a implantação de um cenário supostamente moderno, mas igualmente ridículo porque ela, a decoração, não é acompanhada por um modo de vida, ou idéias, modernas. O interesse dos pais por ele é operatório – foi à escola ou não foi? Se foi, então tudo bem. Há um casal e um filho, mas não uma família. Há uma casa, mas não um lar.No fim do filme, eles abandonaram seu filho, trocando-o por outro melhor. Quando Alex volta para casa, não há mais lugar para ele, seu quarto é do novo filho. Ficamos chocados diante dessa lógica utilitária. Os pais só irão visitá-lo no hospital quando ele se torna útil no jogo político (há uma disputa política sobre como resolver o problema da violência social).

Os jovens usam roupas diferentes, que faz deles um grupo à parte, uma tribo urbana.Conversam numa língua própria, cheia de neologismos. Não são neologismos que correspondam à necessidade de dar nome a algo novo, como toda a linguagem da informática. Nem são novas gírias. São palavras que substituem outras, sem que haja realmente necessidade disso. Por exemplo, em lugar de dizer “estupro”, dizem “entra e sai”.

A gangue sai da leiteria e a primeira vítima é um velho bêbado. Ele está cantando músicas tradicionais irlandesas que aprendeu com seu pai. O velho reclama que não há mais lei no mundo, e que o mundo atual fede.Depois é massacrado pelo grupo, que se diverte muito.

Em seguida há uma cena em que outra gangue está estuprando uma mulher no palco de um teatro abandonado. Vemos que a gangue de Alex não é um caso isolado naquela sociedade. Trata-se de um fenômeno social.

O teatro, como as canções do velho, remete a um mundo de valores tradicionais.As duas gangues se enfrentam, a garota foge, a pancadaria parece um balé. No começo desta cena ficamos em dúvida se se trata de um ensaio para uma peça, ou de um estupro mesmo. É representação, ou é “de verdade”?

Em seguida, os jovens dirigem em alta velocidade na contramão de uma estrada, provocando vários acidentes. Eles se divertem. O destino é uma casa de nome Home, Lar. Ali mora um casal de intelectuais. A casa é moderna, como a de Alex, mas cheia de vida, de livros, de diálogo. É realmente um lar. A arquitetura e a decoração combinam com um ideário humanista: o casal que mora lá adota posições libertárias, contra o estado autoritário e sua política alienante. O grupo estupra a mulher diante dos olhos esbugalhados do marido, e o espancam até ele ficar paralítico.

A terceira casa invadida nessa longa noitada pertence a uma mulher “liberada” que mora sozinha. É uma professora de ioga, dona de um spa, bem sucedida e apreciadora de arte erótica. Alex esmaga a cabeça dela com uma de suas esculturas representando um pênis. Ele é pego em flagrante. Pouco depois a mulher morre.

Alex, que até então era um jovem delinqüente, agora é um assassino.É preso e escolhe ser submetido a um “tratamento” para curar-se de sua violência. Passa por um condicionamento que faz com que se sinta fisicamente muito mal sempre que assiste ou participa de uma cena de violência. A cada vez que um impulso violento toma conta dele, tem a sensação de estar morrendo. Com isso, deixa, efetivamente, de praticar o mal. Não porque tenha tido qualquer insight a respeito da alteridade, mas porque não pode fazer de outra maneira. Já não pode escolher entre o bem e o mal. O estado totalitário pratica uma violência análoga ao destituí-lo de sua humanidade.

Depois de condicionado, quando Alex está mais manso do que um cordeiro, as pessoas que havia espancado começam a se vingar.Durante o condicionamento assiste a um filme com cenas violentas cuja trilha sonora é a nona sinfonia. O resultado é que não tolera mais nem a violência nem a música. A vingança mais sutil é a do escritor, que ficou paralítico e perdeu a esposa por culpa de Alex. Tranca-o num sótão e começa a tocar, em alto volume, a nona sinfonia. O rapaz não tem como escapar da sensação horrível que a música lhe produz e se atira pela janela. Pode ser que diante do sofrimento produzido pela música tenha, impulsivamente, tentado sair do quarto pela única saída disponível.Mas também é possível que, vendo-se obrigado a renunciar ao que dava sentido à sua vida, preferisse acabar com ela.Mas Alex não morre. No fim do filme sua violência retorna tal qual.

 

Funções da violência na economia psíquica individual

Cabe mencionar, ainda que brevemente, interpretações sobre a violência adolescente que incidem sobre sua função na economia psíquica individual – e penso em Alex quando as formulo. A intenção é diferenciá-las do reality game, forma de violência que configura um fenômeno social ligado à desnaturação da linguagem e a fragilidade do símbolo, tema deste ensaio.

Vejamos, pois, algumas interpretações da violência entendida como sintoma individual:

1. A violência funciona como uma droga altamente excitante usada para combater o tédio. O tédio pode ser entendido como um sentimento de tipo depressivo ou esquizóide, resultado de um desinvestimento maciço dos objetos, tanto internos quanto externos. A excitação afasta temporariamente o sentimento de vazio e futilidade da subjetividade entediada.

2. A violência pode ser uma resposta do adolescente à indiferença do mundo. É preciso matar alguém para tornarse visível, para ser alguém e se fazer ouvir.Na cadeia pelo menos há um enquadre, uma rotina. Há uma “violência necessária”, por parte do sistema carcerário, que poderia ter uma função estruturante para o psiquismo.A violência é uma forma extrema de convocar o objeto e a lei: um grito de socorro.

3. O adolescente, em sua descontinuidade identitária, precisa, nessa passagem para a vida adulta, ser acolhido pelo social. Se o social está esgarçado, os adolescentes ficam pendurados num vazio simbólico. Não há instituições que os acolham e que lhes ofereçam um lugar valorizado, referências identificatórias e ideais que possam ser investidos. Resta a pura sensorialidade excitante, que alivia a angústia de aniquilamento produzida pela descontinuidade identitária.

4. Alex inveja o velho bêbado que tem idéias, tem história, teve um pai que lhe ensinou canções. Inveja a relação amorosa intensa e significativa do casal de intelectuais que mora em Home. Inveja a mulher que tem uma carreira que a preenche, é uma apreciadora de arte, tem um projeto de vida. Ele só tem a cobra e a nona sinfonia e não se sente capaz de criar, para si, um mundo caloroso, nem conta com a ajuda necessária para tanto. A solução para apaziguar sua inveja é destruir o que ele não pode ter/ser. Isso nos lembra do massacre de Columbine, em que dois jovens atiraram em seus colegas de escola e depois se mataram. Ficamos sabendo que os atiradores eram os nerds da escola – alunos que são vistos e se vêem como perdedores e excluídos. Ao que parece, tinham ódio e inveja dos que estavam no páreo, construindo um futuro para si.

 

A fragilidade do símbolo

Quem são as vítimas da violência da gangue de Alex? São indivíduos que representam valores de uma civilização em vias de desaparecer. Nesse sentido, Alex ataca símbolos. Mas são símbolos vivos, pois praticam efetivamente esses valores em seu cotidiano. Ou seja, eles representam, mas também são “de verdade”. No ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, no 11 de setembro, temos essa mesma situação: as torres representam o capitalismo selvagem e o imperialismo americano – são um símbolo potente.Mas as torres também são o lugar real em que decisões sobre a economia mundial são tomadas por pessoas reais que trabalham ali todos os dias.As torres gêmeas são um símbolo, mas são “de verdade”.

Body art

O mesmo fenômeno pode ser observado na arte.2 Marc Quinn, um artista inglês que trabalha na linha da body art, fez uma série de quadros chamados Shit painting (1974). Ele pintou as telas com as próprias fezes. Em certa interpretação psicanalítica a respeito da sublimação de pulsões anais, podemos dizer que a tinta representa as fezes. Mas aqui, parece que o artista não acredita na capacidade da tinta de simbolizar as fezes e usa fezes “de verdade”. Por outro lado, trata-se de uma tela exposta num museu: há uma dimensão de uma representação! Mas a representação está tão próxima da coisa “de verdade” que é como se a coisa e o símbolo estivessem superpostos. Como se trata de arte, entendemos que ele está fazendo a crítica da fragilidade do símbolo no mundo contemporâneo.

Reality show

Outro fenômeno da cultura de massa contemporâneo, o reality show,3 também está atravessado por essa fragilidade do símbolo. Mas ali o “defeito” é transformado em virtude: brincamos com o fato de não termos como saber quanto há “de verdade”, e quanto há de representação naquele show. Os jovens que participam do Big Brother Brasil são “de verdade” porque durante dois ou três meses se comportam na casa em que estão vivendo como o fariam em sua vida comum. Eles são aquilo mesmo que vemos. E, ao mesmo tempo são atores, embora sem um roteiro pré-determinado. Representam a si mesmos diante das câmeras. A casa também é uma casa “de verdade”, com sala, quartos, banheiro, cozinha; as pessoas comem, tomam banho e dormem.Mas é claramente uma casa- espetáculo, com centenas de câmeras espalhadas e uma decoração minuciosamente estudada. O espectador aficionado não perde de vista de vista esta duplicidade. É isso que diverte as massas e garante o sucesso do show.

Reality game

Em Laranja mecânica há uma forma de violência lúdica à qual cabe denominar reality game, híbrido de reality show e videogame. A graça toda do reality game, cuja tradução é “brincadeira de verdade”, é brincar duplamente com a ambigüidade entre a coisa e sua representação. O ataque, a violência, é uma brincadeira, mas é de verdade. A vítima escolhida é um símbolo, mas é a coisa simbolizada.

No filme, os adolescentes batizam sua brincadeira de “ultraviolência”. Em que consiste a brincadeira? Primeiro, tomam o seu leite aditivado. Quando estão no ponto, saem pela noite para brincar de atacar as pessoas. Há um critério na escolha das vítimas: são pessoas que representam, que simbolizam, uma sociedade e valores em vias de desaparecer. Mas ao mesmo tempo são “de verdade”: gente de carne e osso que vive e pratica em seu dia-a-dia esses valores.

Estamos a léguas da situação clássica em que uma criança usa sua massinha para criar peões que representam algum personagem odiado, para depois destruí-los, expressando assim a sua violência. Não adiantaria a Alex queimar a partitura da música tradicional irlandesa. É preciso atacar a pessoa que a está cantando. A representação só vale para o psiquismo se ela também for a própria coisa.Aqui o peão do jogo tem que ser de carne e osso. Embora a representação tenha, tradicionalmente, a função de estar no lugar da realidade, no mundo contemporâneo, em que a representação é frágil, a realidade é chamada a dar sustentação à representação.

O que aconteceu com o brincar? Retomemos uma das cenas mais chocantes do filme. Percebemos que Alex esmaga a cabeça da dona do spa, tal como a criança esmaga a massinha que representa a mãe odiada. A criança sabe que a massinha não é a mãe. Ela é capaz de fazer o trabalho do negativo, conceito de Green (1991), que descreve a capacidade psíquica de sustentar a não-percepção do objeto, fazendo o luto por sua ausência.Neste espaço vazio nasce a representação daquilo que não está, presentificando a “ausência do objeto”para o psiquismo. Ao criar uma mãe de massinha, sabe perfeitamente que está destruindo um símbolo, e não a própria coisa.

Há situações em que este conhecimento se perde. Hanna Segal (1957) criou o conceito de equação simbólica para descrever a destruição da capacidade de discriminar o símbolo da coisa em pacientes esquizofrênicos. Ela observou que, nesses pacientes, a distância entre o símbolo e a coisa se esfuma. O símbolo é tratado como a própria coisa simbolizada. Um de seus pacientes parou de tocar violino porque não podia se masturbar em público. Em suma, o esquizofrênico confunde o símbolo com a coisa simbolizada.

Alex não é esquizofrênico. Ele não trata a representação como a própria coisa.Acontece algo diferente da equação simbólica: a coisa é que é tratada como símbolo, como representação. Não é que ele não consiga usar a massinha para brincar; não é que ele não simbolize.Tanto simboliza que identifica perfeitamente os símbolos de uma civilização em declínio. É que ele não acredita mais na capacidade da massinha representar a mãe, em sua ausência. A capacidade de simbolização é frágil: se quiser expressar o seu ódio, é obrigado a atacar a mãe em carne e osso. É como se uma criança, não confiando na capacidade do ursinho de representar a mãe em sua ausência, precisasse de um pedaço de seu corpo “de verdade”. Como já disse um filósofo, o conceito de cão não late.4 Hoje, para o conceito de cão ter força e ser significativo, deve, de alguma forma, latir.

Voltando para a psicopatologia individual, o neurótico conseguiu criar um símbolo para a mãe-ausente e por isso conta com uma rede de representações. O não-neurótico não fez o luto pela perda do objeto. Não é capaz de sustentar psiquicamente o negativo, a “ausência” da coisa; “a linguagem não veio substituir a coisa”. O símbolo não lhe diz nada, se não estiver minimamente acompanhado pela coisa simbolizada. Assim como Quinn não confia na capacidade das tintas de representarem as fezes e expressa essa descrença pintando com as próprias fezes, Alex (e tantos outros) não confia que a massinha possa representar o velho e suas canções tradicionais.Ao invejar o velho, tem que esmagar o próprio velho.

Descrevi no início do texto a cena em que há um estupro acontecendo sobre o palco de um velho teatro. A cena é perturbadora e nos atinge contratransferencialmente: experimentamos em nós a fragilidade do símbolo. Por alguns segundos, não sabemos se aquilo é de verdade, ou é uma representação. Mas a cena tem outro elemento fundamental que ainda não foi analisado. Alex não chama aquilo de estupro, mas de “entra e sai”. É um exemplo mínimo de desnaturação da linguagem, cujas conseqüências são o esvaziamento semântico e a alteração em nossa sensibilidade. Esses fatores são condição de possibilidade de haver o reality game.

 

Desnaturação da linguagem, esvaziamento semântico e alteração na sensibilidade

Quando a palavra estupro é substituída por “entra e sai” está em curso o processo de desnaturação da linguagem. A idéia de desnaturação do laço simbólico foi desenvolvida em outro texto (Minerbo, 2000). Ao estudar a lógica da corrupção, sugeri que a corrupção corrompe – rompe – o laço simbólico que une a palavra juiz a uma série de significados como justiça, transgressão, culpa, pena etc. Como conseqüência, a palavra justiça acaba por não ter mais o lastro necessário para constituir subjetividade. Houve um esvaziamento semântico. Isso afeta nossa sensibilidade: a toga não evoca mais em nós sentimentos como confiança e respeito.

Quando Alex usa outra palavra para denominar a cena de penetração sexual violenta, ele desfaz o laço simbólico que unia o significante “estupro” ao significado “crime sexual”. A cena continua existindo, mas a palavra “entra e sai” a reveste de um novo significado. Isto significa que passamos a sentir coisas diferentes diante da mesma cena. A palavra “estupro” nos introduz no campo da ética. Desperta em nós uma sensibilidade relacionada à violência e ao crime; evoca e produz sentimentos de repúdio moral e de horror. Já a palavra “entra e sai” evoca uma situação lúdica, de parque de diversões. Ela nos introduz no campo do lazer, e não da ética. A palavra “entra e sai” evoca em nós movimentos do corpo numa gangorra, ou num carrossel em que os cavalinhos “sobem e descem”. Repito o que me parece essencial nesse processo: esvaziamento semântico alterou nossa sensibilidade; a violência sexual passa a ser vivida como algo inocente e divertido. O conceito de estupro não existe mais; a idéia de violência sexual se perdeu. A partir desse ponto, um jovem pode forçar uma mulher a manter relações sexuais, e tudo não passará de uma brincadeira (de verdade).Vemos agora claramente a relação entre a alteração na nossa sensibilidade devida à desnaturação da linguagem e a possibilidade de haver o reality game.

Quando a mídia cria expressões espirituosas para se referir a casos de corrupção no Brasil tais como “dança da pizza”, “anões do orçamento”,“valerioduto”,está em curso o mesmo processo de esvaziamento semântico. Somos desalojados do campo da ética e introduzidos no campo do chiste.Quando rimos, estamos perdendo, ou já perdemos, a sensibilidade para o significado “corrupção obscena e escandalosa”.Como nos indignar diante de fatos descritos por meio de expressões tão espirituosas?

A insensibilidade a certas situações também é condição de possibilidade para certos crimes que denominei, por falta de termo melhor, crimes contemporâneos – homicídios em que um filho mata a mãe, ou a mãe mata o filho, sem que possamos identificar ali elementos trágicos.Ao contrário, os motivos para esses crimes são “utilitários”. A Antigüidade inventou a tragédia. A mãe, traída, humilhada e desesperada, mata os filhos para se vingar do marido; o pai, que também é o soberano da cidade-estado, sacrifica a filha aos deuses para salvá-la; outro soberano mata seu filho para não ser destronado. O elemento trágico, nossa sensibilidade, nosso horror, depende exatamente de haver um reconhecimento claro dos lugares simbólicos: é um “pai” que está matando sua “filha”. Nos crimes familiares contemporâneos uma mãe pode afogar a criança a que deu à luz porque era um estorvo. Falta o elemento trágico porque essa mãe não significa, não representa, não simboliza aquele corpo como meu filho. Um pai pode vender seu bebê porque está sem dinheiro, como no filme L’enfant. Surpreso diante da reação de horror da mãe, ele argumenta: “Ora, podemos fazer outro!”.

 

O processo de dissolução e de reconstrução do laço simbólico

Quando um sistema simbólico está em plena vigência, unindo fortemente um significante a um significado, este laço é difícil de ser desfeito espontaneamente. A desconstrução do símbolo exige um esforço. Um exemplo mínimo: é com esforço que, olhando para a tela que representa uma paisagem, em lugar de ver a paisagem, um significado possível, vemos ali “óleo sobre tela”, puro significante.

Mas no mundo contemporâneo essa desconstrução tem acontecido espontaneamente, em função da fragilidade das instituições.Vejamos como isso acontece na instituição Família. Os pais exercem sua paternidade e maternidade dos mais variados modos, dos mais adequados aos mais cruéis, passando pelos mais loucos.Mas em todos estes casos, os pais se reconhecem ocupando o lugar de pais, isto é, reconhecem sua responsabilidade em relação às suas crias, que passam a ser significadas como “filhos”.Mas pode acontecer de eles se destituírem dessa função, omitindo-se com relação ao destino dos filhos. “O que eu tenho a ver com a vida deles?”. Como conseqüência, o sistema simbólico que eles deveriam encarnar se enfraquece, pois a instituição Família – mera matriz simbólica – só existe concretamente se, e quando, os pais ocupam efetivamente esses lugares. Caso contrário, a família é pura virtualidade. Quando os pais não se sentem responsáveis pelos filhos, estão destruindo o laço simbólico que existia entre o significante “pai”, e o significado “responsável pelo filho”.

Ora, um filho só escuta a palavra paterna como tal porque ela é lastreada pelo simbólico. Quando o sistema se desnatura, o pai pode até tentar orientar seu filho, mas o lugar a partir do qual fala já não estará lastreado. Os lugares simbólicos de pai, mãe e filho já não existem e, portanto, não podem ser ocupados. A palavra do pai é letra morta. Outros afetos, igualmente lastreados por este sistema, tais como: respeito, gratidão, preocupação, amor, proteção, ódio, rivalidade, castração, são reduzidos a pó. A fratura do símbolo torna os significantes vazios de significado. Há um esvaziamento semântico e uma alteração na sensibilidade.

O símbolo, uma vez fraturado, acaba por se consolidar em uma nova posição graças à formação de um novo laço simbólico unindo aquele mesmo significante a um novo significado. Por exemplo, o significante pai pode se unir ao significado “mala”, ou “mala sem alça”: um trambolho inútil. O significante filho pode se unir ao significado mercadoria, como no filme L’enfant.O significante mãe pode se unir a uma significação utilitária. É o que permite a Eugênia, personagem de Sade, dizer, antes de matar sua mãe,5 quando esta se tornou inútil: “Que laços me prendem à mulher que me pôs no mundo?”. Infelizmente, ela terá razão.

 

A miséria simbólica e a banalidade do mal

Para finalizar sintetizando as idéias aqui expostas, gostaria de sugerir que a desnaturação progressiva de várias instituições – Família, Justiça, Educação, Saúde – deixam a sociedade num estado de miséria simbólica (o termo é de Bernard Stiegler). Essa miséria determina fenômenos diversos entre os quais uma nova forma de violência social que denominei reality game. Ela acaba por alterar nossa sensibilidade. Quando um jovem diz “Meu pai é um mala”, a palavra “pai” saiu do campo do respeito afetuoso e passa a evocar afetos de tipo utilitário. A miséria simbólica produz infinitas figuras mínimas da banalidade do mal – expressão de Hanna Arendt.

 

Referências

Green, A. (1990). Le travail du negatif. Paris: Editions de Minuit.        [ Links ]

Minerbo, M. (2000). Que vantagem Maria leva?: Um olhar psicanalítico sobre a corrupção. Percurso, 13(24): 89-95.

Minerbo, M. (no prelo). Big Brother Brasil: A gladiatura pós-moderna, Psicologia USP.

Minerbo, M. (no prelo). Crimes contemporâneos: Uma interpretação, ou O inumano. Percurso.

Segal, H. (1991). Notas sobre a formação de símbolos. In E. B. Spillius (Ed.), Melanie Klein hoje, desenvolvimentos da teoria e da técnica Vol. 1: Artigos predominantemente teóricos (pp. 167-184). Rio de Janeiro: Imago. 1991. (Trabalho original publicado em 1957)

Stiegler, B. (2003). De la misère symbolique. Recuperado em 8 dez. 2006: http://1libertaire.free.fr/BStiegler01.html.

 

 

Endereço para correspondência
Marion Minerbo
Rua Alcides Pertiga, 78 – Cerqueira César
05413-100 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3898-0074
E-mail: marion.minerbo@terra.com.br

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise São Paulo.
1 As interpretações clássicas sobre a violência social não parecem caber aqui: revolta pelo sofrimento da exclusão, opressão ou humilhação social, racismos e nacionalismos.
2 Explorei o sentido crítico da body art, cuja matéria diz respeito à diminuição da distância entre a representação e a coisa, em “Crimes contemporâneos”, no prelo, na Revista Percurso.
3 Uma interpretação do sucesso dos reality shows foi desenvolvida em “Big Brother Brasil: gladiatura pós-moderna”, no prelo, na Revista Psicologia USP.
4 Devo este comentário a Luis Claudio Figueiredo.
5 Em Filosofia na alcova.