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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

PUBLICAÇÕES

 

A violência: um assunto de todos

 

 

Susana Muszkat

Membro associado da SBPSP. Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP

Endereço para correspondência

 

 

Endo, Paulo César. A violência no coração da cidade: Um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2005. 320 p.

Este é um estudo sério, denso e abrangente, resultado das teses de doutorado e pós-doutorado de Paulo Endo, no Instituto de Psicologia da USP. Assim, qualquer esforço no sentido de transmitir o seu conteúdo em poucas páginas seguramente deixará de contemplar muitos dos diversos e importantes aspectos apontados pelo autor.

A relevância do tema é indiscutível. A necessidade de que nós, psicanalistas na atualidade, ofereçamos nosso instrumental, a fim de ajudarmos na proposição de ações de enfrentamento dessas questões é o que nos diferencia entre sermos seres humanos implicados com a humanidade ou meros habitantes alienados. Paulo Endo se encontra definitivamente na primeira categoria.

Deixa logo bem clara a impossibilidade de tratar o tema da violência na cidade de São Paulo de forma linear e objetiva, ou ainda a partir de categorias estanques tipo: bons versus maus, pobres versus ricos, bandidos versus mocinhos, uma vez que essa dicotomização “ordena de modo simplista e radical um campo complexo e profundo” (p. 82). O que vai se evidenciando, como nos diz o autor, é que “Tais dicotomias repousam num claro interesse na manutenção de distâncias e de privilégios mantidos há séculos por meio da força bruta” (p. 82).

Endo não isenta ninguém da questão, levando-nos, a todos, a conhecer os bastidores, bastante perturbadores, de uma espécie de “indústria da violência”, desenvolvida, mantida e perpetuada pelas autoridades, instituições governamentais, polícias, grandes empresas de capital privado... e, por que não, pela população que nela vive, nós, os paulistanos.

Chama a atenção o contraste, já na Introdução, entre a contundência do tema e a sensibilidade do autor, que, de forma tocante, relata uma experiência infantil impactante. Nesta, ele, menino pequeno, assiste a seu pai, que, num ato de humanidade, tenta evitar (sem sucesso) uma violenta briga entre dois homens adultos que se atacavam bem diante de seu automóvel e cujo desfecho se anunciava para o lado do trágico.Aqui, Endo deixa implícita a idéia, que mais adiante irá desenvolver, do sentimento de solidariedade, sendo esse, segundo ele e Primo Levi, por ele citado,“muitas vezes, o último traço humano visível que pode fazer de homens aviltados, homens melhores, uma espécie de fronteira identificatória com o humano...” (p. 241).

Essa cena ficará na memória do autor como um evento traumático, perpetuando, através da repetição na memória, a experiência violenta, contestando o princípio do prazer – tema que será amplamente discutido por Endo, a partir das concepções da segunda teoria das pulsões, de Freud, em 1920. Descreve os sentimentos de temor e impotência vividos então, semelhante àqueles com o qual nós, cidadãos paulistanos, freqüentemente nos deparamos no nosso cotidiano. Usando uma expressão de Nestrovski (2000) diz: “Nunca narrei essa história a ninguém... É possível que o percurso possibilitado por este trabalho tenha restituído o dizível àquilo que, até então, era ‘só imagem, quase nenhum pensamento’” (p. 14). Vemos aqui, neste pequeno comentário de final de página, a interseção do cidadão e do psicanalista pensando suas experiências, dando-lhes sentido e possibilitando a elaboração do que até então era vivido exclusivamente no âmbito da repetição traumática.

Paulo propõe trabalhar o tema a partir de um vértice tríplice: 1) A violência, 2) O corpo: incidência invariável sobre o qual a violência se dá, e 3) A cidade de São Paulo: lócus onde habita o corpo e onde se constroem subjetividades, a partir da maneira pela qual se dá a ordenação de seus habitantes em seu interior.

Seus dois referenciais principais são o de sua diversificada experiência em ONGs, voltadas para o trabalho com vítimas da violência, incluindo entrevistas com a população mais diretamente atingida (como os habitantes do Jardim Ângela, por exemplo), e o segundo, o referencial Freudiano – que aqui tem lugar de destaque –, mostrando uma desenvoltura e uma intimidade com a obra de Freud dignas de nota.

O livro divide-se em três partes principais: 1) A violência e a cidade, 2) A violência no pensamento de Freud e 3) O corpo na cidade. Encerra-o com suas Considerações finais, “a fim de evidenciar o sentido de finalizar abrindo para um novo princípio” (p. 283).

Na primeira parte, dedicada ao tema da violência na cidade de São Paulo, o autor faz um rico apanhado histórico com vistas a contextualizar a situação de discriminação, exclusão e violência que observamos e vivemos no cotidiano de nossa cidade. O modelo escravocrata é mencionado como base sobre a qual se dá a formação da sociedade brasileira,um sistema calcado na violência, desigualdade e domínio sobre o corpo e a mente do outro, cujo resultado é um processo de “dessubjetivização”. Endo compara esse modelo às formas de ação freqüentemente utilizadas por nossas polícias.

Ele descreve também

a fragmentação territorial urbana já nas primeiras décadas da República, francamente associada à especulação e aos interesses privados [...] cujo propósito era a manutenção de oportunidades e privilégios nas mãos de pequenos grupos dominantes de forma estável e permanente, encontrando, assim, respaldo nas leis que regiam e determinavam o futuro da cidade (p. 58-59).

Choca-nos, ainda, com dados sobre a cidade ao denunciar que a violência experimentada aqui é superior àquela vivida em países em guerra. E mais, segundo dados por ele obtidos no jornal Folha de S. Paulo (2002), 85,9% da população paulistana encontra-se em situação de exclusão social.

Assim, a desigualdade na distribuição dos mapas da cidade e dos recursos disponíveis aos diferentes grupos cria contingentes de não-cidadãos, ratificando e banalizando tal desigualdade sob a forma de injustiças sociais (uma forma invisível, mas corrosiva de violência), institucionalizandoa, uma vez que adquirem caráter “natural”. Essa violência, por seu turno, gera e faz crescer outros tipos de violências na cidade (p. 26).

Destaco, por exemplo, o subcapítulo “Tortura e propina: compra-se e vende-se violência”, em que Endo nos coloca incomodamente de frente com uma situação bastante familiar a todos que aqui vivem: a de pagar de maneira privada por aquilo que deveria ser provido de maneira pública, ou seja, nossa segurança enquanto cidadãos. Evidencia o mercado da violência como um “bom negócio”, de modo que se termina por “remunerar a violência, perpetuando-se a mesma” (p. 38).Vai se tornando inevitavelmente clara a implicação que todos temos na perpetuação desses modos violentos de funcionamento.

“A cor da pele, a região geográfica da cidade ou do estado de origem, a roupa, a conta bancária, podem definir e demarcar as fronteiras de quem é cidadão e de quem não é” (p. 86). Essa visão maniqueísta e simplificadora de outorgação de “não-lugares” a uns e de “lugares de cidadão” a outros “alivia” aqueles que, dentro deste esquema, acreditam poder localizar e isolar o “mal”, controlando-o e mantendo-o afastado do “bem”, fenômeno que, como nos lembra Endo, já havia sido formulado por Freud ao falar sobre o Narcisismo das pequenas diferenças (1930).

Na segunda parte, a mais extensa das três, o autor percorre a obra freudiana, norteado por três eixos principais: a) Os textos sobre a guerra e a neurose traumática, desde sua primeira conceitualização feita a partir do estudo da histeria, b) O sadomasoquismo e c) A introdução da pulsão de morte segundo as teorias das pulsões e do superego da segunda tópica (p. 222). Justifica sua escolha teórica ao afirmar que os conceitos por ele escolhidos

permitirão avançar na compreensão do caráter ambivalente que o citadino estabelece com as violências que ocorrem em sua cidade, contribuindo para que, de algum modo, ela se agrave, se enraíze e se aprofunde a ponto de ter de aceitar viver num estado de medo e terror permanentes (p. 223).

Na terceira parte, Endo explicita a violência concreta vivida em nosso cotidiano que se expressa basicamente em dois vértices, aos quais atribui caráter traumático: sobre o corpo, degradado e testemunhado no espaço público, e, agindo como um segundo momento traumático, a “exposição das violências e por vezes dos mesmos corpos, pelas mídias, transformadas em espetáculo” (p. 226). A estagnação contemplativa e, por que não, nefasta, que se estabelece entre o espectador e o espetáculo, contrasta fortemente com a descrição dos fóruns feita por Paulo, em que o cidadão comum encontrará uma possibilidade de salvaguardar seus direitos, não se calando diante da violação deles (p. 278).

É neste contexto que Endo descreve a comovente mobilização dos habitantes do Jardim Ângela (conhecido por todos os paulistanos como um dos lugares mais violentos do mundo), que, através do “Fórum em defesa da vida contra a violência”, saem de seu imobilismo e paralisação diante das violências ali vividas, envolvendo-se e debatendo com toda a comunidade sobre os problemas que lhes dizem respeito. É ainda lá que se organiza, anualmente, desde 1996, a “Caminhada pela vida e paz”, promovida pelo Fórum.As estatísticas de violência realizadas em São Paulo nos surpreenderam, há cerca de dois anos, ao destacar a queda brutal – embora, longe ainda dos níveis a que se desejaria chegar – dos índices de violência naquela região.

Termino com um parágrafo do próprio autor, que diz:

Não pretendíamos apresentar o Fórum como um modelo do que deve ser feito, uma vez que isso, em nossa opinião, deve respeitar rigorosamente as características locais e as formas de violência que se quer compreender e estancar em progressão. Mas mostrar que é possível se opor às violências restaurando o sentido profundo que só a participação intrínseca e profundamente verdadeira da população atingida e envolvida por estes abusos pode alcançar; que a dor e o medo não devem ser assuntos apenas para especialistas [...] (sob) o risco de produzir reflexões e ações genéricas, preconcebidas e mais violentas (p. 290, grifos meus).

 

 

Endereço para correspondência
Susana Muszkat
Avenida São Gualter 453 – Alto de Pinheiros
05455-000 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3022-7430
E-mail: smuszkat@terra.com.br