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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

PUBLICAÇÕES

 

O que temos feito com as marcas do tempo?

 

 

Beatriz Helena Peres Stucchi

Instituto de Psicanálise da SBPSP

Endereço para correspondência

 

 

Gueller, Adela Stoppel de. Vestígios do tempo: Paradoxos da atemporalidade no pensamento freudiano. São Paulo: Arte & Ciência, 2005. 216 p.

Vestígios do tempo é, por si só, um título instigante. E o seu subtítulo propõe um paradoxo: o de que não há vestígio sem o conceito de tempo, sem o passar do tempo. E como se marca o atemporal?

Será que as marcas do tempo sempre trouxeram tantas inquietações? O tempo sempre foi um inimigo onipresente, pelas marcas que impõe? Talvez ele também seja aquele que nos acalenta, pois é famosa a expressão: “Só o tempo cura... uma dor, uma saudade, nossas tristezas de toda e qualquer ordem! Só o tempo cura as marcas da vida!”.

Em tudo o que fazemos – sofrer, sonhar, amar –, estamos envoltos com o “senhor dos tempos”, parafraseando Caetano Veloso em letra da música Oração ao tempo. Cito-o:

Tempo, tempo, tempo, tempo
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
(...)
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
(...)
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo

Mas, o tempo nos parece inventivo quando deixa marcas visíveis, como a escrita de Adela, que assim o será de modo particular para cada leitor.

Este livro, cuja origem é uma tese de doutorado defendida no programa de Psicologia Clínica, da PUC-SP, em 2001, tem como objetivo “precisar, questionar e problematizar a noção de atemporalidade na psicanálise, dando ênfase ao lugar que ocupa nos textos de Freud” (p. 17).

Para além de uma “costura” minuciosa de textos freudianos, em razão da temática proposta, sua leitura nos conduz a muito mais.

O ponto de partida da autora tem como base suas indagações sobre a clínica com crianças gravemente comprometidas, com atrasos de linguagem, cognitivos e motores, ou seja, crianças com sérias dificuldades para se constituírem psiquicamente.

De início, ela nos apresenta uma situação clínica que permanece paradigmática e se torna pano de fundo de suas buscas pela compreensão daquilo que é vivido com o paciente, que nos remete ao “não-saber”, ao que fica calado, ou que grita de maneira inaudível. Violência que nos é comunicada e nos remete ao inquietante lugar do trauma, do recalque, do impedimento, da paralisia, do não-pensar.

No entanto, Adela corajosamente não se deixa aprisionar por nenhum desses conceitos e sai em busca de ouvir com atenção o que foi dito pelo próprio Freud, rastreando seus percursos, dialogando com suas idéias, fazendo-as frutificar. Como se, entretecendo aquilo que é vivenciado na clínica com o que a teoria nos traz, buscasse produzir uma nova trama.

O trajeto que percorre para isso é muito particular, refletindo e mostrando as pedras no caminho de suas reflexões, de suas andanças pelos textos, não só freudianos. Como ela mesma nos diz:“Nada há de fácil em abrir caminhos nem em seguir bifurcações” (p. 208).

A autora nos põe em contato com filósofos como Santo Agostinho, Kant, Bergson e Derrida, entre outros. E o campo filosófico já constitui uma viagem no tempo e sobre o tempo, instigando-nos a “perder tempo” com cada uma dessas variantes, antes de seguir viagem em sua companhia. Podemos aqui entender “a perda de tempo” como a visualização das “marcas do tempo” que estiveram presentes para Freud, como um ser que viveu seu tempo e que, como “pensador genial”, nos deixou registros do máximo que pode ser pensado em um tempo determinado, mesmo que tenha formulações para muito além de seu tempo.

E a “pensabilidade máxima de um tempo”, expressão oral de Modesto Carone em seminário sobre literatura, exige trabalho para ser entendida, absorvida e transformada. Talvez seja isso que para nós faça sentido nas renovadas leituras de Freud.

O excelente texto de Adela nos conduz por caminhos talvez já muito percorridos, contudo ela o faz indagando sobre questões da constituição psíquica, a fim de suportar e organizar o seu próprio caminhar na clínica, que muitas vezes se aproxima dos nossos embates clínicos diários. As marcas dos trajetos por ela deixadas são bem sinalizadas, e por vezes condensadas, mesmo daqueles percursos por nós antes trilhados, que ganham um novo e vivaz colorido – isso acontece quando vemos fotos de lugares conhecidos, recortados por um outro olhar. E um bom texto não é necessariamente aquele que ensina uma teoria, e sim o que nos faz pensar sobre o que essa teoria sistematiza.

Adela nos relata o que a motivou a empreender esse trabalho de pesquisa e de elaboração de sua tese de doutorado, e sua preocupação mostra-se em sintonia com as inquietações presentes no momento para a comunidade psicanalítica, pois falar da atemporalidade em Freud nos remete ao seu texto “Recordar, repetir, elaborar” (1914/1969), que será o tema do próximo Congresso Internacional de Psicanálise da IPA, em julho de 2007, na cidade de Berlim. Preocupação ou interesse fundante da psicanálise, desde sua concepção, e que nos remete ao problema da verdade histórica, das lacunas de memória, da ausência de representação. São vestígios de violência, de violência originária, em relação à qual, como podemos apreender do que Freud diz em “Moisés e o monoteísmo” (1939/1975), a dificuldade não é executar o ato, mas eliminar os traços. Desde sempre estamos às voltas com os traços e suas revelações.

Assim, repetindo leituras, recordando experiências e elaborando novas compreensões, a autora nos arremessa para os fundamentos da psicanálise e se aprofunda nos registros psíquicos. O que são eles? Como se guardam e para quê? Como se transformam? Ou eles se perdem? Podemos reconstruí-los?

Memória, inconsciente, metáforas arqueológicas, regressão, progressão – conceitos revisitados e todos implicados com a temporalidade. De que tempo falamos? Tempo é vida, e vida é finitude! Porém, a questão para a psicanálise é a da atemporalidade, da inexistência da noção de tempo no inconsciente, questão perseguida Adela Stoppel, com maestria:

A atemporalidade não tem um estatuto conceitual preciso na teoria psicanalítica, embora incida em tópicos diferentes tanto na da metapsicologia, quanto da técnica e da prática clínica. Na metapsicologia, que será o eixo principal, ela se encontra relacionada com conceitos tão diversos como memória e seus diferentes modos de inscrição e transcrição; a divisão intrapsíquica e, conseqüentemente, ao relacionamento e à divisão dos sistemas; aos tempos de constituição do aparelho psíquico e, portanto, do sujeito; e às conseqüências psicopatológicas dessa constituição (p. 17).

A partir de que momento a constituição psíquica pode ser assim considerada?

O que é o infantil, para nós, psicanalistas? O infantil é o que somos, após a infância? O desejo recalcado na infância, que nos acompanha a todo instante, pode ressignificar-se no futuro, mostrando um passado e a fugacidade do presente?

Como Adela faz ressaltar dos textos freudianos, (p. 40), “nada se perde, tudo se conserva” e “na verdade, como sabemos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente ser vítima da destruição total. Depende exclusivamente do trabalho analítico obtermos sucesso em trazer à luz o que está completamente oculto” (Freud, 1937/1975, p. 294).

Se a via régia para o inconsciente é o sonho – e sabemos que Freud diferenciava os sonhos de adultos dos de crianças, estes últimos vistos como a realização direta de desejos, sem disfarces de elaborações oníricas –, de que ordem é o que fica oculto, para pensarmos a clínica com crianças, e com crianças como as que Adela nos propõe?

A especificidade da clínica com crianças está novamente em foco. Será ela tão polêmica como nos tempos das controvérsias entre Anna Freud e Melanie Klein? Trata-se de um retorno à questão ou uma expansão que nos instiga na atualidade diante da clínica: clínica “infantil” ou clínica das “psicoses”? O originário nos leva a essas diferenciações? Ou temos aqui uma pseudoquestão que pode nos levar a pensar ainda mais em fundamentos metapsicológicos, para além das indagações técnicas? Se prosseguirmos nesta direção, veremos que a clínica com crianças implica especificidades relativas ao tempo e à memória. Mas quais seriam suas implicações técnicas?

Convido o leitor a se instigar com estas preocupações que a autora nos aponta ao longo de seu livro.

No nível teórico, ela nos leva aos fundamentos metapsicológicos, ressaltando ainda uma vez, com excelente capacidade de articulação conceitual, a clínica, e nos conduz diretamente às vivências traumáticas.

É por meio das dificuldades na clínica que o trauma se reapresenta, com a inquietação de que aquilo que se mostra e se repete sem significado exige uma hipótese de reconstrução. A violência do trauma se apresenta na repetição compulsiva de um ato, mesmo que ele seja, na presença do outro, o silêncio “mortífero”.

Como disse o doutor Norberto Marucco (2007), em recente conferência na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo: “Entre a recordação e o destino: a repetição”, podemos pensar em “re-petição” (pedido de ajuda). E a repetição, na presença do analista, pede uma escuta para essa petição, para a qual Adela procurou uma resposta.Marucco, na ocasião citada, nos fala de “uma virada, na teoria da cura, desde a recordação e o desvelamento do desejo inconsciente, à possibilidade de entender a repetição ‘pura’, que seria a essência mesma da pulsão”. Ele assinala três classes de repetição: a “representativa” (edípica), a daquilo que é “não representado” (narcisista), que pode adquirir representação, e a do “irrepresentável” (impressões sensoriais, “vivências do tempo primordial”, “significantes prelingüísticos”, “marcas mnemônicas ingovernáveis”). As indagações apresentadas no livro, pela sintonia com a conferência mencionada, podem nos dar sinais dos tempos atuais na psicanálise?

Com muita coerência, a autora nos comunica suas (in)conclusões, na parte final, que me parecem repercutem tanto no trabalho com crianças, como naquele realizado com crianças consideradas de difícil acesso. E, ao trabalhar com os fundamentos da psicanálise, ela pode fomentar reconstruções em nossos próprios fundamentos, os quais muitas vezes lucram com mudanças, reconstruções e ressignificações que o tempo exige de nós – se estivermos vivos, vivos e com perguntas que não querem calar!

Isso me faz lembrar dos dizeres de Santo Agostinho, em O homem e o tempo, confissões. No século IV, a resposta à pergunta sobre o tempo e seu modo particular de existir, ganhou mais celebridade que a pergunta que lhe deu origem: “Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” (Agostinho, citado por Gueller, p. 30).

Adela expõe muito bem seus caminhos de conhecimento e, por outro lado, sabe o valor de “saber não saber” (p. 15).

 

Referências

Freud, S. (1969). Recordar, repetir, elaborar. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 191- 203). Rio de Janeiro: Imago. 1996. (Trabalho original publicado em 1914).

Freud, S. (1975) Construções em análise. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 289- 304). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Trabalho original publicado em 1937).

Freud, S. (1975). Moisés e o monoteísmo. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 13- 161). Rio de Janeiro: Imago. 1996. (Trabalho original publicado em 1939).

Marucco, N. C. (2007). Entre a recordação e o destino: A repetição. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(1),121-136.

 

 

Endereço para correspondência
Beatriz Helena Peres Stucchi
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