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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM II

 

Em busca das palavras perdidas: corpo-carcereiro da mente nos distúrbios alimentares

 

In search of the lost words: body-jailer of the mind in eating disorders

 

 

Marina Ramalho Miranda*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, a autora discute a especificidade da linguagem analítica possível de ser desenvolvida no processo psicanalítico de jovens mulheres portadoras de perturbações alimentares, especialmente, anorexia e bulimia, onde o corpo é usado para estampar afetos inomináveis, emoções antitéticas, que ficam perdidas e negadas dentro da relação fusional com a figura materna internalizada, gerando a dissociação corpo-mente e a tendência ao ato em detrimento do pensar ponderado.

Palavras-chave: Anorexia, Bulimia, Corpo versus mente, Linguagem.


ABSTRACT

In this paper, the author discuss the specificity of possible analytical language in young women psychoanalytical process suffering some eating disorders specially anorexia and bulimia, where the body is mana ged to stamp some affects, antithetic emotions, which remains lost and denied into the fusional relationship of the internalized maternal image, causing the body-mind dissociation and the tendency to the acting out instead of cool thinking.

Keywords: Anorexia, Bulimia, Body versus mind, Language.


 

 

Os olhos e os ouvidos humanos são más testemunhas, caso sua
alma não esteja preparada para compreender suas linguagens.

Heráclito de Éfeso. 500 a.C.

 

“Quando a alma chora e o corpo sangra” num eterno combate que se perpetua na sua intensa repetição, quando existe a percepção de que houve um erro e que se morre por engano... Quando uma mulher, quase menina, deixa de comer e se vê presa em corredores sombrios, “imersa em intestinos, esôfagos e muito sangue, vagando por entre a fome e as comidas, ingeridas e devolvidas” chegamos muito perto de um espaço de fronteira composto por paradoxos, enigmas e contradições: um território mental habitado por fantasmas sem corpo, corpos sem dono, bocas sem voz, almas em exílio forçado.

“Existe combate mais sofrido e perpétuo do que o da alma, alva, branca, gelada e leve, com o corpo cansado, pesado, negro, quente e selvagem?”

A alma desencarnada voa solta por entre as estrelas embebidas pelos devaneios que, sem sentido nem rumo certo a conduzem ao corpo fraco e desgastado, cujo sangue escoa, rarefeito, nas artérias carcomidas e nos músculos cansados, no esôfago ferido e arranhado pela insistente passagem do alimento rejeitado, do veneno tóxico nascido na experiência dolorosa do não saber.

Na grande encenação da vida, a menina-moça-mulher, inapetente e faminta, cozinha lentamente em seu caldeirão de emoções uma poção que julga mágica, dotada de poderes que a elevam ao triunfo sobre a carne, sobre as comidas, sobre a vida. Mas, ao longo dessa viagem alucinada, percebe-se só, amedrontada, e, especialmente, perdida de si, de seus desejos e de seus sonhos: está à espera de algo. Parece amortecida. Atônita e perplexa diante da força e da fraqueza.

“Como podem, corpo e alma, habitar o mesmo universo?”

A alma, tão sensível, sente até a respiração serena dos anjos. O corpo, tão decomposto, deteriora-se em suas veias onde correm maldições e mentiras.

“Cego de cólera, o corpo se move em direção a desejos movediços, onde o mel se torna fel... onde tudo foi um erro...”

Desabafos exaustos do sofrer. Tentativas literárias, poéticas, de representação. Mais do que tudo, fortes mensagens. Meninas-mulheres, em pleno processo psicanalítico, vivendo as agruras das perturbações alimentares, buscando palavras que denunciem o drama psíquico da sensação de morte em vida, da experiência de viver em eterna desarmonia, experimentando a tortura dos contrastes e do sentir antagônico ensaiam a escrita, procurando palavras que dêem conta da intensidade emocional que as invade: ora tentam um registro-diário, ora escrevem na realidade virtual do computador, ora elaboram textos para si, inicialmente e, em outro momento celebrado na dupla, para o mundo de fora.

Penso que a Psicanálise no trato com os transtornos alimentares faz uso de equipamentos semelhantes metaforicamente aos da geologia, pois lida com vidas mentais ossificadas, onde as mudanças climáticas variam por vezes na mesma sessão, ou ainda, na mesma fala, passando da era glacial, com pontas de iceberg por todo lado, até áreas áridas e abafadas, quando não caímos em terrenos pantanosos, cheios de areias movediças, impossibilitadas de caminhar.

A alma, inquieta, pergunta. O corpo, desestabilizado, responde.

Mulheres-guerreiras que lutam a todo custo para reencontrar em si o saber de si mesmas e assim fazer nascer seu sujeito desejante. Algumas sucumbem... em meio ao atordoamento incessante da busca infelizmente solitária e perdida de si... outras, elevam-se tanto que “prescindem dos pés, pois ganham asas para voar”!1

Adoecer no corpo, adoecer no psíquico, tendo como pano de fundo destas reflexões a idéia de que corpo e mente não poderiam se separar jamais. Um corpo que fala, muitas vezes grita, um corpo que sofre, anunciando que está vivo. A alma combalida, avisando que a guerra desgasta, liqüida e faz perder a esperança. O corpo, magro e esquálido, desnuda o sinistro que contém em si. E sinistro é mistério, é estranho, é acidente. Seu corpo é um aviso de sinistro.

Jovens, quase meninas, perplexas diante da distância entre o ato e o sonho, assustadas por se perceberem vivendo num intervalo sem alternativas de conciliação. Donas de uma alma despregada do corpo, pertencente à esfera dos céus e dos deuses, a alma tem a textura de nuvens, ou da neve, esvoaça ligeira e leve e não pode fazer contato com a carne pesada, contaminada pelo humano, pelo sangue, pelo calor. Indignadas, percebem a raiva e o desencontro de si. Ora é alma, etérea e enlevada, ora é corpo, monstro selvagem. Ensandecidas, clamam por socorro.

Faltam peças para essa edificação, buracos impedem a estruturação serena do sentir, uma alma-corpo onde o hífen não consegue unir na direção do sentido, um corpo em exílio forçado. A palavra que une, o ato da linguagem sendo ensaiado nos textos escritos, que consegue acessar a presença de um olhar de cristal, porquanto impedido da movimentação, preso na sensorialidade, ou na imagem, no primário da vida. A alma chora, o corpo sangra. Uma coroa de espinhos, própria dos reis e dos deuses penitenciados, exibe o martírio de uma vida que se esvai, o sangue no alimento desdenhado e vomitado, não compreendido, uma alma perdida na busca dos sentidos.

Para a Psicanálise, o indivíduo apóia seu sentimento de identidade na experiência de que se vive no interior do próprio envelope carnal, numa constante tentativa de manter o corpo e o eu em viva integração. Contudo, essa experiência parece estar ausente em muitos adolescentes e adultos, mais freqüentemente do que se possa imaginar e a dissociação severa entre a psique e o soma nos é apresentada a todo instante na clínica da atualidade (McDougall, 1987, p. 14, nota do editor).

Entramos, neste momento num universo antigo, no reino pré-simbólico, aproximando-nos de mentes povoadas de angústias difusas nascidas a partir de afetos desconhecidos que, por não conseguirem representação, migram para o corpo, que os enclausura e ali eles ficam, adormecidos, mas paradoxalmente ativos em sua mudez, nutrindo a vida mental de movimentos desarmônicos, direcionando o ego rumo a lugares vazios, num vácuo sem fundo, numa interminável busca de significação. Buscas enganadas, pois o ego carece de seu guia maior, o desejo, negado e perdido para estes seres que tiveram seus investimentos libidinais deslocados para o alimento e para o corpo: a memória para as experiências de prazer está prejudicada, logo, o desprazer e o desconforto imperam, soberanos.

Anorexias, bulimias, transtornos compulsivos, obesidade mórbida, candidatos às cirurgias bariátricas, um turbilhão de terrores gerados do confronto desleal travado com poderosos fantasmas, inimigos invisíveis que, cruelmente conduzem esses indivíduos não-nascidos para a linguagem metafórica, a uma verdadeira prisão em que sua vida afetiva definha, na inversa proporção em que os obesos inflam e os anoréxicos desaparecem, só deixando à mostra justamente o que não é para ser visto: os ossos e a gordura, o sinistro.

Perturbações alimentares denunciam uma combinação particular da singularidade histórica de quem as apresenta. Corpos usados como diário, em que os ossos, a gordura, as marcas bulímicas dos rituais macabros e as cicatrizes deixadas pelos procedimentos cirúrgicos reais e imaginários estampam como numa tela muito do que foi a tragédia que as acometeu. Que linguagem é esta que se apresenta carregada de imagem? Em que terrenos estamos? De qual dimensão da comunicação estamos tratando?

“O corpo é a última e a mais sensível morada da dor e do aniquilamento. Mas antes de atingir diretamente a carne, o horror se esboça nas idéias e nos procedimentos de controle e dominação” (Tavares, 2005/2006, orelha).

Patologias dos antagonismos que se movem pelos contrários. As sensações estão no lugar das emoções.

Bion (1962/1991) pensava que os dados sensoriais manifestavam-se como elementos beta, em estado bruto, privados de significação. Experiências emocionais não transformadas pela função alfa acumulam-se sob a forma de estímulos que tendem a perturbar o bom funcionamento do aparelho mental e que devem ser eliminadas. Tais estímulos podem ser eliminados através da ação, da alucinação ou das inervações somáticas. Não podendo sonhar, não podendo exercer vida imaginativa, aparecem as sensações corporais.

McDougall (1987, p. 14) vem tentando responder com uma abordagem psicanalítica à seguinte questão:“com que tipo de escuta o psicanalista ouve as mensagens mudas do soma?”.

Fugas somáticas surgem no lugar de fantasias arcaicas. O paciente cria uma carapaça – a magreza que distancia ou a formação da gordura na obesidade – para fazer um espaço estéril entre ele e o outro, a fim de não perder seus próprios limites.

A mente está no corpo sem chance de ser infinita.

Anorexia mental, em que a boca se fecha para a comida e a mente burla a possibilidade de pensar a dor. Anorexias e bulimias, bocas tirânicas cerradas, que ao se abrir jorram vômitos infinitos, que são mensageiros lúgubres de emoções liquefeitas, diluídas em tristezas e expulsas como venenos, sem o menor tempo de espera para sua digestão.

Compulsivas, as anoréxicas/bulímicas repetem infindavelmente a autocópia do que já existe nelas, talvez perseguindo de modo estéril seu ideal de perfeição alucinado ou tentando resgatar um perdão para uma dívida que se eterniza nesse nefasto ritual.

Continua McDougall, a nos ensinar. A partir da matriz somatopsíquica constituída pela fantasia primordial de que se forma um organismo só com a mãe-universo da primeira infância,

Uma diferenciação progressiva entre o corpo próprio e a primeira representação do mundo externo, que é o seio materno, vai se desenvolver na psique infantil. Paralelamente, o que é psíquico vai se distinguindo, os poucos, do que é somático. A lenta “dessomatização” da psique se acompanha, então, de uma dupla busca infantil: sobretudo nos casos de dor física ou psíquica o bebê tentará recriar a ilusão de ter uma unidade corporal e mental com a mãe-seio e ao mesmo tempo lutará para diferenciar-se do seu corpo e do seu ser. Quando o inconsciente materno não põe obstáculos a este movimento, a criança construirá, por intermédio dos processos de internalização – incorporação, introjeção, identificação – a imagem interna de uma mãe nutridora, mãe que cuida, capaz de conter suas tempestades afetivas, apoiando ao mesmo tempo seu desejo de autonomia corporal e psíquica. Daí, então, a criança poderá construir a identificação com esta imago essencial à sua estruturação psíquica e que lhe permitirá assumir as funções maternas introjetadas. Conservará o duplo desejo de ser ela própria e de ser o outro, assim como a dupla ilusão de estar munida de uma identidade separada, inabalável, mantendo ao mesmo tempo um acesso virtual à unidade originária, inefável (McDougall, 1987, pp.19-20).

 

Angústias fusionadas na relação mãe-filha

Neste momento de nossas reflexões, equipados com os instrumentos que a teoria nos trouxe, ingressamos agora na tentativa de compreensão do que houve neste processo de desenvolvimento que levou a uma ruptura, a um descompasso nesta sintonia fina de mensagens mãe-filha e que conduziu essas mentes a um laço fusional da relação.

A aquisição da capacidade e do sentimento de que habitamos o próprio corpo tem a ver com o luto que deveríamos fazer do corpo da mãe. Neste movimento de separação surge e urge a entrada do pai, a figura dele no mundo simbólico da mãe e, conseqüentemente, no da criança (McDougall, 1987, p. 14).

A mãe, que por conter em si um vazio advindo de falhas na própria instalação edipiana, onde a presença da imago paterna, ou seja, a figura masculina não desempenhou papel estruturante na sua vida mental, poderá sentir seu bebê como um ser estranho, um corpo estranho dentro de si, ou ao contrário, não deseja de modo algum abandonar a unidade fusional com seu bebê, especialmente, se for menina. Como então poderá este bebê fazer a aquisição da identidade separada, que lhe outorgará a posse de seu próprio corpo, de suas emoções e de sua capacidade de pensar? Inaugura-se assim um universo que será regido pela égide das relações parciais de objeto e, com o passar dos anos, quanto maior forem os ataques às figuras parentais, maior será a força da identificação com a mãe-seio, idealizada, em que self e objeto se fundem sem alternativas de singularidade. Só que esta imago materna torna-se extremamente perigosa, pois retorna ao imaginário do bebê com sua fome ilimitada de completude para seu vazio e se intromete no espaço psíquico do bebê como um objeto intrusivo devastador, uma boca tirânica, que nos distúrbios alimentares, representa um splitting daquela parte do self que nunca está satisfeita. Ao mesmo tempo, para o olhar da Psicanálise, os transtornos alimentares são uma tentativa defensiva de manter a sobrevida mental e achar o caminho de volta para a nutrição saudável e para os intercâmbios férteis.

Emagrecer na anorexia dramatiza no corpo o desejo de fazer a mãe e seus conteúdos sumirem de dentro dela, corpo-fetiche que substitui o afeto primordial de dependência materna: linguagem dos sonhos, desenhos das livres associações, letras lidas nas seqüências das falas centradas na intensa pré-ocupação com o corpo.

Comer compulsivamente, por sua vez, dramatiza a reatualização da relação primitiva com a mãe, como nos ensina Grinberg (1956), em que o alimento torna-se o fetiche poderoso e responsável pela fantasia de fortalecimento desse ego fragilizado e fragmentado, conferindo-lhe força e o aplacamento das angústias paranóides. O alimento, esse “novo bom objeto” que irá suprir o vazio e espantar as ameaças de perigo que se acercam do ego é investido de um poder curativo e ilusoriamente tranqülizador.

O obeso procura negar a possibilidade dele ter destruído seus bons objetos: a comida está ali, ao seu alcance, podendo ser ingerida a qualquer momento, pois ocupa o lugar do afeto que se perdeu e que o obeso quer a todo custo recuperar, ensina-nos Grinberg.

Assim relata uma jovem obesa mórbida em análise, candidata à cirurgia bariátrica:“Stressed é desserts escrito ao contrário, você percebe como as sobremesas são problemáticas para nós?”.

Uma comunicação que denota estados emocionais que se expressam pelos contrários, como uma escrita em espelho, como se uma dislexia psíquica impedisse a leitura da experiência emocional e a linguagem direta representativa das emoções máximas.

Se o indivíduo nega a destruição do objeto utilizando a presença concreta do alimento, quando ele é ingerido, esta sensação desaparece, é fugaz, resta apenas a impressão sensorial digestiva e afetiva daquilo que se incorporou, mas daí surge a vivência penosa que este processo incorporativo gerou, um conteúdo destrutivo para o objeto e assim se reinicia o ciclo angustiante que exige uma nova tentativa de defesa: esta é a insaciabilidade do obeso (Grinberg, 1956, p. 165).

Na anorexia, a sensação de débito constante de uma dívida que fica constantemente se renovando em busca de um ideal nunca alcançado (Bidaud, 1999) leva a um desespero e a uma vivência de solidão e desamparo muito próximas ao que se passa nas depressões, nas fobias e no pânico, outras patologias típicas da contemporaneidade.

A impossibilidade de achar as palavras que possam conter toda essa angústia, emoções inomináveis, indizíveis, colabora para a instalação de uma economia psíquica apta a favorecer a migração do afeto para o corpo, o corpo inteiro como um campo de guerra que tenta manter a aparência de uma certa identidade subjetiva e preservar de alguma maneira a vida mental.

A análise teria a função de resgatar um sentido pleno de significações para encher de conteúdos ideativos essa vida que ficou esvaziada, um mundo objetal congelado e por isso, paralisado, impedido de retomar o movimento dinâmico que constitui o próprio processo do conhecimento.

Freud (1916/1976a), nas Conferências introdutórias sobre psicanálise, acentua a qualidade tóxica da experiência de ansiedade. A toxicidade se origina no aumento avassalador de estímulos internos que culmina na explosão de sensações de sufocamento, intenso desespero e de aniquilação, bem como de vivência de um profundo desamparo (Hilflosigkeit) e medo de que a morte ou uma catástrofe está por acontecer.

Questões de identidade, de diferenciação das figuras parentais, de busca de afeto e da singularidade do seu modo de estar no mundo.

Um bebê que ficou interditado de processar seu percurso identificatório natural e acabou se identificando com as partes faltantes de seus pais. Mergulha no vazio do corpo da mãe e para suprir o vazio que logo se instala e a insatisfação criada, fantasia estar fundido a ela. O bebê se aquieta, mas cria-se uma apropriação indébita de corpos, um roubo de conteúdos e uma alimentação imprópria em que um não pode parar de nutrir o outro.

Esta dinâmica parece ficar cristalizada no decorrer da infância, mostra-nos a clínica e ensinam-nos os pesquisadores, não nos relatando os pais nenhuma queixa, nenhum grau de insatisfação com esses filhos, que são referidos como “exemplares e muito bonzinhos”.

Ao alcançar a adolescência, a irrupção da sexualidade e o bombardeio pulsional reabrem as brechas da psicossexualidade infantil, renovam as vivências de intrusão-arrombamento do psico-soma (André, 2001a), reavivam os conflitos e colocam o púbere em confronto direto com seus lutos primordiais, a começar pela percepção intensa de que seu corpo da infância, assim como seus pais da infância estão sendo deixados e substituídos por novos e desconhecidos personagens, que são responsáveis pela erotização das velhas ligações.

Continua André (2001a, p. 4): “As representações inconscientes maternas a propósito da filiação da feminilidade (ligando a mãe à sua filha e à sua própria mãe) têm um papel decisivo: as angústias de separação, de abandono, aqui são centrais”.

A recusa em se alimentar pode ser considerada como uma maneira de contê-las. A puberdade ocasiona o enfrentamento da menina com seu interior, “o seu desconhecido e as angústias arcaicas que gera, sobrecarregando a fantasia com um excesso de realidade”.

Saliento que essas meninas (90% das anorexias incidem sobre as mulheres)2, especialmente as adolescentes, buscam se “defender” contra um iminente estado de desorganização e fragmentação do self. Há também no aprisionamento que a falta de motivação traz, um certo sentido penitencial, pela privação de prazeres, como se elas se sentissem indignas de ser merecedoras de uma liberdade prazerosa. Em alguma dimensão, reconhecem um estado agressivo e hostil, mas que expurgam de si, direcionando toda a carga de hostilidade para um objeto, a comida e a gordura, que assim se revestem de características que na realidade não lhe pertencem, ocupando o status de quasepessoa. O objeto externo passa a ser evitado como algo que lhes remete medo e terror, pois é o representante de tudo aquilo que não pode tolerar em si mesmo.

Patologias sombrias, povoadas por habitantes de fronteiras, cheias de enigmas, que, ao mesmo tempo em que nos intrigam pela força destrutiva de sua malignidade, nos fascinam pela intrincada trama afetiva envolvida e pela complexidade na abertura de suas frestas.

Da mesma forma, observo que nos estados em que há um profundo conflito de identidade, e os processos de simbolização ficaram prejudicados, há uma predominância dos atos no lugar das palavras, das ações concretas em direção a fugas, evitamentos e negações da realidade ao invés de enfrentamentos e digestão da dor e do sofrimento. O pensar está interditado. Onde deveria haver o verbo está o ato.

Fernando Pessoa (2006, p. 317), em seu heterônimo, Álvaro de Campos, assim expressa o drama dos descompassos:

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

O poeta mostra as agruras das vivências nas faltas, o sofrimento de quem vive pelas lacunas, num impertinente movimento de busca constante à pertinência. Pode-se sentir sua angústia perante o nada e principalmente sente-se o risco da desistência de manter o investimento libidinal: o fechamento da porta do quarto interno para o mergulho em uma dimensão de sossego de si mesmo... Parece até que Pessoa fala de uma anoréxica, triste e desassossegada que vive o vazio do intervalo, mas onde nada falta.

Uma aparente incongruência, mas, esta frase antitética comunica uma semelhança com o estado indizível dos paradoxos enlouquecedores nas anorexias e bulimias.

A menina se sente vazia, mergulhada no indelével, planando em sua insubstância, mas comunica um estado de mente lotada, arrastando-se no peso do seu cansaço. De nada precisa, pois está próxima da plenitude, mas anseia por um analista falante que lhe devolva a palavra vitalizada e lhe preencha os buracos de seu psicossoma.

Organizações defensivas poderosas, as perturbações alimentares levam a psique a um funcionamento que perverte a ordem natural do desenvolvimento físico e emocional, onde a vontade, o desejo, a fome, os atrativos femininos caminham na contra-mão da natureza, chocando-se o tempo todo com a assunção da genitalidade e com o alcance das significações.

Sentimos com as meninas anoréxicas o luto pela perda do apetite: “a famosa anorexia nervosa em moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa observação) é uma melancolia onde a sexualidade não se desenvolveu” (Freud, 1895/1977, p. 276). Para Freud, perda do apetite significa perda da vida instintual.

Portanto, as pulsões e seus representantes psíquicos estão impedidos de serem reconhecidos, mas as representações simbólicas não nascidas terão o seu lugar se as defesas enclausurantes forem desconstruídas e desarticuladas pela força da palavra analítica: a palavra-bisturi nascida das duas mentes e pronunciada pelas duas bocas em vivo diálogo poderá substituir o bisturi-varinha-de condão de uma cirurgia alucinada como resolução de todas as angústias e quem sabe conseguirá perfurar as camadas de gordura ou a parede refratária da mente... fazer desmoronar aquela comporta anoréxica que represou sonhos e desejos de sonhos, a palavra-alimento poderá ocupar o lugar perdido das representações que se reduziram a calorias frias e distanciadas do calor verdadeiro dos acolhimentos pensantes... a palavra-que-nutre e que promove novas buscas poderá entrar no vazio da fome constante do obeso atormentado pela falta e faminto pelo objeto-sentido... e organizar o mundo em vício empobrecido da repetição daquilo que já conhece de si.

 

Palavra-nome, figura e a linguagem possível na análise

“Estamos sempre sozinhos ao pronunciar uma palavra, mas podemos ser dois a ouvi-la” (Danon-Boileau, 2007, p. 34).

A palavra interpretativa instaura a conexão e repara o hífen que liga a psique ao soma, e, ao mesmo tempo retira a separação do corpo-oral. Fertiliza e abre frentes para novas descobertas.

A palavra interpretativa concilia a pulsão e o imaginário dando substância à criação da linguagem.

A Psicanálise de hoje e seguramente a de amanhã, após seu período lingüístico, terá que ficar atenta à pulsão, em virtude da pressão das neurociências, alerta-nos Julia Kristeva ancorada na herança freudiana:

Em conseqüência, (a Psicanálise) decifra a dramaturgia das pulsões para além da significação da linguagem em que se traveste o sentido pulsional. Os indícios desse sentido pulsional podem ser translingüísticos. Tomemos como exemplo a voz: suas intensidades, seu ritmo carregam freqüentemente o erotismo secreto do deprimido que cortou as ligações da linguagem dirigida ao outro, mas que, no entanto, enterrou o afeto no código obscuro de seus vocalises, no qual o analista irá procurar um desejo não tão morto assim... (Kristeva, 1993/2002, p. 42) (grifos do autor).

Freud (1915/1974a) nos ensina que a palavra é uma apresentação complexa constituída de intrincados processos associativos que incluem elementos de origem visual, táctil, sonoro e cenestésico e só adquire seu significado quando se liga a representações de objetos.

Graças à figurabilidade da palavra-nome a linguagem pode ser fecundada no seu interior.

Boileau, pensador francês contemporâneo, nos ensina que “a fala associativa investe o traço da palavra ouvida”, pois contém o afeto e se encontra provida das virtudes da metáfora.

A rede de relações significantes que caracterizam um sintoma, um discurso, uma transferência só terá sentido na relação do sujeito falante para seu destinatário, ou seja, o analista, interpretando através da língua os indícios do inconsciente que a ela se furta.

Inspirada em Lacan, Kristeva conclui que será a partir da noção de estrutura que se organizará seu destino simbólico, o ser de linguagem, que preside a vida psíquica.

Será que a linguagem intervém no processo de transformação das moções pulsionais em representações inconscientes?

Será que a linguagem influi na “memória sem lembrança” do analisando mobilizando as representações inconscientes do analista?

Ao mesmo tempo em que formula essas perguntas, responde-nos afirmativamente Laurent Boileau:

É a linguagem do analisando que mobiliza a contratransferência do analista e seu Ego inconsciente. Para chegar lá, ele faz entrar em jogo um vértice singularmente arcaico (...) É com efeito a incidência intersubjetiva da linguagem do objeto que permite ao analisando carregar a qualidade da fala que ele endereça a si mesmo. E é da qualidade intrapsíquica desta fala que depende a transformação das moções pulsionais em representações inconscientes (Danon-Boileau, 2007, p. 24).

 

Do sonho à linguagem3

Entre nós, Luís Carlos Menezes, no prefácio da obra de Pierre Fédida (1991/1992), ao apresentar as concepções deste autor, aponta para a memória “imemorial” da linguagem em que a fala tem o poder de suscitar figuras, formas e imagens, assim despertando uma memória desconhecida nela e dela própria.

A linguagem, sob este vértice, não é simples comunicação entre duas pessoas e a transferência como relação interpessoal; a linguagem da análise rompe com a fala informativa e meramente comunicativa e instaura lugares, dispõe figuras, acessa memórias, noções que se encontram articuladas, segundo a observação do autor deste Prefácio, na seguinte formulação de Fédida sobre a escuta analítica em que:

O trabalho de construção supõe simultaneamente construção de lugares, desimaginação das imagens da fala do analisando, e apresentação em figuras do interior da memória das palavras ali onde a fala do analisando oferece apenas a certeza crédula de suas superfícies (Fédida, 1991, p. 11).

Muitas vezes escrevemos sobre nossas inquietações: fazemos breves anotações, em geral sobre questões insistentes vividas analíticamente, que permanecem presentes em nosso pensamento, sem contorno definido e nem sabemos por quê ou para quem escrevemos. Fédida fala sobre isto em relação ao analista, mas quero aqui direcionar essas reflexões também para a escritura do analisando, especialmente se ele estiver vivendo em mundos subterrâneos perdido de seus desejos, sem palavras, sem sustento e sem sentido.

Meninas anoréxicas, principais fontes de inspiração deste artigo, sofrem as agruras de um trauma esquecido, tamanha foi a violência que as acometeu: “No lugar da memória do acontecimento disruptivo, há um buraco. Entretanto, nas bordas do buraco, podem, contudo, ficar as ‘representações limites’ que são o traço do processo motor que permitiu a descarga da excitação causada pelo trauma” (Danon-Boileau, 2007, p. 49).

Representações-limites que aqui poderiam coincidir com as imagens acústicas das palavras, a gradual aquisição de sentido a partir das lembranças das palavras ouvidas, as sensações convocadas por elas, estimuladas também pelos ensaios escritos que vão se transformando em falas associativas e finalmente nos afetos...

Chegamos ao final deste ensaio e me encontro com os inícios, com os textos das jovens meninas, que, além de abrirem minha possibilidade de escrita, inauguram a busca da escritura, o encontro com a dança das letras significantes e suas infinitas combinações. Por meio da linguagem possível a elas, as jovens lotam-se de imagens, desenham seus interiores e caminham, a passos largos, para a criação da metáfora. Sua linguagem é sim bastante fecunda, sua escritura instaura movimento e faz o analista sonhar... e se mover... e produzir.

Seguiram-se a estes seus escritos, muitos outros textos... muitas outras palavras... muitos outros desenhos... pinturas de sonhos... muitas outras conversas e trocas férteis ocuparam o lugar das comidas insípidas, das calorias geladas de afeto, do corpo espetado por farpas de culpas ou dos paladares amargos e azedos dos vômitos. Coloriram-se as relações, que, libidinizadas, libertam o corpo para a vida pulsional, restaurando a história de amor do casal parental internalizado.

Fédida insiste em salientar que:

A causa final da escritura não é a leitura (...) ela talvez resida (...) na criação do desenho interiorizado e, nesse aspecto ela é vital para a existência da linguagem em sua atividade poética constitutiva da metáfora (Fédida, 1991, p. 37).
Saudade é como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida (Lispector, 2005, p. 19).

Termino com a percepção de que teria muito mais a escrever, tantas são as frentes que se abrem a cada novo traço desenhado no embrião de uma nova metáfora e que muitas coisas ficam sem serem conhecidas, para que continuem sendo infindavelmente procuradas.

 

Referências

André, J. (2001a). Feminilidade adolescente (P. H. B. Rondon, trad.). Trabalho apresentado em Seminário Temático, São Paulo, SBPSP, 15 ago. 2001.        [ Links ]

André, J. (2001b). Ponto de tocar. Trabalho apresentado em Conferência, São Paulo, SBPSP, 16 ago. 2001.        [ Links ]

Bidaud, E. (1999). Anorexia mental, ascese, mística: Uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Marina Ramalho Miranda
Rua Guarará, 529/136 – Jardins
01425-001 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3884-3210
E-mail: m.r.miranda@uol.com.br

Recebido: 10/04/2007
Aceito: 30/04/2007

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Mestre e doutora pelo Núcleo de Psicanálise da PUC-SP. Especialista em Saúde Mental pela Faculdade de Saúde Pública da USP.
1 Expressão de uma jovem menina que, em conversas analíticas, parafraseou Frida Kahlo.
2 As pesquisas apontam para o fato de que 90% das pessoas acometidas pela anorexia são jovens mulheres, o mesmo ocorrendo com a bulimia. Dados extraídos do Current Medical Diagnosis & Treatment, ed. Lawrence Thierney, Stephen McPhee, Maxine Papadakis. Stanford: Appleton & Lange, 1999.
3 Título do capítulo I do livro de Pierre Fédida (1991/1992).