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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM II

 

A máscara e os sentidos da fala na linguagem do cotidiano: ressonâncias na psicanálise e na fonoaudiologia

 

The mask and the senses of speech in everyday language: resonances in psychoanalysis and in speech pathology

 

 

Rejane Camara Cutrim*

Centro de Estudos da Teoria dos Campos (Cetec)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora faz uma aproximação entre a Psicanálise e a Fonoaudiologia. A partir de um material clínico, procura aprofundar a temática da linguagem no trabalho terapêutico. Esses dois campos do saber foram se mostrando atravessados por questões fundantes, como lugar, mobilidade, situação analítica, situação dialógica e função terapêutica que, de fato, poderiam evidenciar uma interface.

Palavras-chave: Diálogo terapêutico, Fonoaudiologia, Linguagem, Mobilidade, Psicanálise.


ABSTRACT

The author makes an approximation between Psychoanalysis and Speech pathology. Departing from a clinical example, she develops the question of language in therapy. These two fields of therapeutical endeavour appear as being determined by the same founding topics such as: location, mobility, analytical situation, dialogical context and therapeutical function, all of which sanction the evidence of an interface between these two fields.

Keywords: Therapeutical dialogue, Speech therapy, Language, Mobility, Psychoanalysis.


 

 

O eu é um tesouro,
e tesouros guardam-se,
escondem-se,
entesouram-se.

Fabio Herrmann, 1999, p. 159.

 

A psicanálise e a fonoaudiologia são dois campos de conhecimento com objetivos distintos e métodos que não se confundem, entretanto têm para si a fala e a linguagem como questões que se impõem.

De maneira sucinta, contarei a evolução da fonoaudiologia para situar o leitor não familiarizado com esse campo. Algumas mudanças importantes no trabalho terapêutico ocorreram nos últimos dez anos e, ao que tudo indica, devido ao aporte de correntes teóricas de outras áreas de conhecimento, como da filosofia, da medicina, da lingüística e da psicanálise.

Segundo Masini (2004, p. 4),

A aproximação com tais vertentes colocou em evidência o diálogo como instrumento básico do trabalho terapêutico. Sobre esse debate, Arantes (1994), ao discutir as clínicas de linguagem existentes e suas filiações teóricas, diferencia a intervenção fonoaudiológica clássica – aquela que se mantém no limite da descrição da linguagem, aproximando-se da pedagogia, na medida em que trabalha com noções de ensinar e corrigir – da que propõe como terapêutica – aquela comprometida com a produção singular do paciente e com a interlocução como responsável pela construção de novos sentidos.

E ainda, para autores como Aronis (1992), Tassari (1995) e Cunha (1997), significa abranger discussões sobre o setting fonoaudiológico, sobre a relação terapeuta-paciente nos seus aspectos transferenciais e contratransferenciais e sobre a dimensão da existência de um inconsciente na formação do sintoma de linguagem.

São muitos os caminhos pelos quais essa interface poderia ser evidenciada. Optei por desenvolver possíveis pontos de aproximação de tais áreas do saber, em situações clínicas e por meio de reflexões teóricas a respeito do tema central – a linguagem. Procurarei apresentar em grandes linhas a reflexão teórica que sustenta a minha prática clínica. Muitos lingüistas e filósofos têm se interessado pela incorporação dos estudos da linguagem, porém, na impossibilidade de trazer a este trabalho uma bibliografia vastíssima que explora esses novos domínios, tratarei de alguns deles pela sua exemplaridade.

Nessa seara, convido o leitor a pensar a escuta cotidiana e a linguagem, partilhando as idéias de Perrota, Märtz & Masini (1995), fonoaudiólogas dedicadas às questões fundamentais da linguagem na clínica, cujos conceitos da lingüística se baseiam no pensamento bakhtiniano, o que difere a abordagem fonoaudiológica delas da de outras vigentes, e que, apesar da importância, não serão desenvolvidas no presente artigo. Bakhtin (1992a), no desdobramento de suas idéias,

Coloca, em primeiro lugar, a questão dos dados reais da lingüística, da natureza real dos fatos da língua. A língua é, para Saussure, um fato social, cuja existência se funda nas necessidades da comunicação. Mas, ao contrário da lingüística unificante de Saussure e de seus herdeiros, que faz da língua um objeto abstrato ideal, que se consagra a ela como sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas manifestações (a fala) individuais, o autor “valoriza justamente a fala, a enunciação e afirma sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que por sua vez, estão ligadas às estruturas sociais (p. 14).

Ele afirma ainda que “a personalidade que se exprime, apreendida, por assim dizer, do interior, revela-se um produto total da inter-relação social” (Bakhtin, 1992b, p. 117).

A abordagem dialógica bakhtiniana, segundo Masini (2004/2007),

Possibilita dar um tratamento à palavra do outro de modo a assegurar a presença das vozes do pesquisador e do pesquisado, sem que isto signifique a fusão das mesmas. E o que garante tal possibilidade é a permanência do pesquisador num lugar exotópico, ou seja, um lugar extraposicionado, a partir do qual o pesquisador possa ir ao encontro do outro para ver como ele vê e depois ao seu lugar retornar para dar sentido ao que o outro vê.

No campo da fonoaudiologia, seguirei uma trajetória a partir das impressões sensoriais e das repercussões dos sons no ser humano, foco de meu interesse ao iniciar meus estudos em audiologia com Claudine Portmann na cidade francesa de Bordeaux, nos anos 1970. Valho-me desse aprendizado no que permeia as situações terapêuticas no sentido da escuta quando observo meu paciente, sempre me perguntando o que eu faço com o que ouço e o que será que o outro faz com o que ouve. E nas palavras de Perrota, Märtz & Masini (1995, pp. 13-14):

O mundo está cheio de sons que pedem sua confirmação em nossa escuta, que afirmam sua existência em nossa percepção, ao mesmo tempo em que afirmam nossa vida cotidiana. Alguns deles esbarram em nós não deixando maior traço do que leves traços de impressões sensoriais; outros nos impelem, mecanicamente, a uma série de atos rotineiros; outros, ainda, despertam variados tons em nossos sentimentos e pensamentos, ecoam em nossas lembranças e aí encontram o caminho mais complexo da linguagem, exigindo de nós a sua revelação, a sua significação.

Assim, as experiências vivenciadas em meu trabalho ao longo desses anos permitiram-me desenvolver uma condição diferenciada de escuta, na qual apóio minhas ações no físiológico, com especial atenção ao psíquico do sujeito.

Para pensarmos os sentidos da fala na linguagem do cotidiano, a exemplo de minha situação de trabalho terapêutico, relatarei uma vinheta clínica de um caso que acompanho há oito anos em meu consultório. Deter-me-ei em alguns episódios que propiciaram a aproximação do par terapêutico e, em conseqüência, a emergência do diálogo com meu paciente.

 

O caso clínico

Bruno, um menino de oito anos que poucas palavras dizia, não fazia contato de olho e se recusava a ler e a escrever. Andava sempre de cabeça baixa, direcionando seu olhar para os objetos do ambiente. Segundo relato dos pais durante a primeira entrevista, Bruno havia passado por outros terapeutas e médicos, os quais o diagnosticaram autista. Assustados, desnorteados e com reservada esperança manifestada mais pela mãe, não sabiam mais o que fazer para ajudar o filho a sair de seu fechamento para o mundo. Demonstrava ser mais acolhido pela mãe, de quem se sentava juntinho, parecendo não conseguir descolar-se dela. Na ocasião, foi-me encaminhado por uma colega fonoaudióloga, que por sua vez também não sabia mais como proceder com ele.

Nossos primeiros encontros se deram na presença da mãe, que se fazia de porta-voz do filho, dizendo-me o que ele gostava e não gostava de fazer. Além disso, que era feio não falar com as pessoas e não atender aos pedidos dos outros. Nessa hora Bruno se fechava mais ainda, manifestando desagrado, emitindo sons como “hum hum hum”, fazendo cara de zangado, chutando e dando cotoveladas na mãe. Enquanto isso, ela me dizia rindo (num misto de satisfação e vergonha): “Tá vendo como ele é? Isso não tem jeito não. Ele é assim o tempo todo. Ele só ouve o pai, porque o pai fala bravo e às vezes bate nele. Eu sou mais mole. Sabe como é mãe? E ele aproveita”. Eu olhei e ouvi atentamente mãe e filho, sem nada comentar sobre o episódio. Depois continuei a conversa com a mãe, ao mesmo tempo olhando a movimentação lenta de Bruno, que ia se acalmando e dando a entender que queria sair dali.

Conhecendo Bruno no decorrer do processo avaliativo, não tive a mesma impressão diagnóstica dos demais profissionais. Para mim, havia, sim, um acentuado atraso em seu desenvolvimento global: transtorno específico do desenvolvimento da fala e linguagem e do desenvolvimento das habilidades escolares. Em alguns aspectos referentes à evolução, apresentava-se como uma criança de quatro anos. Tinha movimentos corporais indicando um modo particular de contato, preferencialmente com a mãe e com pai. De certa maneira tinha um olhar escondido para os objetos que o circundavam. Após as primeiras sessões, atendendo ao meu pedido e com a permissão de Bruno, a mãe foi saindo de cena, deixando-me a sós com ele. Era de difícil manejo, mas com potencialidades a serem desenvolvidas que permitiriam a ele sair daquele recolhimento.

Nos primeiros meses de nosso trabalho, Bruno demorava de dez a quinze minutos para entrar na sala de atendimento. Ficava meio escondido na porta e entrava bem devagar, sempre de cabeça baixa. Entrava e saía da sessão em silêncio. Era um silêncio que dizia. Andava pela sala e fixava seu olhar nos objetos ali disponibilizados, mantendo certo distanciamento, mas às vezes cheirando-os, tocando-os e deslocando-os, e assim produzindo diferentes vocalizações no ambiente. Com relação às reações apresentadas por Bruno, vale lembrar algumas palavras de Fédida (1978), que propõe:

Na criança pequena, ver, cheirar, tocar, degustar parece conferir sentido a este eco sonoro da coisa (como dado tonal imediato – esteticamente completo – desta palavra corporal na qual uma criação poética tem lugar). E a voz é uma vibração do corpo por inteiro: a zona erógena por excelência (Fédida, 1978, p. 104).1

Bruno olhava para os objetos e indiretamente para mim. Eu ia nomeando os objetos e falando algo a respeito deles, com o objetivo de construir um diálogo com ele. Havia um movimento, em que paciente e terapeuta se deslocavam na sala com certa regularidade. Várias estratégias dialógicas e outros jogos eram propostos, contudo sem maior demonstração de interesse por parte do paciente. Eis um exemplo: “Bruno, podemos jogar com essa bola, ou, ainda, vamos jogar a bola na cesta de basquete”, mostrando-lhe a regra do jogo. Eu precisava agir algumas vezes, enquanto ele disfarçava o olhar que lançava na minha direção.

Havia um jogo de esconde-esconde. Num primeiro momento, Bruno parecia resistir às tentativas de aproximação direta comigo. Mais tarde, B. pegava a bola e brincava sozinho, excluindo-me do jogo. Na sessão seguinte, ele entrava e, decorrido algum tempo, pegava a bola para jogar, chutando-a ou encestando-a. As palavras que eu dizia o tocavam, mas ele demorava a reagir a elas, manifestando alguma compreensão do que lhe era dito. Havia uma forma particular de diálogo, em que a terapeuta se expressava preferencialmente por meio da fala, enquanto o paciente respondia corporalmente e em seus próprios pensamentos. No final do nosso tempo de sessão, dizia-lhe que tínhamos que interromper e que poderíamos continuar na próxima sessão, porque aquela tinha terminado. Ele ficava muito bravo, não queria parar nem sair da sala. A voz da terapeuta parecia ter pouco eco. Apesar do silêncio do paciente, existia sempre um sentido nas ações, em que a recusa se fazia presente. Muito lentamente fomos chegando a um entendimento em relação ao brincar e ao tempo de sessão. O jeito de ser de Bruno me mobilizava, numa atitude de acolhimento e atenção a toda e qualquer mudança em sua expressão, o que me levava sempre a uma nova ação.

Nosso primeiro diálogo com palavras se deu após seis meses de trabalho. Bruno circulava pela sala de atendimento e, ao deparar-se com uma máscara de velho em material de borracha macia, tocou-a, cheirou-a e, em seguida, jogou-a sobre a mesa. Depois de alguns instantes, cobri meu rosto com a máscara e falei com ele como se fosse um velhinho, dizendo: “Vim de muito longe andando pela floresta, estou cansado e quero um pouco d’água, meu netinho”. Surpreso, pela primeira vez Bruno olhou na minha direção e sorriu; retirando a máscara do meu rosto e colocando-a sobre o seu, falou com certa dificuldade articulatória: “Eu também quero água”. A partir daquele momento marcante em nossa história, estabelecemos contato por meio de diálogos curtos nas sessões subseqüentes, mas sempre repetindo o do jogo das máscaras; desenhávamos, construindo com lápis novos rostos em papel. O jogo de esconde-esconde se intensificava. Primeiramente, ele rasgava as máscaras que fazia, pedindome que eu as desenhasse e permitisse que as levasse para casa. Muitas vezes atendi ao seu pedido, no entanto em outras sessões disse a ele que poderíamos guardá-las na caixa de jogos. Semanas se passaram para que espontaneamente B. juntasse as máscaras aos seus outros objetos dentro da caixa que lhe pertencia.

O jogo de esconde-esconde com as máscaras, na abordagem fedidadiana (1978), modifica o conjunto da repartição cênica e indica o caminho que permite a Bruno não só aproximar-se de mim, como também explorar objetos da sala. A busca de objetos dá um gesto – um mundo – a Bruno. Uma área do jogo se instala e encontra um espaço psicoterapêutico. A máscara transformou-se num objeto transicional no sentido winnicottiano, e, por meio do brincar, possibilitou a construção da fala, o diálogo entre terapeuta e paciente.

Assim emergiram o interesse de Bruno pela fala e outras situações dialógicas, sem máscara, evoluindo para discursos um pouco mais elaborados do ponto de vista lingüístico, bem como da vida da relação em geral.

Decorridos aproximadamente cinco anos de terapia, Bruno se mostra atraído por ritmos musicais no gênero MPB (música popular brasileira); aprecia cantores como Cazuza, Tim Maia e Paulo Sérgio. Gosta de tocar violão, guitarra, bateria e tambor, instrumentos sonoros de sua preferência, enquanto canta trechos de músicas de alguns dos cantores citados. De Paulo Sérgio canta “Eu te amo...”. Em casa, passa boa parte do tempo ouvindo música e assistindo a programas musicais na televisão. De vez em quando seus pais o levam a concertos de música popular. Chega à sessão me contando o que ouviu e viu, com fotos de cantores colhidas em revistas e jornais, perguntando-me se também gosto daquelas músicas e daqueles compositores, se este ou aquele está vivo ou morreu. Manifesta pesar quando confirmo que alguns já morreram; digo-lhe que a sonoridade e as palavras das músicas não morrem, que nós podemos cantar juntos trechos de algumas delas. São momentos de satisfação e de alegria em nossos encontros.

“O eu é um tesouro, e tesouros guardam-se, escondem-se, entesouram-se” Herrmann (1999, p. 159). A frase de Fabio Herrmann, em “A paixão do disfarce” na obra A psique e o Eu, a que se fez referência na epígrafe deste artigo, confirma o que sinto e meu olhar em relação a Bruno, acreditando na exterioridade do que ele escondia atrás das máscaras, um dizer próprio – um dizer para o outro. Podemos brincar que há um eu atrás das máscaras, uma fala que vem do esconderijo.

Na tentativa de encontrar sentidos ao vivido nos diálogos com Bruno, busquei sustentação teórica para responder a algumas questões relevantes da linguagem no âmbito da psicanálise e da fonoaudiologia, fundamentando a minha prática clínica. Vale dizer que tais práticas não se estendem para todos os pacientes a que atendo. Em cada caso, apuro minha sensibilidade para adequar o meu fazer terapêutico à situação diferenciada, levando em conta os princípios derivados das concepções teóricas expostas neste texto.

 

Algumas reflexões da fala e da linguagem na psicanálise

Transitando no terreno da psicanálise, dentro do referencial teórico freudiano, no que tange à linguagem, Menezes e Meyer (2005/2006) no artigo intitulado “A linguagem e o ‘aquém’ da linguagem na psicanálise”, afirmam:

Na quarta parte dos Estudos sobre a histeria, Freud faz uma descrição precisa e minuciosa do novo método de tratamento, que aparece, nesse texto, claramente, como singular experiência da linguagem (Freud e Breuer, 1895). Surgem hipóteses teóricas originais, como a idéia de que o sintoma, de que se queixa o paciente, implica um conflito intrapsíquico. Esse conflito é testemunhado por um dito em falta, pelo dito que, como alma penada, busca se fazer ouvir, mas que, invisível, grita no sintoma: formação de compromisso que se eterniza nesta fala emudecida, mas à qual a análise dará acesso. O que está silenciado, e que é grito-surdo no sintoma e na transferência, é o que Freud chama de recalcado, ou seja, de inconsciente (p. 256).

Esse pensamento vai ao encontro do meu entendimento em relação ao caso Bruno, no momento em que discordei do diagnóstico de autismo que lhe atribuíram. Existia, sim, uma dificuldade de linguagem importante, mas provavelmente devido a um intenso conflito intrapsíquico, um dito que busca se fazer ouvir, daí a escuta do terapeuta da linguagem-analista.

A escuta do inconsciente lança luz a um novo pensamento do mundo ocidental. E parafraseando Magalhães (1994, pp. 31-32), é na situação analítica, onde a fala é primordialmente linguagem, que se funda, a partir de uma escuta diferenciada, seu trabalho de metáfora e de transferência e, em conseqüência, a condição de nomear e significar. O princípio básico da psicanálise é a associação livre: dizer o que vier e como vier. Deixar falar para que surjam o silêncio e o não dito; para que o indizível, o impensável, o irrepresentável brotem e, mudando de rumos, tornem-se abordáveis.

Gonçalves (2004), em seu artigo “Chôra, em Platão, Derrida e Fédida”, esclarece que voltar a Platão, a partir do uso da palavra grega por Fédida, “tem aqui a função de indicar um modo pelo qual ela (chôra) é a nutriz da metapsicologia e lhe dá lugar, sem nada impor de sua forma doutrinal” (p. 55). Para a autora, “ao que tudo indica, quando escreveu o diálogo Timeu, Platão estava interessado em saberes que tivesse aplicação” (p. 55). Lembrando que o filósofo utiliza a palavra chôra como substantivo feminino, ela destaca as palavras do diálogo que também chamaram, em primeiro lugar, a atenção de Derrida: “De toda geração, ela é como o suporte e a nutriz” (p. 58). E reitera:

O problema filosófico exposto pelo Timeu enquanto tratado da natureza, espécie de Física, que precede a de Aristóteles, é o de compreender a natureza do lugar, relacionada com as propriedades que entram na composição de mundo, que não tem espaço vazio (p. 59).

E, permitindo aceder a bases conceituais de interesse de psicanalistas e de outros estudiosos da linguagem, afirma:

Tanto para Freud quanto para Fédida, a leitura do texto metapsicológico possibilita a indagação em movimento. O verbo chorêo significa mudar de lugar. Esta informação, buscada no grego clássico, pode nos auxiliar aqui para compreendermos a concepção de escrita metapsicológica como um fazer que gera mudanças de lugares (Gonçalves, 2004, 31/32, p. 61).

Pierre Fédida, em seu livro intitulado Nome, figura e memória, no capítulo “Teoria dos lugares I”, revela:

A situação analítica é engendrada por um sítio que é o sítio da linguagem. O autor pensa esse sítio como lugar dos lugares, como lugar das localidades (psíquicas) e, de certa forma, é o lugar de observação psicanalítica, de descoberta e, portanto, de mudanças dos pontos de vista. E a condição referencial da situação psicanalítica na metapsicologia dá a entender que toda proposição, toda hipótese, todo modelo ou todo conceito é capaz de restituir a situação psicanalítica, de fazê-la ver em abismo e, conseqüentemente, está disponível para um pensamento na clínica (Fédida, 1992, p. 115).

Considerações de Fédida possibilitam refletir e reencontrar a orientação presente em nosso trabalho:

Nosso interesse volta-se aqui para a mobilidade necessária inerente à situação analítica, à estrutura policênica dessa situação, de forma que as cenas transferenciais simultâneas atuadas pelo paciente (inclusive na sua fala) possam encontrar as condições de associação e de interpretação graças à análise do analista. Desde Ferenczi e, sobretudo, depois de Winnicott, sabe-se que essa mobilidade policênica da situação analítica depende em muito da capacidade do analista de brincar.E a idéia de que a neutralidade analítica é adequada para engendrar uma situação cuja característica primordial é a mobilidade receptiva e ativa (Fédida, 1992, p. 116).

Referindo-se ao espaço psicoterapêutico em L’absence, Fédida (1978, pp. 97-98) cita D. W. Winnicott: “O que é natural, é o brincar e (...) o fenômeno muito sofisticado do século XX, é a psicanálise. Se o terapeuta não pode brincar, isto significa que ele não é feito para este trabalho”.

O pensamento de Fédida sobre a situação analítica nos traz valiosos questionamentos no que tange à mobilidade do fazer psicanalítico e do fazer fonoaudiológico. Em sessão com Bruno, quando é que me coloco no lugar de terapeuta-fonoaudiólogo, cujo foco é a linguagem dialógica? Ao que tudo indica, é quando me comprometo com a produção singular do paciente e com a interlocução como responsável pela construção de novos sentidos, conforme a proposta de Masini (2004/2007), citada no começo deste artigo. E nesse momento, onde fica a terapeuta-psicanalista, considerando os aspectos inconscientes do par terapêutico? No caso, certamente, na minha escuta e na resposta de Bruno. E vice-versa? Como ouço o silêncio? Como analista, levando em conta os aspectos transferenciais e contratransferenciais que dali decorrem. Ainda, como o terapeuta-fonoaudiólogo se posiciona nessas circunstâncias? Talvez fique mais focado nos processos de aquisição da fala, do diálogo. Como se dá esse interjogo, esse deixar-se brincar, esse acolhimento? É muito difícil delimitar tais campos em meio a um fazer terapêutico. Penso que eu seja a terapeuta, exercendo as duas funções simultaneamente, com um olhar mais aguçado para as questões circundantes. Seriam talvez momentos da situação terapêutica em que penso ter havido uma área de interseção, onde as vertentes se entrecruzariam. O brincar com as máscaras, as múltiplas cenas ali presentes, a disponibilidade da terapeuta, a mudança de lugar, parecem ter dado movimento à fala do paciente e, a seu turno, à fala do próprio terapeuta – ao diálogo –, marcando novos sentidos na linguagem.

No entendimento de Menezes e Meyer (2005/2006),

No próprio modo de o analista considerar a teoria, está implícita uma linguagem específica em que o conceito adquire valor de metáfora, no sentido grego de transporte. Insistem que a atividade de linguagem sendo, na análise, o meio em que esta se move, é também o terreno fértil em que se produz a teoria. E essa atividade de linguagem em que se dá cada análise singular, como uma estranha conversa (Gespräch), é essencial, já que possibilita uma ligação mais original com a língua (p. 255).
A escuta do analista é um traço de singularidade da prática da linguagem no interior do processo analítico e será sensível a eventuais lapsos, a tropeços, alguma fala ou expressão inesperada, a elementos que chamem, na memória do analista, outros elementos que, “espontaneamente”, possam confluir numa idéia inesperada. A resposta do analista, provinda de uma escuta descentrada do foco intencional da fala, pode causar um efeito de surpresa e de abertura no paciente, tendo, assim, efeito de interpretação. Isso leva o analisando a viver uma experiência nova, sob fundo denso de vividos conhecidos, mas nunca ditos, na qual se reconhece em algo de essencial para ele. São momentos fecundos da análise em que se quebra a ciranda repetitiva de ditos ocos, demasiado familiares, dando acesso ao íntimo da fala (Menezes & Meyer, pp. 255-256).

Nessas reflexões sobre fala e linguagem, Figueiredo (1994) discute a experiência com a palavra em Heidegger. O autor inicia seu texto com a pergunta: “O que é fazer uma experiência?”, referindo-se a uma série de três conferências sobre a fala proferidas entre 1957-1958 e publicadas sob o título comum Das wesen der sprach. E a resposta vem com uma citação de Heidegger:

Quando falamos em fazer uma experiência[,] isto não significa que a façamos acontecer; fazer significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos atinge receptivamente, aceitar, suportar, na medida em que nos submetemos a isto. Algo se faz, advém, tem lugar (Figueiredo, 1994, p. 121).

Figueiredo revela ainda que,

Para Heidegger, fazer uma experiência com o que quer que seja não coincide com a obtenção de informações ou com a formulação de conceitos acerca de algo; fazer uma experiência consiste em ser afetado, e em ser transformado, deixando a coisa “vir de nós, para que nos caia em cima e nos faça outro”. É preciso, contudo, que se tenha instalado um mundo como horizonte de possibilidades de encontros e que de dentro deste horizonte emerja algo que resiste, que se opõe e se furta a qualquer captura. Fazer uma experiência com a fala é, da mesma forma, deixar-se atravessar por ela, acolhê-la no seu poder mais próprio, ou seja, na sua alteridade. Para fazer uma experiência com a fala é preciso, por conseguinte, libertar a palavra para seu outro dizer, para seu dizer outro. Isto implica deixar que a fala fale e, mesmo quando as palavras brotem da minha boca, colocar-me à escuta (Figueiredo, 1994, pp. 121-122).

Nessa perspectiva, penso ter sido a condição imprescindível na minha experiência terapêutica com Bruno o ser afetada, atravessada e transformada pelo dizer. É quase uma catarse voltar a essas vivências. E cada vez que penso na emergência da fala dessa criança, sinto-me tomada por novas reflexões ainda sem respostas. Não basta ter sido dito, pois continua sendo uma experiência na qual as palavras não me parecem dar conta de dizer o vivido.

Algumas dessas concepções dentro da psicanálise não são consenso entre a maioria dos psicanalistas após as primeiras formulações e a morte de Freud. Estes praticaram e teorizaram a psicanálise em outras perspectivas. A exemplo de exceção, as idéias de Fabio Herrmann – Teoria dos campos –, numa inestimável contribuição à psicanálise.

Em A psicanálise e a clínica extensa, encontrei um espaço de acolhimento e um terreno fértil para pensar especificidades do fazer fonoaudiológico e do fazer psicanalítico, quando se explica que,

Na Teoria dos campos, o conceito que sustenta essa intrínseca extensão da clínica é o da função terapêutica. Quando ocorre uma ruptura de campo, quando se desestabiliza um sistema estruturado de representações, o efeito não é apenas a abertura para o conhecimento, mas a abertura para a mudança vital. Isso não se limita ao paciente em análise. Como veremos, tal mudança dos rumos de vida pode ocorrer em qualquer dimensão, sempre que o método psicanalítico entre em ação, do particular ao geral, de uma situação pessoal até à própria concepção de conhecimento, cujo campo pode vir a se romper pelo simples efeito de presença da Psicanálise. Função terapêutica é a propriedade de nosso método que assegura a inseparável convivência entre saber e cura (F Herrmann, 2005, p. 25).

Em Andaimes do real: O método da psicanálise, Fabio Herrmann (2001, p. 26) afirma:

Na interpretação analítica, dizer que isso significa aquilo equivale a impor a analista e analisando uma demora no preenchimento de significação, um tempo a mais em comparação à conversa cotidiana, demora que vai deixar que surja o que há de surgir.

Ou seja, se no diálogo analítico há um intervalo para a atribuição de sentido a uma fala do paciente – o que não ocorre na conversa comum onde os sentidos deslizam de um interlocutor para outro –, a significação que terá aquela comunicação não mais está atrelada a esse sentido consensualmente aceito pelos participantes do diálogo; ela abre-se para outros sentidos possíveis que a fala contém. E é por isso que o que há de surgir é um outro sentido ou uma outra auto-representação – novas fantasias, enfim. Leda Herrmann (2005, pp. 35-36) também conclui que, para Fabio Herrmann,

A interpretação é essencialmente um desencontro produtivo que produz o encontro mais profundo, isto é, produz a recordação de sentidos possíveis, mas não presentes à consciência. É esse encontro fruto de um desencontro, a condição sine qua non dos efeitos terapêuticos das diversas técnicas e teorias derivadas da Psicanálise.

A partir de conceitos teóricos próprios da Teoria dos campos, o autor apresenta outra perspectiva do diálogo analítico, abrindo espaço para um diálogo entre as diversas áreas do saber, e, assim, propicia pontos de encontro. O conceito de ruptura de campo é aqui fundamental como uma possibilidade de abertura para a mudança vital, tanto no par terapêutico como no modo pelo qual atuo como terapeuta de linguagem, um novo campo em ação.

 

Linguagem e processos de significação na clínica fonoaudiológica

Perrota, Märtz & Masini (1995), numa visão particular da fonoaudiologia, entendem:

A constituição da linguagem – a vontade de dizer. Quando percebemos a lógica da criança na construção de seus enunciados, muitas das incorreções deixam de ser simplesmente erros, pois apontam para o raciocínio elaborado, para as hipóteses formuladas (p. 26).

As autoras afirmam ainda que

A construção da linguagem é, enfim, a tentativa de assemelhar palavras e vivências, não de maneira fixa, mas com a fluidez de movimento que é característica da linguagem – ao dizer, evocamos nossas experiências ao mesmo tempo em que as transformamos (p. 27).

E, nessa perspectiva, elas reiteram:

As palavras, quando expressas oralmente, seguem o curso ininterrupto do tempo e, por este motivo, não se repetem. Talvez se perdessem, talvez se encerrassem em si mesmas, imutáveis, se não houvesse um outro, um alguém para quem se fala e que possibilita a continuidade e transformação de nosso discurso. Este alguém, este interlocutor é quem garante o movimento que é característico da linguagem (Perrota, Märtz & Masini, 1995, pp. 28-29).

Essa idéia parece ir ao encontro da proposta elaborada por Figueiredo (1994), já mencionada neste artigo, e, nesse sentido, sugere uma interface entre a fonoaudiologia e a psicanálise.

Bruno demorou a se interessar pela linguagem oral, supondo-se que, quando começou a falar, havia interesse e desejo de dizer para outros. No entanto, começou a carregar o peso da dificuldade, pois se esforçava por dizer, porém não era compreendido em função de uma imprecisão geral na pronúncia das palavras. Então, sua expressão ficou reduzida a pouquíssimas palavras, aquelas que dizia para resolver situações imediatas, como “água”, “dá”, “não”, “quer”. Fui contando algumas histórias dentro do que poderia chamar a atenção de Bruno. Tempos depois, ele passou a contar algumas de suas histórias em nossas sessões.

Por meio de diversas estratégias terapêuticas, como brincar com as palavras em jogos variados já citados neste texto, Bruno foi construindo sua linguagem, mesmo apresentando dificuldade, porque havia para quem dizer os assuntos que lhe interessavam.

Com propriedade e de maneira fina, todos os autores a que me referi no texto tocaram em aspectos pertinentes à prática clínica do caso apresentado. Sem dúvida, muitos outros estudiosos da linguagem poderiam ser elencados, ampliando ainda mais as reflexões teóricas que tornaram possível o entendimento da linguagem, tendo como eixo central a singularidade da emergência da fala em situação dialógica.

No início deste artigo, comentei que a fonoaudiologia e a psicanálise têm objetivos e métodos distintos, entretanto, em seu transcorrer, esses dois campos do saber foram se mostrando atravessados por questões fundantes, como lugar, mobilidade, situação analítica, situação dialógica e função terapêutica, as quais, de fato, poderiam evidenciar uma interface. Essa discussão continuará em aberto, possibilitando aos estudiosos da linguagem outro olhar. Há uma conjunção central, em que a fala é o móvel comum. E, na confluência dos rios, o homem – a linguagem.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rejane Camara Cutrim
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Recebido: 04/05/2007
Aceito: 25/05/2007

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Mestre e doutora pelo Núcleo de Psicanálise da PUC-SP. Especialista em Saúde Mental pela Faculdade de Saúde Pública da USP.
1 A tradução do francês das citações da obra L’absence, de Pierre Fédida (1978), é de minha autoria.