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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM II

 

Estados primitivos da mente: poema e polêmica*

 

Primitive states of mind: poem and polemics

 

 

Luís Antônio de Oliveira SilvaI,**; Mariângela Mendes de AlmeidaI,II,***

I Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
II Unifesp

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os autores apresentam um poema seguido de um comentário em que a suposta voz dos estados primitivos da mente se enuncia, evocando possíveis analogias a respeito da relação entre nossos vários níveis de funcionamento psíquico, entre criador e leitor e entre paciente e analista. Polemiza-se a questão da suposta linguagem ou seus rudimentos, contidos ou não, na manifestação dos estados primitivos da mente.

Palavras-chave: Estados primitivos da mente, Linguagem, Reclamação, Suposição do sujeito.


ABSTRACT

The authors present a poem, followed by a comment, in which the supposed voice of the primitive states of mind is enunciated, evoking possible analogies regarding the relations between our different levels of psychic functioning, between creator and reader, and between patient and analyst. The polemics about the presence or not of language (or its rudiments), within primitive states of mind, is raised.

Keywords: Primitive states of mind, Language, Reclamation, Supposing a subject.


 

 

Parte I
Não sei quem sou
Nem como sou
Não tenho identidade
Ou qualquer qualidade
Não sei se penso
Ou mesmo se existo
Nada tem nenhum senso
Nem sei por que insisto.

Olho
Mas não vejo
E com algo duro me protejo

Ouço
Mas não escuto
E a aderência é o meu escudo

Falo
Mas não entendo
E não dissolver é o meu intento

Não brinco
Sou porta sem trinco
Sem dentro nem fora

Não fantasio
Sou todo vazio
Sou fundo sem fundo

Não sonho
Sou oco e enfadonho
Sou pólen ao vento

Sem presente ou memória
Sem raízes ou história

Sem passado ou futuro
Onde nada perdura

Sem tempo ou espaço
Sou só descompasso

Sem ponto
Ou contraponto

Aos tropeços
E sem nenhum apreço

Não tenho ritmo de segurança
Nem sei o que é esperança

Sem pele e sem continência
Sem chão e sem pertinência

Não tenho referências confiáveis
Nem mesmo preferências estáveis

Meu desamparo é permanente
E o meu terror é imanente

O buraco negro se avizinha
E o meu eixo se desalinha

Sou concha blindada
Sou janela salivada

Sou teia envolvente
Sou ser inexistente

À margem da vida
Sou labirinto sem saída

Sou tudo
Sou todos
Sou nada
Sou ninguém

Sou contracorrente
De alma silente
E auto-suficiente

Parte II
Peço a todos
Como súplica renitente
Que não desistam de mim
Grito socorro!... socorro
Por todos os poros reiteradamente.
Diante de tanta dor
Inefável e muda
Só se houver muita ajuda
E um clima acolhedor
Porque neste estado primitivo
Onde nem vivo
Nem morro
Não posso permanecer assim.

Peço àqueles de alma sensível
Com mente e coração abertos
E que se disponham a missões quase impossíveis
Que busquem o fio de Ariadne
Que desembarace este novelo
E possa ser tecida, então,
Uma nova e delicada trama
Que dê sustentação e gestação
Ao nascimento de um “eu”
Não importa se incipiente ou frívolo
Com alguma capacidade de lidar com separação
E poder perceber o “eu” e o “não-eu”
Sem desmilingüir
Ou medo de não existir

E quem sabe o fim deste drama
Seja o início de uma vida-semente
E o fruto do novo “entre”
Seja um vínculo nascente
Com bússola confiável
Com suave musicalidade
Com sutil amorosidade
E transformações pacientes
Mas consistentes e presentes
Para um viver sob novos regentes...

Quem sabe um dia...!!!
(Luís Antônio de Oliveira Silva, 2006.)

 

Que linguagem é esta (“suposta-mente”), a dos estados primitivos da gente?

Quando nosso colega “psi-poeta” nos apresentou o precioso fruto gerado durante a rica inseminação ao longo dos seminários sobre estados primitivos da mente, relatounos também, com intensidade, um impasse em seu processo de criação, que culminou na passagem da Parte I para a Parte II: “Parece que não me dei por satisfeito, fiquei aflito... Achei que faltava alguma coisa e escrevi outro pedaço...”.

Assim os novos “pedaços” que se agregaram, incluindo esse breve comentário, poderiam estar num limiar entre pressões de nosso consciente (integrador?) e a continuação de um fluxo associativo em rede, mobilizado pelo gesto do poeta, refletindo sobre nossos movimentos como analistas e indivíduos no campo do primitivo em todos nós. Se é possível uma escolha, ou expressão de desejo, gostaria que a ressonância no leitor amplificasse esse segundo caminho.

Deparamos assim com tentativas de expressar, em viva linguagem poética, imagens condensadas, a experiência ao mesmo tempo difusa e densa dos estados primitivos da mente. Estados presentes em momentos diversos da nossa existência, como indivíduos, por contatos atualizados na fragmentação da contemporaneidade... Primitivos, arcaicos, mas sempre atuais. Estados convidados a integrar nosso cotidiano, como clínicos, quando nos envolvemos, talvez, também, como um ímpeto a nos compreender mais nessa esfera de funcionamento psíquico, com pacientes borderline ou que fazem parte do chamado espectro autístico.

A primeira parte da criação do poeta leva-nos a um mergulho na vivência mais direta do funcionamento autístico, alma silente que, nos versos de Luís Antônio, murmura, balbucia seu não-ser. Tais versos mostram um estado imobilizado, é verdade, mas também mobilizado em busca de representação, clamando ou reclamando1 sentido. Na medida em que algo se evoca em nós, como leitores do poema, em possível analogia com nosso contato com esses estados de mente (internos ou externos), já não estaria implícita, desde o início, uma comunicação?

Qual é a linguagem dos estados primitivos da mente? Há linguagem? O que pede para ser significado já não é, mesmo que “rudimentarmente”, linguagem? Há um pedido para transformação nos estados primitivos da mente? Ou a linguagem se faz apenas no contato significado pelo outro, do que é lava candente nos estados primitivos da gente?

Ouvimos e vivenciamos: aos estados autísticos falta representação, falta linguagem simbólica. Acostumamonos a pensar que, em vários e diversificados graus, é isso que os caracteriza como tão distantes da essência da condição humana que nos permite compartilhar sentimentos, estados de mente. Mas haverá ou não uma inquietação que clama, como nos versos de Luís Antônio, por uma necessidade de representação do que se vive em meio a esse magma fervente dos estados primitivos da mente? Vida sem mente ou, como diz o poeta, vida-semente?

Relatos clínicos e pesquisas nos falam da criança autista que não sente ou não registra a dor, não diferencia o intenso frio do calor. Há alguma comunicação de sofrimento? Curiosamente, estados de fragilidade somática emergem nessas crianças conforme há desenvolvimento das capacidades relacionais. Guardadas as devidas proporções, parece também sugestiva a imagem da criança comum que, depois de um tombo, só chora quando, ao olhar a sua volta, encontra alguém a quem endereçar aquele choro, alguém para quem seus soluços significarão um apelo e evocarão resposta de acolhimento.

Na segunda parte da criação de nosso poeta, a transpiração de angústia parece ainda maior. O discurso fica mais linear, o mosaico imagético mais encadeado (mas não menos instigante e pungente), mais solicitador, mais amparado no vínculo, menos auto-suficiente e mais dependente da escuta. A alma silente clama em súplica renitente (desespero? sofrimento?) que dela não se desista.

A seqüência das partes da criação poética de Luís Antônio nos leva a pensar no movimento contratransferencial do analista, no esbarrar e na contradança de aspectos não tão primitivos em contato com os aspectos mais primitivos em nós e em nossa relação com nossos pacientes.

Emerge a questão: a inquietação que sentimos, e que faz com que o poeta fique aflito, não se sinta satisfeito, tenha a sensação de que falta algo, e continue a criar, escrevendo o outro pedaço, é a inquietação dos estados primitivos projetados em nós, vivida rudimentarmente e a nós comunicada, ou é a inquietação de não haver inquietação, de faltar o estranhamento, de faltar a falta do outro, que caracterizaria a humanização? Ou ainda, na analogia clínica, no contato com aspectos autísticos, o que sentimos se relaciona à projeção/comunicação de aspectos cindidos do paciente, ou o que nos atinge é o incômodo com o que lhe falta e que a partir de nossa reclamação pode ser trazido à cena? O que o paciente transfere? Transfere? Há projeção? De que tipo? De que fonte vem nossa inquietação?2

Há no paciente a experiência de um intrínseco insustentável (o “insuportável”), a inquietude, a angústia, o sofrimento, que, inominável, não se revela? Ou a vivência do insustentável se cria em nós, analistas (ou aqui leitores), pelo contato com estados fragmentados de não ser que –projetados ou não, transferidos ou não, insiste ainda a questão, mas de qualquer forma agora também alojados em nós – fazem germinar o clamor por continência e significação?

Como pode se dar esse trânsito das significações? Na medida em que há uma transformação no analista, isso pode ser também metabolizado pelo outro e desenvolver lampejos de interesse por esse processo no paciente? Mesmo que antes não houvesse um clamor pela significação? Ou suporíamos que houvera a anterior projeção, ainda que maciça, desconfigurada, e que, da maneira como ocorre com o bebê e seus pais, um pensar vai se desenvolvendo justamente no trânsito de tais transformações?

Estamos sempre em busca de encontrar uma linguagem de contato que se suponha linguagem onde ainda há somente possíveis rudimentos (que suponha um vir a ser mente), como a mãe que supõe o sujeito-bebê antes que ele como tal se apresente. A “aposta pulsional do analista” (Marucco, 2007) [na linguagem aqui do poeta o não desistir da possibilidade de representação e criação] configura-se como essencial, como material de construção e fundamento de nosso inconformismo com os circuitos intermináveis de estereotipias e mortíferos rituais autísticos silenciadores de vida.

Uma via de desenvolvimento possível se dá no engajamento entre os rudimentos de clamor por significação emocional e a amplificação conferida pelo analista. Analista que, a um só tempo poeta e leitor, se oferece como radar para ressonâncias no processo de tornar-nos (analista e paciente, com nossos vários aspectos de mente) co-produtores de linguagem e possíveis sujeitos de constantes criações.

 

Referências

Alvarez, A. (1994). Companhia viva: Psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, carentes e maltratadas.Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Marucco, N. C. (2007). Entre a recordação e o destino: A repetição.Trabalho apresentado em Conferência na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 10 mar. 2007.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luís Antônio de Oliveira Silva
Rua Gabriel Monteiro da Silva, 639 – Jardim América
01441-000 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3062-3516

Mariângela Mendes de Almeida
Rua Escobar Ortiz, 628 – Vila Nova Conceição
04512-051 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3842-8839
E-mail: mamendesa@hotmail.com

Recebido: 30/03/2007
Aceito: 26/04/2007

 

 

* Artigo concebido durante o seminário sobre estados primitivos da mente, oferecido por Célia Fix Korbivcher como parte da formação de analistas junto ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, do qual, além dos autores, fizeram parte, de agosto a dezembro de 2006, Aida Ribeiro, Ana Letícia Araújo, Elizabeth de Oliveira, Leila Lombardi, Maria Teresa Menicucci, Maysa Dias Ayres e Leda Beolchi Spessoto (monitora). A todos agradecemos pelo espaço inspirador e gestador desta criação.
** Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Psiquiatra.
*** Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, psicóloga e mestre pela Tavistock Clinic e University of East London. Desenvolve atividades clínicas e didáticas no setor de saúde mental, pediatria, na Unifesp. Autora dos comentários deste texto.
1 Referência ao conceito de “reclamação” (chamar para o contato, engajar na relação) de Anne Alvarez, 1994.
2 Credito à Izelinda Barros a formulação em linguagem articulada desta polêmica, que em muito ressoou em nossa experiência clínica vivenciada em estado primitivo de mente, produzindo constantes desdobramentos e articulações (em terreno fértil propiciado por discussões em grupo de estudo sobre transtornos autísticos, coordenado por Vera Regina Fonseca e compartilhado também com Daniel Kaufman, Eunice Nishikawa, Luciana Pires, Maria Cecília Pereira da Silva e Marly Terra Verdi em 2006).