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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.30 no.45 São Paulo Dec. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM II

 

Origens românticas da psicanálise: linguagem e sua consecução

 

The romantic origins of psycho-analysis: language and its achievement

 

 

Paulo Cesar Sandler*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Desconhecer a própria história incita a “re-inventar a roda”; conhecê-la ajuda a alcançar mais profundamente a própria psicanálise – prole prática das aquisições dos iluministas e românticos: defesa do indivíduo, procura por subjacências a textos; busca da historicidade ontogênica; pensamento verbal. O estudo enfoca onde e como essas origens influenciam a teoria e a prática, na linguagem usada no aqui-e-agora da sessão analítica. Nós psicanalistas tentamos alcançar, além de significantes e significados, o símbolo e principalmente os processos de simbolização, aquilo “que significa algo que não ele mesmo”, como observou Gombrich. Por meio de um caso clínico, tentamos mostrar o funcionamento de tais origens nesta prática ainda romântica, de defesa do indivíduo que sofre, mergulho nas paixões e não-paixões, que hoje se chama psicanálise.

Palavras-chave: Formação simbólica, Iluminismo, Linguagem, Movimento romântico, Realidade psíquica.


ABSTRACT

To ignore our own history is an invitation to re-invent the wheel. Conversely, to know it allows for a deeper grasping psycho-analysis itself – a “practical progeny” of the Enlightenment and Romantic Movements achievements: the looking for underlying patterns to texts, ontogenetic historicity, verbal thought. The study focus on where and how these origins influence the “here and now” of the analytic session. We analysts attempt to reach, beyond the significant and the signifier, the symbol and above all, the processes of symbolization. We look for “that which means other things than itself ”, as observed Gombrich. A clinical case is included in order to display how those origins function in our still-romantic practice, in its staunch defense of the suffering individual, through a deep dive into passions and non-passions – which we call today psycho-analysis.

Keywords: Symbol formation, Enlightenment, Language, Romantic movement, Psychic reality.


 

 

Palavras, palavras, palavras; do coração, assunto nenhum.
Troilus & Cressida, V, iii, 108

Autores hoje esquecidos formaram as origens da psicanálise naquilo que muito a caracteriza: o tratamento pela palavra. Desconhecer a própria história incita reinvenções da roda. A psicanálise é prole dos iluministas e românticos em muitos outros aspectos (Sandler, 1997). Dois deles: a procura por subjacências, além do textual, do conteúdo manifesto; e da historicidade ontogênica.

Para alcançar o símbolo, aquilo que significa algo que não ele mesmo (Gombrich, 1959/1986), na linguagem do aqui-e-agora da sessão, precisamos não pender para os significantes, senso-concretificando o símbolo; nem para os significados, o laissez-faire da opinião individual, vôos da imaginação (Bacon, 1620/1994).

 

Linguagem romântica, a do inconsciente

A psicanálise, dentre as atividades que dependem de verbalização, “praticiza” uma linguagem universal, a do inconsciente. Cuidando de não incidir numa reificação idealizada, pois gerações de analistas se formaram lendo traduções de Freud, alguma atenção à língua alemã seria necessária, pois Freud escreveu em alemão. Irrelevante coincidência?

A língua alemã tardou mais a se desenvolver do que as outras línguas européias. Tornaram proveitoso o mau negócio: o atraso criou a “filologia” alemã, que nutriu o movimento romântico alemão. Tinha significado diverso do de hoje – era o estudo das aquisições lingüísticas dos gregos. Essa filologia, Renascença tardia, teria marcado a língua alemã como uma espécie de ciência do espírito ou da mente (Sandler, 2005 a, b).

Johann N. Tetens (1736-1807), ignorado nestes nossos departamentos franceses d’ultramar (Arantes, 1994), foi matemático, físico, filósofo, economista – o mais proeminente do Iluminismo alemão. Observou que qualquer teoria do conhecimento era inescapável de uma abordagem ao funcionamento mental, ancorada naquilo que é real: “A análise metafísica... deve ser precedida pela análise psicológica, mas não importa o quanto possamos progredir em psicologia metafísica, a autenticidade de suas proposições deve sempre ser testada pelo conhecimento empírico” (Tetens, 1969/1977).

Kant tinha dois livros de cabeceira, o de Tetens e o de Rousseau. Abre-se uma perspectiva até então indisponível para a apreensão da realidade psíquica; o equacionar cartesiano da mente à racionalidade sofreu um abalo do qual não mais se recuperaria. Tetens ultrapassa a concepção de consciência como palco no qual associações (no sentido de Locke e Hume) funcionam sob leis que, imaginou-se, fossem newtonianas. Mente: algo autonom, ao incluir uma força livre e criadora: as paixões.

Georg F. Meier nomeou dois conceitos, emoção estética e força poética:

Existem aqueles que acreditam que esta capacidade de conhecimento apenas engendra obras poéticas e outras invenções semelhantes... ela vai muito mais longe. Nossos dotes poéticos e inventivos... entram em ação... para construir com diferentes representações e imagens da imaginação aquilo que nossas sensações nos provêm como conceitos separados. Entrelaçamo-las em um conceito harmônico (Meier, 1757, citado por Cassirer, 1906/1957, p. 185).

Johann G. Hamann inspirou o método crítico para seu aluno, Kant. Eles modificaram o curso da teoria do conhecimento, mostrando tanto a amplidão da realidade interna e externa como a estreiteza de nossos métodos para abarcá-las. Hamann, o primeiro a alertar sobre os excessos racionais do Iluminismo, considerava Kant um timorato, ao perceber uma possibilidade de contato com O. Como? Através de uma comunhão do que ele chamava de fé com a experiência dos sentidos. Bion e Winnicott voltam a usar o termo fé, fé de que a verdade existe (Bion, 1970/2007; Eigen, 1981; Winnicott, 1983/1989).

Hamann percebeu pela primeira vez na história ocidental a “função simbólica” da linguagem, enfatizando o valor da poesia primitiva, como aquela que se encontra na Bíblia, a língua mãe da raça humana (Gillies, 1969/1993). Avançou além do conteúdo manifesto, como o psicanalista de hoje. Considerar a Bíblia estudo “literário” equivalia a dessacralizar algo proibido por deuses ou por um deus. Hamann fez um estudo científico da Bíblia; esta nunca mais foi reduzida ao produto de autoridade divina; jamais seria novamente análoga à estatuária dos santos que tanto revoltaram seu inspirador Lutero.

Falar sobre linguagem, palavras e psicanálise sem mencionar Johann G. von Herder (1744-1803) é negar nos-sa paternidade. Ele expandiu Hamann, como intérprete “científico e literário” da Bíblia. Foi o primeiro filósofo da história no Ocidente. Criou princípios para a crítica literária, a história da filosofia, a literatura e a própria história. Além de registros de fatos, considerou os contextos, numa noção de historicidade semelhante à de Giambattista Vico.

Todo ato de conhecimento só é possível através da linguagem humana (Irmscher, 1969): a capacidade para a formação simbólica tem uma manifestação princeps, a lingua-gem. Ele originou os Sturm und drangers, movimento literário cujo nome (“Turbulência e Urgência”) prenuncia a teoria dos instintos de Freud. Quão distante se consegue ir, com palavras!

Se a paixão, ou a emoção e o afeto instintivos são a mídia do pensar, a linguagem é a mídia do conhecer. Não se “conhece” por meio de pintura ou de música, que nos lançam em sentimentos, emoções, em vivências desconhecidas, que assim permanecem. O Conhecimento ocorre no âmbito do pensamento e da linguagem. Herder é um pré-psicanalista ao perceber nossa dependência da linguagem, mas para transcendê-la:“apreensão nebulosa”,aquilo que os sentimentos não reconhecem. A importância da palavra e do discurso enquanto recursos simbólico-emocionais aparecem na sugestão de que homem e mundo são “unidos” em sentimento, mas “se separam” na consciência, para vincularem-se e unirem-se novamente em um modo intencional – splitting útil (Klein, 1952, Klein, 1952b). Sentimento e reflexão se interpenetram... a palavra, a um só tempo som e significado, é a causa dessa união (Irmscher, 1969).

Herder, o pré-psicanalista, observou a união que a palavra promove entre aquilo que é inanimado, sensorialmente apreensível, e aquilo que é imaterial, vivo, não sensorialmente apreensível. E, psiquicamente, ele suportou um paradoxo: trata-se da introjeção do objeto (Klein & Riviere, 1937/1953; Klein, 1952a, 1952b, 1957). O bebê cria o seio, mas o seio já está lá (Winnicott, 1983/1989). O ser humano percebe sua própria compreensão, e fala toda vez que pensa (Irmscher, 1969). A recíproca não é verdadeira: nem sempre se pensa toda vez que se fala. O inconsciente se intromete na fala racional, no ato falho. A descoberta do fenômeno da resistência mostra que ninguém fala o que “não” tem em mente. O discurso da pessoa tanto assinala como esconde aquilo que é verdadeiro (Bion, 1977/1996). Freud expande Hamann e corrige Voltaire.

Tomarmos concretamente a linguagem condena às análises de discurso, à codificação ou à decodificação simbológica. Afinal, inventaram-se até dicionários de símbolos.

 

Dois usos

Herder observa que a manifestação verbal é um “modo” de expressar e lidar com emoções; é também um “fator” da formação e do desenvolvimento das emoções. Para ele, a poesia é um modo de se entender com a realidade (Irmscher, 1969; Bion, 1962). Foi a primeira vez na história do pensar ocidental que se imputou explicitamente à arte da palavra uma função de autoconhecimento.

Não há de ser coincidência que essa postura tenha vindo de um primevo tradutor de Shakespeare, a morada temporária da mente antes do advento da psicanálise. Para os contemporâneos de Herder, a poesia era vista em um espectro que ia de produto de aprendizado, passava pela poesia como um quadro, terminando como entretenimento. Ele a considerava algo que se originava do ambiente natural e histórico, conforme estes eram experimentados pelos sentimentos; o âmbito iluminado por Freud como o do inconsciente: ato involuntário. Seus contemporâneos defendiam a consciência, acreditavam ser a poesia um ato deliberado. O sentimento do qual ela se origina é um órgão de uma relação dinâmica entre o homem e o mundo, expressa muito mais prontamente no som das palavras e nas ênfases dos ritmos do discurso do que em uma imagem ou idéia. Como a música, a poesia tem em sua essência lírica algo incomensurável... Sua lógica da emoção particular só pode ser detectada por um ouvido criativo... A voz do sentimento adquire o status de arte apenas quando o poeta tem sucesso em fornecer-lhe uma forma enquanto um todo articulado. Assim, a expressão da experiência se destaca do homem e de seu ambiente histórico que o criaram e constitui um mundo por si mesma... Na formulação poética genuína, aspectos até então encobertos da vida humana são revelados em virtude da função criativa da linguagem (Irmscher, 1969). Não é esse o trabalho do psicanalista, abrangendo a universalidade do inconsciente, conforme expresso na especificidade do paciente, o insight? Imaginemos outro diálogo:

Descartes: Penso, logo existo.
Hamann e Herder: Faço poesia, logo, existo.
Freud: Experimento emocionalmente; logo, existo.

 

Linguagem coloquial

W. Wordsworth (1770-1850) e seu amigo Coleridge (1772-1834) fazem poesia sem usar a antiga linguagem poética (Thornley & Roberts, 1968/1987, p. 91), base para a psicopatologia da vida cotidiana de Freud e os alertas de Bion e Winnicott quanto à necessidade de se comunicar com os pacientes em linguagem coloquial.

Precisamos “dizer”, ato que extrapola a sensorialidade do falar, para os pacientes algo no que eles falaram, mas não sabiam do que falavam. Gradual e parcialmente, vão efetuar esse ato por si mesmos. O sonhador diz algo a si mesmo – a via régia para o conhecimento das atividades inconscientes da mente. Como o ouvinte da música, não apreende conscientemente nada do que disse. Os mecanismos de transformação onírica (trabalho onírico) descritos por Freud são uma espécie de músicos. Precisamos tentar ouvir essa música, ao tentar “desfazer” o trabalho onírico (Freud, 1900/1958), construindo e apreendendo conteúdos latentes. Freud pratica, na ajuda a pessoas, a capacidade descrita por Coleridge: tornar aceitáveis certos eventos misteriosos, que carreiam conteúdos latentes invisíveis ao olho mortal. Bion, herdeiro romântico desses seus conterrâneos, observa: mistério é vida real; e a vida real é o interesse da análise real (Bion, 1996/1977).

A linguagem do homem simples do campo procurada e cantada por Wordsworth haveria de se revelar, mais tarde, com as observações de Freud e Klein, como a linguagem infantil – a vida instintual, o camponês em cada um de nós.

 

O núcleo romântico da mente, o movimento romântico do cotidiano

Um paciente comedido e contido, altamente educado, adepto da hipocrisia social, beirando as raias da insinceridade, achava, devidamente estimulado por um psiquiatra da moda, que tinha síndrome do pânico. Acabara de se recusar a ir com a esposa à maternidade para o nascimento de um filho. Esses sintomas de angústia expressavam não uma patologia, mas um último resquício de lucidez, autopercepção: algo não ia bem consigo, algo vivo ainda lutava por existir nele. Abordo tolerantemente um paradoxo; a forma segue a função; uma resistência traz em si o caminho do insight. Três anos de análise, aproxima-se da família, volta a render no trabalho – tinha tais necessidades, ainda que desconhecidas de si, ardentemente. Afinal casara-se, procriara. Neste momento, suas associações se esboçam nebulosamente: deseja abandonar a análise, está revoltado por se ver dela necessitado. O sonho associativo de vigília na sessão:“Quero despedir duas empregadas,já antigas,eficientes. Para conter despesas. Minha esposa discorda”. Na sessão seguinte, uns quinze minutos de silêncio, incerto mal-estar. “Acordei cedo para fazer exercícios... estava escuro. Pisei na lama e me dei conta: a água da piscina transbordara, barro para tudo quanto era lado... O cachorro, aliás, cadela... cadela! (repete, enfático) pulando para lá e para cá, querendo brincar, fazendo a maior sujeira. Há tanto tempo não brinco com um cachorro. Joguei a bola umas vezes para ela, mas logo fui limpar a sujeira. Talvez eu pudesse ter ido nadar desse jeito mesmo, mas fui limpar... (Recorda-se, então, de que a esposa o avisara dos estragos em uma pequena palmeira; a cadela outra vez!) Prejuízo, vamos acabar tendo que refazer todo o jardim. Mal eu chego em casa, nem pendurei o paletó, tive que ir lá pôr uma cadeira na frente da árvore, ralhar com a cadela para parar de roer o tronco. Precisamos chamar o treinador, vai ter que ser serviço rápido, esta cadela tem que aprender a não ficar derrubando o Joãozinho (o filho menor), a não entrar dentro de casa”.

A situação expressa por conteúdos manifestos no aqui-e-agora é interpretada como sua dificuldade de estar na análise de modo livre (aparente no fazer exercícios ou nadar na água com terra, no brincar mais com a cadela); analisando teme ser sincero e se ver idêntico a “transborde, pule em cima do menininho, faça a maior sujeira”. O analista, o “técnico”, tinha que ser mais rápido; o trabalho analítico seria como o restaurador de uma vida insossa, porém protegida. A piscina e o cachorro não domesticado constituem modos pictóricos de ele apreender sua vida inconsciente, sua energia vital – com a qual se sente pouco à vontade. A cadela é ainda, no pensar onírico-poético de vigília, o analista (houve o ato falho de falar “cachorro”), como defesa contra o seio, o feminino na função nutriente da análise (“cadela, cadela!”). A ele falta desenvolver o núcleo romântico da personalidade que o permitiria tornar-se mais amorosamente doador, menos preocupado em salvar sua pele antes de tudo, menos temeroso da dor envolvida na vida como ela é. A mesma situação se apresenta na sua intolerância às manifestações da esposa, que parece apenas tentar compartilhar de modo livre e espontâneo problemas reais do lar. Por ele, sempre ficaria tudo nos sorrisos, um mar de rosas, na ausência de problemas, cuja denúncia ou enfrentamento sente ameaçadores. A energia colocada nas transbordantes cadela e piscina está na esposa, na sujeira mesma, energia vital e sexual, na análise e em si mesmo. Trata de coibi-las. Não tolera a menor manifestação de vida. Há fantasias homossexuais, de ataque à fêmea-mãe e à dupla parental, o não comparecer aos partos.

No momento decisivo da interpretação, o movimento romântico do cotidiano. Viver cada momento como se fosse o último, eterno enquanto dura. Até o ponto a que vai minha experiência, não há assuntos em análise a não ser a análise mesma, a pessoa mesma. Os assuntos – sintomas, o que o pai falou, o que a esposa disse, o que o filho ou a filha não fizeram, a traição do falso amigo, o que o analista disse, considero-os veículos condutores – conteúdos manifestos do sonho noturno ou de vigília. Em seu bojo, o mistério referido por a que Coleridge e Bion se referiram. São transformações, conducentes por um analista intuitivo à invariância. Quando alguns dizem “Estou trabalhando isso ou aquilo (assuntos) em minha análise”, me pergunto: “Será mesmo psicanálise?”. Há uma diferença entre “tornar-se” – becoming (Bion, 1965/2004b, p. 162) – e “falar sobre”.

Bion brincava: Shakespeare teria sido um psicanalista muito antes de Freud descobrir a psicanálise. Freud dissera o mesmo de Goethe. Psicanálise: ave com séculos de arribação que, tentara, frustrada, se alojar nos mitos, na filosofia, na poesia, na medicina, e que pousou em Freud, Klein, Winnicott e Bion, estes românticos por excelência (Sandler, 2002, 2003).

Se nós falharmos, criando, como Mary Shelley, um Frankestein de teorias dissociadas da clínica, modismos (Mello Franco & Sandler, 2006), a psicanálise vai ter que procurar, uma vez mais, sítios mais seguros em que pousar. Wordsworth afirmou:

O objeto principal proposto nestes Poemas foi escolher incidentes e situações da vida comum, e relacioná-los ou descrevê-los de modo tão amplo quanto possível, em uma seleção da linguagem realmente utilizada pelas pessoas, e, ao mesmo tempo, lançando nela uma coloração de imaginação, toda vez que as coisas comuns possam ser apresentadas à mente em um aspecto pouco comum, traçando neles, verdadeiramente, mas sem ostentação, as leis primárias de nossa natureza... A vida humilde e rústica foi quase sempre escolhida, pois nesta condição as paixões essenciais do coração encontram um solo mais adequado no qual podem alcançar sua maturidade, ficam menos restritas, falam uma linguagem mais simples e enfática; pois nesta condição de vida nossos sentimentos elementares coexistem em um estado de maior simplicidade e, conseqüentemente, podem ser contemplados com mais precisão (Wordsworth, 1921/1960, pp. 162-163).

Descrevendo poesia, ou psicanálise, seus elementos (Bion, 2004), o ato da interpretação:

Não é que eu sempre comece a escrever com um objetivo distinto formalmente concebido; mas confio que hábitos de meditação regularam, e deixaram meus sentimentos em estado de alerta, que minha descrição desses objetos excita de tal modo esses sentimentos que, se verá, carreiam consigo um objetivo... Toda boa poesia é o inundar espontâneo de sentimentos poderosos; e ainda que isso seja verdade, Poemas, aos quais se pode vincular algum valor, nunca foram produzidos por nenhuma variedade de assuntos, mas sim por um homem que, possuído por algo mais do que sua sensibilidade orgânica, também meditou longa e profundamente. Pois nossos contínuos influxos de sentimentos são modificados e dirigidos pelos nossos pensamentos, que, com efeito, são representantes de todos os nossos sentimentos passados... O sentimento desenvolvido confere importância à ação e à situação, e não a ação e situação ao sentimento (Wordsworth, 1921/1960, pp. 162-163).

Ou seja, associações livres e atenção livremente flutuante. Os vários assuntos, relatos, são conteúdos manifestos, indicadores, transformações (formas transitórias), veículos temporários. São o correio da mente – mas não são a mente. Bion, que admirava a obra de Wordsworth, chamou isso de “sonhar a sessão” (Bion, 1992/2000; Sandler, 2005a, Sandler, 2005b). Na sessão analítica, as produções oníricas de vigília; o play de Winnicott. Visíveis quando discriminadas da alucinose nossa de cada dia. O analista “precisa participar da alucinose” (Bion, 1970/2007, p. 19), para deixála de lado e alcançar, se houver, o sonho.

O psicanalista, o poeta e o médico se arvoram a ver além das aparências sensorialmente apreensíveis. O chamado olho clínico, através das síndromes, e a experiência criam o médico intuitivo, que alcança um diagnóstico ou estabelece uma conduta no momento em que isso é necessário.

Não se demanda que analistas sejam poetas. A poiesis é o ato do casal analítico. Um ato criativo análogo à reprodução sexual (Sandler, 2003). Uma forma comunicacional verbal e não verbal pode ser a language of achievement,na formulação de Bion. Verti-o, de modo aproximado, como “linguagem de consecução”, ou, se existisse o termo em português, “de ir conseguindo” (Bion, 1970/2007). Um vocabulário na análise desenvolvido intuitivamente com o intuito de expressar emoções, expressar o tornar-se, desenvolvendo quem realmente se é. Não é cura de sintomas; não é PS?D, como querem kleinianos, mas PSóD. Não são organizações patológicas, mas defensivas, como descreveu Rivière. Não é refúgio psíquico patológico, mas expressão alucinada de alguma necessidade a ser descoberta. Não há paciente de difícil acesso quando se usa a linguagem apaixonada possível com as observações de Klein acopladas ao analista que usar em si mesmo o amor à verdade recomendado por Freud e Bion – este analista assume que há pacientes que ele não alcança, pois com eles faz pares estéreis. Outro analista poderá alcançar, assim como na vida real, algum casal pode se formar mesmo (ou porque) outro não se formou.1

O ato analítico, único e específico, mas transcendente e geral, humano, compartilhável, pela linguagem do Bildugskraft romântico (Sandler, 2001a, 2001b, Sandler, 2003).

“Vinde, com o aroma de vossa profissão. Vinde, uma fala apaixonada” (Hamlet, II, ii, 409).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Paulo Cesar Sandler
E-mail: sandler@uol.com.br

Recebido: 28/03/2007
Aceito: 31/05/2007

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre em Medicina USP; psiquiatra pela AMB.
1 O leitor interessado em ilustrações clínicas da fala apaixonada em Klein e suas contribuições para o estudo da formação e da não-formação simbólica (Sandler, 2003).