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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM II

 

A força da linguagem*

 

The force of language

 

 

Laurent Danon-Boileau**

Sociedade Psicanalítica de Paris (APF)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é demonstrar que a linguagem da talking cure manifesta-se de duas maneiras distintas, por um lado, a do proferimento compulsivo, e de outro, a da escuta associativa do outro. Ao contrário, para o paciente, a fala compulsiva acarreta habitualmente um processo de repetição ao idêntico. Para derrotá-la, é preciso que a escuta do analista, apoiando-se na sensação convocada pela fala, no que ela tem de mais profundo, possa restituir o bem essencial de uma escuta afetiva. Esta restituição, todavia, pode acarretar uma dependência da escuta do outro. Esta, por sua vez, tem sua fonte numa nostalgia do objeto oceânico seguramente, mas também numa recusa de assumir a satisfação alucinatória a fim de não ter que fazer o luto da mesma.

Palavras-chave: Cura pela fala, Escuta associativa, Fala compulsiva, Linguagem, Sensação.


ABSTRACT

The object of this paper is to show that the language involved in a talking cure takes on two distinctive forms: that of compulsive utterance on the one hand and that of associative listening on the other. Compulsive speech on the subject’s part, however, generally implies a process of identical repetition. In order to undermine the latter, the analyst’s activity of listening should thus aim to reinstate the essential object that is implied in an affective form of listening and that is based on the feeling aroused by speech at its very deepest level. This reinstallation can, on the other hand, create a dependency on the listening role of the other. Whilst this dependency is assuredly rooted in nostalgia for the oceanic object, it also no doubt springs from a refusal to experience hallucinatory satisfaction in order not to then be obliged to mourn the latter.

Keywords: Treatment by speech, Associative listening, Compulsive utterance, Language, Feeling.


 

 

A força do destino desfeita pela fala?1 Decididamente a psicanálise é um método de tratamento escandaloso. Aquele que trata não dá remédios, não faz nada e nada manda fazer. No entanto, dessa situação inédita surge um efeito pouco mensurável, mas incontestável. No final das contas, aquele que se entrega à fala “deitada” acaba por dispor de mais clemência e mais leveza para aquilo que se trata, aquilo que trata dele e aquilo do que se trata nele. Pouco a pouco ele chega a se reconhecer como a sede e o autor de alguma coisa com a qual não teria sonhado.

Mas, de onde vem a idéia de que a ligação entre a fala e a pulsão possa assim se enriquecer, se diversificar ou vivificar? Qual é então o princípio ativo dessa talking cure? A entrada em ressonância de duas psiques distintas e a excitação nelas de camadas singulares, ao mesmo tempo íntimas e já culturais? Sim, o movimento ondulatório do aparelho de linguagem apreendido então de um salutar mal-estar? Sim, de novo. “Langage, tangage” (linguagem – balanço, ondulação), diz Leiris. Verdade tangível dentro do espaço do tratamento, mais do que em qualquer outro lugar, seguramente. Como isso é possível?

Tratamento de falas: na boca de Anna O. foi sem dúvida uma maneira de expressar o remorso de que finalmente aconteceram tão poucas coisas em relação às expectativas nutridas pela transferência. Contudo foi também um reconhecimento imediato da singularidade de um trabalho que só se calca nas palavras. Ou melhor, justamente não nas palavras, e sim no talking. A fala como atividade. E não qualquer uma: qualquer fala na sessão não é imediatamente uma fala de talking cure no sentido de Anna O. São necessárias horas de repetição, às vezes uma verborréia, uma tagarelice ou, ao contrário, de uma exposição conduzida por uma mão sábia (e mesmo por falas pesadas, dolorosas), para que surja outro tipo de talking.

Muito small talk ou heavy talk, em suma, para um pouco de talking cure. As coisas se complicam novamente quando procuramos especificar no que a “boa” fala se distingue de outra, aquela que exige e se agarra àquilo que ela é, e àquilo que diz, que ela seja realista e prolixa ou bem vazia, desencantada e desabitada. Sem contar os casos extremos em que o propósito se faz descrição exata de experimentos e sensações fragmentadas (de calor, de frio, de cãibra), em alguns momentos fundamentados no debulhamento tão minucioso de um cotidiano que se torna difícil para o analista fazer vibrar. Por vezes, na escuta de tais pacientes, nos dizemos: “Eu compreendo bem o que ele me diz, mas eu não compreendo o que ele quer dizer com isso nem por que me diz isso. A não ser que justamente ele queira me manter afastado. Mas afastado do quê? O que será que ele repete? Por que procura tanto obstruir a minha escuta? O que será que eu não suporto nessa repetição, justamente eu que aceitei ser um trabalhador da repetição?”. Momentos de violência sutil, em que nos sentimos inúteis, esperando, várias vezes em vão, o instante em que ouviremos “Eu não sei verdadeiramente por que lhe conto tudo isso”. É evidente que tudo muda, se tivermos a sorte de que esse comentário surja na boca do paciente.

Raramente confundimos essa qualidade da fala com outra. Ela não é nem associativa, nem felizmente pulsional, tampouco bem temperada. É compulsiva, repetitiva. E, entretanto, não seria bom se fôssemos surdos a ela: ela constitui freqüentemente o comum da sessão. Então, como acolhê-la? Com quais disposições precisamos nos encontrar de modo a fazê-la balançar e a permitir com que outra possa advir, ao mesmo tempo alucinatória e renunciando à alucinação por um movimento de imprevisível inadvertência do qual só somos avisados a posteriori?

 

O sentido de um lado, a força de outro?

Retomemos. O que é que vem fazer obstáculo à fala feliz, aquela que amamos ouvir, associar, desdobrar, pressionar, surpreender-se, retomar, descobrir de repente ligações imprevistas? Um afastamento irredutível entre a força brutal da pulsão e o significado sem efeito nem incidência de uma fala privada de investimento? Em psicanálise, a oposição entre força e sentido é quase tão familiar quanto a oposição entre a segunda e a primeira tópicas. Para nós, a força da necessidade, da excitação, da pulsão, da repetição, se opõe ao sentido que as representações e a linguagem nelas assumem e promovem.

Porém, se opusermos radicalmente o sentido à força, como a linguagem no tratamento pode ainda exercer a função civilizatória e sair vitoriosa sobre o agir, a repetição e a Zuiderzee? Sobretudo se, por preguiça cultural, reduzirmos a linguagem ao que dizem as gramáticas, os dicionários, alguns tratados de retórica e uma leitura apressada de Saussure.

Para sair desse impasse, é preciso suspender todo antagonismo exagerado. Da força, será primeiramente necessário saber que ela implica o sentido (de fato, no tratamento, qualquer repetição age de alguma forma, por mais lancinante que possa ser, pois contém, apesar de tudo, um fermento de sentido que, no decorrer do tempo, pode se transformar em fator de mudança). Da linguagem, destacaremos que não é apenas uma função de sentido, mas também um processo dinâmico. Sabemos de onde vem a energia que aí se concentra. A princípio, da transferência das pulsões parciais: a oralidade aí se reencontra (o prazer de falar, de pronunciar lentamente as palavras que saboreamos como balas), assim como da analidade (a boca é um esfíncter e o ar, depois de retido por um tempo, deve ser expulso com autodomínio). Mais tarde, é claro, da atração exercida pelo objeto – o mesmo que, numa busca intersubjetiva, o paciente procura de início controlar através de perguntas e questões, contudo ele logo pressente que é a sua escuta que ele procura porque dá sentido ao investimento intrapsíquico de sua própria palavra. Tal é o poder singular do colóquio analítico, e a incidência do setting: a escuta do objeto externo (portanto intersubjetivo) fornece um público silencioso que sustenta a vibração alucinatória da palavra e reforça o investimento intrapsíquico que o sujeito pouco a pouco consegue fazer disso.

 

O investimento da linguagem

Qualquer fala analítica, qualquer fala associativa, repousa em dois tempos. De início, a colocação num jogo “regrediente”, primitivo, selvagem, neurótico, infantil do discurso: ele se torna o elo imprevisível de uma encarnação alucinatória, a marca de uma representação até aqui inconsciente, o meio maleável que permite ao sujeito dar voz ao que ele quer (ou, melhor dizendo, àquilo que nem ele mesmo sabia que queria). Em seguida, vem o tempo do desapego, da renúncia e do luto do movimento alucinatório (e, além disso, um dia, mesmo, da escuta efetiva). Sem o primeiro tempo, nada se passa, entretanto é o segundo que abre a via do insight. Entre um e outro se organiza o processo da metáfora, que repousa, como mostrarei, no afeto. Neste caminho, o papel do objeto externo é decisivo. Com efeito, fazse necssário o suporte complexo e conflituoso da escuta. Deixada por si só, a palavra engana e se mascara. É a correlação interpretativa entre os fragmentos do dito que denuncia a posteriori o discurso como sintoma e início de uma representação inconsciente flexível e deslocável.

Todavia, há um outro estilo que não é o da talking cure. É, antes de qualquer coisa, uma fala de proferimento. Fala urgente, por vezes condenada pelo objeto externo. Em todo caso, exclusiva, compulsiva, repetitivamente ligada à atualização de uma situação singular que o sujeito nega, recusa constantemente. Essa fala, como veremos, só se pode interpretar como sentida pela emoção e a descentralização do corpo. Mas uma descentralização que somente a linguagem pode induzir, visto que existe um elo muito forte entre linguagem e sensação.

 

O efeito do bloco mágico

Falar de linguagem em análise é falar dessas variações de estilo, de seus valores e de seus efeitos, notadamente no decorrer das sessões. Ora, a linguagem dentro da sessão, as palavras por meio das quais se realizam as trocas, é sem dúvida a coisa mais difícil de ser recordada. Porque associativamente passados 45 minutos, o que nos vem à mente é o movimento geral muito mais do que as palavras exatas. Uma fórmula por vezes pode se manter tal como foi pronunciada, mas seguramente não na sua integralidade, nem no que se refere à fala de cada um disse, nem ao tempo que foi utilizado para isso. E se essa fórmula fica na memória, é que já se transformou numa palavra que fez efeito como aquela de uma criança, um traço da mente, ou uma sentença profunda. Alguma coisa sem dúvida, nessa palavra, não chegou a se descondensar no decorrer das associações, ou não encontrou seu afeto e resiste ao esquecimento, enquanto a demonstração necessária não é feita. Apesar de tudo, o tecido lingüístico que a envolve se esgarçou.

Há, portanto, um paradoxo: o discurso que é o mais imediatamente perceptível, o que está mais à mão e que seria o mais registrável sobre um suporte técnico tolo, é também o mais fútil, o menos tangível e o mais alusivo. De modo que um psicanalista é paradoxalmente menos claro sobre o texto que ele escutou e disse durante 45 minutos do que sobre o que ele sentiu e o que isso pode evocar nele mesmo e no paciente. O que se quer dizer é que a linguagem faz as vezes do “bloco mágico”: o que é percebido e consciente, o que está na superfície mais exterior do bloco, a seqüência útil das palavras, é, ao mesmo tempo, aquilo que se encontra mais acessível e o que é apagado com mais facilidade. Aí está, aliás, um efeito de enfraquecimento salutar. Não há escolha: se abordássemos uma sessão seguindo todo o seu transcurso palavra por palavra, se fizéssemos um esforço para nos lembrar aproximativamente das sílabas ditas por um e outro, não haveria, com certeza, mais flutuação. Nós nos tornaríamos surdos à diferença de peso das falas. É da evanescência da linguagem real dentro da sessão que nasce uma parte não negligenciável do processo de tratamento. É preciso alguma futilidade na representação da palavra para que a representação inconsciente possa emergir. Ou seja, na análise, a linguagem é uma materialidade incompreensível não por natureza, e sim por ofício.

Após termos feito tal constatação, é preciso então que nos alegremos. Mas a partir de então, como fazer se quisermos dizer qualquer coisa da troca tal como ela ocorreu? É preciso evidentemente reinventá-la, deixando falar sua contratransferência. Não há outra solução. É preciso saber, no entanto, que a contratransferência, ao contrário do que era na sessão, encontra-se necessariamente enrijecida pela perspectiva da exposição a terceiros. Estes são, como sabemos, uma feliz necessidade – ao menos tanto quanto o superego institucional pese seu peso justo e que a língua da exposição clínica não se torne uma linguagem de fórmulas estereotipadas.

Nos bons casos, as palavras inventadas não são aquelas da realidade, porém elas não mudam nem a força, nem o sentido daquilo que aconteceu. Ao contrário: aquilo que analista vai colocar na boca do paciente ou na sua depois da sessão, sem dúvida, não é a verdade. Mas justamente porque não é a verdade, há ali alguma chance de que seja encontrada. No sentido do bene trovato da sabedoria popular italiana ou do encontrado/criado de Winnicott. Assim se esculpe um relevo que o registro do real não fornece jamais.

 

Variações na escuta

Difícil, portanto, lembrar-se das falas do paciente. Mas igualmente difícil lembrar-se da escuta que pudemos ter delas, o que provocou variações nelas e o que se cristalizou em seu curso. Como, de repente, alguma coisa captou minha atenção? Teria havido ali naquele enunciado (na sua qualidade dramática, na entonação, na vazão, no ritmo, na respiração, no lugar que ele ocupava no meio da narração) alguma coisa que fez com que minha atenção parasse de se ater nas palavras isoladamente ao longo da linha narrativa para convocar pensamentos cruzados e organizar uma rede? Isso está ligado à associação do paciente, à maneira pela qual seus temas se encadeavam? E o ponto de partida do movimento é ele, o efeito de uma cesura, de uma discordância, de um hiato, de uma ruptura inovadora, ou, ao contrário, é aquele resultante de um reforço, trazido por seu retorno, sob uma forma só ligeiramente defasada (portanto do mesmo e não do idêntico)? E como, de repente, sob o efeito de uma palavra, eu passei a ver (aqui é sobre o que ele me falava e ali, ao contrário, é sem dúvida outra coisa)? Há aqui, seguramente, momentos de menor e maior intensidade, momentos em que o peso das representações inconscientes se faz mais urgente por detrás das palavras. Como comunicar, contudo, esse sentir contratransferencial banal a índices localizáveis dentro da materialidade do discurso do paciente? O que acabou de ser dito concernente à escuta vale também para a questão do momento da interpretação: nós podemos localizar, dentro da fala do paciente, índices do “momento desejado” (para falar como Blanchot) ou de um khairos, para falar como os gregos? A isso se junta ainda o problema da maneira de dizer: o que é que permite pensar que naquele momento, com aquele paciente, o que deve ser dito, deve sê-lo de tal modo (forma, pronomes, tempo, registro léxico, entonação etc.) e não de outro, antes sobre o vértice pedagógico do que sobre o vértice alusivo e condensado, antes uma fala que expõe seu conteúdo de maneira evasiva e suspensa, em vez de uma advinda do psicodrama? Essas formulações ingênuas suscitam a idéia a priori,o que evidentemente é desprovido de bom senso. Mas imediatamente em seguida, quantas vezes não somos levados a nos perguntar “O que me levou a intervir aqui e desse jeito?”.

Então, por onde começou? Como não sei exatamente, optarei por dar a resposta mais fácil, ou ao menos a mais curta: pelo começo, quase mítico, aquele onde o termo talking cure apareceu. Parece-me de resto que “o que é bem conhecido é mal conhecido porque é bem conhecido” (Hegel). Como a fala que nos interessa aqui só toma o seu sentido dentro do setting do tratamento, é importante reportar aquele em que a expressão nasceu. Há decerto algumas surpresas. Há aqui, com efeito, um mundo entre aquele dos “Estudos sobre a histeria” e aqueles que nós praticamos hoje em dia. As diferenças são tão consideráveis que deveriam quase proibir o uso do termo talking cure para designar o discurso verificado no tratamento de outrora e aquele que ocorre na sessão atual. Ele encoraja o anacronismo.

 

Parte 1
O lugar da linguagem no dispositivo do tratamento e do aparelho psíquico
Capítulo 1: No começo, a talking cure

Como sabemos, a expressão talking cure para designar o tratamento psicanalítico foi forjada por Anna O., paciente original dos “Estudos sobre a histeria”, acompanhada por Breuer e não por Freud. Diversas fontes nos permitem concluir que o conhecimento que Freud teve do caso é muito anterior à aparição desses estudos. Segundo Anzieu, Freud já pensava a esse respeito antes mesmo de partir para Paris para estudar com Charcot. Breuer fez a Freud o relato de tal tratamento não porque se interessava pela histeria, e sim porque um dos sintomas essenciais de Anna O. se forma em torno da linguagem, e Breuer conhecia o interesse de Freud pela afasia, sobretudo quando a perda da linguagem parece não se explicar por uma lesão cortical claramente localizável. Ora, um dos sintomas essenciais de Anna O. foi a perda do uso do alemão, sua língua materna, de uma maneira que lembra a afasia de Broca, em que ao mesmo tempo se conserva o uso fluente de uma língua estrangeira (o inglês para o essencial). Sem estar excluída, a hipótese de uma lesão cortical é pouco provável. Isso permite compreender por que Freud, vindo à Paris para participar das pesquisas da Salpêtrière sobre a afasia, muda de objeto de estudo e se consagra à histeria, neurose que não raro vem acompanhada de transtornos de linguagem que dificilmente podem ser relacionados a uma causa lesional.

É evidente que, no caso de Anna O., a situação é ainda mais singular, uma vez que a fala é simultaneamente lugar do sintoma e aparelho do tratamento.

 

A singularidade do setting da primeira talking cure

Para apreender o valor da talking cure sem projetar nosso presente sobre esse passado mítico e pecar pelo anacronismo, é conveniente relacionar a expressão ao setting em que ela se inscreveu. Ora, o mínimo que podemos dizer é que o dispositivo terapêutico que Anna O. conheceu tem pouco a ver com aquilo que conhecemos na nossa análise pessoal ou com aquilo que praticamos. Em primeiro lugar, há a questão da hipnose. Mas não somente ela. Na época dos “Estudos sobre a histeria”, como sabemos, Breuer e Freud vão à casa de seus pacientes inclusive quando eles se encontram em férias no campo. As sessões podem acontecer diversas vezes ao dia, com duração variável. Enfim, a fala não é o único meio de contato entre a paciente e o terapeuta. Há entre eles um contato físico. O médico utiliza a pressão dos dedos sobre a fronte, assim como massagens. Acontece mesmo de ir ao quarto de um doente à noite, para fechar seus olhos, e se encontrar novamente perto dele pela manhã, para abri-los. A fala está crucialmente ligada ao tato e às sensações por ele provocadas. Eis aqui, a título ilustrativo, o que diz Freud, ao descrever o processo da linguagem em outra paciente, Emmy von N:

Aliás os propósitos que ela tem para comigo enquanto eu a massageio não são tão isentos de intenção quanto a aparência faria supor; eles reproduzem antes com suficiente fidelidade as lembranças e as impressões novas que a perturbaram desde nosso último encontro e emanam com freqüência de uma maneira completamente inesperada de reminiscências patogênicas das quais ela se descarrega espontaneamente através da fala.

O momento da talking cure descrito aqui por Freud surge do contato físico. É preciso que a paciente seja tocada corporalmente para que sua linguagem se transforme em processo de tratamento. O aspecto erótico desse toque é complexo. Por um lado é um toque maternal feito de holding e de handling. Só que é evidente que não se trata só disso. A sedução paternal não está ausente. E a fala vem ao mesmo tempo como efeito induzido pelas diversas seduções e como tentativa de afastar a excitação que provocam. É nessa situação conflitiva que as lembranças traumáticas emergem. É porque ela corre o risco de sucumbir ao charme e à invasão da massagem e porque procura se defender contra isso por meio da palavra que o enunciado das lembranças patogênicas advém em Emmy von N. ou em Anna O. Todavia, as reminiscências inesperadas descobrem o sentido e a fonte do ressentido atual que precisa exorcizar. A fala então vem confirmar a distância entre o vivido e a cena inicial (desprovida de palavras) e sua nova edição. Primeiro efeito da “transferência”.

Nas origens, portanto, a talking cure repousa sobre o tato e o sentir corporal. Insistir sobre a o papel da linguagem no conjunto e no processo corresponde quase que a fazer eufemismo vergonhoso. E, de qualquer maneira, falar de talking cure dentro de um setting desprovido de massagem e de hipnose é falar de uma coisa diferente da que falava Anna O. Outra coisa que, sem dúvida, não tem relação, mas, de todo modo, é outra coisa. Só há talking cure quando se é verdadeiramente tocado, quando a emoção foi convocada e se mostra pronta a se converter em afeto sob a influência do discurso compartilhado.

 

O que talking quer dizer

Eu gostaria de examinar neste momento o que o detalhe da narração do tratamento de Anna O. permite especificar do valor dessa expressão. A escolha do termo, primeiramente: por que a paciente fala de talking cure e não, por exemplo, de speaking cure? As duas palavras podem ser traduzidas em francês por “falar”, contudo há nuances. Enquanto speak é voltar-se para o sentido, talk visa à organização material de significantes dentro do tecido da cadeia sonora. A good talker é alguém que tem facilidade para conversar: trata-se de um um bom conversador, alguém bom de papo, alguém que é afeito às seduções da fala. Em contrapartida, a good speaker é aquele que pensa com inteligência a respeito do conteúdo que exprime.

Ademais, enquanto speak põe em primeiro plano o vínculo estabelecido pelo sujeito entre seu processo psíquico e a verbalização que ele propõe disso, o que prevalece no talk é a dimensão do direcionamento ao outro. O talk é fala destinada. Ele já inscreve a descarga da verbalização no espaço da transferência.

 

O uso do inglês

O que dizer agora do recurso ao inglês, no caso de Anna O., alemã de nascimento? Ele não é, obviamente, indiferente ao fato de que nessa paciente um dos sintomas maiores é a perda do uso de sua língua materna. Falando de talking cure para exprimir sua visão do processo analítico, Anna O. usa de uma expressão que carrega a marca de seu sintoma. Minha leitura do texto não me permitiu saber se a fórmula de talking cure data de um período em que a paciente não se exprimia, a não ser em inglês, ou, ao contrário, de um tempo em que ela tinha recuperado o uso do alemão. Em todo caso, porém, o remédio carrega o traço do mal.

Atualmente, além da ligação que ele mantém com o sintoma, qual é o valor do inglês na história dessa paciente? A narração do caso deixa dois indícios, e no primeiro deles se faz menção a uma “dama de companhia” inglesa “[da qual a paciente] não gostava”. Essa dama de companhia é evocada durante uma cena em que Anna a surpreende no seu quarto, dando de beber a seu cachorro num copo, visão que provoca nela um episódio de hidrofobia. O inglês é, portanto, a língua de uma mulher repugnante, que coloca os cachorros dentro do seu quarto para cuidar deles como humanos e fazer com eles coisas sujas.

Há um segundo elemento mais importante ainda: uma noite, Anna O. está nos aposentos de seu pai. De repente, ela é tomada por uma alucinação, e começa a ver serpentes saindo da parede. Seu braço se paralisa. Quando as serpentes desapareceram, “ela quis rezar, mas as palavras lhe faltavam e ela não pôde se exprimir em nenhuma língua até o momento em que encontrou, enfim, um verso infantil em inglês e que pôde, nessa língua, continuar a pensar e a rezar”. Aqui, o inglês preserva o pensamento referente ao pavor. Mas, para apreender o teor do primeiro recurso ao inglês e ao talking como tratamento, é conveniente retomar o desdobramento verdadeiro do conjunto deste episódio traumático.

Eu não penso haver uma leitura particularmente original na concepção de que o ponto de partida da alucinação de Anna O. é a visão do sexo de seu pai. Há então uma primeira alucinação negativa da percepção desse sexo, depois, secundariamente, a construção da alucinação positiva das serpentes, que constitui não apenas a realização figurada de um desejo, como também uma primeira defesa contra sua expressão demasiado direta.

É para exorcizar a visão alucinatória das serpentes que a paciente recorre aos “versos infantis” e às “cantigas de ninar” que recita em inglês. Isso feito, ela encontra, sem dúvida, uma maneira infantil de exorcizar seus terrores noturnos através da recitação compulsiva dos versinhos ingleses. Mesmo que inventado, o recurso aos “versos infantis” marca realmente o uso regressivo da linguagem, uma fala mágica que permite ter a loucura da alucinação visual, à distância. Sabemos, aliás, que esse gênero de versinhos, pelo ritmo do significante e o jogo de sons, encoraja a colocação à distância do sentido, ao mesmo tempo, reconhecido e mal conhecido, familiar e estranho. O recurso ao inglês para verbalizar o processo do tratamento (o fato de falar de talking cure) conserva, portanto, o traço do sintoma (falar em língua estrangeira), mas faz eco igualmente às tentativas da infância para recobrir o uso do pensamento e manter afastada a loucura do desejo. Recitar versinhos em inglês e depois recorrer à talking cure permite à Anna manter a razão recalcando o desejo que sente por seu pai e também preservando alguma coisa de outra maneira. É tudo isso que é convocado pela expressão talking cure. O inglês é a língua que possibilita a ela se manter à distância da invasão pelo delírio e pelo reclaque. No entanto, é igualmente a língua repugnante de uma dama de companhia que não hesita em dar de beber a seu cachorro no próprio copo. É todo o conflito da sexualidade infantil que aqui é convocado pela expressão, por pouco que nos esforcemos para reinseri-la no seu contexto.

Restaria determinar a quem fala Anna O. Certo, pelo efeito da transferência, é evidentemente ao seu primeiro sedutor incestuoso (seu pai). Entretanto, como ela fala em inglês, a língua à qual recorre é aquela da governanta, personagem feminina para não dizer maternal. Podemos então dizer que uma parte do efeito curativo do talking repousa sobre o status conflituoso do destinatário ao qual a fala é endereçada: para que aí haja talking cure, a paciente deve poder recorrer a uma língua que se encontra num personagem da linhagem da mãe (ela deve falar em inglês como se falasse à governante que cantava as cantigas de ninar antes que se tornasse aquela que faz coisas sujas com seu cachorro, dando de beber a ele em seu copo); mas deve de fato se dirigir a um personagem na linhagem do pai (o pai ou o terapeuta).

Talking cure, todavia, não é a única expressão da qual Anna O. se serve para designar o processo do tratamento. Ela fala igualmente da “limpeza de chaminé”. Qual é a diferença entre as duas caracterizações? Esta segunda maneira de dizer, nota Breuer, twm notas de humor, enquanto a primeira é séria. O que Breuer chama de humor é sem dúvida o traço de excitação ligado mais diretamente à evocação do coito (em francês a expressão crua de “se fazer raspar” o atesta), mas ao mesmo tempo essa expressão está também ligada ao universo da infância: o Papai Noel que passa pela chaminé e o conto da Bergère e do Ramoneur. Aliás, o texto de Breuer faz explicitamente alusão aos livros de imagens sem imagens de Andersen, onde figura o relato da Bergère e do Ramoneur. O inglês estabelece assim um vínculo entre a sexualidade infantil, o uso mágico da fala e a maneira pela qual a linguagem do adulto o traduz. Atenuando as imagens do livro contado. É a essa fala que a talking cure deve fazer eco para manter o delírio à distância e permitir ao sujeito enunciá-lo, assim como renunciar a ele encontrando outros modos de elaboração da sua pulsão.

Anna O. recorreu, portanto, ao inglês para caracterizar diferentes aspectos do processo psíquico. A partir de então, por que o recurso ao alemão para falar de sua atividade fantasmática crepuscular, este privatheater que a tradução francesa verte para “teatro privado”? Teríamos vontade de dizer que é porque o teatro privado não tem efeito de tratamento. Haveria, aliás, aí pelo menos duas razões. Por um lado o teatro fantasmático fica muito próximo do delírio. E por outro, ele não repousa sobre uma fala destinada a alguém. O teatro privado é privado de público. A talking cure, ao contrário, exige um destinatário. Ela é crucialmente endereçada. O recurso ao inglês seria então reservado à designação dos processos que fazem o efeito de tratamento porque eles se apóiam sobre a presença do objeto externo e a troca singular que fornece sua escuta.

 

O efeito da linguagem na talking cure: qual é e em que condições ela se dá?

Eu gostaria de lembrar o efeito da linguagem no tratamento tal como ele aparece na teorização de Freud (e de Breuer) na época dos “Estudos sobre a histeria”. Ele é duplo. Neste momento da teoria, há inicialmente a catarse por si só. Através do enunciado da cena, a linguagem permite “purgar” um afeto encurralado na lembrança. Têm-se a narração depurativa e a catarse. A motricidade que exige a fala (a colocação em movimento do aparelho bucofonatório) fornece uma primeira saída à excitação aprisionada pela lembrança. Mas há aí um segundo efeito: graças à colocação em palavras, a “representação hiperintensa” mantida até o momento fora do campo da consciência (em razão mesmo do excesso de excitação que a ela ligada) retorna ao lugar onde residem outras representações. Essa colocação em jogo não é somente um ganho de conteúdo representativo, é um ganho para a economia da pulsão. Porque, quando uma representação retorna ao domínio da consciência, a excitação que a ela ligada pode circular em direção a outras representações. Ela se torna então um lugar de investimento (conceito decisivo para o qual a tradução de Strachey forjou a palavra catexia). Isso muda o destino da excitação: ele cessa de ser tomado dentro da alternativa entre o encurralamento (sobre uma representação isolada e inconsciente) e a descarga (na ausência de qualquer ligação a um suporte representativo). Essa perspectiva está evidentemente em perfeita continuidade com aquela do Projeto.

Restaria evidentemente especificar as condições nas quais o sujeito deve se encontrar para que sua fala possa ter efeito de tratamento. Ele deveria estar no “estado primeiro” do pensamento cotidiano ou no “estado segundo” que a hipnose engendra? Quando Anna O. dá vazão de seu delírio ao talking do tratamento, será que ela ainda delira, ou será que está num momento de consciência clara, ou nem em um nem em outro? A priori, ela libera suas fantasias e alucinações sob hipnose. Mas Breuer enfatiza que a fala da hipnotizada resiste ao hipnotizador: quando ele quer forçar um relato ou pressionar a paciente, não consegue nenhum resultado. Ele não pode influenciar o talking de sua paciente, nem seu curso, nem seu desdobramento. Se tenta fazer isso, ele rompe o encanto. A relação da paciente com o seu processo de fala se altera, e o tratamento cessa. Freud menciona rigorosamente a mesma coisa com relação a Emmy Von N., que é tomada de terror ante a idéia de que se intervenha em seu relato (“Fique tranqüilo! Não diga nada! Não me toque”). O talk da talking cure surge, portanto, num estado segundo, mas num estado segundo singular. Ele é frágil e pode constantemente ser rasgado pela intrusão ou pelas injunções do terapeuta. Na verdade, é um estado segundo, porém um estado segundo que é já um momento de auto-análise: o paciente consegue jogar com a dimensão intrapsíquica de sua fala sob o olhar de um analista que deve observar e se calar. As representações inconscientes do paciente entram em vibração com seu aparelho de linguagem. Isso acontece num estado segundo dentro do qual a linguagem é regressiva. Contudo o equilíbrio é precário e toda manifestação do terapeuta arrisca perturbar a qualidade do dispositivo, lembrando o distanciamento entre a escuta construída pela transferência e sua realidade efetiva. Obviamente, no melhor dos casos, se a paciente consegue também escutar o que ela formula nos seus momentos de talking cure e consegue se surpreender assim como o terapeuta, tudo torna a balançar: a talking cure que se desenvolvia num estado segundo particular se encontra prolongado por um estado primeiro, que finaliza então o efeito do tratamento.

É preciso dizer que toda talking cure não é necessariamente aproveitável para o sujeito. Há casos em que seu efeito é o de (auto) interpretação selvagem. Sim, ela se torna então bastante eficaz, e cura demais e muito brutalmente. Eis aqui um exemplo: depois da morte de seu pai, confrontada com o vazio de seu desaparecimento, Anna recorre à noite a estados oniróides que a permitem reviver de modo quase alucinatório o lugar e o tempo de suas últimas trocas com ele. O recurso à talking cure faz rapidamente desaparecer tais estados alucinatórios. Mas Anna é brutalmente jogada num espaço desencantado e num tempo despovoado, o que é “muito desagradável”. Breuer é então obrigado a ir à sua casa, à noite e pela manhã, para fechar seus olhos e depois reabri-los. Se a talking cure se tornou interpretação selvagem, é porque as palavras destruíram pura e simplesmente o delírio, sem o transformar: o talking parou de trabalhar a representação inconsciente e a alucinação. Elas não são mais do que a denúncia disso.

Ao fim deste percurso do texto original do tratamento de Anna O., vemos se definirem as condições da talking cure. São aquelas da fala em análise. Para que ela surja, é preciso que a paciente esteja num estado segundo comparável ao da hipnose ou da alucinação. Mas o que a fala vem manifestar é um esforço para sair disso. É um processo enraizado na sensação do tocar, no delírio também, mas que se esforça para distanciá-los, embora ao mesmo tempo em continuidade com eles e elaborando-os. É igualmente uma fala endereçada aos objetos dentro da sua diversidade e da sua conflitualidade. Como sabemos, o equilíbrio econômico desse conjunto é precário.

 

Capítulo 2: O lugar da linguagem no setting e o aparelho psíquico depois de 1920
Teorias do setting, teoria do aparelho psíquico e o lugar da fala

Para que alguma coisa aconteça no tratamento, a fala deve trabalhar em duas direções. Fazendo vibrar a mola de sua magia primitiva, ela deve convocar as representações de coisa. Depois, apoiando-se sobre as palavras, deve favorecer a conscientização dessas representações. São dois movimentos opostos, mas que devem permanecer solidários. É exprimindo seu desejo inconsciente que o sujeito percebe que “não havia jamais pensado nisso” e mede a ilusão da qual era vítima.

Todavia, para apreciar o teor exato das forças em ação, é conveniente fazer referência ao conjunto do dispositivo da linguagem à teoria do setting como aquela do aparelho psíquico Assim, por exemplo, o efeito curativo da talking tal como ele aparece nos “Estudos sobre a histeria” repousa sobre o postulado de um inconsciente povoado de representações, de acordo com a primeira tópica. Tudo muda com a segunda tópica quando as representações inconscientes desaparecem para dar lugar às moções pulsionais do id. O aparelho psíquico deixa então de ser governado pelo sentido para passar sob a égide da força e da compulsão à repetição. O papel da linguagem não pode mais ser o mesmo.

Em psicanálise, a teoria do setting e a teoria do aparelho psíquico estão ligadas. No curso da história analítica, elas evoluíram solidariamente. Esquematizando ao extremo, podemos distinguir cinco períodos sucessivos. Os três primeiros têm como fundamento a primeira tópica e os dois últimos, ao contrário, repousam sobre a segunda.

 

Os três primeiros períodos

O primeiro período corresponde aos “Estudos sobre a histeria”. A fala vale então como vetor de catarse. Na segunda, que se abre com “A ciência dos sonhos”, a fala permanece catártica por um lado, mas torna-se igualmente reveladora dos conteúdos de sentidos do inconsciente. Em seguida, no terceiro período, que vai desde os “Artigos sobre técnica” até meados de 1920, o conteúdo se organiza em torno das resistências e a fala se transforma num processo de perlaboração. Se ela é fonte de tratamento, não é tanto como vetor do tornar-se consciente que dá seqüência ao tempo da associação livre, e sim como instrumento de perlaboração que progressivamente dá sentido às ações repetitivas surgidas dentro da transferência. Até o presente, porém, o trabalho, qualquer que seja o seu efeito (catarse, reveladora do conteúdo do sentido, perlaboração), resulta de um aparelho psíquico em conformidade, no essencial, ao modelo desenhado pela primeira tópica.

 

O quarto e o quinto períodos

Com o quarto período, depois de 1920, tudo muda. A consideração de um além do princípio do prazer e do efeito específico da compulsão à repetição exige uma revisão da teoria do aparelho psíquico, a qual, por sua vez, perturba a concepção de tratamento.

Como Green sublinha com insistência, na segunda tópica o inconsciente não é mais tanto o lugar das representações inconscientes como aquele das moções pulsionais do id. Se a noção de representação inconsciente conserva sua pertinência, ela se aplica então aos conteúdos da parte inconsciente do ego. Como conceber, a partir daí, o papel da linguagem? Excetuando as representações inconscientes do ego, não há mais conteúdo para emergir. A resposta é que é justamente à linguagem (mas não somente a ela, é verdade) que compete trabalhar as moções pulsionais do id para transformálas em representações inconscientes que irão povoar o ego. As representações inconscientes (do ego) resultam do trabalho da fala na análise (tratamento): elas não a precedem.2 Aqui vale lembrar a visão de tratamento que propunha Viderman.3

A famosa frase “Onde é id, que se faça ego” deve receber uma nova explicação. Seu significado não é o de que é preciso trabalhar para que as representações inconscientes se tornem conscientes, mas antes que as moções pulsionais do id se tornem representações inconscientes no ego. Um verdadeiro investimento de traços mnêmicos pode então se dar. O princípio do prazer encontra sua pertinência.

Esta elaboração da segunda tópica conduz de fato à proposição de dois níveis de inconsciente. Há o nível correspondente às representações inconscientes do ego, muito próximo do inconsciente da primeira tópica. Há ainda um nível mais profundo (aquele das moções pulsionais do id), reservatório de força e não memória de sentido. Essa intuição de um nível profundo de inconsciente se acha sob diferentes formas na literatura psicanalítica contemporânea. Ele corresponde àquilo que foi designado como “memória sem lembranças” (Green, Botella), inconsciente originário (Piera Aulagnier) ou lugar de inscrição de traços mnêmicos perceptíveis (Roussillon) e evoca igualmente, sob diversos prismas, o registro dos fenômenos que Anzieu descreveu em termos de significantes formais.

Qualquer que seja a terminologia com que é nomeado, é esse nível que serve de fundamento ao conjunto do edifício. É ele que somente é ativado quando a psique do sujeito se acha sob o impulso de uma compulsão à repetição4 que não consegue se libertar com o emprego do princípio de prazer e permanece prisioneira de uma exigência de descarga motora (aparentemente) desprovida de qualquer resto representacional. Daí o recurso a esta perspectiva teórica para dar conta da clínica do borderline.

Ainda que não apareça assim em Freud, esta visão do conjunto do aparelho psíquico pode se sustentar sobre certas proposições do Projeto. Nele, a memória inconsciente está, com efeito, organizada como um sistema de traços mnêmicos divididos em dois compartimentos. O primeiro classifica, conserva e organiza os traços em razão da contigüidade e da simultaneidade das percepções iniciais das quais elas resultam (nível I). O segundo, em razão de suas similitudes (nível II). Podemos estabelecer uma aproximação entre o nível I, o originário, e o efeito da colocação em jogo da compulsão à repetição; também entre o nível II, o inconsciente da primeira tópica (ou a parte inconsciente do ego da segunda tópica), e os efeitos da colocação em jogo do princípio do prazer.5 Com efeito, quando submetida à compulsão à repetição, a pulsão reúne os materiais sobre a base de sua contigüidade e sua simultaneidade. Ao contrário, na hora em que se dobra ao inconsciente e ao princípio do prazer, as condensações e os deslocamentos que opera se fazem sobre a base de semelhanças.

É sem dúvida com Winnicott que se abre o quinto período da teoria do tratamento e do aparelho psíquico. Aqui o trabalho analítico é compreendido como um trabalho a dois. A psique torna-se fundamentalmente um ser de relação. E no espaço do tratamento não há mais o analisando sozinho, confrontado com a perlaboração. Há duas pessoas que não sabem aonde vão: é com esse custo que o encontro tem lugar. Sobre os dois, é verdade, há ao menos o analista que, podemos crer, é provido de boas representações de uma sólida neurose infantil.

 

Capítulo 3: Intersubjetivo e interpsíquico: o papel do objeto, os indícios da entonação

Desdobrando a intuição de Winnicott segundo a qual os acontecimentos durante o tratamento resultam da colocação em ressonância de dois aparelhos psíquicos, Green propõe considerar o material (e singularmente a fala do paciente) situado na confluência de duas correntes: a corrente intersubjetiva e a corrente intrapsíquica. A primeira contém os acontecimentos do aqui e agora e apresenta como resultado a transferência sobre o objeto. Este é, ao mesmo tempo, a causa e o destinatário do discurso. Nos enunciados do paciente, ele é marcado pelas demandas, as buscas e as esperanças. Exprimindo-se assim, à sua revelia, o sujeito repete sua história.Estão aí ilustrações típicas da repetição na transferência.

Para a corrente intrapsíquica, que é a da transferência sobre a fala, interessa, ao contrário, a fala do sujeito em relação com sua própria psique. É uma fala de si para si mesmo, em que o analista se torna aquele a quem se dedica a palavra mais do que a quem ela se destina. Nos momentos particulares em que esta corrente prevalece, o discurso é trabalhado a partir de duas dinâmicas contraditórias, a da revelação associativa e, ao contrário, a de uma censura tanto mais viva quanto paire constantemente no sujeito a angústia de não ser acolhido pela escuta do objeto.

Clinicamente, a distinção entre a corrente intersubjetiva e a corrente intrapsíquica é notória. Registramos bem os momentos em que o paciente se dirige diretamente ao analista (a ele fazendo uma exigência ou colocando-lhe uma questão, por exemplo) e aqueles, em oposição, em que sua linguagem parece se interiorizar, se retomar e se perder num processo complexo de revelação e mascaramento.

 

A relação com o processo primário e o processo secundário

Quais são os vínculos que a corrente intersubjetiva e a corrente intrapsíquica mantêm com os processos primário e secundário? A esse respeito, o pensamento de Green parece ter evoluído. Em “A linguagem na psicanálise” do livro Langages (Paris, Les Belles Lettres 1984, p. 183), ele escreve:

O primeiro circuito descreve a cadeia da fala. Ela é regida pelas relações código–mensagens. É a cadeia da transferência sobre o objeto. O que é transferido nesta cadeia são os processos que ocupam a cadeia inferior. Esta cadeia inclui sempre o destinatário da mensagem, seja ele designado ou não, pelo fenômeno da transferência intersubjetiva e é regida pelos processos secundários. O segundo circuito é chamado de “cadeia das representações”. É a transferência sobre a fala. Esta cadeia é regida pelas relações pulsão–representação. Ela inclui sempre o objeto nas suas representações e é regida pelos processos primários.

A transferência sobre o objeto (intersubjetivo) está, portanto, do lado do processo secundário, e a transferência sobre a fala (intrapsíquica), do lado do processo primário.

Em Idées directrices pour la psychanalise (Paris: PUF, p. 77), a posição do autor parece ter mudado. Na página mencionada, lemos: “As duas cadeias... são regidas por processos diferentes: secundário, para a transferência sobre a fala, e primário para a transferência sobre o objeto”.

A transferência sobre a fala está, aqui, ligada ao processo secundário, enquanto a transferência sobre o objeto está, ao contrário, ligada ao processo primário. Entre os dois textos, o vínculo entre o tipo de transferência e o modo processual da psique parece ter mudado.

Tal mudança não parece resultar de uma reviravolta de ponto de vista da parte de Green, mas antes do fato de que a fala tem provavelmente duas maneiras diferentes de se deixar desviar pelo processo primário. Uma se inscreve na perspectiva intersubjetiva; a outra, na perspectiva intrapsíquica.

No registro intersubjetivo, quando o processo primário se apodera da fala, ele conduz o sujeito a formular exigências no lugar do analista (demanda, pergunta, súplica). Mesmo se a forma dessas exigências permanece comum, banal, simples, cotidiana, a linguagem torna-se uma maneira de procurar agir sobre o objeto.

Em outro lugar que, num tratamento, as palavras empregadas não teriam a capacidade de chocar, a exigência formulada talvez fosse aceitável. Mas justamente pelo fato de que, para o paciente, o espaço do tratamento é aquele da vida cotidiana, sua fala se revela como (re)colocação em ato de uma situação ou de um cenário do passado. Emergindo em um lugar em que são inapropriadas, suas palavras manifestam o efeito do processo primário6 e o peso da compulsão à repetição.

O sujeito não leva em conta um princípio de realidade que de outro modo o teria convencido de que o espaço do tratamento não é aquele da vida cotidiana, e que não nos dirigimos ao outro da mesma maneira. Se o fazemos, é justamente porque o desconhecemos e o repetimos à nossa revelia. No registro do intersubjetivo, o processo primário faz da fala o instrumento de uma repetição “sem arte”. Se os personagens se deslocam (outrora como figuras parentais, hoje o analista), o cenário em si persiste freqüentemente ne varietur. Na verdade, o não-simbolizado só se torna simbolizável se a repetição não girar somente em torno dela mesma e desde que possa se abrir para a colocação em jogo de um afastamento entre duas edições do cenário inconsciente. É na colocação da ligação logo após essas duas edições que o verbo reencontra sua potência.

No registro do intrapsíquico, o processo primário pode igualmente desviar a fala do seu uso banal. Mas o movimento é diferente. Ele passa pela revivescência de modos de pensamento “ultrapassados” que solicitam, todavia, apenas o nível do inconsciente originário. Resultam disso, para o sujeito, episódios de revivescência de restos perceptivos que não fazem sentido para ele. São acontecimentos brutos, não simbolizáveis, diretamente saídos da “memória sem lembrança” sob a impulsão das moções do id. Porém, nos bons casos, esses acontecimentos brutos conseguem solicitar o inconsciente do analista. Eles se inscrevem primeiramente na contratransferência sob a forma de sensações e de emoções.

Certos autores os relacionam a um efeito do humor geral do paciente, de seu tônus, e mesmo daquilo que acompanha sua fala (gesto, mímica, jeito, ritmo, particularidade do tom). Tais surgimentos singulares logram, em alguns casos, confrontar o analista com o registro de uma inquietante estranheza.7

Se, graças à regressão contratransferencial,8 alguma coisa se representa nele, é então algo de íntimo, no sentido em que o adjetivo é superlativo de interior. Uma imagem paradoxal que nada tem a fazer aqui (M. De M’Uzan), uma lembrança pessoal que deveria estar recalcada (C. e S. Botella), mas que emerge. Às vezes aí está associada uma impressão de manipulação, de erupção, de despersonalização comparável àquela que faz experimentar a identificação projetiva. O movimento do conjunto é, portanto, complexo. Porque tudo se passa como se a impulsão inicial partisse do nível profundo do inconsciente do analisando, e nele permanecesse a colocação em jogo das representações do ego inconsciente, chegando, no entanto, em favor da regressão tópica livremente consentida pelo analista, a se apoiar sobre as representações deste último. Como saída desse atalho decisivo, a interpretação surge como uma espécie de conscientização das representações inconscientes mobilizadas no analista.

Assim, tanto no registro do intersubjetivo como no do intrapsíquico, a linguagem pode ser desviada pelo sistema primário. O efeito é diferente segundo a corrente que prevalece. No registro do intersubjetivo, a compulsão à repetição tem efeitos comparáveis ao que está descrito em Além do princípio do prazer. No registro do intrapsíquico, essa mesma compulsão é responsável, sobretudo, por uma inquietante sensação de estranheza.

No primeiro caso, ela é descarga motora, procura de controle, e durante longo tempo se restringe a isso. No segundo, em razão da sensação que provoca na escuta do outro, ela desencadeia uma saída essencial da linguagem e “se engaja ao jogo por impulso” (M. Leiris).

O quinto tempo da teoria do tratamento e do aparelho psíquico é aquele que prevalece no presente. Ele oferece duas referências decisivas para a compreensão do material clínico. Trata-se a primeira daquela que fornece a distinção entre as duas maneiras de ser da pulsão: uma frustrante (a que provém sem mediação da colocação em jogo das moções pulsionais do id e fica submetida em tudo à compulsão à repetição), e uma ao contrário, mais elaborada (que pode tirar proveito de seu investimento das representações inconscientes do ego e que se dobra ao principio do prazer). A segunda resulta da distinção entre corrente intrapsíquica e corrente intersubjetiva.

O modo da pulsão varia evidentemente de acordo com o tipo de clínica. Na clínica da neurose, como as representações inconscientes do ego estão suficientemente estabelecidas, a pulsão se organiza no sujeito pelo efeito da sexualidade infantil e do recalcamento secundário. O princípio do prazer conserva então sua pertinência. A primeira tópica, de fato, não está longe. Ao contrário, assim que abordamos as patologias borderlines, o material tornase o efeito direto das moções pulsionais do id, e fica submetido sem variação à compulsão à repetição. É preciso apelar então para uma perspectiva diferente. É o que eu chamei de maneira rudimentar da pulsão.

Na realidade, com numerosos pacientes, o material oscila entre os dois registros: aquele do sentido, que obedece à perspectiva das representações inconscientes do ego, próximo da primeira tópica, e aquele da força, especificamente submetido às moções pulsionais do id da segunda tópica. Há aqui uma clivagem funcional (G. Bayle) que não é necessariamente hermética.

 

O efeito do tratamento do talking no tempo cinco da teoria

No tempo cinco da teoria, a fala tem sempre efeito de tratamento, seguramente, mas como? Em primeiro lugar, tudo depende da qualidade do material com que estamos lidando.

Caso se trate de um material neurótico, em que o sujeito dispõe de representações inconscientes do Ego que conservam sua eficácia, em que sua neurose infantil está suficientemente constituída, a fala poderá sem dúvida continuar a fazer efeito de um modo clássico. Ao contrário, o que acontece quando o material toma uma coloração borderline, em que se torna o efeito direto das moções pulsionais do id?

A meu ver, essa interrogação nos envia a duas questões que devem ser dissociadas. A primeira seria: a linguagem está para alguma coisa na maneira pela qual a “memória sem lembrança”do analisando mobiliza as representações inconscientes do analista (e como isso acontece?), tanto nos momentos de ação como nas situações em que provoca estrangulamentos paradoxais? A segunda: a linguagem intervém no processo de transformação das moções pulsionais em representações inconscientes (e como isso acontece?)? Para as duas questões, eu estaria tentado a dar respostas afirmativas.

No que se refere à primeira, para mim é a linguagem do analisando que mobiliza a contratransferência do analista e seu ego inconsciente. Para chegar lá, ele faz entrar em jogo um poder singularmente arcaico. Não o poder de evocação visual que nele reconhecemos, e sim uma saída mais antiga ainda, que ficou no muito profundo da fala. Uma saída poética e profética, que permite agir sobre o corpo do auditor, de fazê-lo vibrar, de convocar nele sensações que farão em seguida surgirem as imagens e depois as palavras para dizer. E esse poder é aquele das palavras, não somente o da entonação ou do tom de voz. Voltarei a este assunto.

No tocante à segunda, porque é de novo a linguagem, mas desta vez singularmente a do objeto externo (não só por aquilo que ele diz como também por sua escuta), que permite indiretamente a transformação das moções pulsionais do id em representações inconscientes do ego. Ao menos quando esse objeto aceita sua missão civilizadora sobre a fala do sujeito. De fato, é a incidência intersubjetiva da linguagem do objeto que permite ao analisando modificar o curso da qualidade da fala que ele endereça a si mesmo. E é da qualidade intrapsíquica dessa fala que depende a transformação das moções pulsionais em representações inconscientes.

 

O papel civilizador do objeto sobre a palavra do sujeito (1): do grito expressivo ao pedido intersubjetivo

Como Freud observava no Projeto, em matéria de linguagem e de comunicação, tudo parte do grito como descarga não específica, saída inadequada que o sujeito produz para se exonerar da excitação engendrada pela dor ou pela fome. No começo, portanto, o grito constitui a saída motora da excitação desagradável. No espaço da troca, entretanto, o que é descarregado se vê requalificado como sinal pela interpretação da mãe. Pelo efeito de sua escuta, aquilo que era só um movimento expressivo se torna progressivamente significativo da ação específica que o sujeito exige dela. É a mãe que faz do grito expressivo um pedido. E tal requalificação afeta o significado em si mesmo: ao se transformar em sinal, o grito é forçado a se civilizar – ao ponto mesmo em que sua materialidade se organiza. A observação direta do bebê mostra efetivamente que a forma do grito significante, do grito do pedido, é diferente daquela do grito expressivo. Neste, a energia está dispersa ao acaso sobre todos os tons. Ao contrário, assim que ele se torna sinal, a energia se concentra sobre um tom particular, aquele dito “fundamental”. Em outras palavras, assim que o sujeito investe a sua descarga, ela deixa de ser uma evacuação cujo traço é indiferente e pode tomar forma. Isso se imprime materialmente sob o significante. É, para mim, o efeito primeiro da situação antropológica fundamental de J. Laplanche. Esta situação imprime sua marca no grito por meio da sedução e da violência: sedução do outro que se dá como interpréte do desejo e da falta do sujeito, violência do outro que impõe o terceiro exigindo que a queixa se conforme aos cânones da entonação para se tornar pedido. O desejo de ser entendido civiliza o grito e organiza a pré-história da transferência. Por ter que contar com o ouvido do outro, a energia engajada pelo sujeito se pulsionaliza.

 

O papel civilizador do objeto (2): a fala transicional, sustentação do intrapsíquico

Fica evidente que a transformação do grito deve um dia cessar de valer como pedido transitivo e exigência endereçada ao outro. Para isso, é preciso que o diálogo permita um passo a mais. É preciso, pelo seu efeito, que o grito compartilhado possa vir aos ouvidos do sujeito como um traço sonoro capaz de estabelecer um elo entre as representações inconscientes. Trata-se aqui, evidentemente, de todo o jogo da passagem da fala compulsiva à fala associativa. Na ausência dessa conversa decisiva, nunca seu pedido poderá ser entendido por aquele que o emite como emblema de um malestar (mal) endereçado. Como isso acontece? Parece-me que a resposta é ao mesmo tempo clara e paradoxal: é a emergência, na dimensão intersubjetiva da transferência, de uma fala transicional. É nesse ponto que vou agora me deter.

Considera-se às vezes que não seria possível haver troca entre um indivíduo e outro a não ser que um seja reconhecido de alguma maneira psiquicamente distinta daquele ao qual ele se endereça. Parece-me que isso é um erro. A meu ver, há momentos particularmente fecundos em que uma das partes do par empresta sua voz a um pensamento que é comum aos dois. O que se acha finalmente expresso pertence, então, a ambos. Ou então, nem a um nem ao outro. O sujeito do enunciado se evaporou. São aqueles da transferência paradoxal ou da fala “quimérica”, no sentido que M. De M’Uzan dá a esse termo. Mas, os encontramos igualmente quando o discurso do paciente manifesta uma intensidade emocional particular e o analista sente escapar uma formulação que desdobra associativamente essa emoção sem, no entanto, nomeá-la de maneira direta. Uma fala transicional advém enquanto o interesse das partes interessadas da troca se porta em conjunto – lado a lado se é que se pode dizer –, sobre um objeto do pensamento e do afeto que a fala do paciente propõe (fragmento do cotidiano, lembrança, narração de sonho, sensação...). Àquilo que ele diz, o analista empresta sua fala a um sentimento comum. Ele coloca em palavras uma emoção que se torna, por intermédio do compartilhar, um afeto também compartilhado (C. Parat). A partir de então, para o analisando, o que é dito não surge completamente de uma fonte psíquica distinta do que ele é. A meu ver, são esses momentos de falas conjuntas que favorecem a transformação da emoção em afeto. É comum, quando a pulsão aflora sob a forma de emoção, que ela empreste o curto-circuito da enervação corporal (aquela da tensão tônica ou da descarga corporal) e se esgote. Mas graças a tais palavras sem controle, ela consegue se transformar em afeto e pode então se religar com os caminhos da representação. A emergência do investimento intrapsíquico da fala intrapsíquica torna-se, portanto, possível. Tanto mais facilmente quanto aquele que fala cessa durante todo esse tempo de se perguntar, de querer saber como é ouvido. Ele tem a ilusão de um compartilhar que não seria objeto de nenhum mal-entendido.

 

Os ensinamentos da entonação autística

Há casos em que a palavra do sujeito é portadora de emoção, mas de uma emoção que não consegue se dobrar às leis da fala e da entonação, de uma emoção que é pura descarga sem se deixar organizar pelas formas e pelas exigências da língua. Em outras palavras, trata-se de uma emoção que não se deixou transformar em afeto, e isso é marcado na entonação do discurso que a contém.

As variações melódicas da entonação são, com efeito, o significante do afeto. Dito de outro jeito, o afeto é uma emoção que põe as formas na sua descarga e torna-se então interpretável por aquele que o ouve. Ao contrário, quando tais formas não são respeitadas, a emoção fica inaudível dentro da entonação que de outra maneira conteria. A esse propósito, pode-se pensar que, se a entonação e a elocução dos adultos autistas ditos “capazes” proporcionam mais uma forte sensação de um texto lido do que de uma linguagem espontânea, não é, como se diz freqüentemente, porque eles são desprovidos de qualquer sentimento, e sim ao contrário, porque sua emoção se descarrega no proferimento do discurso sem trabalho suficiente da entonação. Por não conter as formas canônicas, o que eles estão sentindo se torna ininterpretável e passa então despercebido. É pelo menos disso que me convenceu a análise lingüística9 de um encontro que se desenvolveu recentemente entre René Diatkine e um jovem adulto autista. Na maior parte do tempo, a entonação e a mímica do paciente pareciam desprovidas de afeto. Porém, no decorrer do encontro, ele diz claramente ser a presa de movimentos interiores de extrema violência. É, portanto, a civilização, a tradução da emoção que está em causa e não sua existência: a maior parte do tempo, ele não pode dar à sua emoção o formato de um afeto compartilhável. Entretanto, o mais singular é que esse mal-estar não é constante. No decorrer do encontro, nos momentos em que o diálogo discorre sobre a memória da transferência (quando o paciente e R. Diatkine evocam juntos o tratamento recente, quando o alvo da atenção compartilhada é uma realidade efetivamente compartilhada, quando esse pensamento comum é suficientemente estável para servir de fundamento ao intrapsíquico), de repente a dicção e a entonação do paciente “se normalizam”.

É como se houvesse a necessidade de o sujeito presumir um saber compartilhado com o seu interlocutor, uma comunidade de sentido com ele, para que a descarga emocional possa ser trabalhada e encontre o contorno de um afeto comunicável. Em outras palavras, é como se houvesse a necessidade da antecipação de um compartilhar, de uma atenção conjunta, para que o afeto possa ser expresso na entonação segundo as formas banais. Se não houver essa antecipação, a fala fica fechada dentro da emoção.

 

A entonação, índice do equilíbrio entre as correntes intrapsíquica e intersubjetiva, índice da qualidade do objeto interno

Chegou o momento, de arriscar um comentário um pouco técnico sobre o valor possível da entonação. Freqüentemente as proposições psicanalíticas só mencionam a questão entre duas vírgulas, da mesma maneira que o ritmo, ou o tom da voz, por exemplo. Ora, eu penso que a entonação merece mais que uma simples alusão. É o que motiva este percurso fora do campo da psicanálise. Eu espero convencer, apesar de seu esquematismo, que isso é interessante para a reflexão clínica.

A entonação comporta diferentes parâmetros. Classicamente costuma-se distinguir quatro delas: a intensidade da voz, sua altura melódica, a duração das sílabas finais e enfim, os silêncios. No tratamento, o valor dos silêncios se afasta evidentemente do que eles são numa conversação cotidiana. E a meu ver, ele não pode fornecer ensinamentos particulares. Em contrapartida, a intensidade da voz, indica o equilíbrio que o sujeito estabelece entre a corrente intrapsíquica e a corrente intersubjetiva. Quando o sujeito força a intensidade, é porque ele decide se servir de seu verbo para agir sobre o outro: é regularmente o caso nas perguntas diretas ou as manifestações de um pedido urgente. Ao contrário, quando a intensidade fica moderada, é porque a questão do agir, do aqui e agora, não está mais em primeiro plano, é porque a fala se tornou, antes de tudo, o meio de um processo intrapsíquico que se organiza pela escuta do objeto.

Mas qual é então o objeto cuja escuta é requisitada para organizar o processo intrapsíquico? Aqui, é a melodia da voz que pode servir de indício. Não aquela do analista, mas a do paciente. Com efeito, a melodia da entonação indica a maneira pela qual aquele que fala antecipa a recepção pelo outro. Em francês distinguem-se quatro curvas pertinentes.Duas são planas, uma num registro médio e outra num registro baixo. As duas outras são moduladas: a primeira é ascendente e a segunda é descendente. Em um sentido cada uma é o emblema (grosseiro, é verdade) da maneira pela qual o sujeito antecipa a recepção de seu discurso. Elas se dirigem cada uma a um objeto qualitativamente diferente. Quando a melodia se desenvolve sobre uma linha média sem variação, tudo se passa como se o sujeito antecipasse com seu objeto interno, um consenso, uma comunicação sem obstáculos, uma compreensão oceânica, suficientemente próxima finalmente daquilo que poderia ser a escuta dispensada por um objeto primário. Ao contrário, a entonação baixa e plana é a marca de um endereçamento em vão, inutilmente ofertada a um objeto ausente ou constantemente e definitivamente perdido. É a marca de uma fala sem esperança destinada a uma “mãe morta” que leva aquele que se exprime à solidão, ao fechamento e à depressão.

Como se vê nenhuma dessas duas melodias corresponde ao reconhecimento de um objeto felizmente terceirizado. A entonação mediana e plana é característica de uma fala endereçada a um objeto constantemente presente, enquanto que a curva baixa e plana destina o discurso a um objeto eternamente ausente. Em um ou outro caso, o sujeito fala como se seu discurso fosse sem efeito sobre a qualidade da escuta deste objeto interno que se atualiza na fala imantada pelo endereçamento. Se o objeto escuta, ele não pode deixar de escutar. Se ele não escuta, nada pode ser dito que reanime seu interesse e o aproxime.

Em contrapartida, as subidas e descidas da entonação manifestam que aquele que se exprime tem em vista a escuta do outro como variável. Quando ele sobe a melodia, é porque ele pensa despertar a atenção do objeto e dividir com ele os pensamentos. Quando a melodia cai, é que ele se permite retornar à sua intimidade. O discurso pode ir procurar a escuta do objeto e depois o levar à suas associações. Estas variações são a marca de que o sujeito se dirige a um objeto triangular e vivo.

Resta a questão do alongamento das sílabas terminais dos enunciados. Na conversação banal, o alongamento da última sílaba marca freqüentemente que o locutor pressente que ele ainda tem coisas a dizer, mas não consegue formulá-las. Em análise, tal alongamento pode denotar que o sujeito reconhece a distância entre o que ele diz e o que ele queria dizer. É em suma, uma primeira manifestação da decepção inerente à fala submetida à regra fundamental, a qual deveria tudo dizer mais não o pode. Nos bons casos, este luto pode ser um fator de sobrepeso.

 

Parte 2
O investimento da linguagem

No texto precedente tentei dar precisão ao lugar da fala no espaço do tratamento que a segunda tópica convida a organizar. O efeito da linguagem sobre a pulsão depende da existência de representações inconscientes e da qualidade do investimento que o sujeito lhes confere. Mas, depende também do investimento que ele pode fazer da fala, a sua e a do outro. É igualmente disto que depende sua maneira de (se) falar e de (se) escutar. Há investimentos de linguagem que conduzem à interiorização e à ligação. E a outros que, ao contrário, conduzem repetidamente ao pronunciamento, à procura de um controle sobre o outro, ou à revivescência de traços perceptivos.

Um exame atento da linguagem da criança sugere que esses dois modos de investimento da linguagem (e os estilos que decorrem disso) existem antes de toda vetorização no espaço do tratamento. Desde a aurora da fala, há um registro que permite ao sujeito exprimir o que ele sente para compartilhá-lo, lado a lado, com outro (esquecendo progressivamente este outro). É o que eu chamo de fala associativa. Há uma outra que serve para formular suas exigências face ao objeto externo que ele pretende controlar. É o que eu chamo de fala compulsiva. O primeiro - que autoriza a ligação, permite partilhar uma inquietante estranheza que vem do mundo. Ela se apóia num certo tipo de intersubjetividade (que eu diria “lado a lado”). O segundo – que é de descarga, se mantém face ao outro e serve para lhe impor um gesto destinado a mudar o estado das coisas. A primeira forma de fala evoca, se escuta e permite circular por deslocamento entre as representações; a segunda se profere e fecha o sujeito na repetição.

Cada uma delas mostra uma lida com uma dimensão diferente da representação de palavra. Uma (a fala associativa) se funda sobre a imagem verbal acústica (a lembrança da palavra ouvida) a outra (a fala compulsiva) sobre a imagem verbal motora (a lembrança do esquema articulatório que permite pronunciar a palavra). Este último ponto me foi sugerido por uma obscuridade de Freud no que toca à organização interna da representação de palavra.

Quando aborda o papel da linguagem no tornar-se consciente das representações inconscientes, Freud é levado a falar do superinvestimento das representações de palavras. Todavia, toda vez que ele aborda a questão, é para insistir sobre o investimento (ou o superinvestimento) da imagem verbal sonora (do resto acústico). Dito de outra maneira, a palavra ouvida. E nada parece ser dito concernente à eventualidade de um investimento de outro elemento da representação da palavra ao oral: a imagem verbal, motora (o esquema articulatório). Depois de tudo, a lembrança de uma fala é duas coisas ao mesmo tempo: é de início a lembrança da melodia da palavra pronunciada por outro ou por si mesmo (imagem verbal auditiva), mas é também a lembrança do encadeamento dos movimentos que permitem proferi-la (imagem verbal motora, esquema articulatório). Ora, para Freud, tudo se passa como se o papel da imagem verbal motora, a lembrança do pronunciamento fosse nula e não existente no processo do tornar-se consciente. Desde as considerações sobre as afasias até O ego e o id, o privilegio conferido à palavra ouvida sobre todas as outras componentes da representação de palavra é uma constante notória. Ora este privilégio não é óbvio. A argumentação que fundamenta este ponto de vista fica obscura. Ela merece que se detenha um pouco sobre este ponto.

Lembramo-nos da arquitetura da representação de palavra (oral e escrita). Ela repousa sobre a associação de quatro tipos de resíduo mnêmicos, cada um se interessando de maneira diferente, de se servir de significante: a visão (já que a palavra pode ser lida), a motricidade da mão (já que a palavra pode ser escrita) a audição (já que a palavra pode ser ouvida) e a motricidade do aparelho buco-fonatório (já que a palavra é pronunciada). Mas, logo, nesta articulação de quatro termos, Freud insiste sobre o privilégio dos “restos auditivos” correspondentes à palavra ouvida. É aqui, a meu ver, que as coisas se tornam singulares.

De início, a lembrança de uma citação bem conhecida. Em 1923 (ou 1922 se levarmos em conta a data da redação do texto) em O ego e o id Freud escreve:

Os restos das palavras são essencialmente os descendentes de percepções representação de palavra, pode-se numa primeira abordagem negligenciá-las como secundárias, adquiridas pela leitura, e mesmo pelas imagens do movimento da palavra, que excetuando os surdo-mudos, desempenham o papel de signos de sustentação. A palavra destina-se a falar o resto mnêmico da palavra ouvida.

Nesta citação, ficamos surpreendidos pela maneira como Freud parece resumir a representação de palavra à memória da palavra ouvida. A argumentação desenvolvida pelo texto parece reportar essa superioridade ao fato de que o resto auditivo é ativado mais freqüentemente que os outros restos, e que nos servimos dele com mais freqüência. Ora, admitimos que a palavra escrita, em razão de seu uso menos freqüente, tenha menos peso que a palavra falada, admitimos ingenuamente, suficientemente bem (ainda que...). Mas vemos mal porque a lembrança da palavra ouvida teria um peso superior àquela da palavra pronunciada. Minimizar “a imagem do movimento da palavra” lembrando da exceção feita ao caso excepcional dos surdos e dos seus recursos através da língua de sinais (a qual faz então intervir movimentos de mãos exclusivamente) faz quase papel de argumento capcioso. No final do raciocínio, com efeito, a motricidade buco-fonatória desapareceu do quadro. A questão da imagem motora não é mais vista a não ser em relação à mão (os movimentos da mão na língua dos sinais) e não em relação à boca. No entanto, a ativação da imagem motora buco-fonatória (o esquema articulatório) é evidentemente solicitada cada vez que pronunciamos uma palavra. Os afásicos de Broca sabem bem disso. E Freud, autor da Contribuição ao estudo das afasias, igualmente. O argumento da freqüência parece difícil de ser utilizado para legitimar a hierarquia retida.

É tanto mais intrigante que mesmo se o argumento não (me) convence, a prevalência que ele tende a instituir na representação de palavra é carregado de incidências. A memória da palavra ouvida e a memória do esquema articulatório são o fundamento de duas maneiras de falar que não têm o mesmo estatuto dentro do processo psíquico. A fala associativa solicita crucialmente a primeira, a fala compulsiva, a segunda.

O que eu sublinho aqui é legível em filigranas sobre o esquema que apresenta a articulação entre representação de palavra e representação de objeto (a futura representação de coisa) dentro da contribuição à teoria da afasia. Se nos reportamos a isto, constatamos imediatamente que a junção entre as duas representações de objeto e de palavra se encontra estabelecida pela imagem verbal sonora. É ela, excluindo qualquer outra imagem verbal (notadamente motora) que serve de ponto com a representação de objeto. Sobre o esquema, o círculo da imagem verbal motora está, aliás, situada ao lado da descarga, separado do caminho que leva ao sentido e à representação de objeto. Este esquema não é, de modo algum, o fruto de uma construção teórica a priori. No texto sobre afasias, ele vem como resultado de um raciocínio neurológico sem falha (e ainda validado pelos especialistas de hoje) pelo qual Freud demonstra que não há uma ligação direta entre a imagem motora buco-fonatória da palavra (a Zona de Broca, a lembrança da palavra proferida, o esquema articulatório) e a representação de objeto (o sentido da palavra). Em outros termos, o acesso ao sentido se faz necessariamente pela lembrança da palavra ouvida (a imagem verbal auditiva, a Zona de Wernicke). A ativação da palavra pode partir da imagem motora, ela não impede que a lembrança da palavra ouvida se ache necessariamente em posição de mediação sobre o caminho que leva ao significado. Em conseqüência, a imagem verbal motora perde sua autonomia: ela se torna uma espécie de apêndice motor da palavra ouvida. Se quisermos, a zona de Broca passou à dominação pela Zona de Wernicke.10 Se seguirmos o raciocínio de Freud o que conta na via do sentido (do sentido e não necessariamente do sentido consciente), é a palavra ouvida e não a palavra pronunciada.

É este privilégio injustificado da imagem verbal acústica sobre a imagem verbal motora que está na origem da minha reflexão sobre as duas maneiras de investir sua fala, e as duas maneiras de falar que são: a fala associativa e a fala compulsiva. A fala associativa investe o traço da palavra ouvida, a fala compulsiva o traço da palavra pronunciada (o esquema articulatório). Ora, estamos sempre sozinhos a pronunciar uma palavra, mas podemos ser dois a ouvi-la.

 

Capítulo 4
O feliz investimento da linguagem: a palavra associativa
Um quack na metáfora, de onde vem o afeto

No presente capítulo abordarei a questão da origem da fala associativa aquela que contém o afeto e se funde sobre a imagem da palavra ouvida. Como veremos, ela se encontra provida de imediato das virtudes da metáfora. Eu serei, aliás, levado a mostrar que a conjunção entre o afeto e a metáfora não é fortuita: em seu fundamento a metáfora repousa de fato sobre o afeto.

Para argumentar meu propósito (e um pouco por provocação, é verdade) eu partirei de um texto dos Escritos, onde Lacan discute uma espécie de nascimento mítico da metáfora comentando um fato da aquisição.11 Para Lacan, o jogo é mostrar que a criança faz uso da metáfora naturalmente, que ela habita a criança e esta não a aprende. E, sobretudo, que esta dimensão não deve nada às semelhanças entre as coisas do mundo. Se estes dois pontos se mostram verdadeiros, então a linguagem encontra seu princípio no prazer do jogo simbólico, e não na compulsão para nomear (etiquetar) os objetos necessários12.

Certos fatos dão razão à perspectiva dos Escritos: para a criança pequena (por volta de um ano, um ano e meio) acontece freqüentemente que um nome seja transferido de uma coisa à outra, em um movimento que lembra singularmente aquele da metáfora, do deslocamento no sonho ou ainda o vôo associativo de um paciente suficientemente dotado. É sobre este fenômeno que se refere à reflexão de Jones que vai servir ao comentário de Lacan. Aqui está a observação: uma criança tendo visto marrecos num lago, começa a dizer quack para designá-los por onomatopéia, pois estende o uso do termo a todo um conjunto de objetos cuja relação com a cena inicial não tem nada de evidente, uma mosca, o vinho num copo, uma moeda. Referindo-se ao exemplo, Lacan começa por saudar a clarividência de Jones

quando ele pára para se reportar ao que faz a criança do quack e que ele isola como significado do grito do pato, não somente o pato do qual ele é atributo natural, mas toda uma série de objetos, compreendendo as moscas, o vinho e mesmo uma moeda usando desta vez do significado da metáfora.

Esta metáfora é em suma, uma maneira de criar as ligações a posteriori, por pouco que aceitemos pensar a cena do pântano como o lugar comum (ou a lembrança) de um acontecimento traumático que os encontros posteriores da criança (o vinho, a mosca, a moeda) vão lhe permitir organizar como tal e depois nomear. Todavia, elogio feito, Lacan recusa a maneira pela qual Jones explica a flexibilidade do emprego da onomatopéia. Para Jones, acreditando-se em Lacan, o significado do quack seria um pacote de “atributos abstratos” em que a criança iria se apoiar segundo suas necessidades referenciais: se uma mosca é quack é porque ela tem a propriedade de voar (como o pato), se o vinho é quack é porque ele tem a propriedade de ser um líquido escuro (como a água do tanque) e enfim, se uma moeda napoleônica é “quack” é porque no seu verso exibe uma águia com asas muito abertas (como aquelas do pato em vôo). Daí então, Jones pecaria por realismo. Uma vez que “a lógica referencial [seja] salva na hora em que nos damos conta do fato que são os atributos abstratos que continuam (...) a serem chamados pelo mesmo nome” não explica nada da metáfora.

Conseqüentemente, ato. Mas então o que é que fundamenta o emprego do termo? Para compreender o processo que leva ao quack é preciso dar as costas ao mundo. Neste ponto, só podemos seguir Lacan. Todavia não podemos ficar aí. A meu ver, Jones permite ir mais longe. Na condição de não o fechar no realismo que Lacan lhe empresta (não sem razão é verdade).13

Voltemos à tradução do texto original de Jones. A interpretação dos fundamentos dos empregos do quack não repousa sobre “atributos abstratos” tão estritamente realistas quanto Lacan sugere. Jones é mais sutil na sua caracterização do que ele assim o nomeia.

Para ele, segundo Meuman, sua fonte direta,

a criança só repara naquilo que lhe interessa: o vôo e a relação com a água. E ele se serviu da palavra quack para designar esses dois fenômenos sem se preocupar com a percepção que eles podem afetar. A palavra quack foi primitivamente aplicada não ao pato como tal, mas somente a certos atributos abstratos que continuam então sendo chamados pelo mesmo nome mesmo na ausência do pato.14

Como vemos, estes “certos atributos abstratos” não são propriedades da realidade percebida. “O vôo [dos pássaros] e sua relação com a água” são atributos do mundo, é certo, mas do mundo interno. Jones, que hesita em nomeá-los inconscientes porque podemos observá-los por certas propriedades visíveis, não tem razão em qualificá-los como “abstratos”. Resta, como ele nota, que estes atributos só tomam sentido se os relacionamos ao que lhes adere: “o interesse da criança”, para retomar o eufemismo de Jones. Sem o interesse da criança, o vôo dos pássaros e a relação com a água são fragmentos de uma realidade esmigalhada.

Na cena observada, se a criança contém seu interesse sobre “o vôo e a relação com a água” é que seus fragmentos percebidos vêm acordar a representação inconsciente da cena primitiva. Ao mesmo tempo, eles fornecem um material que permite conter, circunscrever, a angústia que a cena observada suscitou. Quack não recorta, portanto, o significado da percepção, mas valida a projeção da angústia ligada à ativação de traços mnêmicos da cena inconsciente sobre certos fragmentos da cena fóbica. É uma primeira linha de defesa que a percepção vem opor ao retorno do afeto. E o uso da palavra vem ainda redobrá-la.

Infelizmente, como é devido, a sensação estranha provocada diante da agitação das asas do pato que se levanta no ar (e talvez seu grito também) ressurge diante da agitação das asas da mosca e seu zumbido. Igualmente, a sensação estranha da imensidão escura revelada pela água sob o batimento das asas do pato ressurge diante de uma garrafa de vinho escuro. Ela “ressurge” enfim quando a criança descobre a imobilidade ameaçante da águia sobre a outra face da moeda. A cada vez, quack é invocado como onomatopéia conjuratória.

E como é justo, a palavra falha no seu ofício, ela não afasta a cena do pântano, ela a reaviva. Uma vez que é sempre a mesma palavra, sempre a mesma angústia. Sempre a cena primitiva inconsciente por trás da cena do pântano.

 

Um passo a mais na direção da origem

Há momentos onde a Fenomenologia do espírito cruza a aquisição da linguagem. Na introdução a seu tratado, Hegel dedica um capítulo ao que ele nomeia “O isto da minha visão disto”. Em substância, ele disse que na relação histórica entre a consciência e o mundo, a figura de partida é o momento correspondente ao “isto”. Estabelecida diante de um mundo ao qual ela é ainda estrangeira, a consciência crê exprimir nisso a essência quando ela o designa por “isto”. Mas esta caracterização é vazia. “Isto” não diz nada deste mundo, constata Hegel, que sublinha (ou quase) que o termo marca somente uma intenção: aquela da consciência que refere.

Como sabemos, entre 9 e 15 meses, para designar o que está em volta dela, e o que a interessa, a criança aponta com o indicador, acompanhando seu gesto com uma vocalização que corresponde grosseiramente ao ça do francês – “isso” em português [N. T] e ao “da” do alemão (aquele mesmo do “fort/da”). Como o termo resta idêntico qualquer que seja a referência designada (que a criança dirá isso tanto apontando para um pássaro sobre um tanque quanto para o seio da sua mãe). É preciso procurar em outro lugar, e não na natureza da coisa, o que assegura a estabilidade do significado.Basta uma simples virada: não é para o lado do mundo que é preciso olhar, mas na direção do sujeito. Ça não significa nenhum “atributo abstrato” no sentido onde Lacan o entenderia. Ele exprime um afeto e o desejo de compartilhá-lo através da palavra, de fazer com que a troca circule em torno de um acontecimento que alegra, surpreende, intriga ou inquieta. Todavia, este afeto não é mais um afeto de circunstância: é a inquietante estranheza que vem da própria linguagem. Aquela que no seu conjunto assinala a falta no dizer e relança o desdobramento da fala na troca.

Com efeito, estaríamos errados em crer que a criança que diz ça apontando um objeto, apontaria somente um objeto inquietante em si ou por alusão a uma fantasia inconsciente da qual ela marca a volta. O afeto que ça exprime retira de uma dupla fonte: ele surge de um ressentimento perturbador, onde a fascinação se mistura à impotência. De um lado ça diz efetivamente como o espetáculo apontado no hic et nunc evoca irresistivelmente uma lembrança. Mas ele traduz, também, o sentimento de impotência que inspira uma palavra que estabelece um elo entre o presente e o passado sem poder nem abolir a diferença (este passado não é superposto a este presente de agora, não podemos confundi-los) nem aplacar o incessante vai-e-vem entre um e outro (este passado não desaparece). Duplo movimento que poderíamos em suma, colocar em palavras explicando “é engraçado, isto me lembra tal coisa, no entanto não, não é exatamente a mesma coisa, e no entanto...”. Em outras palavras, assim como o afeto de inquietante estranheza, o afeto que acompanha o apontamento e o ça marca finalmente a angústia do sujeito face aos restos do inconsciente: são entidades às quais somos tanto impotentes para fazê-las desaparecer como para assimilá-las totalmente na atualidade. Eis então confrontado aos emblemas do desejo que ele teria preferido assimilar ou reprimir definitivamente. E o que sente se nutre de uma impotência diante de uma repressão que só se faz de uma maneira imperfeita.

É evidente que esse ça é uma linguagem endereçada. Às vezes, não só para pedir ao adulto a confirmação do colocar em relação o percebido e o rememorado, mas também para dividir com ele este afeto singular de inquietante estranheza que denota a castração de um desejo que não podemos nem assumir e nem reprimir e como tal volta aos limites da repressão. Quando vemos uma coisa que nos faz pensar em algo que não vemos mais, nomear a ligação por um ça não é suficiente nem para encaixar uma e outra, nem para fazer voltar verdadeiramente aquela que se estancou, nem para olhar aquela que está lá, esquecendo aquela que está por trás insistindo, apesar de tudo, para retornar.

E, no entanto, ça, permite falar daquilo que sentimos construindo o afeto de inquietante estranheza em objeto de troca de linguagem e de glosa. É pouco, mas é “tudo”. Tudo aquilo que faz renascer a esperança na fala, a espera de outras palavras surgidas de uma memória compartilhada, de palavras que diriam melhor as representações associáveis. Como vemos, este ça do início, não está tão longe do da do fort/da e nem do “eu nunca tinha pensado nisso”.Ele é uma antecipação longínqua de uma fala tomada num investimento intrapsíquico que se apóia na atenção e no afeto partilhado com o outro.

Para mim, que se trate do quack ou do ça o movimento que permite a linguagem é de um registro comparável. Ele não está ligado a um pronunciamento. A criança não grita para si mesma quack, ela não grita para si mesma Ça. Ela diz essas falas para si mesma, para dar coerência a este retorno do mundo interno que o mundo externo lhe põe estranha e familiarmente sob os olhos. Com efeito, da representação de palavra, ao menos enquanto ela permanece no registro da evocação sem cair no pronunciamento (proferimento) é o estabelecimento desta ligação que dá à representação, seu bem econômico.

Quando o sujeito é capaz de fazer tudo isso sozinho, podemos dizer que sua capacidade de auto-análise está funcionando bem e que ele não precisa mais de tratamento. É no momento onde o recurso à palavra para dinamizar a representação inconsciente para de estar à disposição, que o recurso à terapia torna-se necessário. Graças ao setting,a fala do analista vem apoiar esse efeito. E aqui se eu digo “fala” e eu evito o termo “interpretação” é porque não se trata de atualizar um sentido ou uma representação inconsciente. Trata-se de um uso da fala que permite animar uma representação que o sujeito poderia já dispor conscientemente.

É deste efeito singular da representação, da palavra entendida na fala do analista que eu gostaria de propor um exemplo clínico. A história que eu proponho a relatar um fragmento é evidentemente muito mais rica que a estreiteza do propósito em que eu a fecho.

 

O banho excitante

Vou então relatar algumas sessões da análise de uma paciente que vai, sobretudo, bem e apresenta no fundo, uma neurose como gostaríamos de receber mais freqüentemente.

Seu mal estar sintomático se exprime numa dificuldade em fazer escolhas e poder concluir o que ela começa profissionalmente. Eu não direi nada mais de sua história, nem da patologia que a caracteriza, uma vez que eu gostaria somente de seguir o destino de uma representação de palavra num momento dado do tratamento, no curso do quarto ano de análise. Esta representação de palavra, vem de uma de minhas intervenções. Ela não revela nenhum conteúdo do qual a paciente já não dispõe. Mas em razão do contexto no qual ela se inscreve, ela deixa marcas e permite em muitas sessões, organizar um movimento. Este movimento me parece mostrar de maneira exemplar o poder que tem a palavra ouvida, de colocar elos, quando a fala está sobre uma corrente associativa.

Neste dia, Jeanne chega dizendo que ela não estava com vontade de vir, que ela há muito tempo não diz nada e que isso começa a acontecer. Depois de um silêncio e certo mau humor ela me confessa que havia tido um sonho. Ela está no palco para um concurso de canto e seus pais estão na sala. Eles riem. E ela está furiosa porque eles não lhe dão nenhum presente. É como se eles voltassem de uma viagem sem ter trazido nada, o que na realidade, quando ela era criança, nunca aconteceu. “Eu acho, diz ela, que neste momento meus pais estão realmente como eles queriam. Desde que eles se aposentaram, eles se levantam tarde, e eles me ajudam verdadeiramente o menos possível. Meu pai, por exemplo, no lugar de ajudar meu filho a fazer as lições nas quartas-feiras à tarde, só faz brincadeiras com ele. E depois eles assistem televisão. E quando eu vou almoçar na casa deles, o que minha mãe faz para comer é uma coisa qualquer. Eles estão levando uma boa vida, e o resto, poderíamos dizer, que se lixe”. Eu então lhe digo: “Ah, é a sua mãe, agora, quem toma um bom banho com o teu pai”. Minha intervenção é uma alusão a uma lembrança encobridora que foi já objeto de inúmeras evocações: a paciente se lembra dos banhos que ela tomava com seu pai, quando criança; e depois, um dia, sem que ela saiba exatamente porquê, ele pôs fim a esse costume, dizendo que ela tinha ficado muito grande. No decorrer da análise, esta lembrança está um pouco paralisada, para tornar-se por uma parte, uma espécie de lugar comum do trabalho entre nós.

Minha anotação é, de início, acolhida por um longo silêncio.Depois a paciente retoma:“É muito engraçado isso que o senhor me diz (silêncio). De fato, agora eu me lembro que há uma outra parte do meu sonho. Minha mãe grita dizendo que meu pai fez coisas a mim quando eu era pequena, que ele abusou sexualmente de mim. E enquanto ela grita, meu pai diz que tudo isso não é muito grave, que de fato não aconteceu muita coisa. E aí, de repente, eu me dou conta, que nada aconteceu, que é somente o meu desejo. É ouvindo o que diz minha mãe que isso me aparece como evidente. No entanto, eu girei em torno desta idéia, que poderia ter acontecido alguma coisa com meu pai quando eu era pequena. Sobretudo quando aconteceu aquela história com a filha do Montand que acusava seu pai. Foi neste momento que eu pensei nisso. Montand era viril e sedutor como meu pai e tudo isso...”.

Sem saber bem ao que eu me atenho, eu digo: “A virilidade excitante de seu pai?”. Silêncio de novo, o que me dá um sentimento de que eu perdi uma bela ocasião de me calar. Depois ela retoma para evocar lembranças de palmadas dadas por uma professora sádica. “Ela dava palmadas nos meninos com as calças abaixadas. Isso me provocava alguma coisa. Eu acho que eu era sensível, desde muito cedo à sexualidade. Quando a gente brincava de cowboys e de índios, eu tinha prazer em me deixar amarrar a uma árvore”.

Novo silêncio. “Eu pensava outra vez no meu pai. Tudo isso é mais meu desejo do que qualquer outra coisa da realidade. Eu o ligo à minha mãe que gritava. Foi difícil para mim, sentir essas coisas por meu pai porque minha mãe não o suportava. Evidentemente, hoje em dia, sentimentos como estes estão completamente defasados. Está ligado, sem dúvida, ao que se passa aqui na análise. Eu espero que isso vá se desenvolver, e depois que cada coisa entre no seu lugar”.

Em seguida a essa sessão, tivemos uma interrupção devido a feriados. Quando Jeanne retorna, ela conta da depressão de seu marido, fala de novo que seus pais parecem não mais poder a mimá-la, e confessa que ela também, durante suas férias no campo, se sentiu triste. Eu não a havia prevenido com suficiente antecedência, diz ela, ela não pode se organizar com as crianças, e teve que faltar algumas sessões. Enquanto ela fala, ela se põe a chorar silenciosamente, murmurando que se sente impotente diante de minhas ausências. Ela se cala. Em seguida, fala de um incidente que teve lugar durante as férias: ficou sozinha, dois dias, com seus filhos. O primeiro dia se passou de uma maneira inesquecível, e o segundo, ao contrário, foi uma catástrofe. Ela ficou muito brava com eles, sem razão. Ela sentia que se tratava de outra coisa, que isso vinha dela, que não era culpa deles, mas não conseguia se acalmar. Essa mudança na sua maneira de ser com as crianças, a irrita profundamente. Por que ela tem uma atitude assim, tão “fraca” e completamente infantil, no segundo dia?

Eu intervenho de uma maneira psicodramática: “Ah! Mas então, se você é uma menininha, quem sabe você não pode voltar a tomar banho comigo?”.

Depois de um tempo de silêncio: “Isso me faz pensar que durante as férias, eu sonhei com o sexo do meu pai. Eu via seu calção de banho e por baixo, seu sexo, doce e terno. Em repouso. Como uma grande lagarta”.

Na sessão seguinte, ela diz que tem um sonho para contar, mas que ela não se lembra mais. Trata-se de um sonho com um amigo, no qual ela pensa, seguidamente, mais velho que ela, um pouco como seu pai. Ela se lembra também dos comentários que ela fez a si mesma ao acordar. Isso a fez pensar novamente no sonho onde ela vê a cueca, tendo dentro, o sexo do homem, como uma grande lagarta.Isso a lembra da cena do banho.“Eu disse para mim mesma, de repente, que se meu pai tinha dito um dia que era preciso que a gente parasse, não é porque eu tinha ficado grande, mas porque ele devia ter ficado excitado. Eu devo ter sentido a onda que isso provocou nele, sem compreender bem. É daí que vem meu sentimento de não estar à altura, e de seguidamente não poder concluir as coisas. É isso que complica minha relação com o sexo”.

Na semana seguinte, depois de duas sessões onde eu não anotei nada, ela chega dizendo que ela se sente muito cansada de tudo que se passa na sua cabeça e que ela sonha muito. Ela sonhou de novo com o homem mais velho que ela. Mas não era uma coisa boa, era antes muito chato, cotidiano. Ela não se lembra de nada precisamente. Em troca, houve depois um outro sonho. Era um banheiro (sic) que se encontrava recoberto de hera, como se ele tivesse vida própria, como aqueles que podemos encontrar nas descargas. E dentro, quando ela põe a mão, tinha uma espécie de musse, e uma serpente branca, marfim, com uma cabeça estranha. E ela a morde. Isso a lembra Adão e Eva e a serpente, mas não faz parte de sua cultura. Em seguida, a serpente lhe lembra a lagarta. E ela volta a seu pai. No fundo, seu pai não deve ter tido uma ereção, talvez um início de ereção ou alguma coisa que ela antes sentiu do que viu. E isso não foi nomeado. Ela se lembra do banheiro da casa da sua avó, um banheiro antigo, com a cordinha e a caixa de água quadrada.

Em seguida ela volta ao banheiro da família. Havia um vaso e um bidê. Ela viu muitas vezes seu pai urinar no vaso. E na família eles tinham também o costume de urinar no banho. Eu digo: “Então, o seu pai, urinava bebês”. Ela me diz que isso não lhe diz nada. Mas pouco depois: “Então, mais tarde. Com uma amiga, a gente pensava que se fazia bebês com xixi. E a gente o pegava, para fazer experiências”.

É evidente que todo esse material do qual ela acaba de ser dar conta sai de uma perspectiva na qual a neurose infantil está trabalhando. Mas parece igualmente que a representação de palavra ouvida na interpretação (meu jogo mau de palavras Montand/montand e a alusão apoiada na ereção, a expressão de “urinar bebês”) pode contribuir para a organização (ou à reorganização) de representações inconscientes, ou antes, à sua dinamização econômica.

Em duas situações, é a representação da palavra ouvida que serve de ponte entre as representações inconscientes. Como no sonho, são elas que permitem a construção de enriquecimentos e de retornos. Na condição de ser sustentado por uma certa vivacidade pulsional que nasce evidentemente da retomada defasada de certas palavras da paciente. Na expressão “virilidade excitante”, como aquela de “urinar bebês”, é sem dúvida aí que isso se produziu.15 E esse efeito de linguagem só advém se ele frisa o quack se apoiando sobre uma palavra de evocação, uma palavra associativa, que escutamos, que se situa nas peripécias do proferimento compulsivo e da ação da fala. O que não quer dizer que a fala compulsiva, tão virada para a motricidade seja desprovida de efeitos simbolizantes. É esse ponto que vai me ocupar neste momento.

 

Capítulo 5
A fala compulsiva: agir e atualização de traços perceptivos

Eu vou me interessar no presente momento, pela fala compulsiva, aquela que conduz o sujeito a investir no proferimento (a motricidade, a atualização do esquema articulatório) para tentar provocar uma ação no outro16 ou atualizar um traço perceptivo.

Para analisar a especificidade disso, eu partirei do caso extremo que constitui a ecolalia difusa.

 

A ecolalia difusa como ação da fala

Algumas crianças autistas só falam o que se convencionou chamar “ecolalia difusa”. A ecolalia é um enunciado emitido por outro e restituído sem elaboração nem variação, seja no tom ou na potência. A ecolalia difusa é uma produção deste gênero pronunciada na ausência do seu modelo. A criança autista, seguidamente, encontra aí recursos para exprimir uma demanda. Lembramo-nos de Donald, caso clássico de Kanner, que dizia “Sim!” para ser colocado nos ombros do seu pai. Um dia, seu pai devia ter-lhe dito: “Você quer que eu te ponha nos ombros, Donald? Então me responda: Sim”. Depois de muito insistir, o pai havia obtido um “Sim!” de Donald. E desde este dia, “Sim” tomou para a criança o sentido deste pedido em particular. Esta fixação não afeta simplesmente a produção da linguagem. Observa-se igualmente na sua compreensão. Um dia, Pierre manipulava diante de mim, um armário miniatura de uma casinha de bonecas. Visivelmente, ele hesitava em abri-lo. Eu tento fazer com que ele se decida dizendo: “Vai! Abre!” E já em seguida ele deixa o objeto, e se precipita em direção à porta do consultório que ele então abre completamente. Ele compreendeu que eu formulei uma ordem e ele tenta me obedecer. Mas para ele, “abre” só tem o sentido reportado a uma porta que permite entrar e sair de um lugar. Esse quadro serve de referência à palavra sem mudança possível, sem descontextualização. Ele não pode generalizar o emprego inicial da palavra.

Banalmente investida, a palavra “abra!” exprime, portanto, uma ordem que pode fazer sentido tanto diante de uma caixa, como de uma gaveta, da porta de um armário ou de um edifício. Mas a linguagem da criança autista não permite este tipo de deslocamento. Quer se trate do “sim!” ou do “abra!”, a palavra se reporta exclusivamente a um contexto fixo. Ela não pode migrar de uma situação à outra. Ela faz sentido por contigüidade e não por analogia. Esta é sua primeira característica. Em seguida, o que é assustador, é que a fala autística é seguidamente injuntiva. Mas isso não é um constante. Ela visa uma mudança no mundo, a atualização de uma situação concreta. É uma ação pela fala que faz pressão sobre o destinatário para lhe fazer um gesto.17 Todavia, nós estaríamos errados ao pensar que este estilo de fala é o apanágio exclusivo da criança autista. Observase igualmente na criança que está bem. É este ponto que eu vou agora destacar.

 

A ecolalia difusa como ação da fala na criança pequena

Para citar apenas uma observação, eu retomarei aquela de uma criança que diz Broum! quando ela quer que seu pai empurre um carrinho vermelho, em círculo diante dele, no chão. Contrariamente ao que poderíamos pensar, nestes primeiros empregos Broum! não designa o carrinho vermelho por si mesmo. É um pedido: é preciso que o pai empurre o carrinho vermelho em círculo e o faça andar acompanhando seu gesto de um Brrroum!. Antes que a criança possa fazer um uso ampliado da palavra para designar qualquer carrinho, antes também que ele chegue a um uso metafórico que lhe permita designar por Broum! todo veículo, depois uma rua, e depois tudo aquilo que anda sobre rodas, depois toda forma redonda (incluindo aqui a lua) há um tempo em que Broum! é uma ordem que se pode esclarecer por: “Papai, faça andar esse carrinho vermelho”, dizendo Broum!. Neste momento, é um pedido, e um pedido que não quer dizer: “Me dê o carrinho vermelho”.

O que a criança quer é a atualização de um cenário motor fixo. Neste uso da onomatopéia, encontramos as características da ecolalia difusa quando ela se torna injunção: fixação nas condições de emprego (é este carrinho vermelho, e não um outro que desencadeia a fala), motricidade (o que a criança exige é a realização de uma seqüência de gestos, de um cenário motor). Broum! significa em suma: “Eu quero o retorno do conjunto da situação que engloba o pronunciamento da palavra Broum!”.

Estas características lembram evidentemente certos aspectos da compulsão à repetição, tal qual ela se manifesta na transferência: fixação do contexto que desencadeia o movimento psíquico, fixação na situação visada pelo sujeito (ela faz voltar de modo idêntico a um cenário específico), colocação em jogo da motricidade pelo recurso a uma injunção feita a outro de responder (o paciente faz ao analista um pedido ou uma pergunta, a qual é um pedido de informação). Não surpreende que os exemplos mais marcantes ressaltem a patologia do autismo: seguidamente fizemos notar que a criança autista tinha recorrido à repetição porque, na falta de uma pára-excitação suficiente, ela estava submetida a um trauma contínuo.18 Mas como mostra o exemplo do Broum! estaríamos errados ao pensar que este estilo de fala é exclusivamente característica do autismo.

 

A ligação entre a ação da fala e a motricidade

Eu gostaria neste momento, de mostrar a ligação entre a compulsão à repetição e o investimento da imagem verbal motriz da representação de palavra.

Para fazer isso, eu voltarei ao exemplo do Broum. Quando a criança diz Broum! para exprimir seu pedido ao pai, a palavra que ela pronuncia tem duas dimensões: de uma parte, ela é formada por uma seqüência de fonemas. De outra parte, esta seqüência é pronunciada com uma entonação particular. A entonação com ênfase (que corresponde ao ponto de exclamação na escrita) manifesta que se trata de um pedido e não de uma constatação, por exemplo.

A pronúncia da palavra é diferente numa ordem emitida pela criança e na boca do pai quando ele executa a cena. Em contrapartida, nos dois casos, a seqüência de fonemas do Broum! é rigorosamente idêntica. Em um sentido, verbalizando seu pedido (dizendo Broum!) no nível dos fonemas a criança realiza um fragmento do cenário que ela exige do seu pai. Para o ouvido, a entonação faz a diferença entre as duas maneiras de dizer Broum! Mas por pouco que a criança se centre sobre o seu pronunciamento, sobre aquilo que ela articula (a imagem verbal motora, o esquema articulatório) e que ele negligencie de se escutar, as duas coisas se confundem. Tudo se passa então para ela, como se os movimentos fonatórios que ela realiza para exprimir o seu pedido compreendessem um fragmento do cenário motor que ela quer obter de seu pai. Esta conivência abole o espaço necessário ao luto da total potência do verbo.

 

A ecolalia difusa como atualização do traço perceptivo-motor

Poderíamos pensar que toda ecolalia difusa fecha o sujeito num pedido endereçado repetidamente a outro. No entanto, contrariamente aos exemplos analisados acima, existem ecolalias difusas que não são pedidos. Elas produzem então um trabalho de pensamento que merece atenção. Geralmente, a criança autista recorre aí em situações extremas, quando ela se acha num estado próximo ao terror sem nome (W. Bion). Ao escutá-la, o paradoxo é absoluto. Sua fala é aquela de um grito desesperado, mas soa como uma citação sem aspas. Como se a criança não falasse por sua conta, mas se achasse colocada, para circunscrever seu sofrimento sobre o caminho de uma emergência discursiva que a paralisasse, a transpassasse e não se endereçasse a ninguém. Evidentemente uma fala de compulsão, mas de uma compulsão que não exprime ao ouvinte nenhum pedido direto e tenta trabalhar na elaboração de uma atualidade que de outra maneira estaria subtraída de toda elaboração.

Eis aqui um exemplo do que tenho em mente. Recebo um dia para consulta uma criança autista de 7 anos. Ela foge ao olhar e manifesta um comportamento repetitivo típico. Desde o começo do encontro, ela corre para se refugiar atrás de uma poltrona, distanciando-se do grupo formado por seu pai, sua mãe e eu. Enquanto seus pais conversam comigo, ele fica paralisado, recusando toda tentativa de contato de minha parte. Dado seu terror (é bem de terror que eu falo e não de angústia) nada parece possível. No entanto, de repente, quando quase o esquecemos, invisível, ele lança a esmo: “E aí, velhinho?”.19 O tom e a dicção não deixam nenhuma dúvida: é uma ecolalia difusa das falas do “Pernalonga” o coelho esperto do desenho animado de Tex Avery. É uma maneira de me solicitar, eu que estou numa posição de doutor, e de me lembrar da sua existência. Mas não é uma simples provocação: sua tensão interna é de um outro registro. Eu estou paralisado, uma vez que me vem à memória que no desenho animado, é sob a ameaça do fuzil que o coelho lança abertamente, sua provocação ao caçador. Displicentemente deitado sobre a soleira da sua toca, ele morde a cenoura que tinha roubado dele. A situação da caça é nada menos que invejável e ele vai ter que ser mais rápido que o chumbo, quando a bala partir. Se essa criança é o Pernalonga, sua ecolalia difusa me coloca evidentemente no papel do Elmer, o caçador. Não há do que se vangloriar: apesar do encosto da poltrona, ele está diante de mim como um coelho sob a ameaça do fuzil.20

Como analisar o processo no qual a fala é aqui o traço? Primeiramente, a meu ver, com “E aí, velhinho?”, a cena do filme não é evocada, ela é convocada. É uma revivescência. E, no entanto, esta fala, completamente fechada à troca, esta fala que forclui tanto o ouvinte como o sujeito da enunciação, não está desprovida de potencialidade simbolizante, por pouco que estejamos aí para a ouvir. É a este paradoxo, que eu queria voltar, uma vez que eu acredito que ele interessa, mutatis mutandis, um grande número de situações clínicas. Como veremos, tudo depende do investimento da linguagem.

Para mim, as palavras da ecolalia difusa não são sinal da cena ausente: a sua pronunciação atualiza um fragmento. Mas esta convocação sem mediação permite, todavia, um primeiro trabalho de simbolização. Com efeito, a repetição deliberada de um pavor antigo sentido, permite uma espécie de enquadramento (eu não ouso falar de ligação), segundo um processo conforme a descrição proposta em Além do princípio do prazer a propósito do sonho traumático: proferindo “E aí, velhinho?” a criança faz voltar o pavor que ela experimentou diante do desenho animado, quando ela o viu pela primeira vez. Mas desta vez ela o controla, uma vez que é ele que o causa. Todavia, nos referindo à situação do sonho traumático de Além do princípio do prazer, há um elemento a mais: a repetição, a colocação num jogo de controle, do pavor de antigamente, permite não uma saída daquele pavor provado inicialmente, mas daquele que surgiu no encontro atual comigo. Como compreender este segundo mecanismo que em um sentido trata o mal (o pavor atual) pelo (menos) mal (o pavor controlado que convoca o “E aí, velhinho”)?

Para explicar a mim mesmo o conjunto do fenômeno recorri à combinação de duas hipóteses de Freud. A primeira é aquela das “representações limites” da qual Catherine Chabert recentemente nos lembrou o interesse.21 A segunda é aquela do valor imitativo da percepção.

Lembremos para começar o que são as representações limites. Numa carta a Fliess, Freud formulou a hipótese de que certos traumatismos não deixam traços na psique porque sua violência a aniquilou temporariamente. No lugar da memória do acontecimento disruptivo, há um buraco. Entretanto, nas bordas do buraco, podem, contudo, ficar as “representações limites” que são o traço do processo motor que permitiu a descarga da excitação causada pelo trauma.22 O sujeito não se lembra de nada a não ser de seu próprio movimento de descarga da excitação traumática. No caso do qual eu me ocupo, eu levanto a hipótese de que quando a criança vê o desenho animado pela primeira vez, ela é submersa pelo terror. Este terror faz um buraco na sua psique, e nas bordas deste buraco subsiste o esquema articulatório correspondente a “E aí, velhinho?”. Uma vez que foi esse esquema que a criança atualizou antigamente para evacuar o tanto de excitação sentida diante da cena do filme. Dizendo de novo “E aí, velhinho?” na consulta, a criança não restitui a memória da seqüência ouvida da boca do coelho, ela reproduz a sucessão de movimentos fonatórios que serviram para ela evacuar o terror sentido inicialmente diante da cena do filme onde ele ouviu o coelho dizer: “E aí, velhinho?”. Resta evidentemente explicar por que eu faço do “E aí, velhinho?” que a criança pronuncia diante de mim, a reatualização de uma seqüência motora que a revivescência da réplica ouvida de boca do coelho. É aqui que intervêm a segunda hipótese, aquela do “valor imitativo da percepção”. Eis aqui a proposição de Freud, tal como a podemos ler no Projeto: “Percebendo isto, imita-se os movimentos de si mesmo, ou seja, enerva-se sua própria imagem motora que coincide com a percepção a ponto de reproduzir realmente o movimento. É por isso que se permite falar do valor imitativo da percepção”.23 (“Nascimento da Psicanálise”, pp. 350 e ss). Se retomarmos esta hipótese e a aplicamos aqui, isto nos conduz a pensar que ao ouvir “E aí, velhinho?” do coelho, a criança “reproduz realmente o movimento” articulatório. É desta época que este movimento articulatório vai ficar como “representação limite”. A intensidade do terror não permite nenhum outro traço. Nenhuma imagem visual pode então ser lembrada que possa dar matéria aos deslocamentos ulteriores. Em troca, cada vez que é confrontada com o terror, a criança atualiza a seqüência motora que a permitiu antigamente baixar sua excitação esperando que este recurso, ou mesmo remédio, será seguido do mesmo efeito. Resta que se esta seqüência motora permite a atenuação da excitação pelo recurso da descarga, ela não permite sua ligação. Para que a ligação se dê, para que a pronunciação se torne realmente significante do terror, é preciso a intervenção do objeto que permite que o interesse do sujeito se desloque da imagem motora para a imagem acústica, da palavra proferida para a lembrança da palavra ouvida. Teria sido preciso alguém que possa dizer: “Ah! ‘E aí velhinho?’”, o que lembra Pernalonga sendo perseguido pelo caçador. Talvez você também tenha medo de mim, como o Pernalonga tem medo do caçador!”. Esse tipo de interpretação não é particularmente brilhante mas ela tem às vezes efeitos inesperados.Na ocorrência, por eu não ter me livrado suficientemente da sideração na qual me havia colocado a réplica da criança, por não ter me livrado suficientemente do papel de doutor controlado que ela me fazia endossar, eu não tive o prazer de a propor.

 

Do investimento da imagem verbal motora ao investimento da imagem verbal auditiva

Como eu acabo de mostrar, há duas maneiras diferentes de usar compulsivamente e repetitivamente a motricidade da linguagem. Há aquela do Broum! que faz crer ao sujeito que suas palavras teleguiam o pensamento e a ação do outro. Ela se inscreve no registro do intersubjetivo (e a encontramos nos pedidos diretos dos pacientes que ignoram a especificidade do espaço analítico). E há aquela do “E aí, velhinho?”. Esta última permite ao sujeito de controlar o excesso de excitação que lhe causa uma situação traumática re-atualizando pela pronunciação de uma fórmula uma situação que lhe é um pouco menos (penosa), sem formular desta vez o pedido a outro. Então, tanto com o Broum como com o “E aí, velhinho?” o investimento da motricidade faz obstáculo à colocação em jogo de uma fala de prazer e de escuta. Como ela permanece maciçamente orientada para a descarga, o sujeito não pode colocar nada em latência e em suspense. O investimento da “imagem do movimento da palavra” fecha o acesso a todo o circuito longo e restringe o sujeito a uma repetição solitária e sem saída. Produz-se um curto-circuito que desfaz a linguagem de sua função de compartilhar as representações e os afetos.

Para que o discurso reencontre seus efeitos é preciso que o uso da fala mude o vértice e que o investimento da “imagem verbal sonora” (a lembrança da palavra pronunciada) possa advir. É uma das condições do “largar-tomar” e da passagem de uma fala compulsiva para uma fala associativa. A incidência do objeto externo é evidentemente decisiva. Eu gostaria aqui de mostrar em qual gênero de ambiente esta mudança de investimento torna-se possível. Não é necessariamente a fala e somente ela que faz todo o trabalho. Eis aqui um exemplo clínico. Como veremos, ele não carrega sobre a passagem do investimento do esquema articulatório ao investimento da escuta da palavra ouvida, mas ele propõe uma metáfora no registro da escrita. O que me importa na sessão que eu vou narrar (mesmo se aqui não for questão disto) é a maneira pela qual François, depois de me ter obrigado repetitivamente a escrever sob o seu ditado (depois que ele se centrou na execução de meu gesto gráfico) é tomado progressivamente de interesse pelas diferenças de estilo entre os traços, e singularmente pela diferença entre o traço que constitui uma palavra escrita e aquele que constitui o desenho correspondente. A passagem do interesse pelo gesto ao interesse pelo traço me parece, em efeito, decisivo.

François é um menino de 10 anos que eu atendo devido a uma perturbação que afeta tanto a sua fala como a sua comunicação. A terapia com ele foi particularmente feliz. No momento atual ele está conseguindo seguir sua escolaridade assim como tecer com seus pares da mesma idade, relações satisfatórias. A sessão que eu me proponho a relatar se situa dois anos depois do início do trabalho. Ele tinha então 5 anos. O que me interessa, é a maneira pela qual seu interesse se desloca do gesto gráfico para o traço sobre o papel. Curiosamente, esta mudança não ocorre como eco a uma intervenção lingüística da minha parte, mas antes a uma ação no jogo que reconstrói uma traquinagem. A traquinagem permite freqüentemente organizar no jogo, uma conflitualidade tolerável. Ela se apresenta mutatis mutandis, no cerne de certas interpretações um pouco desnorteadas que se pode formular para um adulto no divã. Na época onde esta sessão se situa, François dispunha de uma fala fragmentada, constituída pelo essencial de algumas fórmulas estereotipadas associadas a rituais sociais (bom dia, até logo, obrigada, etc.) e de pedaços associados a emissões de televisão ou publicidades. Ele me ditava interminavelmente sobre uma folha branca no quadro onde ele mesmo as transcrevia.

Naquele dia, ele se dirige para a nossa sala. Eu lhe pergunto se ele quer pegar a caixa de jogos comigo num armário numa sala comum, mas ele prefere me esperar e deixa isso muito claro para mim: na vez precedente ele me acompanhou mas ficou apavorado pelo número de pessoas que se encontravam naquele momento em volta da secretária. Uma vez na nossa sala, ele começa como toda vez, a escrita meticulosa de seus rituais gráficos. Ele diz de início “6 M” e escreve o “M” começando pela parte de baixo da perna da direita e depois vindo em direção a ele mesmo, e segue com o 6. Ele encadeia isso com uma seqüência de números. Como de hábito, cada vez que ele muda de sinal, ele muda de lápis de cor, alinhando-os até completar uma linha de um lado ao outro da folha. Coisa curiosa, hoje ele dobra cada número e o repete com uma canetinha de outra cor, quando habitualmente ele passa do 6 ao 7 e depois ao 8 numa progressão regular e sem repetição. Numa outra, ele comenta o que ele inscreve murmurando qualquer coisa que eu identifico como “Engana mamãe”: seria sua mãe que escreveria e se enganaria e não ele mesmo. Enfim, contrariamente ao costume ele não acaba a linha de sinais. Uma vez que freqüentemente ele se interrompe e pronuncia o nome do “doutor A” num tom vagamente interrogativo. Eu preciso entender que se trata de uma alusão a uma visita recente que ele fez com sua mãe ao consultor da equipe da qual ele depende. Depois, ele retoma sua atividade gráfica e traça rodas dizendo: “As rodas”. Embaixo das rodas, ele ajunta uma linha. Ela é tangente a todos os pequenos círculos. Logo após, e irritado devido ao fato de fazer figura de polícia, eu me dou conta de que se trata da reprodução de um esquema da linha de metrô, comparável àqueles que aparecem acima das portas dos vagões. Hoje, portanto, François interrompe o ritual das palavras e das listas de números em linha sobre o papel, se apoiando sobre uma outra continuidade, a linha do metrô (meio de transporte que, aliás, ele toma para ir ao Centro Alfred Binet onde eu me encontro). De qualquer modo, o vínculo existe ainda com a consulta do doutor A: estas entrevistas pontuam o trabalho do ano, como as estações esclarecem a viagem subterrânea. Uma vez a linha de metrô acabada, François se levanta, toma os lápis e vai os colocar um a um numa garrafa de arenito. Esta garrafa de arenito contém já uma história entre nós: um dia quando eu o via manipulá-la sem muito cuidado, temendo que ele a quebrasse, eu lhe mostro que a gente pode assoprar no seu orifício e obter o som da sirene de um navio que parte. Hoje, depois de ter posto os lápis, ele se aproxima da garrafa e aproximando sua boca do gargalo parece querer soprar para obter um som comparável àquele que eu havia feito antes. Depois ele retoma com aplicação a introdução dos lápis no orifício. Como não cabem todos, ele coloca aqueles que sobram numa gaveta. Neste momento ele pára e se coloca de joelhos sobre uma cadeira, diante de uma parede, me mostrando então sua bunda enquanto ele esconde a cabeça passando-a para trás do encosto. Nesta posição singular, ele se dirige a mim, me diz que ele está doente e me mostra alguns orifícios: primeiro sua narina, depois sua orelha e depois sua boca. Depois ele ajunta “cocô”. Eu entendo que ele “esta com dor de cocô, no buraco do cocô, pra fazer cocô”.

Em seguida ele vem até mim, toma mais canetinhas e inicia outra atividade muito ritualizada entre nós: ele me dita palavras que eu devo escrever no quadro. Ele me diz: “Desenhe!”, mas, se eu desenho, ele fica bravo uma vez que ele espera de fato que eu escreva. Neste dia, será “verde, ervilha” (eu devo escrever “ervilha” em verde), depois “amarelo, Macarrão Panzani” (e eu devo escrever, em amarelo, Macarrão Panzani). Quando ele me diz “Macarrão de borboleta”, eu escrevo, depois por brincadeira (e sem dúvida porque eu me arrependo de não ter feito uma intervenção sobre a seqüência que tocava ao “cocô”), eu desenho uma borboleta ao lado da palavra. Ele fica bravo e insiste para que eu mude de folha. Sobre a nova folha, ele me faz escrever outras palavras. Entre aquelas ele me dita, a palavra “flor”. Eu a escrevo e faço em seguida o desenho de uma flor. Desta vez, ele sorri e toma a primeira folha de papel para me mostrar a borboleta que eu tinha desenhado ao lado do “macarrão de borboleta”. É o fim da sessão. Eu digo: “É preciso arrumar”. Ele me lança um olhar interrogativo perguntando: “Acabou?”. Eu confirmo. É preciso tirar as canetas da garrafa de arenito. A cada vez que nós recuperamos um, eu digo: “Opa! um bebê!”.

Estou certo de que muitas coisas se passaram no curso desta sessão. A passagem pela questão da doença e do cocô (pela sensação corporal) foi o prelúdio essencial para a troca em torno da diferença entre desenho e escrita. Mas para mim, o que me parece essencial é que François, relaxando seu controle sobre meu gesto de escrita torna-se de repente capaz de um diálogo silencioso em torno de uma diferença qualitativa entre traços gráficos. Seu interesse (para falar como Jones) se deslocou do gesto da mão para o traço que deixa o lápis sobre o papel. É o que eu chamo de passagem de rabiscos para traços rabiscados. É em tudo paralelo à passagem da proferimento (da fala compulsiva, centrada sobre o esquema articulatório) à escuta (à fala associativa, centrada sobre o traço da palavra ouvida). A favor do deslocamento, o sujeito se dá conta do fato que um traço produzido pode ser significante para outro, tanto que para si, quando ele vem se colocar no centro de uma atenção conjunta. Para favorecer este movimento é suficiente que o adulto comente o traço, ou como eu o fiz com François que ele a ponha ao lado do traço de uma outra natureza. A criança se dá conta então que ele permite evocar uma representação compartilhada. Esta representação compartilhada é o primeiro tempo do intrapsíquico “se com este traço eu compartilho tal representação com você, mesmo que ela não exista na realidade, é que não é somente a atualização que vale. O que não é atualizado dispõe de um sinal que nos permite aos dois de tê-lo presente em nosso pensamento”. Este interesse pelo traço assinala a descoberta do vértice associativo de todo um sistema de sinais humanos e encoraja a renúncia ao seu uso compulsivo.

 

Capítulo 6
Linguagem e sensação

Eu gostaria aqui de abordar um último ponto24 da problemática da linguagem tal como eu a vejo aqui: a relação entre linguagem e sensação. Existe, a meu ver, um vínculo entre as duas que solicita uma dimensão extremamente arcaica do processo psíquico, e contrasta com a idéia geralmente admitida segundo a qual quando nos desligamos das imagens (por exemplo) para ir em direção às palavras, nos desligamos de um modo antigo do pensamento para ir para um modo mais recente. A meu ver, a linguagem tem uma parte ligada com uma dimensão ainda mais arcaica que a imagem: é a sensação. É a sensação que a linguagem compulsiva convoca naquele que a escuta. E é em se deixando experimentar que o objeto pode dizer com isso alguma coisa que arrisca inclinar-se por sua vez, em torno da fala do sujeito. É assim que ele pode criar as condições de emergência de uma fala associativa.

Para especificar o que tenho em mente dizendo que a linguagem convoca a sensação, e apoiarei sobre três considerações. De início, um fato que interessa ao registro do autismo (e que tem relação com o “E aí, velhinho?” e a ecolalia diferida). Em seguida uma reflexão de crítica literária, enfim uma anotação lingüística devida a um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica de Paris.

 

Um fato inquietante

Num certo número de tratamentos de crianças que apresentam pesados traços autísticos, observamos acessos de terror próximo do terror sem nome que se manifestam diante de diferentes objetos do mundo inerte. Isto pode acontecer quando a criança se encontra diante de uma poça d’água, uma lagoa, ou um vidro quebrado ou rachado. Mais tarde, ao invés de uma expressão de terror, ela poderá manifestar no lugar destes mesmos objetos um investimento lúdico singular.

Ela poderá também se apaixonar em seguida pelas superfícies adesivas e passar longas horas a colar depois a descolar um pedaço de fita adesiva sobre um papel ou sobre o seu rosto.

Todas estas manifestações têm um ponto comum: a reação da criança parece se enraizar numa relação que habitualmente é o apanágio da linguagem: eu quero dizer a metáfora. Tudo se passa como se ela ficasse com medo da poça d’água porque ela lhe sugeria alguma coisa sentida com uma tônica insuportável (uma sensação de escorrimento, de perda de substância) ou que o vidro quebrado o confrontasse a um experimento de fratura do seu envelope corporal. Quanto à criança que cola e descola a fita adesiva, teríamos vontade de dizer que ela pratica de maneira metafórica a experiência dolorosa da separação: separar-se de seu objeto de amor por um arrancamento, por um descolamento, para constatar que ele pode aderir a ela novamente.

Eis aqui um exemplo que eu empresto de uma colega psicomotricista Sofia é uma menininha de dois anos que não fala. Pela primeira vez, sua mãe a deixa só no consultório da terapeuta. Ela brinca com um jogo onde se trata de pegar, com a ajuda de uma vara de pesca que termina com um ímã, peixinhos colocados numa roda que gira e que tem também um ímã. De repente, “clac!” o ímã de Sofia colou-se ao de um peixe. Imediatamente ela o toma, se levanta e vai deixar um cubo sobre a cadeira onde sua mãe ficava habitualmente durante as sessões precedentes. Depois ela se dirige à porta. Ela a abre. Quando ela constata a presença de sua mãe na sala de espera, reassegurada, ela a fecha e volta a brincar.25

Como compreender o que se passou? O contato dos ímãs freqüentemente “metaforizou” os reencontros, um abraço com a sua mãe, isto é o que a lembrou da sua ausência naquele lugar. De início, ela validou esta ausência depositando um cubo sobre o seu assento habitual, depois teve que se reassegurar de sua presença abrindo a porta para vê-la na sala de espera.

A interpretação do conteúdo é claro e a estranheza não está aqui. O que é singular é o fato de podermos observar esta espécie de metáfora concreta (para retomar o termo que H. Searles utiliza para descrever um fenômeno vizinho) numa criança que não tem necessariamente o uso da linguagem.

De fato, para pensar nisso, é preciso de início renunciar à idéia de metáfora tal como a entendemos habitualmente. A metáfora supõe o emprego de espaços distintos, depois o deslocamento, o transporte, de um objeto, um no outro. É o sentido etimológico do termo. Para retomá-lo seria preciso então pensar que a criança autista distingue entre dois domínios: sua interioridade somatopsíquica e o resto do mundo. Ora, é justamente porque não existe esta diferenciação que Sofia “experimenta” o abraço com sua mãe quando os ímãs se encontram, ou que uma outra criança experimente sensações de desamparo ou de fratura quando vê uma poça d’água ou um vidro quebrado.Não se trata de falar de uma percepção propriamente dita. Como vou tentar demonstrar, trata-se antes de uma sensação. Eu oponho aqui sensação à percepção, como E. Schmidt-Kitsikis, por exemplo, pode opor lembrança à reminiscência. Na sensação há confusão entre o que o sujeito experimenta no seu corpo e o que pertence à fonte exterior (a deformidade da poça d’água, as rachaduras no vidro). Ora, a linguagem pode ter um efeito comparável a este emprego primitivo do sentido. Mas antes de precisar este último ponto, eu vou precisar a natureza do fato clínico que acabo de evocar, fundamentando-me sobre as considerações instrumentais devidas a A. Bullinger.

 

Proposições teóricas de André Bullinger

Retomando certas perspectivas abertas por J. Ajuriaguerra, a reflexão de A. Bullinger, que não é de essência psicanalítica, carrega no relacionamento entre sensação, tônus, postura e emoção. A hipótese do conjunto que destaco do seu pensamento é a seguinte: nas diversas modalidades sensoriais (visão, toque, audição...), dois usos, dois modos de relação com o mundo, cooperam. Um, o mais conhecido, permite perceber um objeto que se coloca para sujeito. É habitualmente a única que se nos apresenta quando pensamos em percepção. Mas há uma outra, não menos decisiva, que permite ao sujeito, posicionar seu corpo face ao objeto o qual se trata para ele de manipular ou mesmo (se ele pressente um perigo) de evitá-lo.

O contraste é particularmente claro no caso da visão. A visão central permite escolher um objeto do mundo, manipulá-lo e senti-lo no fundo do olhar, reconhecendo-o como exterior a si mesmo. Esta função se apóia sobre um emprego de territórios neurológicos recentes. Ela permite, por exemplo, captar a forma e a cor da coisa que enxergamos. A visão periférica, ao contrário, efetua um trabalho prévio desta captura, que permite ao sujeito, se preparar fisicamente para que a escolha pela visão central possa em seguida se dar como lhe convém. A visão periférica dispõe de certo número de características singulares: o que ela retira do mundo tem efeito direto sobre o tônus do sujeito (seu corpo se tenciona ou relaxa), sua postura (ele se orienta ou se volta para do alvo, procura atingi-lo ou se protege dele) e suas emoções (ele sente prazer ou desprazer). Este sistema arcaico de relação com o mundo, que a visão periférica coloca em jogo, parece ser a fonte dos traços da “memória sem lembrança26”.

Na criança autista, em cada modalidade, tudo se passa como se aí não houvesse diferenciação clara entre os dois modos operatórios. Em conseqüência, as sensações não são mais distintas das percepções. As qualidades normalmente reconhecidas pelo sujeito como pertencentes às coisas do exterior, são sentidas por ele como sensações situadas num espaço indefinido. É aquele do seu corpo,27 mas o mundo poderia confusamente aí entrar. As sensações de esvaziamento, de fratura, de tensão, de queda (tudo aquilo que Anzieu pode descrever em termos de significantes formais, tudo aquilo que define um estado do sujeito sem ser, todavia, um afeto) podem então ser causados pela qualidade de um objeto pertencente ao mundo (a rachadura de um vidro, os reflexos sobre uma poça d’água, a emissão de partículas ou de fragmentos sobre o solo).

Captadas em visão periférica, estas propriedades fragmentárias provocam algo que o sujeito não distingue mais das tônicas sentidas e emanadas diretamente de seu próprio corpo. A sensação de fratura do envelope corporal pode assim ser o efeito interno que produz a escolha, em visão periférica, de uma rachadura sobre um vidro. Pelo menos é assim que eu explico a mim mesmo este fenômeno tão perturbador.

O fato de reportar a si uma percepção do mundo, não é uma característica do autismo. Piaget nos revela um exemplo de sua filha. Prosseguindo na sua pesquisa sobre a permanência do objeto, ele mostra um dia para sua filhinha, um anel, que ele coloca em seguida numa caixa de fósforos. Aí ele fecha a caixa. A criança procura então abrir a caixa para pegar o anel. Mas ela não consegue. E enquanto ela reitera seus esforços desajeitados, ela abre a boca e a fecha numa espécie de conversão metafórica involuntária de seu projeto. Está aí um gesto que acompanha seu pensamento sem estar endereçado a outro. Ela manifesta uma espécie de reflexo que consiste em levar para o corpo, um movimento observado numa coisa do mundo exterior: o movimento de abertura e fechamento observado na caixa é reproduzido pela boca. Trata-se de uma ligação particular entre percepção e motricidade. Isso corresponde às hipóteses de Freud que eu lembrei no capítulo precedente, concernente à dimensão motora da percepção.28 Na aparência, o exemplo da filhinha de Piaget é, todavia, diferente deste da criança autista que toma pelo aspecto fraturado. Uma vez que para a criança autista, não há nada a fazer na retomada defasada de um movimento observado, a propriedade do mundo externo (a rachadura do piso) faz eclodir um sentimento corporal (de fratura, de descontinuidade), não um movimento. Todavia, este sentir pode ser visto igualmente como um movimento de um gênero particular, é verdade: é quase uma “enervação corporal”, para falar como Freud, no início. É um movimento passivo. O sentimento de fratura, de descontinuidade, é de fato, visto como um movimento de fratura sofrida. Cada vez que o sujeito é exposto a alguma coisa do mundo exterior que ele apreende de um modo arcaico, isto provoca nele uma sensação (uma experimentação tônica) e ela é assimilável ao esboço retido de um movimento sofrido.

 

De repente, o vento refresca e a montanha torna-se violeta

Para algumas crianças, a visão do piso quebrado pode então engendrar confusamente um experimentar de um envelope corporal fraturado. Todavia, a meu ver, o mais espantoso não está aí. Ele não está nem mesmo na colocação em relação imediata, na colagem confusa entre mundo interno e mundo externo. Antes, ele está no efeito das palavras, uma vez que mesmo nestas crianças, e mesmo se elas não falam, qualquer coisa pode surgir por pouco que explicitemos através da linguagem, a ligação entre o terror que elas sentem fisicamente (sensação de fratura ou liquefação) e o que foi a fonte disso no mundo exterior (o vidro rachado, ou o reflexo da água). Quando a ligação verbal é feita, a reação da criança manifesta então freqüentemente que ela levou em conta a fala que estava endereçada a ela. Ela se acalma, ou ao contrário ela coloca as mãos nos ouvidos, como se disséssemos de repente qualquer coisa que lhe perfurasse os tímpanos. Se a linguagem faz este efeito neste gênero de situações, somos forçados a pensar que as palavras conservam uma ligação com aquele estado onde o sujeito confunde sentimentos primitivos ligados ao estados de seu corpo com as sensações causadas por um aspecto particular do estado do mundo. É o que me leva a pensar que uma ligação subsiste entre linguagem e sensação. Numerosos passeios literários se apóiam, aliás, neste fenômeno. É este ponto que vou desenvolver agora.

Eu me apoiarei, para começar sobre uma observação que eu freqüentemente escutei fazer à R. Diatkine. Ele sublinhava que o afeto que experimentamos ao escutarmos uma narração, quer se trate de uma narração de paciente ou de uma narração literária, pode constituir o surgimento de uma sensação que se separa das palavras, na condição todavia, de que estas últimas não a designam diretamente. Para ser convocada, veiculada e finalmente compartilhada (o que faz com que ela se torne então plenamente afeto e não fique uma sensação justamente) esta sensação deve ser empregada de uma maneira transversa e defletida, por um mecanismo que contorna toda referência direta ao que ela é, com efeito, sem, no entanto, descolar das margens do aparelho da linguagem.

A este propósito R. Diatkine gostava de citar o momento onde, na história da “Cabra do Monsieur Seguin”,29 o animal se dá conta de repente de sua solidão na montanha, da presença do lobo em algum lugar e da angústia flutuante que isto suscita nela. No texto, nada faz referência direta às inquietações da heroína. Encontramos somente uma pintura do ambiente do campo. “De repente, o vento refresca, a montanha se torna violeta. Era noite”. Isto é tudo! No entanto, a favor das palavras desta citação, o leitor pressente. A escrita “faz passar” o movimento interno do animal sem descrevê-lo e justamente porque ela não o descreve. Como se trata de um texto escrito, não saberíamos invocar aqui a materialidade da fala, o tom, o modo ou o gesto do enunciador. São as palavras e somente as palavras que fazem tudo. Porque elas sabem dizer com estilo, mas também porque elas sabem calar. De onde vem então que uma sensação possa ser convocada por palavras que, no entanto, a contornam? Simplesmente pelo fato de que a narração do texto explicita as condições materiais na qual esta sensação advém (a mudança que afeta a temperatura e as cores). Tudo acontece na verbalização dos traços “mnêmicos por simultaneidade” contidos habitualmente na memória sem lembrança. Na situação fictícia, esses traços não têm sentido para a heroína. Eles foram somente contemporâneos do surgimento de sua sensação de desconforto, mas, inscritos na narração que os exprime, ela os suscita. Para que esse sentido surja, é preciso então que a sensação possa beneficiar-se de um prolongamento calcado desta vez na atualização de uma memória da sexualidade infantil, de uma memória de nível II. E esta aqui é evidentemente a mesma do leitor. A descrição do contexto da sensação fornece assim o material da memória sem lembrança. Este material convoca no leitor uma sensação, a qual exige em seguida, pelo surgimento do afeto, a atualização da sexualidade infantil. Todavia, para que isto aconteça, é preciso num primeiro momento que o leitor aceite ser solicitado pelo texto, a um nível singularmente arcaico, que ele ceda ao efeito da sugestão. Em seguida, ele deve se constituir, ele mesmo, em objeto suficientemente bom, e retomar esta sensação inicial como um objeto atento que pode então permitir a transformação.

O tipo de experimento que eu nomeio aqui de sensação, não está desligado da noção de significante formal. Contrariamente à fantasia (que pode sempre se formular numa frase do tipo sujeito+verbo+objeto),30 o significante formal (e mais geralmente todo acontecimento contido na “Memória sem lembrança”) se inscreve, ao contrário numa estrutura do tipo “Há/Isso+verbo (“isso se quebra, isso desmorona, isso cai, isso fura...”). Ela marca a emergência de um acontecimento interno, o qual o sujeito experimenta. Fenomenologicamente, o significante formal se manifesta seguidamente como sensação ou experimentação tímica. “Isto refresca” é um bom exemplo. Uma das características remarcáveis deste tipo de sensação é que ela faz obstáculo a toda localização precisa. Refresca, mas não se sabe dizer exatamente onde. “Refresca”, fora, mas “refresca” também dentro: a espera contida neste envelope, queima as referências. A questão da localização perde sua pertinência, ou ressurge como estranha.

 

O “efeito-boi”

Poder-se-ia crer que a sensação ensurdece pelo efeito do estilo, do arranjo que o autor pode dar à suas palavras. Mas este não é somente o caso. As expressões correntes dispõem também de certa potência de evocação. É a E. Pichon, um dos mestres do pensamento de Lacan em matéria de linguagem, que devemos a mais fina análise, da maneira pela qual a fala faz sensação. Nós a encontramos num artigo31 que critica a concepção saussurienne do arbitrário do sinal. Taxando o lingüista genovês de reducionista abstrato e “linguo-especulativo”, Pichon insiste sobre a dimensão “senso-actorial” da palavra e de sua ligação com a sensação. Para clarificar seu propósito, ele toma um exemplo concreto. Ele parte da expressão “efeito boi” e mostra em substância que quando se escreve “Isto me provocou um efeito boi” a palavra “boi” quando se escuta pronunciá-la, conserva qualquer coisa da sensação causada pelo contato direto com o animal sem, no entanto, convocar no espírito a imagem visual bovina.

Esta sensação indistinta, este significante formal de esmagamento e de impotência (que uma reflexão intelectualizante pode de repente reportar ao peso ou à castração do animal), parece resultar da colocação em retirada do senso próprio e da imagem do boi. A colocação em segundo plano da referência ao objeto engendra um efeito de indeterminação que faz então obstáculo à localização da sensação. Tanto como “o ar fresco”, o “efeito-boi” causa assim alguma coisa que faz vir todo conjunto de fora e de dentro. Como, aliás, poderia ser diferente quando o pensamento se encontra siderado sobre o caminho que de outra maneira conduz ao afeto e à representação? Ora, tudo isso resulta do uso das palavras. É à linguagem que o significante formal deve ser convocado. É pela linguagem ainda que ele deve escapar da solidão à qual ele seria de outra maneira isolado. Evidentemente, o segundo efeito (o efeito de socialização simbolizante) não está plenamente atingido a não ser que a palavra seja ouvida (o que quer dizer experimentada) por não importa quem. É o compartilhar da sensação convocada pela palavra que a transforma em afeto. Deste ponto de vista, poder pensar que aquele a quem (ou diante do qual) falemos de “efeito-boi” compartilha uma sensação de peso (e se situar a si mesmo no compartilhar de tal peso) abre acesso ao vir a ser representacional da sideração.

Eu gostaria aqui de propor um fragmento clínico no qual se tratou desta sensação de peso na contra-transferência.

France foi educada por sua mãe num lar onde o pai estava ausente. Ela está em análise comigo há alguns anos. O trabalho com ela é habitualmente estimulante e seu discurso é cheio de associações. Mas neste dia em particular, ela chega e me diz que está cansada. Ela me fala de uma mudança profissional, de metros lineares de documentos que precisou reinstalar no novo lugar. Eu me sinto então invadido por uma sensação de peso e de lassidão muito forte. Antes de poder saber pelo que fui tomado, eu lhe pergunto se ela não quer se deitar no divã. Eu sou surpreendido por essa manifestação de solicitação sedutora. Eu não compreendo nada aí. Ela pára por um tempo e depois diz: “Justamente a noite passada, eu tive um sonho. Eu estava numa cama, lendo um artigo científico. O senhor estava do meu lado”. Seguem outras associações que a conduzem a fazer uma ligação com uma história de amor que outrora contou muito para ela. Depois ela se cala. No final de um momento, eu digo a ela que esta sensação de peso que ela me faz compartilhar tinha talvez por objetivo, deixar o sonho um pouco à distância, que nos coloca na mesma cama. Ela retoma então a descrição do seu lugar de trabalho. Este é um lugar onde há muitos homens. “A senhora teria então o direto de pensar neles? É verdade que a senhora fica imediatamente condenada a organizar os livros. Como Cinderela quando suas irmãs vão ao baile! As organizações intermináveis e também desagradáveis enquanto que uma dança pode ser agradável”. Ela sorri, e volta ao seu sonho.Era uma cena terna. Isto a lembra de um dia onde ela se encontrava com um homem que ela amou, eles falavam enquanto ela passava roupa. Ela acrescenta: “É engraçado, esta troca eu jamais vi entre meu pai e minha mãe. Como é que eu poderia inventar o que eu jamais vi?”.

 

Quais os pontos comuns às reflexões que precedem?

Naquilo que precede, eu tentei aproximar a maneira pela qual a linguagem permite ao sujeito trabalhar a sensação, fazendo-a nascer no outro e depois a compartilhando.32

De maneira sintomática, tanto com o exemplo da criança autista confrontado com a poça d’água ou com o piso quebrado, como com o exemplo literário de “o ar refresca”, ou ainda com a expressão “efeito-boi”, o sujeito (ou o personagem) se encontra tomado de uma angústia arcaica provocada pelo revivência de um encontro entre seu corpo e alguma coisa do mundo que o faz perder seu contorno. É esta perda no reencontro que é a causa do experimentado.

Evidentemente, o “efeito-boi” que me faz a narração da mudança no tratamento de France é mais complexo. Entra aí uma parte de defesa contra a reaproximação comigo que seu sonho ilustra. Mas é também o prelúdio (indireto), uma invenção da ternura que o sujeito crê fazer sem modelo. Como se falta de referência e de figuração interna, quando o sujeito inventa, ele foi conduzido a fazer um retorno para a sensação. Mas uma sensação particular: aquela que fica surda ao discurso e se transmite àquele que a escuta.

Através das palavras de um, o outro é assim convidado a sentir e depois a construir um afeto compartilhado e enfim a (se) representar. Na ocorrência, é decisivo que esta sucessão de movimentos tenha lugar. Porque é do processo representacional no objeto (da colocação em jogo da neurose infantil dele) que o sujeito em análise encontra no retorno disto, um apoio.

Há, todavia, um risco: quando a fala do analisando repousa muito exclusivamente sobre a injunção feita para o outro sentir, de se afetar e se (representar), pode-se temer que esta fala não fique indefinidamente tributária do endereço efetivo. É uma dificuldade particular de certas análises “que caminham”. Falta de um luto suficiente da escuta real, o estabelecimento da auto-análise fica perturbado. Uma defesa particular se organiza, que por razões que vão aparecer, eu gostaria de chamar de nostálgica. O fim do tratamento vem então inadvertidamente.

 

Capítulo 7
A fala nostálgica

Trata-se de um naufrágio que constantemente ameaça o discurso. Contrariamente ao que pode ser sobre a vertente da psicose ou do operatório a perturbação não é o eco na linguagem de muito ou de muito pouco investimento da fantasia inconsciente. Trata-se antes de um desinvestimento do prazer ligado à que a sensação se torne representação inconsciente e depois que ela se torne enfim consciente no decurso de uma fala que todo o conjunto a descobre e a denuncia. Sobre aquele que lhe empresta os ouvidos, a narração exerce então uma sedução particular. Como a fala poética, na qual o efeito é de “tornar visível” seu movimento engendra uma certa perturbação no analista que a acolhe verdadeiramente. Diversos autores se reportaram a manifestações do estilo, do tom, do débito, da cor da voz do paciente, pensando que essas eram as margens da linguagem que se ativavam e não a linguagem propriamente dita. Ora, para mim, é o conteúdo da fala como tal que é o fator de tais efeitos. A fala de certos pacientes convoca em nós, imagens particularmente vivas que se acompanham nem tanto de afetos como de sensações. Ela nos coloca num estado comparável àquele onde o leitor se encontra mergulhado depois de ter lido “De repente, o vento refresca, a montanha se torna violeta. Era noite”. Na evocação clínica que segue vou me esforçar para mostrar que quando isto caminha assim, é porque o sujeito colocou no lugar uma defesa de um gênero particular que eu chamarei nostálgica. Nostalgia de um tempo ido onde o objeto, escutando o grito de desespero do sujeito, se colocava à disposição, compartilhando a emoção sentida, e a organizava com afeto. O grito expressivo se encontrava então convertido em significante de uma ausência tolerável. Como veremos, esta nostalgia torna a fala do paciente sedutora e seu tratamento interminável. O perigo é que como é regularmente o analista que alucina, o paciente se encontra dispensado disso. Ele pode então se exonerar do luto que deve necessariamente continuar. Provocando no outro, a emergência da sensação e depois a organização da representação pela colocação em jogo da sexualidade infantil, o paciente que não tem mais necessidade de assumir a continuidade crê, poder se dispensar de renunciar ao charme da regressão. Devido a esta renúncia decisiva, sua fala fica indefinidamente dependente da escuta efetiva do objeto externo. Nostalgia de uma escuta oceânica que não satisfaz a demanda, mas que a organiza: este é para mim, um dos obstáculos maiores da emergência de um processo de auto-análise.

 

A história de Ada

Trata-se de uma paciente que como veremos, é incontestavelmente dotada para a análise. E na sessão que eu escolhi para relatar, tudo se encadeia. Ao ponto que os comentários que eu serei levado a fazer arriscam ter o peso das explicações que fornecemos de uma palavra espirituosa àqueles que não riram dela. Quer dizer, a sedução e a condensação que seu discurso faz pesar sobre a minha escuta. Mas é justamente o estatuto desta sedução inconsciente e a maneira pela qual ela permite contornar a renúncia à potência “de fazer experimentar” quem vai aqui me ocupar.

O primeiro efeito de sua fala é de impor o silêncio. Eu me sinto convidado a me calar, a deixar se desdobrar a corrente associativa que ela propõe, me esforçando de somente em não criar obstáculo. Com ela, toda interpretação corre o risco de fazer uma mancha ou ruptura não dentro da repetição como é freqüente e salutar, mas no processo que a leva a deslocar metaforicamente seus jogos. A fala de Ada é uma fala habitada, uma fala onde o vínculo não está em falta, uma fala rica. Mas, além disso, é uma fala que faz sentir e faz ver as cenas que ela evoca, quer se trate de cenas dadas por reais ou de cenas de sonho. Em si, esta presença da imagem dentro da escuta é banal. O que é menos banal é a qualidade da imagem produzida: ela se impõe na contra-transferência de um modo que não é aquele da rêverie associativa e nem aquele do paradoxo. O analista tem freqüentemente a sensação de ver o que é dito ao ponto que por pouco ele não duvidaria da identidade do autor da representação então tornada consciente. Ela convoca na contratransferência uma verdadeira revivescência

Eu me perguntei se a maneira particular pela qual o discurso de Ada convocava em mim sensação e movimento representacional não era devido ao fato de que ela tentava escapar ao luto do alucinatório de sua própria fala confiando-o para mim. O prazer que Ada retira então de minha escuta faz obstáculo ao aparecimento de um diálogo interior que seria suficiente a si mesmo. Bem entendido, essa tonalidade particular não é constante: ela emerge eletivamente quando a temática caminha para a perda, o luto ou a castração. Ela não parece, aliás, contornar tal temática pela negação ou a mania. Ao contrário, um movimento depressivo pode mesmo se esboçar, como se decididamente o sujeito aceitasse renunciar a tudo. Excetuando o apoio do outro para transformar o traço perceptivo em representação inconsciente, é justamente o que a linguagem na análise permite a, efetivamente apoiada no analista.

O que acontecerá com esta fala quando o analista não estiver mais lá para escutá-la?

 

Uma sessão no tratamento de Ada

Eis aqui, no presente, a sessão. Como veremos, ela termina curiosamente. Foi a sensação de mal-estar com que esse final me deixou e o sentido particularmente condensado da ultima fala da paciente que me levaram a me interrogar sobre o teor geral de seu discurso.

Ada chegou do Sul da Itália há muitos anos, para fazer em Paris estudos científicos especializados. Hoje ela é perfeitamente bilíngüe. Sua análise terminou há três anos, após ter se desenvolvido durante cinco anos. O término do tratamento aconteceu um pouco subitamente quando Ada respondeu favoravelmente a uma oferta atraente de um país anglo-saxônico. O que eu vou relatar se situa no último ano de seu tratamento. Eu vou de início dar o texto da sessão, sem comentários, assim como eu o anotei logo em seguida. Ela o tinha marcado para mim, mais eu não tinha, naquele momento, procurado dar a ele uma elaboração. Eu tinha ficado com um interesse e uma dificuldade em dizer o que me segurava. Alguma coisa entre violência e poesia. Naquilo que ela me oferecia para ver, parecia-me encontrar aquela grande nitidez de certos sonhos dos quais Freud denunciou a qualidade quase alucinatória. É talvez o que me conduziu posteriormente a voltar sobre este material. Naquele momento da análise, no propósito de Ada, tratava-se seguidamente a questão de Mário. Era seu namorado, vindo como ela, dos arredores de Nápoles. Ele a tinha deixado para voltar para lá. Trata-se de uma separação definitiva. Mas apesar dela o saber, ela não chegou ainda a admiti-lo. Esta partida faz eco a diversas situações dolorosas da infância: a morte do pai, doente durante muito tempo, acontecida quando ela tinha 10 anos (ela fica então órfã entre seus irmãos; a mãe, vinte anos mais jovem que o pai se casará novamente pouco tempo após esta morte); e mais cedo ainda, desde a idade dos 5 anos, as partidas para o internato, longe da família onde, por comodidade, fora colocada.

Desde a partida de Mário, Ada freqüenta um grupo de jovens estudantes de sua idade, italianos na maioria.

Neste dia, Ada se deita no divã e fica um momento silenciosa, como se ela relaxasse. Depois me diz: “Eu tive um sonho na noite passada ou na anterior. Eu estou na borda de uma falésia, sentada com uma mulher. A água sobe. As ondas se quebram. Eu não tenho a impressão de conhecer esta mulher, mas eu não tenho também a impressão que ela seja desconhecida. E de repente eu digo a ela: “Puxe-me!”. Ada me interrompe: “Puxe-me, isto me faz rir. É a palavra que Pedro emprega quando ele nos conta que está querendo uma garota. Eu tenho vontade de puxar aquela lá, ele diz. E isto não me choca”. Ela se cala por um momento. Enquanto ela se cala eu me interrogo, não sobre o sentido do sonho, mas sobre a questão de saber se a expressão me choca no seu lugar transferencial. Ela é crua, é verdade, mas não vulgar. Antes rústica e terrena. Impregnada de uma analidade fecunda. Sobretudo, eu visualizo muito precisamente, talvez até demais, a cena do sonho. Eu vejo essas duas mulheres na chanfradura de uma falésia desmoronada, na beira do abismo. Atrás dela a água é verde e agitada. Depois de tudo, é talvez a sedução contratransferencial do “puxe-me” que volta sobre a forma de vertigem. Depois de um tempo de silêncio, Ada evoca a ausência de seu companheiro que partiu. “Mas eu não penso mais nele como antes, eu creio. No começo, quando eu pensava nisso eu ficava triste e meu coração se fechava. Agora, é diferente. Eu estou triste, mais eu me sinto um pouco fora da minha dor. Eu estou menos dentro.” Ela se cala de novo, depois retoma: “Ontem eu passei na casa do Pedro. No seu quarto, estava um amigo dele. Num certo momento, nós tínhamos comido queijos e ele pegou um pedaço de cera vermelha para amassar. E fez com ela um sexo de homem. Eu pedi a ele esta pequena escultura. Ele acabou por me dar. Eu nem mesmo agradeci e a esmaguei”. Ela espera um pouco e depois acrescenta: “Em seguida, eu disse: ‘Os homens não valem nada, finalmente. Eu faria melhor arrancando meu clitóris’. E Pedro respondeu: ‘Tuas falas são como moscas que incomodam nas minhas orelhas’. Ele citava Sinoué, o Egípcio. Para nós é como um livro de sabedoria. Depois ele acrescentou: ‘Mas você é mesmo uma imbecil’”. De novo ela se cala. Enquanto ela se cala, eu estou sob um choque. A violência da colocação em imagens da castração (o esmagamento do pênis de cera vermelho, o odor anal do queijo, a colocação em palavras da excisão, redobradamente a castração, este contraste entre a violência do arrancar, e o termo frio e técnico de “clitóris”, o tom quase pausado sobre o qual Ada profere a ameaça que ela endereça a si mesma) me deixa de olhos fixos na cena que ela me fez ver, incapaz verdadeiramente de me desligar. Quando ela retoma sua fala é para evocar uma troca com sua mãe.“Eu me lembro de um telefonema,uma vez.Ela me dizia que eu não devia me queixar. Que eu fazia meus estudos e que eu devia verdadeiramente agradecer a Deus de não ter ficado na ignorância”. Novo silêncio. Quando ela retoma a fala, é uma cena da atualidade. Um pouco antes de vir à sessão, num café. Como ela estava um pouco adiantada ela se sentou e pediu um expresso e um copo d’água. Deramlhe um copo muito pequeno de água. Ela pede um segundo café. No momento de pagar ela pergunta o preço do café, que é de 1,50 euro, mas no tíquete constam 3,50 euros. Ela pergunta por quê. Respondem que é a água que custa cinqüenta centavos. Ela responde que ela não pagará pela água, que ninguém cobra pela água. O garçom diz que era água mineral e que ele não está lá para dar água, mas para vendêla. Ela diz que ela não pediu água mineral, que ela não pagará a água mineral, mas somente os três euros dos cafés. Ela paga e sai para vir à sessão.

Silêncio de novo. Durante esse tempo eu fazia uma breve recapitulação de seus últimos pagamentos. Depois Ada evoca um encontro recente com a faxineira da casa da cidade universitária onde ela mora. Essa mulher lhe disse, lembrando do seu namorado: “Não chore mais por ele. Ele fechou os olhos, ele te virou as costas e foi embora”. Ela sonha igualmente com Paula, uma amiga da qual fora inseparável até pouco tempo. Ela também lhe deu as costas: “Quando Paula passa na minha casa, ela não quer mais notícias minhas, e ela nem quer mesmo me ver”. Depois a cena dos queijos retorna: “Eu penso naquilo que Pedro disse. De fato ele disse mais, isso me volta agora. Ele disse: ‘Você é idiota, você precisa fazer amor’. É verdade que eu preciso fazer amor.”

Ela fica de novo um longo momento em silêncio. Eu sinto que é preciso que eu diga alguma coisa. E eu me sinto gauche. Eu gostaria mais de continuar calado. Eu acabo por dizer: “Então, tem o sonho... a cena com Pedro... a cena do café... a fala da tua mãe”. Ela me retruca vivamente: “A ligação? É isso que o senhor quer que eu encontre? Poderíamos dizer que o senhor me propõe uma cola. Como um problema de matemática ou de física. Eu tenho a impressão que o senhor vai avaliar o meu QI”. Depois o tom muda. “Agora eu repenso na ligação que o senhor fez um dia entre Paula e minha mãe. E depois, já depois da cena onde eu digo que eu vou me mutilar, eu falo de uma situação onde eu me defendo”. Silêncio de novo. “Finalmente, eu não vejo. Eu não sei. Sobretudo eu penso que é o senhor que tem a resposta”. Minha maneira minimalista de intervir lhe fez no início o efeito de um mau acolhimento, mas evidentemente ela procura elaborar esse primeiro movimento. Ela acaba por acrescentar “Aqui eu vejo outra coisa. Eu volto. Eu tenho dois anos e estou nos braços da minha mãe. Não, não é da minha mãe, mas da minha avó. Essa avó, diziam que ela me amava”. É o fim da sessão. Eu anuncio como de costume dizendo: “Bem”, mas nesse instante preciso ela se põe a dizer alguma coisa superpondo sua fala ao meu anúncio do final. Antes mesmo de me dar conta, eu volto atrás e a convido a terminar a frase: “Esta avó, acrescenta ela, ela me amava, mas eu não me lembro mais disso”. Eu espero um tempo e então reitero o anúncio do final.

Depois de sua partida, penso de novo na condensação de sua última fórmula concernente à sua avó. Ela me deixa perplexo. É a essa perplexidade que eu ligo o movimento que me conduziu a tentar aumentar de um instante o final de três quartos de hora. Como se eu tivesse tido vontade de vê-la modificar esta formulação, que eu não tinha acabado de escutar ela falar. Castração imposta à minha escuta? Incapacidade de minha parte de pensar que ela pudesse desenvolver a sessão num movimento de auto-análise prosseguindo ao que ela me dizia no curso de um monólogo interior dentro de uma escala?

 

Algumas reflexões inacabadas

No fundo, o que é um jogo é o ressurgimento violento dos movimentos pulsionais de Ada neste momento do tratamento onde a partida de Mário reavivou o registro dos lutos e das perdas. Eros e destrutividade se cruzam sob a cena da fala, até organizar na regressão final (a evocação do amor da avó) um apaziguamento temporário que o anúncio do fim da sessão vem colocar em risco. Antes disso há a homossexualidade primária do sonho e sua violência (o mar que se descontrola), a violência contra os homens (a figura do pênis esmagado) voltada contra si (a fantasia de excisão), relativamente temperada pela terceirização resultante da colocação em circulação da sabedoria de Sinoué, o Egípcio, depois o encontro com a faxineira e a conversa telefônica com a sua mãe. O material está aí, legível, como se a paciente passasse em revista todas as soluções psíquicas acessíveis a uma mulher que tenta elaborar a perda e a castração sem conseguir estabelecer plenamente sua posição de mulher. Evidentemente, na sessão é isso que conta e que carrega a minha escuta. Mas se eu desejei reportar esta sessão, não é tanto pelo seu desenvolvimento, mas por duas outras razões: de uma parte, a qualidade particular do que Ada me faz colocar em imagem quando ela fala, e de outra, a maneira curiosa pela qual a sessão termina. Parece-me que os dois têm uma parte ligada. Parece-me que meu passo em falso contratransferencial no fim da sessão é, em parte, o efeito de uma defesa particular de Ada, defesa que eu gostaria de nomear nostálgica: ela barra o acesso à retomada do processo de auto-análise.

Partamos do efeito que me causa a fala de Ada. Tratando-se de temas explícitos entre a violência extrema e crua pela qual ela mostra seu próprio lugar e o lugar dos homens, as falas de Pedro e seu amigo, a fala abusada da faxineira, a citação de um livro de sabedoria, há variações singulares. Mas um fio atravessa a diversidade dos registros e das fontes: ele resulta da dificuldade particular de Ada para se emancipar da escuta do outro.

É clássico enxergar o material de uma sessão como o efeito de um surgimento associativo do sonho pelo qual ela se abre. Eu me pergunto também se o exame da formulação das coisas ditas permitiria escolher aqui a saída da potência particular da evocação dessa fala. Na sua forma, o que aparece de início é o recurso no presente. A paciente não diz: “Eu estava na borda da falésia”, mas “Eu estou na borda da falésia”. Contrariamente ao mais-que-perfeito, o presente é um tempo indeterminado que permite reportar imediatamente os acontecimentos em jogo a todas as situações onde eles poderiam se inscrever.33 Eles cessam de ser intrinsecamente situados. Eles flutuam e podem pertencer tanto ao passado, como ao espaço do imaginário, ou ao hic e nunc da sessão. Isso engendra muitos efeitos.

De início, a separação entre Ada como heroína do sonho e Ada como enunciadora do vínculo transferencial com o analista que eu sou, acaba de ser nitidamente especificado. Mas, sobretudo, “Eu estou na beira da falésia” torna-se como a verbalização de um traço mnemônico por contigüidade que causa este sentimento de vertigem que eu experimento na contra-transferência no momento onde Ada se reporta a seu sonho. Sua fala opera como “o efeito boi” ou “O vento refresca e a montanha se torna violeta”. É esta experiência que me incita à elaboração e contra-investimento à produção de uma representação visual. O uso do presente, não é evidentemente o único traço no discurso de Ada de uma dimensão sutilmente compulsiva. Uma parte não negligenciável reside igualmente no “Puxe-me”. No senso próprio, a fórmula vale como apelo à ajuda diante da água que subia e da excitação. Mas antes mesmo, a explicação que a paciente dá disso, o estilo, descobre nisso outros valores. A ausência de complemento, por exemplo. Uma vez que assim como ele é empregado, o imperativo parece encurtar. Não é “Puxe-me daqui”. Este “Puxe-me” faz desfraldar o valor do enunciado. Na sua carta, o pedido de proteção inscreve um apelo sexual. Apelo endereçado por uma mulher a uma outra mulher (que eu posso ser na transferência e que pode igualmente estar destinado a me mascarar como homem). Complicado ainda pelo fato de que esta ordem é exigência de passividade (o texto da paciente é “Puxe-me” e não “Deixe-me te puxar”). A que é conveniente juntar que esse “Puxe-me” pode também ser o reverso de um “Puxe-me” endereçado raivosamente a Mário, o amante desaparecido. É evidentemente essa condensação do linguajar que as associações da sessão vem desenvolver.

Eu volto no presente, ao acontecimento contratransferencial do final da sessão quando depois de ter dito “Bem”, eu proponho à Ada terminar a frase que ela começou.

Pode ser que eu tenha estado muito seduzido. Pode ser que eu não tenha me resolvido a acabar sobre uma fala cortada. Todavia, se voltarmos um pouco atrás na sessão, o incidente se esclarece ainda de outra maneira: um pouco antes, Ada, com efeito, detonou um movimento regressivo que lhe permitiu evocar sua avó. Mas a maneira com que o fez é singular. Uma vez que a essa personagem maternal, a esse objeto suficientemente bom, ela parece não ter nem um acesso direto: para fazê-la viver, deve emprestar à fala de outro, à saga familiar (“Esta avó, diziam que ela me amava, quando eu tinha dois anos”). Ela não pode evocá-la diretamente. E quando retoma, sobrepõe-se à sua fala o meu “Bem” de fechamento. Se me desdigo e lhe proponho prosseguir, é porque eu tenho a esperança de que uma nova formulação vai lhe permitir se apropriar plenamente da lembrança dessa personagem essencial emancipando-a das falas dos outros. Mas como o inferno terapêutico é cheio de boas intenções, em resposta à minha contra-ação seu discurso se condensa de novo. Certo, ela pode retomar desta vez a lembrança da avó por sua conta, porém quando diz: “Esta avó, eu a amava, mas eu não me lembro”, Ada significa ao mesmo tempo “Essa avó, ela me amava, mas eu não me lembro dela” e “Esta avó, ela me amava, mas eu não me lembro de que ela me amava”. A ambigüidade do enunciado sublinha que qualquer coisa que eu pudesse ter, Ada não está apta para assegurar a evocação de seu objeto de amor sobre uma fala dela. Ou bem ela passa pela fala dos outros, ou bem a dúvida invade sua formulação e a anula. Em outros termos, ela mostra que ela não pode falar de uma avó que ela amava e se imaginar contando os lutos das crianças por esta avó. Para chegar a falar de seus lutos ela deve se apoiar sobre a realidade de minha escuta.Ela não tem à disposição a escuta interior de uma avó. É lá que eu leio o efeito de seu contorno do luto do alucinatório na sua própria fala. Pelo fato de não ter enfrentado este luto, para evocar um objeto metafórico da introjeção de uma escuta suficientemente boa, ela é forçada a se remeter à fala de outro ou se apoiar constantemente num discurso endereçado ao objeto externo. A delegação do alucinatório da escuta do outro, engendra um endereçamento interminável, uma vez que para encontrar seus objetos, Ada deve se apoiar numa fala efetivamente endereçada ao analista. Os lutos não feitos, barram o acesso ao alucinatório do monólogo interior da auto-análise.

 

Concluir?

Finalmente, como se faz que o talking do tratamento venha a derrotar a repetição? Esta é a minha questão. “Como” querendo dizer ao mesmo tempo: “Qual representação podemos ter disso que se passou entre os dois protagonistas?” Que: “Em que condições pode se passar alguma coisa?”. A resposta, mais evidente, é seguramente que a experiência de troca analítica vivifique a ligação entre palavra e pulsão, fazendo com que o sujeito aceite somente pagar as palavras que podem converter as moções pulsionais de seu id em representações inconscientes do seu ego.

Seguramente, nós temos freqüentemente trabalhado com pacientes cuja linguagem não dispõe de início desta virtude. O que eles dizem parece vazio ou às vezes, ao contrário, pesado por representações que esmagam o discurso sob o peso de uma pulsão imobilizada. O agir e a inquietante estranheza fazem efração a todo instante. O discurso pouco se organiza.

Algumas patologias extremas, como a do autismo, sublinham o que advêm quando a sensação e a emoção se evadem assim como as formas civilizadas que a troca deveria impor-lhes: mesmo, quando a linguagem existe, a imagem verbal motriz prevalece. Ela não é desprovida de efeito sublimatório, mas permanece impotente para abrir o ciclo da repetição.

No entanto, no final do tratamento, freqüentemente, alguma coisa muda. Na qualidade do investimento pulsional, na natureza dos conteúdos inconscientes – e na fala também.

O efeito singular do talking. Um retorno ao caso de Anna O. permitiu sublinhar a parte que volta ao corpo e à sensação. Quando o intersubjetivo chega a apoiar o intrapsíquico o papel civilizador do objeto pode se inscrever no processo, a palavra compulsiva do paciente engendra no analista uma sensação que ele restitui sob a forma de afeto partilhado (C. Parat).

Lentamente, este compartilhar de afeto abre o horizonte da representação. O investimento da linguagem se organiza, e o sujeito restabelece (ou descobre) o prazer da metáfora – a qual se calca, desde a infância da linguagem, justamente sobre o afeto.

No tratamento, portanto, a análise diz alguma coisa de uma palavra do paciente e ele manifesta assim que ele a reteve. No mesmo instante, o paciente se dá conta que, mesmo emocionado (e mesmo tocado pelo analista), ele permanece não investido por este último como sujeito capaz de fazer ligações. Tal é a meu ver, o resultado do co-pensamento (Daniel Widlocher, Serge Lebovici), do co-investimento das representações e dos processos.

Mas esse impulso é crucialmente de natureza co-locutiva. Trata-se de um dispositivo de fala específico. É no meu sentido, a condição essencial de toda squiggle. Resultado disso um prazer novo para investir e para desinvestir as representações sucessivamente convocadas pelos movimentos da fala de cada um dos protagonistas.

Todavia, vem um tempo onde é preciso também renunciar a este jogo a dois. O nostálgico se recusa a isso. Um certo desencantamento o conduz a duvidar de ser ouvido a não ser por si mesmo. Como se ele temesse que seu monólogo interior caísse nos ouvidos de um surdo.

No entanto, a força da linguagem só pode ser plenamente revestida, se o sujeito resolve tornar-se seu próprio público.

Então, se o discurso permanece endereçado intimamente, o luto da escuta do outro, se abre para o prazer de uma auto-análise interminável.

Tradução: Edna Maria Romano Wallbach
Colaboração: Sionéa Alves Cardoso de Souza

 

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Endereço para correspondência
Laurent Danon-Boileau
Paris – France

Recebido: 26/03/2007
Aceito: 28/03/2007

 

 

* Este texto refere-se ao segundo relatório do 67º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), cujo tema foi “A cura pela palavra”, realizado em maio de 2007, em Paris. O primeiro relatório foi “A escuta da palavra”, de Dominique Clerc, da APF, publicado na ide 44. O CPLF, organizado pela Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e pela Associação Psicanalítica da França (APF), acontece anualmente há 67 anos. Há dois anos, Luís Carlos Menezes, atual presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, tornou possível, por meio de sua ligação com os colegas franceses, oficializar a participação brasileira no CPLF. Esse congresso concentra a discussão de sua temática em torno de dois textos, considerados disparadores de reflexão, denominados “relatórios”, escritos por dois renomados psicanalistas de cada uma das instituições organizadoras. Tais relatórios são exaustivamente debatidos de antemão pelos grupos de estudos de diferentes países, entre eles agora o Brasil, ligados ao CPFL, os quais elaboram um texto-comentário que é publicado previamente ao Congresso.
** Psicanalista pela Sociedade Psicanalítica de Paris (APF).
1 Parole foi sempre, neste texto, traduzido por “fala”. [N. T.]
2 As representações inconscientes do ego não têm, todavia, o teor daquelas que povoavam o inconsciente da primeira tópica. A existência das moções pulsionais (das quais elas se distinguem) muda sua qualidade. O que o termo designa neste momento é muito mais deformável e flexível do que as representações inconscientes da primeira tópica. O valor da representação inconsciente reside essencialmente em seu efeito econômico sobre a pulsão, à qual propõe lugares de investimento permitindo retardá-la ao alongar o caminho que conduz à descarga motora. Era já assim para Freud. É isso que mostra a passagem do termo “representação de coisa” ao termo “representações inconscientes” que encontramos nos textos posteriores a 1920, no plural.
3 Vendo as coisas desta maneira, podemos dizer que pode haver aí representações de palavras sem representações de coisas correspondentes, o que com certeza não é tão evidente. E é tão menos evidente, que seria preciso, apesar de tudo, estabelecer a diferença entre a ausência de representações de coisas num borderline que fala sem dificuldade e a ausência de representações de coisas numa criança que não fala e não dispõe de nenhuma comunicação através de mímica. A menos, é óbvio, que tudo parta de um mal-entendido em torno da noção de representação, mal-entendido que a leitura de Meinong (filósofo longamente estudado por Freud) pode em parte permitir que se evite. Se seguirmos Meinong, com efeito, a representação será vista como um ato, um movimento, um processo, não um conteúdo (tendo sido deformado). Passaríamos então do efeito da linguagem como revelador de um conteúdo de representação (antes de 1920) ao efeito da linguagem como processo complexo de colocar em representação (após 1920). Há sem dúvida um pouco disso, mas não mais do que isso.
4 Todas as proposições relativas a esta camada primitiva do inconsciente não são evidentemente intercambiáveis. O que difere entre um autor e outro pode estar relacionado a três orientações: o peso que ele atribui ao objeto externo real (geralmente, a mãe); a maneira pela qual estabelece, dentro desse traço, aquilo que vem à memória sobre a força e o sentido do acontecido; e, enfim, a incidência dessa primeira camada sobre a organização da capacidade do sujeito e sua relação com o corpo (seria uma camada como as demais ou um envelope que permite a inscrição de conteúdos ulteriores, ou, ainda, uma matriz para as formas que estão por vir, determinando o campo de sua invariância e de suas variações?). É sobre o primeiro eixo que encontraremos as proposições de Winnicott e as de Roussillon sobre a transicionalidade. Com o segundo, quanto mais nos aproximamos de uma memória da força, mais esse entendimento se torna identificável ao id da segunda tópica, e mais nos aproximamos da teorização de Green. Enfim, quanto mais nos aproximamos de uma memória do tipo matriz (e mais valorizamos o vínculo com o corpo), mais nos acercamos da problemática desenvolvida por Anzieu e por certos autores ligados à clínica do autismo.
5 Aliás, não é certo que o que chamamos de representação de coisa seja efetivamente o que Freud assim nomeou (notadamente em O inconsciente). Ao menos, em certos textos, a representação de coisa parece ser um estado energético do traço mnêmico, ativado pela pulsão, mais que um conteúdo de memória em si.
6 Aqui podem evidentemente se inscrever as análises propostas por J.-L Donnet e C. Bouchard sobre diferentes modos do agir da fala.
7 Parece-me que o que causa a impressão de inquietante estranheza não é o caráter brumoso do que é sentido pelo analisando, não mais, aliás, que um elo particular do conteúdo do material que ele propõe à questão da castração como tal. É a falência do processo de colocação em representação no paciente que solicita ao analista o recurso da colocação em jogo de sua própria neurose infantil e leva então duplamente à questão da castração: por um lado por identificação com o paciente que não consegue figurar e de outro em razão do fato de que o paciente solicita o recalcado, portanto, a colocação em jogo do que é familiar no desejo e do que é estranho no recalcado.
8 Desta regressão, como sabemos, existem ao menos duas versões. A primeira, derivada de uma leitura caricatural de Winnicott, consistiria em levar o paciente a regredir para lhe oferecer um holding e um handing reparadores, preencher falhas arcaicas e restaurar nele um arcabouço que lhe permita navegar sem se afogar, reparando sua memória sem lembrança para fazer surgir representações organizadas segundo a sexualidade infantil e o princípio do prazer; o ponto de apoio disso seria o contato e a empatia. É a regressão, versão tola e sentimental. É evidente que na França ela não tem boa reputação. Contudo, quanto mais nos distanciamos desta Caribde, maior é o risco de nos machucarmos sobre a Cila, de um tratamento intelectualizado e desafetado. Quanto à segunda, ela conduz o analista trabalhando sua passividade e sua regressão formal, a se colocar em ressonância com o que vem do paciente, tudo o que vem do paciente. É dessa que tratamos aqui.
9 Num trabalho estritamente lingüístico feito em colaboração com A. Morel.
10 É muito verdadeiro que a partir de oito meses, uma criança não pode pronunciar senão aquilo que ela ouve. Apesar de que por volta de três meses (quando as zonas de Broca e de Wernicke estão ainda separadas) a criança produz todos os sons, de todas as línguas (ela explora suas capacidades fonatórias) por volta de 7 – 8 meses, em contra partida, quando o arco áudio-fonatório (perceptivo-motor) se instalou, a criança não pode pronunciar mais que os fonemas que a fazemos escutar dentro da sua língua materna. A percepção do sujeito, forma sua produção. Isto lembra, aliás, uma outra hipótese de Freud formulada no Projeto a propósito do “julgamento primário”. Ela coloca a existência de um trabalho da consciência face ao mundo, preliminar ao julgamento. Ela permite ao sujeito perceber os movimentos e os atributos de uma coisa que ele observa reproduzindo por mimetismo seus movimentos (ativando, portanto, um processo motor) e depois, captando a partir deste movimento dados suscetíveis de fazer nascer informações qualitativas.
11 Como é freqüente para um mito, à medida que avançamos na história de suas fontes, sua origem recua a ponto de finalmente se perder. Neste caso, Lacan cita Jones, o qual se refere a Darwin. Mas a observação do começo não figura nas obras publicadas pelo naturalista. Jones a toma de um texto alemão (Der Sprache des kindes) onde o autor, um psicólogo chamado Meumem, também não tinha tido acesso ao escrito original: ele se baseava na obra de um francês, Romanes. É Romanes, finalmente que teve o texto em primeira mão. Mas trata-se de notas extraídas de uma troca epistolar com Darwin, e a correspondência neste tempo ficou inédita. Talvez ela esteja conservada na Boldleian Library.
12 Notamos que nos separamos aqui da tese clássica uma vez que é ao contrário, a compulsão à repetição e a necessidade de controlar que Freud coloca na origem do jogo: o “fort/da” que não é um jogo que a criança pratica por prazer ou para se divertir. É um jogo que lhe serve para controlar o desagrado causado pela partida de sua mãe, constituindo-se a partir daí em realizador da cena.
13 Eu não penso que a interpretação de Lacan seja forçada. Eu creio, entretanto, que ela não é a única. E talvez, nem a mais generosa.
14 Em Teoria e prática da psicanálise, edição 1925, revista em 69, eu sublinhei os elementos importantes a meu ver, que não figuram na citação de Lacan.
15 J. C. Rolland propõe o modelo da interpretação analógica. Ele repousa sobre a aproximação de duas expressões que a fala do paciente manteve distantes. Eu penso que este dispositivo teria podido produzir aqui efeitos remarcáveis.
16 Há Há um elo evidente, como veremos, com a ação da fala no sentido que o entende Jean Luc Donnet. Mas por ora, eu vou deixar de lado a perspectiva que ele adota, para me situar acima. Acima – formulação contestável apesar de tudo – quer dizer que eu vou visualizar as coisas na criança e não no adulto, e nas patologias do tipo autístico, mais que no registro da patologia psicótica, borderline, ou neurótica.
17 Às vezes, contudo, ela se desembaraça da injunção. Mas como eu mostrarei, é para identificar o pronunciamento da palavra, a reatualização da situação da qual essa palavra fazia parte originalmente.
18 A proposição teórica implícita é que só pode recorrer ao princípio do prazer quando a pára-excitação é suficientemente bem estabelecida, e que ao contrário, quando o trauma a corta, há a descarga compulsiva da excitação sem variação possível nas figuras representativas e nos cenários motores emprestados
19 É assim que está traduzido no desenho animado brasileiro. [N. T].
20 Estamos próximos do registro da equação simbólica. No exemplo de Hanna Segal, o gesto do punho que dirige o arco sobre as cordas do violino, atualizava para o paciente o ato de masturbação, sem simbolizar. Aqui, os movimentos da boca que produzem o “E aí, velhinho?” reatualizam a cena do desenho animado, ele não a significa. Atualizando um fragmento do conjunto, o resto “segue”, forçado pela contigüidade que solidariza entre eles, todos os elementos da situação inicial.
21 Lembramos igualmente desse ponto dos prolongamentos esclarecedores de Michel Ody.
22 Situamo-nos no lugar exato onde os elementos beta se orientam em direção a uma “alfasização”.
23Aqui, evidentemente, atingimos às descobertas recentes, concernentes aos neurônios espelhos. Ainda mais que estes aqui, se acham nos macacos numa zona do córtex que no homem corresponde à zona da Broca.
24 Este último desenvolvimento não fará de maneira nenhuma que eu tenha sido exaustivo. Simplesmente, como diz Aristóteles: “Há uma necessidade de pararmos aí”.
25 Eu agradeço à D. Chadzinsky por me ter autorizado a fazer uso deste fragmento de seu trabalho clínico.
26 A memória por contigüidade (o inconsciente originário) não faria diferença entre o que está no interior do espaço somatopsíquico e o que está no mundo. Para que a memória por analogia possa surgir (os traços, portanto, que fazem nascer as representações inconscientes) seria necessário a colocação no lugar de um funcionamento perceptivo mais evoluído que, como aquele da visão central, faria a diferença entre o espaço somato-psíquico e o mundo. A metáfora autística manifestaria uma espécie de indiferenciação entre os dois tipos de memória.
27 Se voltarmos à questão da visão da criança autista, podemos pensar que um certo número de perturbações observáveis nela, podem derivar de um superinvestimento da visão periférica, em detrimento da visão central, (ou, em todo caso de uma dissociação das duas, com prevalência da visão periférica). Assim, sabemos que em visão periférica, não há efeito binocular. Não há, portanto, mais relevo, o que corrobora a idéia de que uma criança autista se desloca num mundo bi-dimensional. Aliás, sempre por falta de visão binocular, não há também mais a possibilidade de notar a distância das coisas em relação ao corpo do sujeito. O suporte visual da diferença entre o dentro e o fora, desaparece, uma vez que o que causa, por um lado, esta diferença, é a possibilidade de diferenciar o lugar que as coisas ocupam em relação ao olhar que as observa. Sabemos igualmente quanto a emoção e o tônus das crianças autistas é lábil e paradoxal Podemos pensar que contrariamente à criança comum, sua regulação se faz pouco ou mal e que todo fluxo escolhido na visão periférica altera brutalmente e imediatamente o equilíbrio tônico-emocional do sujeito. Enfim, o fato de que, tantas crianças deste registro parecem olhar “com o canto dos olhos” vai igualmente nesta direção, tudo como aliás, o fato de que elas tendem, às vezes, a organizar unicamente uma visão central, colando seu olhar no olhar do adulto (trata-se de evitar uma associação difícil entre visão central e visão periférica).
28 Para se tornar portador de um pensamento, seria preciso que alguém lhe dissesse, por exemplo: “Ah, você abre a boca, você gostaria de abrir a caixa e você não consegue. Espere...”
29 História comum na França, conta que várias cabras do M. Seguin fugiam para a montanha, em busca de liberdade. A ultima, apesar de todos os esforços do M. Seguin para retê-la e de todos os avisos, também fugiu e preferiu a liberdade. Mas estando livre na montanha, ela sofreu todas as angústias e o medo do perigo iminente da chegada do lobo e da própria morte. [N. T]
30 Roger Perron insistiu sobre este ponto com argumentos convincentes.
31 “A lingüística na França, problemas e métodos”, Jornal de Psicologia, 1937.
32 Nessa divisão, a sensação torna-se afeto e pode então se vincular com a representação.
33 É isso que permite escolher cada um de seus valores, tais como, presente da atualidade, presente histórico ou presente da verdade geral.