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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM II

 

Aquém e além da linguagem: o que observa o observador psicanalítico da relação mãe-bebê?

 

Before and beyond the language: what does the psychoanalytic observer of mother and baby relationship observe?

 

 

Leda Beolchi Spessoto*

Sociedade Brasileira de Psicanálise São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho me atenho às reverberações na mente da observadora/analista do que foi vivenciado em dado momento do processo de observação de bebê e proponho a idéia de experiência compartilhada nesta atividade, ainda que de forma assimétrica, e características distintas das sessões de psicanálise, procurando me valer de teorias sobre a mente humana que contemplam ambas situações. Um trecho da observação é apresentado em que a música foi a possibilidade de expressar e ampliar a reverberação da experiência vivida, pondo em foco outros recursos além dos verbais no trabalho do psicanalista e destacando o papel da observação de bebês na estimulação de aspectos sensíveis do psicanalista.

Palavras-chave: Função-alfa, Linguagem musical, Observação de bebê, Rêverie.


ABSTRACT

In this paper the author focus on the mind of the psychoanalytic observer trying to see the reverberation of the experience of baby observation at certain moment and proposes the idea of shared experience at this activity, even though in an asymmetric way and different of psychoanalytic sessions, looking for theories that include both situations. It is showed a part of an observation where the music was the possibility to express and amplify the reverberation of the emotional experience, focusing other resources beyond verbal language during the work of the psychoanalyst and emphasizing the importance of baby observation to stimulate sensitive aspects in the professional.

Keywords: Alpha-function, Musical language, Baby observation, Rêverie.


 

 

Ao findar minha observação de bebê, inúmeros aspectos desta experiência me pareceram instigantes para desenvolver um trabalho, porém era necessária a escolha de um ponto de partida e assim me decidi por tecer algumas considerações sobre o que observei em mim durante a função que exerci neste período. Vou me ater a reverberações na mente da observadora/analista do que foi vivenciado em dado momento e proponho a idéia de experiência compartilhada nesta atividade, ainda que de forma assimétrica e uma compreensão psicanalítica embora as características sejam distintas do atendimento de pacientes em sessões de psicanálise. Parto da perspectiva de que sou uma observadora observada pelas outras pessoas da cena e por mim mesma e que faço parte ativamente da cena, recebendo e transmitindo impressões sensoriais e impactos emocionais, ainda que me abstendo (se possível) de verbalizações, interpretativas ou não.

 

O que (acho que) observo?

Foi Esther Bick quem estabeleceu o método de observação de bebês na Clínica Tavistock em 1964, cuja aplicação se mantém até hoje e no qual se baseia este trabalho.

Era convicção de Bick que aprender a se tornar um bom observador ajuda a se tornar um bom psicanalista. Ela acreditava que ao longo de um ano de observação cada observador aprenderia como um bebê se desenvolve e se tornaria mais interessado na complexidade do seu desenvolvimento. Ela notou que este interesse crescente do observador reforça o próprio interesse da mãe no seu bebê e a encoraja a valorizar sua própria capacidade para entendê-lo e cuidar de suas necessidades. Similarmente, Bick também acreditava que o analista, observando o paciente, aprende como ele chegou a este ponto em sua vida. Parecia a ela que o analista que podia sustentar um prezado interesse na complexidade deste desenvolvimento individual, reforçava no analisando os aspectos mais saudáveis e maduros de sua personalidade e a inclinação a valorizar sua própria capacidade de compreender suas experiências e usá-las para suas necessidades (Mitrani, 1996, p. 2) (tradução livre da autora).

Após minha experiência com o método Esther Bick, proponho incluir, com mais ênfase, a observação do próprio observador e da interação deste com o observado, ainda que a própria Bick já reconhecesse desdobramentos desta experiência transformando a postura da mãe e do psicanalista exercendo suas funções.

Reconheço que esta postulação traz implicações na abordagem teórica e clínica para um psicanalista, o que pode ser motivo para divergências, mas também estímulo para discussão. Cito o trecho abaixo de reunião na SBPSP:

O que (acho que) observo?
Este problema psicanalítico pode ser formulado com alcance amplo: o que (achamos que) observamos quando vivemos uma experiência psicanalítica? Os estados mentais do analisando? Aquilo que ganha corpo na relação analítica, construído solidariamente pelas duas mentes envolvidas? Os próprios (do analista) estados mentais? Boa parte das diferenças no pensamento psicanalítico estão ancoradas nesta escolha (Braga, 2007, p. 3).

Espero fornecer mais subsídios para minha proposta com a apresentação de material oriundo da observação por mim realizada.

 

Alguns fragmentos da experiência

Um ditado popular diz que “falar é prata e calar é ouro”. Lembrei-me dele muitas vezes durante minhas observações, pois era o meu silêncio que parecia propiciar uma imersão mais profunda no clima emocional, sem saídas evasivas ou não, propiciadas pelas palavras. A linguagem verbal foi sentida alternadamente como uma riqueza que pode expandir nossa mente, nosso pensamento ou como um obstáculo à maior sensibilidade aos outros canais de comunicação. A bebê me atingia emocionalmente com seus recursos não verbais para expressão e comunicação; da mesma forma as palavras eram apenas uma parte do contato que acontecia com todos (mãe, pai, avó, babá, empregadas etc). Escolhi alguns fragmentos da minha experiência para explorar aqui, no afã de afinar os instrumentos de trabalho, de considerar tanto a busca da palavra mais precisa, colocada do modo mais oportuno, mesmo neste trabalho que tento agora produzir, como também dar a mesma atenção para outras possibilidades de contato e compreensão.

É provável que a maior ajuda que um psicanalista possa obter, não a receba do seu analista, ou de seu supervisor, ou do seu professor, ou dos livros que pode ler, mas do seu paciente... Eis porque é tão importante que nós sejamos capazes de ouvir, ver, cheirar, até mesmo sentir emocionalmente, que informação o paciente está tentando fazer chegar até nós... O que estamos observando e o que devemos fazer com as nossas observações? Lembro que certa vez me perguntaram: “O senhor faz algo mais além de falar?”, e eu respondi: “Sim, fico calado”. ...em análise eu amo estar em condições de permanecer calado. É muito difícil fazê-lo, como bem sabemos, porque sobre nós é exercida uma pressão para que digamos ou façamos algo (Bion, 1983, p. 9) (tradução livre da autora).

 

A observação

Mãe e criança não se relacionam entre si até que ambas façam alguma coisa à experiência – ou seja, elas a vivem juntas, não simplesmente ao mesmo tempo, mas enquanto experimentam e respondem, uma à outra, aos atos separados de estarem vivas vivendo a experiência (Ogden, 2002, p. 749, comentando Winnicott).

Observei em visitas semanais de uma hora de duração, desde a semana de seu nascimento, a bebê que neste fragmento apresentado a seguir estava com seis meses e vinte e seis dias de idade. As referências que se seguem são da 25ª observação. Neste dia, logo após a minha chegada, eu acompanhara o despertar forçado da menina que dormia profundamente em seu berço, porque já passara da hora de comer, segundo a babá. Assim que me viu a bebê chorou muito, o que a babá tentou impedir pondo-lhe uma chupeta na boca que foi imediatamente cuspida, dizendo-lhe: “Você não vai começar, vai?” Enquanto olhava para a babá ela permanecia calada e com o rosto sério, mas quando me olhou novamente voltou a chorar. Apesar de choro ser o que expressava, senti certo alívio ao supor que era uma demonstração mais livre do que sentia. O restante do tempo foi ocupado pelo silêncio das pessoas e o som da TV da sala que a babá assistia sentada no sofá sem dividir seu olhar com a bebê, enquanto a alimentava com pequenas colheradas de papinha. A bebê, sentada em uma pequena cadeirinha e de costas para o aparelho de televisão, estava bastante restringida nos movimentos que tentava fazer pelo modo muito apertado como lhe foi posto o cinto de segurança. Procurei me sentar de frente para bebê, que era o meu foco de observação e lhe oferecer meu olhar e minha atenção. Isto contribuía para amenizar um desconforto meu com o tipo de cuidado que lhe era oferecido, onde alimentar parecia ser um ato mecanizado e com objetivos de manutenção da saúde do ponto de vista biológico, mas sem uma correspondente oferta de afeto e sensibilidade. A bebê por sua vez vagueava o seu próprio olhar em direção às estampas do encosto da sua cadeira procurando pegá-las com a mão, ou em direção à babá. Algumas vezes tentou tocar com a ponta de seus pés a perna da babá, que se afastava quando percebia. Em outro momento dirigiu sua própria mão à boca, o que a babá rapidamente impediu que ocorresse. Olha para mim, olha para babá (que olha para TV) e novamente olha para mim e sorri. Retribuo-lhe o sorriso e ela segue sorrindo mais um pouco e depois vira o rosto. Assim, esboçava sorrisos que eu correspondia e gradativamente estes foram aumentando sua freqüência e intensidade, ainda que sempre “discretos”. A bebê não emitiu outro som além do choro inicial, mas seu sorriso silencioso me animava e ao mesmo tempo me remetia a uma sensação de falta de expressão plena, ficava em mim a idéia de algo contido naquele silêncio. O meu próprio silêncio era difícil de ser tolerado, tinha vontade de falar e brincar com ela. Em seguida observo que a bebê busca alcançar e segurar a mão da babá que a retira rapidamente. Depois procura segurar a ponta da fralda que funciona como babador. Nos momentos em que ela parecia procurar algo a que segurar (ou se segurar?) e este recurso não era alcançado, lembrava-me de referenciais teóricos de vários autores apontando a importância de elementos propiciadores de integração para o bebê e isto me angustiava, ainda que me confortasse a idéia de que ela trazia a esperança de obter estes objetos. Não havia interação através de sons, o olhar da babá era esquivo, parecia restar o contato físico, tátil. O meu olhar era o que estava disponível1. Quando termina a alimentação, a babá diz: “terminou, vamos?” dirigindo-se a mim e encaminhando-se para o quarto com a bebê. Tudo é feito em silêncio. Ao começar a troca da fralda, a bebê deitada no trocador começa a sorrir olhando para mim e para a babá. Segura seu pé e o leva à boca. Ao mesmo tempo procura segurar a manga da blusa da babá que ao perceber a retira. Mantém-se então sorrindo sem dirigir o olhar para ninguém e ao mesmo tempo sua respiração se acelera, arfando2. Cresce em mim uma impressão mais de desconexão emocional e excitação do que de alegria na bebê e uma sensação física minha de vazio junto com um sentimento de tristeza. Parece que faço a contraparte mental numa dupla com a bebê “desmentalizada” naquele momento. Nesta hora, enquanto ainda completa a limpeza das bochechas e do nariz, a babá me pergunta se sou evangélica e lhe digo que não, também lhe perguntando por que imaginou que eu fosse e ela diz não saber, que foi só uma idéia que veio à sua cabeça. Pensei que talvez ela estivesse construindo nesse flash de idéia, uma referência à minha missão ali na observação e lamentei que ela não trouxesse outros desdobramentos. De qualquer forma eu registrei como a idéia de uma missão pesada, abnegada, mas na qual havia uma crença. Por um instante me animou a possibilidade de um contato mental com ela, ainda que tão fugidio. Neste momento, a empregada da casa que também é uma moça bem novinha como a babá, chega até a porta do quarto para avisar que já está indo embora, ao que a babá responde séria: “Está bem!”. A babá me parece a dona da casa, muito ríspida e não numa relação de mesmo nível com a outra funcionária. Em seguida me ponho a imaginar como pode ser difícil para ela ficar sozinha com a bebê até a chegada da mãe à noite, pois ainda estamos no meio da tarde. Estranho que a outra empregada nem sequer se despeça da bebê. Depois que termina a higiene dela, voltamos para a sala, onde é recolocada na cadeirinha na mesma posição inicial, e a babá novamente se volta para a TV. Às vezes o olhar da bebê cruza com o meu e um sorriso aparece entre nós. A hora de observação estava terminando e pensei que não seria fácil transcrevê-la: silenciosa, sem sons e palavras ao vivo, apenas do aparelho de TV, mas cheia de emoções que eu registrava. Quando saí, a babá me acompanhou até a porta e ainda no hall do elevador ouvi o som dela fechando rapidamente a porta atrás de mim e girando a chave duas vezes, o que produziu em mim a idéia de que ela ficava aliviada sem a minha presença.

 

A música

Assim que saí do elevador uma música intensa irrompeu em mim. Olhei o jardim do prédio e percebi que chovia. Eu estava sem guarda-chuva e aguardei um pouco a chuva diminuir. Enquanto isso, as notas do tema da música brotavam na minha cabeça espontaneamente, mas se eu modificava meu estado mental para maior concentração e racionalidade, isso me atrapalhava, pois parecia que tudo fluía com uma autonomia onírica. Aos poucos reconheci o tema inicial do primeiro movimento do concerto n°1 para piano e orquestra de Tchaikovsky que tocara há mais de trinta anos. Fui me surpreendendo com o solfejar das notas, com a visualização da partitura e a sensação das minhas mãos executando os movimentos ao piano. Foram horas para a música sair completamente de mim. Quando cheguei em casa, tentei encontrar a minha partitura, mas não consegui. Fui ao piano e procurei reconstituir as notas que eram solfejadas na minha cabeça, pois algo me parecia estranho e então percebi que naquele solfejo tocante (ou cantante) que surgira em mim havia a alteração de uma seqüência, que se apresentava com intervalo menor do que o da melodia de Tchaikovsky. Esta descoberta me acalmou um pouco, mas uma inquietude ainda me perturbava e parecia ser a música a expressão possível desse estado mental naquele momento. Aos poucos, novos elementos foram se agregando ao meu pensamento e à medida que ganhavam sentido também ganhavam o poder de amenizar a música que tocava incessantemente em mim. Uma constatação surgiu ao redigir minha observação: por duas semanas o processo fora interrompido, primeiro porque a família viajara para o batizado da bebê em outro estado e depois porque eu também precisara viajar de forma imprevista por problemas de doença na família. Nesse instante pensei no intervalo musical que eu reduzira no meu solfejo, aproximando as notas que no original tinham um intervalo maior. Tais conexões me remeteram a outras e me levaram a lamentar minha ausência na observação por duas semanas (intervalo maior que o esperado pela proposta original), pois me parecia ser eu um contato emocional para a bebê, que ficava muito entregue à babá. Esta pouco interagia afetivamente com ela.

 

Acrescentando considerações

Lembrei-me de ter ouvido no rádio naquela semana comentários sobre Tchaikovsky. Ele teria muita dificuldade para se expressar em palavras, o que tentara algumas vezes, buscando expressar seus sentimentos de sofrimento e solidão em alguns textos e depois desistira de assim fazer, deixando, entretanto, esses registros emocionais como marcas intensas em muitas de suas músicas. Também comentaram de sua morte por cólera, considerando-a um verdadeiro suicídio, pois ele tomou água não fervida mesmo sabendo do risco de contrair a doença. Percebi que uma dimensão mais trágica me invadia, apesar de ter considerado que a bebê estava reagindo dentro do que lhe era possível, e tive até certo alívio com esse pensamento. Surgiu a idéia de cólera como sentimento colérico e de efeito mortífero quando se ingere alimento assim contaminado por germe ou emoção. Nova conexão com minhas memórias, com um tom dramático: eu tocara aquela música no último concerto em que me apresentei publicamente e depois disso também silenciei meu piano, certas formas sensíveis de expressão, e me dediquei à medicina, em que o ser humano é visto principalmente em seus aspectos biológicos e muitas vezes negligenciado em outras abordagens. Percebi que os cuidados físicos dirigidos à bebê, porém distantes de uma aproximação afetiva, provocavam em mim um sofrimento que aos poucos fui traduzindo de diversas maneiras. O silêncio e a impossibilidade de verbalização de ambas as partes aguçava outras formas de expressão e surgia em mim a reflexão, a necessidade de distinguir o que são hipóteses minhas sem que necessariamente traduzam a verdade para aquela pequena criatura. Aprendi a aguardar para poder em algum momento aglutinar observações e construir nova hipótese, mesmo sabendo que talvez a desconstrua ou substitua em breve. Desenvolvi muito a observação de construções oníricas que surgiam para mim a partir das situações ali vividas. A bebê não falava e, portanto, seus gestos por mim traduzidos de uma ou outra forma colocam o risco de me perder se me trancar em uma suposta verdade, mas ao mesmo tempo me estimulam a ser sensível às suas demandas demonstradas por diversos modos. Ao vê-la ser despertada para se alimentar, sua tentativa de continuar dormindo, seu pranto quando seu olhar encontrou o meu, poderia ter várias versões, mas segui o que minha emoção apontou na hora. Em outros momentos seu olhar também encontrou o meu, seu sorriso também encontrou o meu quando estava sendo mecanicamente alimentada por alguém que não lhe dirigia o olhar, mas ficava fixada na tela da TV. Aqui apresentei minhas apreensões ou transformações para essas circunstâncias.

 

Transitando com outros autores

Não voeja em redor mistério intraduzível,
Que às vezes é visível e outras invisível?
Enche o teu coração, tanto quanto puderes,
E quando te sentires fartar e em beatitude,
Dá-lhe o nome melhor, aquele que quiseres:
Felicidade! Amor! Divindade! Virtude!
Eu não dou nome algum,
Não encontro nenhum.
Assim! O sentimento é tudo para mim
O nome é apenas som, esvai-se em seus vapores,
A encobrir-nos do olhar o céu com seus fulgores!
(Goethe, 1976, p. 180).

Goethe, acima citado, assim como outros representantes do romantismo, que tanto contribuíram para a psicanálise nascente, preocupou-se em resgatar e valorizar os sentimentos que posteriormente tiveram sua relevância reduzida por outros movimentos que despontaram. Proponho aqui um certo paralelo ao considerar o possível engajamento da observação de bebês no cenário atual com a estimulação de aspectos sensíveis do psicanalista imbuído nesta tarefa.

O sujeito contemporâneo está já preenchido por palavras e teorias de todos os tipos... Evidente, porém, é a carência de sincronismos, de pertença, de aconchego e de sossego. Daí a importância de se reservar espaço para o transicional e para o transformacional. Para o indefinido e indefinível. Para o mistério e acima de tudo para o reverencial. A Psicanálise tem condições excepcionais para isso e deve se dedicar mais à pesquisa das interações não verbais e não pensáveis assim como nas redes de apoio para a vida abstrata e virtual que delas resultam (Rossi, 2007, p. 12).

Vários psicanalistas têm se aproximado com diferentes teorizações dos fenômenos expressivos que parecem surgir da interação emocional, ainda que não verbal.

Este trabalho não tem o intuito de fazer uma revisão mais ampla sobre o tema e estou ciente de que, ao citar apenas alguns autores e suas idéias, muitos outros também interessantes serão omitidos nesta escrita, permanecendo como possibilidade que sejam posteriormente percorridos.

Bion nos fala de função alfa e do seu papel de transformar uma experiência emocional em elemento-alfa, o que me parece um modo possível de compreender a reverberação musical e posterior esforço de transportá-la para uma outra chave de compreensão realizado pela observadora:

Porque um sentido da realidade importa ao indivíduo do mesmo modo que importa a comida, a bebida, o ar... O fracasso em comer, em beber ou em respirar corretamente tem conseqüências desastrosas para a vida. O fracasso em usar a experiência emocional produz um desastre comparável no desenvolvimento da personalidade (Bion, 1991, p. 42) (tradução livre da autora).

Em trabalhos recentemente apresentados em reuniões científicas da SBPSP, João Carlos e Franklin Leopoldo e Silva tecem considerações que gostaria de retomar, como aproximações à minha experiência aqui relatada.

Comentando sobre uma paciente citada no trabalho de Cícero J. C. Brasiliano, que trocou a fala pela execução de uma música, Franklin diz: “na vivência intuitiva de sua identificação com a música, é como se ali sua subjetividade estivesse em ato e não representada em palavras, como se uma arte sem palavras pudesse expressar o que queria dizer o seu silêncio” (Silva, 2007, p. 6).

Ainda pensando na tentativa de desenvolver uma compreensão para minha experiência emocional na observação, trago outras citações:

não aponto a impossibilidade de observar, de representar e de comunicar, de forma confiável, científica, estados mentais vividos por outra pessoa. Aponto que o que torna isto possível é, em primeiro lugar, a tolerância aos estados mentais experimentados pelo analista ao compartilhar uma experiência emocional com outra pessoa, e, em segundo lugar, a possibilidade de ideogramatizar sua representação, respeitando a polissemia e a plurivalência da experiência (Braga, 2007, p. 3).

Embora os conceitos de transferência e contratransferência não tenham sido por mim utilizados neste trabalho, gostaria de apontar aqui a valorização dos registros emocionais provocados no psicanalista e seu possível uso como ferramenta até mesmo em avaliações de crianças autistas, como propõe Susan Reid:

O observador psicanalítico está interessado não apenas em comportamentos, mas em monitorar os estados de mente que os acompanham e que são evocados nos outros. As mudanças de estado de mente do observador (contratransferência) podem ser usadas para guiar as ações responsivas do próprio observador e então para notar a resposta da criança à sua resposta. Interesse em descobrir a natureza qualitativa de um certo comportamento requer o uso da linguagem emotiva. A linguagem emotiva é usada em todo processo de anotação porque nós acreditamos que ela dê um registro mais acurado do nosso contato com um paciente (Reid, 1999, p. 3). (Tradução livre da autora).

A mesma autora cita Paula Heiman, Brenman Pick e B. Joseph como psicanalistas que desenvolveram muitas idéias sobre o uso da contratransferência e explica a importância deste recurso no trabalho com crianças que não verbalizam.

Nesta observação a música foi uma possibilidade que se apresentou para que eu conseguisse expressar e ampliar a compreensão do que vivera, não de modo friamente racional, mas profundamente tocada emocionalmente. Todas as associações minhas que se seguiram, percebi que se multiplicam cada vez que me detenho a examinar o vivenciado remetendo a uma rede que se não infinita, muito extensa. Porém, o registro emocional mais forte ainda ecoa junto com o som da música, como se esta fosse o germe potencial para muitas versões, mas mantendo seu poder de onde emana sempre a emoção viva. Nenhum substantivo surge definitivamente para nomear o vivido, mas vêm os adjetivos, como nos movimentos musicais: allegro maestoso, allegro ma non troppo... Lembro que Beethoven não vivia em silêncio na sua surdez, porque dentro dele o mundo encontrava uma expressão musical, parte da qual ele nos ofereceu com suas obras. Às vezes no silêncio das palavras ou na melodia das mesmas, outros sons podemos registrar com ouvidos de psicanalistas.

A minha pesquisa com autores que não tratavam diretamente do tema de observação de bebês, mas da mente humana, me interessou pela perspectiva de usar os mesmos referenciais que são oriundos da clínica psicanalítica.

Por se tratar da observação do primeiro ano de vida, portanto sem verbalizações do bebê, proponho considerar (tanto para criança como para o adulto) os recursos além ou aquém da fala que organizam nossa existência desde seus primórdios e cito aqui o personagem Fausto lendo um trecho do Novo Testamento:

Está grafado aqui: “No princípio era o Verbo!
” Esbarro! Quem me ajuda no caminho acerbo?
É impossível estimar tão alto o Verbo assim!
Preciso de outra forma traduzir! Para mim,
Iluminado do Espírito e com a sua assistência,
Pode entender-se assim: “No início a Inteligência!”
Reflete bem agora o que essa frase expressa,
Para que o teu escrever não corra tão depressa!
A Inteligência só, tudo cria e reforça?
Devia estar escrito: “Ao princípio era a Força!
” Enquanto lanço agora essa última linha,
Algo me inspira além e para mim caminha.
O Espírito me ajuda! E diviso um clarão.
Escrevo confiante: “Ao princípio era a Ação!”
(Goethe, 1976, p. 64).

Sugiro acrescentar que também anterior às palavras são as sensações, as percepções por todos os nossos órgãos dos sentidos. Da mesma forma que junto ao bebê podemos com ele construir significados para as experiências vividas e então nomeá-las, o mesmo pode ser útil ao observador psicanalista, que tocado de tantas formas, também pode fazer sua busca de significados e reconhecimento de emoções vividas, compartilhadas ou não, assim como das emoções nem sempre identificadas pelas palavras. Este exercício me parece sempre interessante quando acompanhamos alguém, como psicanalistas, seja num divã ou fora dele. O nascimento e desenvolvimento de uma mente, da capacidade de pensar e sonhar é um processo que não se restringe ao primeiro ano de vida e é com esta crença como referência que compartilhamos experiências e podemos acompanhar nossos pacientes na expansão e retração de seus recursos mentais.

 

Referências

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Silva, F. L. (2007, junho). O trabalho da intuição. Comentário ao trabalho Instantâneo(s) decisivo(s), de Cícero José Campos Brasiliano. Trabalho apresentado Reunião Científica, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.        [ Links ]

Tustin, F. (1990). Barreiras autistas em pacientes neuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Leda Beolchi Spessoto
Rua Dr. Cardoso de Melo, 1470/411 – Vila Olímpia
04548-005 – São Paulo – SP
E-mail: ledabspe@hotmail.com

Recebido: 28/08/2007
Aceito: 05/09/2007

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise São Paulo.
1 “É importante que o bebê muito jovem seja ajudado a suportar o stress destes momentos de consciência diferenciada de sua separação física da mãe através do estabelecimento de ligações mentais com ela... Para compensar a ameaça do ‘buraco’ de sua ausência, haverá memórias – táteis, olfativas, auditivas e visuais – de experiências íntimas com ela. Essas impedem que sua ausência se torne um ‘buraco negro’ repleto de pânico, raiva e desespero inexprimíveis... No mundo da criança autista, apenas o que é palpável e manipulável parecerá real, As modalidades de longa distância de visão e som serão oprimidas pela predominância de sensações táteis... Seu mundo é relativamente destituído de espaço, porque as brechas ameaçadoras são fechadas pela adesão às superfícies” (Tustin, 1990, pp. 120-121).
2 “J. Symington descreveu uma manobra protetora de apertar ou contrair os músculos lisos de certos órgãos internos, promovendo uma sensação ilusória de uma pele contínua (sem espaços pelos quais o self teria risco de se espalhar no espaço e nunca mais ser encontrado e envolvido seguramente... Eu acredito que se experiências de uma natureza sensorial são deixadas sem processamento por um objeto pensante e sensível, significados simbólicos falham em evoluir dos rudimentos da experiência existencial inerente à contigüidade sensória e rítmica e que estas não transformadas e não mentalizadas experiências se tornam enrijecidas e hipertrofiadas como proteções fortificadas contra a consciência daqueles primitivos estados de experiência de terror relacionados à separação corporal e emocional”(Mitrani, 1996, pp. 16-26) (tradução livre da autora).