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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM II

 

Sobre o uso da linguagem na psicanálise

 

Concerning the use of language in psychoanalysis

 

 

Osmyr Faria Gabbi Jr.*

Departamento de Filosofia da Unicamp

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Como a psicanálise é uma pesquisa empírica, ela exige um princípio para concretizar a experiência psicanalítica. A noção de que todo ato psíquico é uma realização de desejo foi adotada por Freud como princípio constitutivo e não como regulador. Como conseqüência, ele formulou uma metafísica do desejo e concebeu a linguagem como um meio para indicar desejos. Argumentamos que seria mais produtivo adotar o mesmo princípio como regulador e conceber a linguagem como ato de fala.

Palavras-chave: Atos de fala, Princípio constitutivo e regulador, Psicanálise e linguagem, S. Freud.


ABSTRACT

As an empirical research, psychoanalysis demands a principle to instantiate the psychoanalytic experience. The notion that every psychic act
is a fulfillment of a wish was adopted by Freud as a constitutive, but not as a regulative principle. As a result, he formulated a metaphysic of desire and he conceived language as a mean to indicate wishes.We argue that it is more sound to adopt the same principle as regulative and to conceive language as a speech act.

Keywords: Speech acts, Constitutive and regulative principle, Psychoanalysis and language, S. Freud.


 

 

Caso entendamos que, na chamada ciência da natureza, a possibilidade da apreensão matemática de seu objeto permite a constituição a priori de um campo de investigação, podemos nos interrogar, como se teria de proceder no caso da psicanálise, cujos princípios são totalmente empíricos, para unificar e constituir algo como sendo a própria experiência psicanalítica, para além da saída fácil de apontar para a própria análise. Pois, o que desejamos estudar é a determinação teórica dessa experiência, visto que uma prática sem teoria é sempre produto do arbítrio e da contingência. Uma forma de pensar um princípio de unificação é recordar que este tem de ter apenas uma função reguladora, e que ele mesmo, embora permita pensar a priori um campo de investigação, não pode determinar nada na natureza. Neste sentido, poderíamos supor que o campo psicanalítico esteja organizado pelo princípio de que todo ato psíquico visa a realização de desejos. Porém, diferente do que ocorre com Freud, não procuraríamos formular uma teoria do desejo. Em outras palavras, o princípio do desejo funcionaria como princípio regulador para nós e não como sendo ele mesmo um objeto a ser investigado.

O principal problema que surge quando se tenta construir uma concepção sobre o desejo, ou seja, quando se dá um sentido constitutivo ao princípio, é criar uma metafísica do desejo; metafísica na medida em que, como ocorre em Totem e tabu, Freud mistura considerações de natureza empírica com princípios, a priori, conceituais. Um dos seus efeitos danosos consiste na transformação de todas as produções psíquicas do sujeito numa mesma coisa, isto é, tudo o que ele diz é entendido automaticamente como produção desiderativa que se estuda como resultado de processos inconscientes, e não como produto de uma subjetividade. No entanto, o mais grave está na criação de uma concepção de linguagem que reduz esta a uma mera função indicativa, assinaladora, de supostos desejos envolvidos, pois Freud, para poder formular uma teoria do desejo, pressupõe que a relação entre pensamento e linguagem seja uma relação de tradução. Em Interpretação dos sonhos, ele expressa a tese de que os pensamentos do sonho, uma vez interpretados, leia-se traduzidos, revelam que estes são realizações de desejos. Assim, o pensamento do sonho e a linguagem são concebidos como realidades distintas. Sua relação seria de que a linguagem – realidade externa – permitiria apreender o sentido do pensamento – realidade interna. Este modelo supõe que a realidade interna – a realidade psíquica – possa ser descrita pela linguagem e que não haveria, portanto, uma diferença essencial entre elas; ou, para usar um outro tipo de consideração, que os enunciados em primeira pessoa, descritores da realidade interna, poderiam ser adequadamente traduzidos em enunciados em terceira pessoa, descritores da realidade externa.

Uma das dificuldades de assimilar o interno ao externo decorre de que a linguagem que se refere a objetos externos não parece ser adequada para tratar de objetos internos. Em primeiro lugar, porque estes têm sua existência dependente do agente em que se manifestam. Não se pode pensar a cólera de Aquiles sem Aquiles, mas seu famoso escudo continua a existir mesmo depois de sua morte. No seu cerimonial fúnebre, foram divididos seus objetos, mas não suas emoções, sentimentos, etc. A não ser que se assimilem os objetos físicos a objetos mentais, tem de se admitir que os últimos, diferente dos primeiros, são logicamente dependentes do agente. Em segundo lugar, a descrição de objetos físicos está sujeita à retificação pública. Não há como imaginar uma situação em que se diga “Estou sentindo X” e alguém diga, “Não, você está sentindo Y”. Ora, não atentar para as diferenças assinaladas, parece acarretar a tese de que seria da natureza do interno ser oculta; não apenas oculta, mas, por certo, muito misteriosa. O mistério parece residir na própria possibilidade de se poder aprender a nomear o interno. Se este só está presente para o próprio agente, como se poderia estabelecer a relação entre nome, que é público, e sensação, que é privada? Como se poderia usar um nome para descrever uma sensação? Na tentativa de respondê-las, Freud parece considerar que seria possível estabelecer uma identidade entre analisar significado e analisar processos internos; o que equivale a defender a existência de processos psíquicos inconscientes devidos à repressão, ou seja, a defender que a natureza oculta do psíquico seria justificada pela natureza de certas idéias presentes no aparelho psíquico. Uma das conseqüências de tal “descoberta” consiste justamente em retirar o caráter privilegiado da primeira pessoa em relação aos seus estados internos. Em outras palavras, estaria justificada a tese de que o neurótico padece de um mal que o torna incapaz de identificar corretamente seus estados internos. Ele acredita que sente X, mas na realidade sentiria Y; por exemplo, como na primeira tópica, todo desprazer do neurótico seria um prazer que não pode ser reconhecido como tal.

Para Freud, desfeito o trabalho do sonho, haveria uma perfeita continuidade entre os estados de vigília e de sono. Porém, seria próprio da narrativa do sonho substituir “ligações profundas”, as da vigília e presentes nas pessoas normais, por “ligações superficiais”, as do estado onírico e presentes nos neuróticos. Sua conseqüência seria gerar algo estranho, misterioso. Na relação entre o aspecto figurativo do sonho e o relato algo se passaria que seria responsável pela estranheza e explicado em função da distinção entre ligação profunda e ligação superficial. Para explicitá-la, consideremos a noção de definição ostensiva, ou seja, a crença de que figuras e a utilização de palavras em situações cotidianas de fala são as fontes gêmeas da significação verbal. Crer que haja um elemento visual na origem do significado equivale a crer que o significado seja algo a ser mostrado, indicado, ou seja, que ele tenha uma natureza extralingüística. Nessa direção, definir um termo de forma ostensiva é repetir a expressão junto com alguma forma de assinalamento de um objeto ou fenômeno. No entanto, tal concepção não nos leva muito longe, pois pressupõe o aprendizado de regras, ou seja, o controle por outra pessoa.

Na teoria de Freud, a situação originária, em que o desejo seria constituído, é registrada no aparelho psíquico como circuito ideativo. Sua noção complexa e inconsciente – a de objeto propriamente dito – seria organizada pelo elemento visual, uma imagem; sua noção complexa préconsciente, pelo elemento acústico, a palavra. Portanto, a palavra teria sentido na medida em que se refere a algo externo a ela, não imediatamente, mas mediante sua ligação inicial com a imagem visual. Explicando de outro modo: não haveria uma ligação direta entre palavra e mundo; a palavra faria referência ao mundo na medida em que fosse parte do circuito instaurado pelo desejo. Portanto, a fala, dependendo das relações presentes entre imagem e palavra, percorreria, para Freud, um contínuo desde a fala esquizofrênica – ligada diretamente ao mundo sem a mediação da imagem visual, na verdade, a palavra tomaria o lugar da imagem visual – até a fala científica, na qual a palavra estaria fora do domínio do desejo. Nesta direção, Freud, quando se refere ao material psíquico do sonho, menciona que encontramos regularmente uma vivência impressionante e indica que não raro ela remonta à infância mais remota, na qual predominaria o conteúdo visual, sendo este entendido como o núcleo de cristalização para a formação onírica (Freud, 1999, Vol. 2/3, p. 672).

Essas considerações supõem que a imagem visual seja produto de uma definição ostensiva privada. Caso contrário, ela não poderia denotar o objeto de desejo. Se definições ostensivas já são problemáticas em contexto público, uma vez que nunca se pode estar certo do aspecto que está sendo apontado, parecem ser ainda mais em contexto privado, dado que não haveria aqui ninguém para efetuar a correção.

Para mostrar o uso denotativo da linguagem, produzido pelas tentativas de Freud de dar um sentido constitutivo ao princípio do desejo, consideremos a seguinte análise onírica: uma analisanda deseja dar um jantar, todavia na casa há apenas um pedaço de salmão defumado. Dado o contexto, sente-se que talvez a palavra salmão não seja a palavra correta, que seu uso seja inadequado. Tal sentimento de inadequação é usado por Freud para generalizar para o domínio do interno a definição ostensiva externa, ou seja, ele pressupõe que, por meio desse sentimento de inadequação, seria possível detectar casos semelhantes em que a denotação interna ocorreu de forma inapropriada. Mas quando se usa, por exemplo, a expressão ‘está chovendo canivetes’, parece difícil acreditar que uma expressão assim aponte para objetos, ou seja, que ela possa ter realmente um sentido literal. Ora, Freud acredita que as palavras na sua origem tiveram efetivamente um sentido literal. Tese que equivale a pensar que efetivamente sentimos os pingos da chuva como ‘pontadas de um canivete’. Em Estudos sobre histeria, ele não deixa qualquer dúvida sobre a sua crença: “Sim, talvez seja incorreto dizer que ela (a histérica) trabalha tais sensações por meio de simbolização; ela talvez não tenha tomado a expressão lingüística como seu protótipo, mas o retire, junto com a expressão verbal, de uma fonte comum” (Freud, 1999, Vol. 1, p. 251). Quando Cecília, a paciente de Breuer e Freud, tem dor de cabeça devido a um “olhar perfurante”, ela tomaria a expressão verbal não no seu sentido metafórico, como nós fazemos, porém no sentido literal, dado que “aquilo que hoje está conectado de forma simbólica provavelmente esteve unido em tempos primitivos por identidades conceituais e lingüísticas” (Freud, 1999,Vol.2/3,p.357).Dito de outro modo,as diferentes linguagens naturais, na sua origem, designavam sensações corporais; mas, com o passar do tempo, as expressões lingüísticas, pouco a pouco, tornaram-se metafóricas, ou seja, foram aplicadas a objetos externos. Por conseguinte, as expressões em primeira pessoa seriam descritoras de sensações internas que, com o passar do tempo, adquiriram um sentido metafórico.

Este pretenso retorno a um tempo remoto da linguagem, em que o interno seria falado antes do externo, tornase mais evidente quando se lê o comentário de Freud em Interpretação dos sonhos, colocado em nota de rodapé: “as palavras primevas em seu conjunto denotam coisas sexuais e então perderam esse significado sexual, na medida em que o transferiram para outras coisas e atividades que foram comparadas com as sexuais” (Freud, 1999, Vol. 2/3, p. 357); ou seja, as palavras presentes no sonho retomariam a sua função originária de nomear literalmente a sensação sexual, considerada como sendo a única sensação passível de ser simbolizada. Teria existido, portanto, uma linguagem primitiva, na qual a palavra efetivamente era definida de forma ostensiva e privada; mais tarde, por meio de um processo de transformação do literal em metafórico, criou-se um novo vínculo entre palavras e objetos, mais precisamente, entre palavras e objetos sexuais. A linguagem teria evoluído, mas, entretanto, conservado sua única função: denotar o sexual. Resumindo, as palavras usadas para descrever sensações sexuais foram transformadas em metáforas, nas quais a denotação sexual se tornou progressivamente oculta, estranha e misteriosa.

Assim, o desejo no sonho por X denota, em última análise, o desejo que forma o sonho, o desejo pelo falo. Nesta concepção do sonho, há pelo menos duas teorias. Uma sobre o significado que supõe uma relação de equivalência, de polissemia, presente na noção de condensação e que aponta para uma relação interna à linguagem. A outra indica uma relação de exterioridade, sendo uma teoria da inferência que supõe que se possa dizer que alguma coisa estaria no lugar de outra, ou seja, que alguma coisa ocuparia a posição de objeto de desejo. Ela está presente na noção de deslocamento e resulta na concepção de imagem que estamos estudando. Aliás, ela é uma conseqüência direta da metafísica do desejo de Freud. Por seu intermédio, podemos entender a Interpretação dos sonhos como um tratado sobre o vínculo entre imagem e palavra, descrito da perspectiva da imagem. Para precisar ainda mais sua natureza, examinemos um fragmento de um outro sonho famoso de Freud: “Escrevi uma monografia sobre uma espécie de planta (indeterminada). O livro está na minha frente, e no momento folheio uma lâmina colorida dobrada. Um espécime seco da planta está ligado ao modelo” (Freud, Vol. 2/3, pp. 287-288). A série de equivalências está dada pelos termos: botânico, Gartner (jardineiro), blühend (florescente), Flora, Blumen (flores). A teoria da inferência permite concluir que a representação figurativa e intensa de uma monografia botânica realiza “simbolicamente” a fusão de todos os elementos que expressam o desejo de Freud de ser o falo para a sua mãe.

Mas esta concepção de imagem não está presente em Freud apenas nas obras iniciais. Por exemplo, em O inconsciente (1915),encontramos:“Na esquizofrenia,as palavras estão submetidas ao mesmo processo que produz as imagens do sonho desde os pensamentos latentes do sonho – que chamamos de processo psíquico primário” (Freud, 1999, Vol. 10, pp. 297). Dizendo de outro modo, tanto no sonho como na esquizofrenia, as noções de palavras seriam tratadas como noções de coisas, como se fossem imagens. Tratamento que permite que uma metáfora seja tomada de forma literal.

Ao denotar, os signos lingüísticos atribuem realidade ao pensar. Essa possibilidade atributiva funda-se na capacidade do ser humano de imitar fonemas produzidos na ação específica pelo outro. A memória da palavra dita pelo adulto na situação de auxílio da criança – por poder ser mais tarde repetida, ou seja, compreendida pela consciência –, confere realidade ao ocorrido, pois possibilita ter consciência de sua existência e permite a correção por parte do outro, dado que a palavra, como delegada da imagem, retira a imagem do esquecimento, do domínio interno, e a torna pública.

Esta interpretação do sentido indicativo, tanto da imagem como da palavra, é confirmada por referências feitas ao modelo exposto em Interpretação dos sonhos:

O sistema pré-consciente, para esse objetivo, precisou de qualidades próprias que pudessem atrair a consciência, e as obteve com altíssima probabilidade por meio da ligação dos processos pré-conscientes com o sistema dos signos da fala, que não é despido de qualidade recordativa. Mediante as qualidades desse sistema, a consciência que até então era apenas um órgão dos sentidos para as percepções, também se torna um órgão dos sentidos para uma parte de nosso pensamento. Agora há, por assim dizer, duas superfícies sensoriais, uma dirigida para as percepções e uma outra que se volta para os processos pré-conscientes do pensar (Freud, 1999, Vol. 2/3, p. 580).

Portanto, a possibilidade de remeter a algo externo está ligada à existência de duas consciências distintas – uma perceptiva e instantânea e uma outra recordativa e temporal – que não se formariam na mesma época.A defasagem no tempo entre elas seria uma das razões do ser humano ser incapaz de apreender de imediato o sentido de suas próprias vivências.

Em Formulações sobre os dois princípios do suceder psíquico (1911) repete-se a mesma tese: “Provavelmente o pensar foi originariamente inconsciente, na medida em que se elevava acima de um puro idear e voltava-se para as relações entre as impressões de objeto, e só obteve qualidades perceptíveis para a consciência pela ligação com restos de palavras” (Freud, 1999, Vol. 8, p. 233). Por conseguinte, dado que as impressões de objeto organizam-se em torno da imagem visual, a consciência do pensar ocorre pela vinculação entre imagem visual e restos de palavras, ou seja, por meio dos restos de palavras ouvidas. Resta ainda mostrar como tais restos conferem realidade ao pensar.

Em O inconsciente (1915), lemos:

O sistema inconsciente contém as ocupações de coisa dos objetos, as primeiras e as reais ocupações de objeto; o sistema pré-consciente origina-se na medida em que essa noção de coisa é intensamente ocupada pela ligação com as noções de palavra que lhe correspondem. (...) Podemos também agora precisar o que a repressão nas neuroses de transferência recusa à idéia repelida: a tradução em palavras que deve permanecer ligada ao objeto (Freud, Vol. 10, p. 300).

Logo, o pensamento que não pode ser dito consiste de relações entre noções de coisas que estão impedidas de serem delegadas pela palavra. Como entre as noções de coisa estão necessariamente noções de palavras ouvidas, podemos concluir que, na neurose, as palavras ouvidas estão impedidas de se tornar palavras ditas, elas se comportam como se fossem puras imagens e por essa razão impedem que o passado seja entendido como passado; para o neurótico, o passado é um eterno presente que se repete.

A passagem da palavra ouvida para a palavra dita, ou seja, para a palavra como tal, confere realidade ao pensar porque a palavra dita retoma o diálogo com o outro, conforme indicação de O eu e o isso (1923): “Os restos de palavra originam-se essencialmente de percepções acústicas, de modo que, por assim dizer, é dado ao sistema pré-consciente uma origem sensória especial... A palavra é, entretanto, o resto mnemônico real da palavra ouvida” (Freud, 1999, Vol. 13, pp. 248). Por conseguinte, o círculo percorrido pela palavra – palavra do outro, palavra ouvida, palavra para o outro – transformaria o registro esquecido em memória passível de ser corrigida pelo outro.

Retornamos, por esta rapidíssima incursão pela concepção de palavra e imagem nas obras de Freud entre 1895 e 1923, ao ponto de partida: o resto de palavra, fundamental para tornar o pensamento consciente, seria dado pela palavra do outro, pela palavra ouvida. O não falsear do pensar ancora-se na palavra que o outro usa durante a ação que realiza para o desamparado, descrita por Freud como ação específica. Neste percurso fica explícito que a consciência é concebida como um órgão sensorial e que a imagem, seja visual ou acústica, é tratada como coisa que afeta a consciência.

No interior da tentativa de justificar o uso constitutivo do princípio do desejo, Freud entende o sintoma como uma má referência a uma sensação sexual, cujos tipos de sensação são remetidos à teoria das fases da libido. A investigação clínica volta-se para descobrir os mecanismos que a levaram a ser representada assim; de modo que se torna necessário, do ponto de vista metapsicológico, encontrar algo exterior à linguagem e que sirva de referência última para o sintoma. Caso o analista adote esta concepção, estará surdo para as produções de seu analisando. Caso a rejeite, promove um divórcio entre a metapsicologia e a prática clínica; o que o leva, mais cedo ou mais tarde, à “criação” de mais uma arte de analisar. No entanto, se cada praticante tiver sua forma própria de analisar, a noção de que haveria uma experiência psicanalítica específica estaria dada mais por fatores sociais que teóricos; isto é, no melhor dos casos possíveis, poder-se-ia dizer, a experiência psicanalítica é aquela produzida por analistas, desde que esses pertençam a tal escola.

Uma forma de usar o princípio de que todo ato psíquico visa a realização de desejos de forma reguladora, aliás, muito mais próxima daquilo que os analistas parecem fazer, é considerar que a sessão analítica estaria organizada pela noção de promessa e assinalar quais seriam as conseqüências de sua adoção sobre a concepção de linguagem na própria análise.

Para dar uma justificativa de que a noção de promessa não seria assim tão estranha à própria prática psicanalítica, recordemos algumas das condições estabelecidas quando da elaboração da regra fundamental. Freud acreditava que o novo método, para poder ocupar o lugar da hipnose, deveria atender a alguns requisitos. Por exemplo, preservar a essência do método catártico, isto é, levar o analisando a nomear o estado afetivo, a dar a palavra ao afeto. No lugar do reviver hipnótico, ele colocou a transferência, entendida como repetição simbólica das cenas de produção dos sintomas, isto é, das ocasiões em que o desejo aparecia. Ele chamou a dificuldade em obter a repetição de resistência, igualmente compreendida como repetição da cena originária. Como conseqüência, desaparece a distinção entre sintomas produzidos fora da análise e os que aparecem na análise, pois todos manifestam os mesmos distúrbios funcionais. A identidade teoricamente suposta entre as condições de produção dos sintomas e as condições impostas pela regra fundamental sugere que não seria absurdo supor que, entre tais condições, a promessa desempenhe um papel fundamental, uma vez que a promessa de tudo dizer pode ser entendida como repetição de promessas mais fundamentais e constitutivas da subjetividade do analisando.

Uma metapsicologia centrada na noção de promessa parece oferecer, de imediato, alguns ganhos teóricos não desprezíveis. Em primeiro lugar, torna impossível usar o termo ‘inconsciente’ como substantivo, ou seja, como lugar que abrigaria pulsões, emoções, desejos, etc. Como a noção de promessa não envolve referência a quaisquer processos, afinal prometer é apenas usar a linguagem como ato, como um fazer, não se precisa de uma teoria do desejo, apenas da idéia de que se deseja e que de que o desejo se manifesta no próprio ato de prometer; ou seja, não é necessário atribuir à linguagem uma função de indicação, de apontar para algo que não está presente.

Por outro lado, também evita retirar Freud da tradição empirista que lhe é própria para jogá-lo em uma outra que lhe é totalmente estranha, como seria o caso de Hegel ou Heidegger. Torna igualmente difícil trazer para a psicanálise considerações de ordem psicológica e pedagógica, tão caras a alguns analistas, em especial, os que valorizam lugares comuns sobre a estrutura familiar. No sentido de elaborar uma metapsicologia que efetivamente determine a experiência psicanalítica, a noção de promessa oferece a vantagem de dirigir a atenção do analista para as condições formais da constituição de promessas, como indicaremos a seguir, e não para os seus conteúdos específicos, evitando o falso dilema de saber se o analisando está mentindo ou não. Em suma, dirige os esforços do analista na direção de entender que as condições de determinação da subjetividade do analisando estão fora dele e não em algo interno, pois, prometer supõe, em princípio, uma relação entre agentes e não algo no seu interior.

As distintas formas de lidar com a promessa, ligadas às condições formais que ela apresenta, permitem apreender não apenas as diferentes patologias, a saber, perversão, neurose e psicose, como suas diferentes modalidades, sem cair na tentação de inventar considerações, de natureza biológica ou desenvolvimentista, inevitáveis, caso se persiga uma teoria do desejo, fundada nas fases da libido.

Recorrer ao livro de Austin (1962/1975) How to do things with words, como guia para tecer considerações sobre a promessa, não implica aplicar as idéias de Austin à psicanálise. Desde 1981, para apontar para uma referência escrita, assinalei no meu doutoramento que:

é evidente que se trata apenas de uma analogia. Pois se os “atos de fala”, além de serem governados por regras, são intencionais no sentido de que o sujeito ao proferi-los tem a “intenção de produzir certos efeitos sobre o ouvinte”, na teoria freudiana os conceitos de intenção, vontade, desejo passam a fazer parte de uma família onde está ausente o traço “ter consciência de” (Gabbi Jr., 1981, p. 212).

Entender a fala do analisando como promessa é abandonar a crença de que ela seja um relato e há boas razões para tanto. O analisando, ao falar, não descreve estados internos; caso contrário, a psicanálise envolveria algum tipo de introspecção, e a suposição de que o analista, por meio de alguma ‘intuição’, avaliaria e corrigiria essas descrições. Tampouco o analisando relata estados emotivos, ou seja, os relatos não são equivalentes a expressões de emoções. Tal crença esteve presente em Breuer; para ele, o objetivo do tratamento psíquico era propiciar a catarse de estados emotivos vividos em estado de hipnose. Em Freud, já em Projeto para uma psicologia científica, é da natureza do estado neurótico produzir efeitos a posteriori, ou seja, o sintoma decorre de tomar uma cena alucinada como sendo uma cena real e tal cena é usada como premissa para um silogismo prático, isto é, para a realização de uma ação. Finalmente, os relatos não são descrições de estados de coisas. O elemento sine qua non da análise é a relação de transferência e esta envolve um agir. Transferir significa agir em relação ao outro como se fosse uma outra pessoa. Para manter o exemplo do Projeto: Ema age em relação ao balconista que ri como se ele fosse o merceeiro da cena originária e por essa razão ela foge da loja.

É preciso recordar que a fala do analisando resulta de uma imposição do analista. Este diz: fale-me. A ordem parece ser um convite para um diálogo. Algo como diga alguma coisa para mim. O analisando geralmente o traduz como uma espécie de barganha: se eu disser algo para ele, ele revelará alguma coisa sobre mim. Sua inferência acarreta a falsa crença de que a análise decorreria na esfera do convencimento, no embate entre duas promessas, uma do analista, a outra, do analisando. O objeto do suposto convencimento, de parte do analisando, é irrelevante, mas sua forma aponta para o fato de que a sua fala pode ser descrita adequadamente como promessa, como performativo, como equivalendo a uma ação que visa produzir efeitos sobre o analista.

Dados esses parâmetros, a tática do analista parece ser simples. Recordando que a análise é sempre uma repetição, o analista não atende aos performativos do analisando, isto é, ele assinala para o analisando que a sua promessa de tudo dizer não está sendo mantida. Pode, por exemplo, como Freud, utilizar-se da teoria para interpretar as tentativas de convencimento do analisando de que ele está mantendo a promessa de tudo dizer; ou ainda, como Lacan, recorrer à ironia. Como resultado da tática de frustrar os atos de fala do analisando, aparecerão atos falhos, uma vez que a fala é sistematicamente falhada pela ausência de respostas do analista. O insucesso dos performativos favorece a regressão. A fala progressivamente tornará patente seu caráter de sintoma, embora seja impossível deter as tentativas de convencimento, pois não há como remover intenções inconscientes. No entanto, a produção de uma aparente falta de sentido passa a ter um caráter revelador para o analisando, na medida em que mostra, para ele, o embate entre seus desejos.

Para Freud, a busca do sentido é a busca pela referência, dada a suposição de que a função da linguagem seria apontar para algo. Assim, o sentido de uma proposição é entendido como o estado de coisas descrito por ela. Ora, na clínica da psicanálise não se pensa a fala do analisando em função daquilo que os signos representam; certamente se supõe que eles representem, mas o interesse volta-se para o seu uso na situação de análise.

Austin, na obra citada, procura investigar os casos em que as sentenças não têm a função de referir-se a algo. Para que haja um performativo é necessário que algo seja dito em determinadas circunstâncias. Se elas não existirem, não consideraremos o proferimento como falso, mas simplesmente como malogrado. Austin propõe nessa direção uma doutrina de infelicidades. Em relação à prática da análise, estamos interessados, a título de ilustração, em definir diferentes tipos de patologia, segundo a forma apresentada pelos proferimentos do analisando quando estes fracassam. Para tanto e meramente como sugestão a ser aprofundada, suponhamos uma tríade formada pelo agente (analisando), o outro (analista) e a promessa (a regra psicanalítica). Em função dos três termos, pode-se definir as diversas modalidades de patologia, não como objetos a serem estudados, mas como tipos de lidar com a promessa analítica. Assim, o estilo perverso implica não cumprir a promessa, ou seja, não reconhecê-la. O estilo histérico consiste na atribuição da promessa ao outro, foi o outro que prometeu, não ele. O estilo obsessivo recusa-se a aceitar a palavra do outro de que a promessa foi cumprida. O estilo paranóico caracteriza-se em tomar a promessa como uma imposição do outro. O estilo maníaco revela-se na crença de ser capaz de cumprir qualquer promessa, diferente do estilo depressivo que apresenta a crença de ser incapaz de cumprir qualquer promessa. Finalmente, o estilo esquizofrênico que não lida diretamente com a promessa, mas com a tentativa de construir o outro, antes de poder lidar diretamente com o cumprimento ou não da promessa.

Caso consideremos como condições da sessão analítica, analista, analisando, regra fundamental e sessão, teremos que somente no interior desse quadro a fala do analisando seria performativa. O silêncio, neste sentido, também seria uma ação. Iniciada a sessão, a fala do analisando tem de ser entendida como ação e não como descrição de estado de coisas. Uma segunda condição refere-se às pessoas e às circunstâncias particulares que, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento específico invocado. Notem que, quando transpomos as indicações de Austin, estamos em um contexto muito diferente, pois não queremos saber em que condições os proferimentos falham, pois já supomos que eles falhem. Estamos interessados em usar as indicações como elementos para elaborar as condições em que a fala do analisando tem de ser entendida como performativa. Uma terceira condição assinala que o procedimento tem de ser executado de modo correto por todos os participantes. Na análise, a condição de funcionamento estaria determinada pela modalidade de escuta do analista. Se ele toma a fala do analisando como descrição, ele não conseguirá fazer com que os performativos do analisando fracassem. O sucesso dos performativos deste é igual ao fracasso da análise. Caso o analista interprete o conteúdo do que é dito e não sua forma, ele também estará trabalhando para o fracasso da análise; pois atentar para o conteúdo do que é falado é manter a falácia descritiva.

A transgressão de qualquer uma das regras, na situação de análise, sua não observância, por parte do analista, das condições enunciadas, implicaria em malogro. Uma transgressão às duas condições iniciais determina a impossibilidade de considerar a fala do analisando como performativos. Seu fracasso constitui “desacertos” por parte do analista, em sentido semelhante ao usado por Lacan quando diz que a resistência na análise é a resistência do analista. Falhas da primeira condição consistem em não obedecer às condições que estabelecem a fala do analisando como produtora de performativos, ou seja, são falhas referentes à existência da sessão analítica. Falhas da segunda condição consistem em não ouvir os performativos qua performativos ou de não fazê-los fracassar, ou seja, são falhas na execução da análise. Portanto, não basta criar condições para sua produção, também é preciso ouvi-los e impedir seus efeitos, isto é, executar os procedimentos de forma correta.

Em suma, considerar o princípio do desejo como regulador é evitar a necessidade de construir uma metafísica do desejo e de pensar, portanto, a linguagem como tendo uma função descritiva e denotativa deste mesmo desejo. Como sugestão e de forma bastante rudimentar, argumentamos que considerar, como elemento articulador da análise, a noção de promessa é equivalente a criar condições para tornar a psicanálise concreta, transmissível, teoricamente mais defensável, e voltada efetivamente para as produções subjetivas do analisando.

 

Referências

Austin, J. L. (1975). How to do things with words. Great Britain: Oxford University Press. (Trabalho original publicado em 1962).         [ Links ]

Freud, S. (1999). Gesammelte Werke (Vols 1-18). Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag.        [ Links ]

Gabbi Jr., Osmyr F. (1981). Freud: Os materiais de construção. Tese de doutoramento, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Osmyr Faria Gabbi Jr.
Caixa Postal 59
13820-000 – Jaguariúna – SP
Tel.: 19 3867-4917
E-mail: osmyr@uol.com.br

Recebido: 26/03/2007
Aceito: 30/03/2007

 

 

* Professor assistente do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles: Notas a Projeto de uma psicologia, Imago, 2003; Filosofia da psicanálise, em conjunto com Bento Prado Jr. (Org.) e Luiz Roberto Monzani, Brasiliense, 1991.