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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007

 

DEBATE

 

É possível uma psicanálise da tecnologia ou uma tecnologia da psicanálise?

 

 

Yusaku Soussumi*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Sociedade Psicanalítica do Mato Grosso do Sul
Sociedade Internacional de Neuropsicanálise
Centro de Estudos e Investigação em Neuropsicanálise

Endereço para correspondência

 

 

Ao ser convidado pela colega Jassanan Amoroso Dias Pastore para debater e tecer comentários sobre a ide número 43 (2006) – cujo tema foi Biotecnologia – e sobre o seu subseqüente Debate, entre os autores e leitores, publicado na ide número 44 (2007), eu titubeei em aceitar tal tarefa diante da estatura intelectual dos colaboradores dessas publicações. Na realidade, sou um psicanalista que há trinta anos vem se ocupando de questões controvertidas e rejeitadas na psicanálise, começando pela não-aceitação da dicotomia mente/corpo, por sempre estar de alguma forma envolvido com o desenvolvimento da prática médica, por me interessar pela busca de uma integração dos fenômenos, objeto da psicanálise com os fenômenos, objeto da neurociência, sem reduzir uma ciência à outra. E atualmente, como uma expansão dos conhecimentos adquiridos nas investigações nessas áreas, o trabalho social de promoção humana, diretamente com as comunidades dominantes e carentes, com a aplicação dos métodos derivados da experiência psicanalítica e neuropsicanalítica, que parece não ser também um campo de preocupação dos colegas, ocupados com outras questões certamente mais relevantes no momento.

Por essa razão peço licença para discorrer sobre as idéias que surgem como meus pontos de vista sobre o tema e alguns pontos que surgem como associações à leitura que fiz dos textos da revista ide.

Na época em que cursava a terceira série do ginásio, então com treze ou catorze anos de idade, meu professor de Matemática, nas aulas de demonstração dos grandes teoremas geométricos, introduzia o assunto com a expressão: “Admitamos por absurdo que...”. Lembro-me especialmente de uma situação em que ele dizia: “Admitamos por absurdo que uma linha reta, em sua trajetória, possa passar por três pontos não alinhados seqüencialmente...”. Eu, que gostava de acompanhar na imaginação a progressão do raciocínio e das reflexões do mestre, me intrigava com a expressão “admitamos por absurdo...”. Eu me perguntava por que “por absurdo” e não simplesmente “admitamos a possibilidade de que uma linha reta possa passar por três pontos não alinhados seqüencialmente...”.

Um monge budista andarilho que nos visitava periodicamente, ao se fazer presente, se fazia mestre zen-budista. Ao indagar-lhe sobre a questão responde:

Na Antigüidade, os homens eram ingênuos e puros e não precisavam competir com Deus (Kami-Sama). Então, podiam ver tudo o que existia na natureza, no universo, e compreender tudo o que se passava dentro e fora de si. Como pertenciam ao todo, aceitavam tudo como natural, como natural era o todo de infinitas possibilidades, sem contradições, sem choques, sem exclusão disto ou daquilo. Um dia, o diabo (Ohni) insuflou a vaidade no homem, e daí surgiram a disputa, a cobiça, o apego, a arrogância. A humanidade mergulhou no inferno (Jigoku) e os homens deixaram de ser ingênuos e puros, porque ser ingênuo e puro passou a ser pejorativo, uma desonra. Os homens adquiriram a pretensão de que o que conheciam era o todo, e passaram a competir com Deus, achando que seriam capazes de construir um mundo para eles próprios, para cada um, melhor do que este mundo criado por Ele. A partir daí, o homem passou a se cultuar, acreditando e comportando-se como se aquilo que ele soubesse fosse a verdade absoluta, e aquilo que o outro sabia ou soubesse, se não coincidente com a sua verdade, fosse produto de uma idiotice, que só merecia desprezo.

O homem passou a não ter necessidade de ouvir o outro. Quando se digna a ouvir, ele o faz sem de fato ouvir, respondendo dentro de si com a sua verdade, sem atentar para o que o outro está dizendo. Os homens se juntaram em comunidades em que tinham acesso à verdade absoluta, e assim surgiram infinitas comunidades, cada qual cultuando uma verdade absoluta e única: a sua, a nossa. Passaram a viver um misto de incredulidade e ódio, sem entender por que os outros, aparentemente tão inteligentes, podiam ser idiotas a ponto de não verem e não compreenderem a única verdade, que está escancarada diante de todos: a minha, no máximo, a nossa verdade, a verdade do nosso grupo.

Vivendo a convicção de que está de posse da verdade absoluta – apesar de às vezes referir o contrário no próprio discurso – e de que esgotou o conhecimento do que existe para ser visto e conhecido, nessa condição de se sentir tão ou mais poderoso do que Deus, não passa na mente do homem a mais remota possibilidade de que possa desconhecer algo, de que o que percebe é uma grande ilusão (Maya). Na realidade, não passa pela consciência do homem a possibilidade de que ele viva uma grande ilusão, de que há, no universo, muito mais desconhecido do que conhecido, e de que o conhecimento referido pelos crédulos, pelos humildes, proveniente de fontes não-racionais, possa conter parcelas de verdade, possa constituir fenômenos naturais, aos quais não temos acesso pela consciência e pelos recursos de que ela dispõe, entre os quais os sentidos de que somos dotados. É por essa razão que inumeráveis fenômenos que ocorrem no universo, na natureza, e entre os homens, que os místicos e os religiosos não desprezam, conhecidos desde tempos imemoriais, permanecem interditados ao mundo dos cientistas. É muito comum ouvir-se o relato de pessoas respeitáveis sobre fenômenos que vivenciaram por anos, que não encontram nenhuma credibilidade nos chamados “homens da ciência”, “sábios” que nunca saíram de seus mundos que são os laboratórios, verdadeiras tocas em que se escondem como animais diante da ameaça externa. Tudo se passa como se fosse necessária a aprovação dos “homens da ciência” para validar o que alguns indivíduos, a duras penas, experimentaram ou experimentam na carne.

Aqui chegamos para entender a razão pela qual os professores, contaminados por esse espírito que lhes diz que só existe aquilo que seus sentidos captam como verdade, não tenham outra alternativa senão enunciar: “Admitamos por absurdo...” para o que de fato não é absurdo nem espantoso que possa existir.

Essas pessoas, quando alcançam algum conhecimento, não conseguem penetrar no nível mais profundo, porque ignoram que as verdades têm dimensões distintas; por isso, permanecem na superfície, que em geral é a dimensão do discurso, do conhecimento desenraizado, mecanicamente aprendido, sem se darem conta de que têm muito mais a aprender. O deslumbramento diante do que descobrem levamnas ao autodeslumbramento, à arrogância e à intolerância diante do saber do outro, fazendo-as perder de vista a nossa condição de eternos aprendizes, dado o caráter necessariamente dinâmico, transitório e aproximativo do conhecimento de uma realidade multidimensional e complexa.

Não raro, diante da grandeza de um mestre que eles sabem não poder alcançar, que envelheceu estabelecendo as bases para que os mais jovens ousem ampliálas e aprofundá-las, ou, a partir delas, criar o novo, esses indivíduos comprazem-se em apregoar a superação do conhecido, na tentativa de desqualificar e descartar, ainda que subliminarmente, as conquistas de seus antecessores. Na verdade, demonstram ignorar o fato de que os novos conhecimentos, quando de fato bem estabelecidos constroem-se sempre a partir de antigas bases, que permanecem, malgrado a evolução, sem as quais as descobertas mais recentes jamais existiriam.

Naquele longínquo momento eu não podia imaginar quanta sabedoria a respeito da realidade humana existia no que meu mestre me falava. Assistimos, não raro no reduto do culto do ego, a disputa entre os considerados notáveis para demonstrar sua maior erudição e grandiosidade. Ao arrogar-se o direito à titularidade do fragmento de conhecimento que domina, cada um pode aprofundar ainda mais a fragmentação e a cisão, buscando, pelo engolfamento, anular sumariamente o oponente, num delírio de grandeza que o faz enxergar aquele fragmento do conhecimento como o conhecimento da totalidade. Assim, o vencedor, à maneira de nossos índios antropófagos, se apossa do discurso do vencido, pois está convicto de que, por possuir o símbolo, possui a coisa e tudo o que a experiência do seu desvendamento implica, dispensando a experiência concreta do ato do conhecimento. A título de ilustração, ocorre-me a seguinte situação: é como aquele indivíduo que, por ter comprado no leilão da Sotheby’s o arco e as flechas de um famoso guerreiro do passado, se convence de que se transformou no próprio mestre arqueiro, embora nunca tenha empunhado um arco ou usado uma flecha, acreditando convictamente de que o que fala sobre a arte do arco e flecha é a mais pura expressão da verdade.

Anos mais tarde, em 1956, quando eu estava no último ano do colegial, foi lançado no Brasil o livro As portas da percepção, de Aldous Huxley. Eu achava fantástico que algumas drogas como o peyote, que eu sabia terem sido usadas por índios da América do Norte, bem como pelos próprios maias e incas nas cerimônias xamânicas, tivessem a propriedade de abrir as portas da percepção do experimentador, razão das percepções incríveis dos xamãs, principalmente. O relato de Huxley confirmava algumas idéias que eu aprendera desde cedo, em função de minha cultura oriental de origem, que enfatizava a condição extremamente limitada da consciência humana e de sua apreensão restrita e parcial da realidade, muito mais complexa do que a nossa percepção podia alcançar. Meus pais, meus primeiros mestres, dentre os quais aquele monge querido, meus mestres das lutas marciais, que embasavam seus ensinamentos em uma filosofia e uma sabedoria não só pensadas e refletidas, mas acima de tudo praticadas no cotidiano da vida, diante de minhas insistentes perguntas e busca do porque das coisas, sempre me advertiam: “Veja que a busca da causa e da explicação dos fenômenos coloca você num aprisionamento que paralisa. Procure observar e apreender o fenômeno, mesmo que não conheça a causa; entregue-se à vivência dele, porque saber a causa não acrescenta nada; às vezes, é desnecessário. Se você se entregar ao fenômeno com a mente livre, é provável que ele se mostre natural e espontaneamente, na sua simplicidade, porque sempre esteve ali o que você buscava, sem as vicissitudes do fato de ser criado na sua mente”. Muito tempo depois, descobri que o porquê verdadeiro e legítimo, que surge espontaneamente, quando se espera o tempo necessário para que ele apareça sem a intervenção do homem, é substancialmente diferente do porquê criado na mente, forjado pela necessidade.

Dois anos mais tarde, nas aulas do extraordinário professor Maurício Rocha e Silva, grande nome da Farmacologia Médica mundial, discutíamos o significado e a importância do relato de Huxley sobre o peyote, de cujo agente ativo, a mescalina, ele tinha sido um dos descobridores. Ao pesquisar a ação psicofarmacológica de substâncias como a reserpina, largamente utilizada nos casos de hipertensão arterial, com resultados até então nunca vistos, Rocha e Silva formulara a hipótese de que a propriedade hipotensora da reserpina se devia à sua ação em nível afetivo-emocional, diminuindo o estado de tensão dos pacientes hipertensos. Na busca de fármacos derivados ou da mesma família da reserpina, chegara-se à descoberta da serotonina, com resultados promissores, porque atuava de forma mais ampla sobre o sistema nervoso central. Na manipulação desses fármacos, alguns cientistas chegaram a isolar o ácido lisérgico ou LSD. As experimentações com essa droga provocaram grande alvoroço, porque ela havia se revelado um potente alucinógeno, como até então não se tivera notícia, já que bastavam alguns microgramas para provocar estados de alteração de consciência em pessoas mais sensíveis. Essa droga assemelhava-se na sua constituição à mescalina.

Foi no curso do professor Rocha e Silva que estudamos pela primeira vez o fenômeno da percepção e atentamos para os aspectos envolvidos no ato de perceber e para as questões epistemológicas envolvendo o conceito. Essa fundamentação era bastante necessária para que pudéssemos entender os desvios e as alterações provocadas pela droga nos seres humanos. Abriu-se, então, para mim, vasto campo de interesse e reflexão, que me permitiria, anos mais tarde, em Londres, participar de grupos de estudo com pesquisadores de diversas áreas e disciplinas em que se procurava investigar a verdadeira natureza dos efeitos provocados pelo LSD no homem. Discutia-se, então, se se tratava de uma alucinação provocada pela alteração do fenômeno da percepção, resultando em deformações as mais variadas, ou se se tratava, antes, de uma ampliação do espectro da percepção provocada pelo ácido, em que o indivíduo tinha, momentaneamente, percepções ampliadas de diferente natureza – visuais, auditivas, tácteis, gustativas, odoríficas, etc. –, que lhe permitiam penetrar em realidades situadas em outras dimensões, em outros níveis, que exigiam, para serem compreendidas, outras formas de abordagem e outra lógica, diferentes daquelas às quais estávamos acostumados no nosso nível comum de percepção.

Alguns cientistas de grande envergadura que participavam da experiência e dos debates salientavam o estado de aprisionamento em vivia o homem, condicionado por um tipo de pensamento, uma cultura e uma educação limitantes, a viver e a encaixar-se restritivamente num universo de terceira dimensão. Essa dimensão restrita da vida na qual o ser humano é imerso desde o momento em que nasce e para a qual se adapta mediante um processo de socialização e educação é responsável pelo estabelecimento das normas e das leis que regulam a vida em sociedade e acaba sendo a fonte das grandes mazelas humanas.

Baseando-se nessas considerações, que nasciam de observações controladas e experimentos científicos, os adeptos da contracultura construíam seus discursos e práticas. Na década de 1970, nos Estados Unidos, mais especificamente na Califórnia, e na Europa, em especial em Londres, fervilhavam idéias interessantes e práticas nascidas das experiências com o LSD e que tinham a virtude de questionar o que até então não se ousava discutir – o status de expressão acabada e irrefutável da verdade, atribuído às ciências e aos cientistas. Na esteira das denúncias que se seguiram, surgiram críticas procedentes sobre a postura arrogante da ciência e do humanismo vigente, eles próprios produtores de dogmas nem sempre justificáveis, que haviam substituído os dogmas obscurantistas que eles se propunham combater.

Pela primeira vez, o homem pôde acordar e compreender o significado do clamor de Goethe no seu leito de morte: “Mais luz!”. As luzes que o século das luzes tinha se proposto trazer para a humanidade se extinguiram no meio do caminho, apagadas pelo próprio obscurantismo que o homem traz nas profundezas de sua constituição, por se tratar de um ser restringido a uma percepção limitada, que ficou confinado a essa condição por sua própria história no processo evolutivo das espécies.

Na década de 1970, assistíamos, em Londres, à abertura das portas da percepção, em workshops vivenciais promovidos e controlados por neurologistas e psiquiatras, ao lado da descoberta do corpo como sede de registros de memória, que, ao serem liberados por trabalhos apropriados, traziam à tona espantosas vivências psíquicas afetivo-emocionais com os correspondentes componentes cognitivos, por meio de manifestações simbólicas, sonhos e da própria fala. A abertura das portas da percepção serviu de estímulo a uma plêiade de ousados pioneiros, que se aventuraram a buscar a expansão das idéias e do conhecimento para além do círculo limitado dos sábios e cientistas aprisionados nos paradigmas do conhecimento e da epistemologia das percepções restritas, que tinham sido quebrados pela Física Quântica no fim do século XIX e início do século XX. Havia a expectativa por parte de alguns pensadores, como David Bohm, por exemplo, de que afinal, depois de tantos anos, essas idéias, se não fossem compreendidas, pudessem pelo menos ser consideradas e algumas aplicadas no macrocosmo e nos fenômenos humanos e do cotidiano.

Foram anos de muita efervescência intelectual, de descobertas e de novas idéias em todos os ramos do conhecimento; foi uma época de intensos movimentos sociais, atribuídos indubitavelmente, segundo se comentava, à abertura das portas da percepção, que fez toda uma geração passar do espanto ao incômodo insuportável de constatar o engodo em que a humanidade tinha vivido até então. Havia uma premência de mudança do contexto em que se vivia, inclusive do ponto de vista intelectual, para que o cenário da vergonha, o objeto do crime, não ficasse ali escancarado à nossa frente.

Na área das práticas psicoterápicas, que nos diz respeito de perto e nos interessa, surgiram autores extraordinários, que modificaram o percurso dessas atividades. Ronald Laing e David Cooper trouxeram contribuições inestimáveis com a Anti-Psiquiatria, que permitiu uma nova percepção da doença mental. Herbert Marcuse, ao expandir as idéias de Freud para o campo do social e do cultural, contribuiu enormemente para ampliar a visão da dinâmica social, estabelecendo um novo patamar de percepção. Jacques Lacan, ao conviver com a efervescência intelectual dos pensadores que transgrediam os limites da percepção estabelecida pelos cânones científicos, propôs uma nova leitura de Freud, diferente da preconizada pelo establishment, embora tenha colocado, no lugar dos dogmas que derrubara, os seus próprios, o que – reconheça-se – aconteceu muito mais por obra de seus discípulos do que dele mesmo. Um monge budista andarilho que ao nos visitava periodicamente, ao se fazer presente, se fazia mestre zen-budista, ao indagar-lhe sobre a questão me disse que em 1976, Karl H. Priban e Merton Gil publicaram o livro Freud’s project reassessed (Hutchinson & Co. Ltd, London, 1976), que resgata a brilhante contribuição neurocientífica de Freud, que está presente em toda a sua obra psicológica e metapsicológica como o substrato concomitante e paralelo, sem o qual sua obra psicológica e metapsicológica não existe, assim como sem esta aquele substrato não tem sentido. Contribuição essa, diga-se de passagem, que a percepção míope do mundo, por parte de psicanalistas e neurologistas, sempre desconsiderou. Numa reunião científica em Nova York, Priban contou-nos que certa feita, encontrando-se entre neurologistas de destaque do mundo científico, pediu-lhes que lessem o Projeto para uma psicologia científica, de Freud, sem identificar autor e obra, e fizessem uma avaliação. Os leitores foram unânimes em reconhecer o valor e a atualidade dos conceitos e das hipóteses contidos no tal trabalho. Ao revelar-lhes o autor, Priban só recebeu manifestações de incredulidade, o que ilustrava bem, segundo ele, as vicissitudes por que passa uma percepção restrita.

Essas situações de que participei intensamente, porque fazem parte de minha vida – e peço desculpas aos leitores por não conseguir me desvencilhar dessas memórias e trazê-las neste momento –, penso eu ilustram de modo perfeito a questão com que tenho me defrontado no trabalho de análise com meus pacientes e em situações sociais e científicas.

Como essa situação é geral e atinge-nos a todos, inclusive a mim mesmo, no que posso apreender pela minha autopercepção, levantei a hipótese de que se trata de uma característica ôntica do ser humano, presente na sua própria constituição, como conseqüência das pré-programações de natureza filogenética que ele traz e que têm uma função muito importante para a sobrevivência do indivíduo, pelo menos nos momentos iniciais da vida.

Quando, na Bíblia, aparece a figura da Torre de Babel, posso pensar que uma das interpretações possíveis, na polissemia de significados, seja a de que, diante da necessidade de conviver com pessoas diferentes de mim, com conhecimentos próprios e recursos de sobrevivência que lhes são peculiares, surge a impossibilidade de abandonar aquilo que me é familiar, que me é conhecido e que assim garantiu minha sobrevivência. A linguagem que contêm estes elementos, os quais são peculiares a cada um, vai estruturar uma linguagem que é irreconhecível para mim, e que mais e mais provoca em mim o apego à minha linguagem.

Assim é que, em função de que a cada ser corresponde um meio próprio, e em função de que as vicissitudes por que passaram os ancestrais de cada um levaram-nos a desenvolver determinados recursos adequados para sobreviver naquele meio, cada um se apega à sua realidade, e constrói o seu mundo próprio, peculiar, que lhe permite a previsão do futuro. Diante do outro, que carrega as suas peculiaridades, vai viver a Babel em cada situação em que tiver de compartilhar ou em que tiver de encontrar um ponto comum. Cada situação, como esta, representa um estímulo ao mais primitivo e ameaçador registro que ele possui. Assim, lançará mão de todos os recursos para triunfar sobre aqueles que na realidade compartilham com ele simplesmente a participação num debate para encontrar um lugar comum, pois nesse nível de registro de memória, em que impera o “tudo ou nada”, não é possível a discriminação de gradação para as situações. E essa condição, no meu ponto de vista, apesar de simples, demanda um trabalho muito específico de autopercepção.

Por essa razão, a percepção de fenômenos situados em outro nível de realidade, que ocorrem em situações especiais, que não dependem do desejo do experimentador, é extremamente difícil de ser apreendida. Muito antes da percepção propriamente, a mera possibilidade de dar-se conta com convicção de que existem fenômenos que ocorrem em outro nível de realidade já é uma grande barreira, que leva a imensa maioria das pessoas – e quanto mais ligadas às ciências, mais intransponíveis são as barreiras – a se comportar com profundo desprezo, desrespeito e desconsideração com as pessoas que relatam experiências envolvendo uma percepção diferenciada. Eu, como médico, tendo militado em outras especialidades e dedicado parcela de minha vida aos deserdados da sorte, assisti com grande freqüência a cenas constrangedoras em que colega em posição de destaque no cenário médico tratava com profundo desrespeito e de forma humilhante o pobre paciente que se apegava às suas crenças para poder enfrentar o terror da ameaça da vida e a situação de tratamento, que, por ser-lhe desconhecida, era igualmente ameaçadora.

Temos acompanhado os muitos debates que se têm travado entre diversos profissionais a respeito das implicações da biotecnologia sobre a existência humana. Do meu ponto de vista, trata-se de questão curiosa para reflexão e com a qual estamos sendo confrontados diariamente em nossas vidas, uma vez que a biotecnologia nada mais é senão um dos muitos recursos de que o homem tem lançado mão na sua luta para dominar o meio e ter cada vez mais amplamente assegurada a sua sobrevivência. Com a diferença de que hoje assistimos à ameaça à vida que essa mesma biotecnologia, criada pelo homem, vem representando para o próprio homem e para o planeta. Com isso, somos todos chamados à responsabilidade e instados a dar nossa contribuição para que esse processo de destruição em larga escala – material, biológica e espiritual – seja neutralizado e possamos reverter seus efeitos nefastos sobre a Terra, transformando a possibilidade de aniquilação iminente da espécie e da vida em esperança de uma reviravolta histórica que nos garanta um projeto de futuro. Ocorre-me no momento o seguinte paradoxo: hoje, o homem se vê pressionado pela necessidade inadiável de lidar com a devastação das florestas, que ameaça não só a sobrevivência de sua espécie, mas de toda vida no planeta, confrontando-se com os resultados perniciosos e irreversíveis que essa devastação, que ele mesmo promoveu em larga escala, está causando por conta da atitude de extrair das florestas o que era necessário para a sua sobrevivência.

Houve duas conversas principais sobre biotecnologia na revista ide, nº. 43, 2006. A primeira intitulada “Aceleração tecnológica e quebra de representações”, e a segunda “Psicanálise, biociência e subjetividade”. Posteriormente, ocorreu o tradicional debate da ide Biotecnologia entre os leitores e os autores daquele número, cujo resultado foi publicado no número seguinte, ide nº. 44, 2007, em sua seção Debate.

Como poderia comentar estas conversas e este debate? Cada debatedor, como não poderia deixar de ser, trouxe seus pontos de vista, perfeitamente respeitáveis. Em suas falas e formas de abordagem surgem elementos interessantes, que estão subjacentes às razões, aos desejos, aos registros básicos de cada um, que não vêm ao caso analisar. No entanto, observo que, muitas vezes, o foco da discussão, o que seria interessante abordar como contribuição para ficar como matéria de reflexão, aparece em segundo plano, prejudicado pela necessidade de enfatizar outros objetivos.

Assim, gostaria de comentar mais livremente o debate, fazendo algumas pontuações que julgo necessárias sobre as contribuições dos colegas e sobre o que considero importante reter a respeito do tema. Falarei a partir de minha experiência como médico, abordando a situação da medicina tal como se encontra hoje, o que, acredito, permite extrapolar para outras áreas.

A biotecnologia surgiu em conseqüência das limitações técnicas dos profissionais no trabalho de investigação, diagnóstico e tratamento das afecções humanas, e nos trabalhos investigatórios laboratoriais ligados ao suporte à ciência médica. Da mesma forma que na Psicanálise clamamos, em muitos casos, pela falta de recursos para esclarecer determinadas situações que haviam ocorrido em momentos precoces da vida do ser ou que se passavam na intimidade da dinâmica psicopatológica, dispondo de recursos limitados para lidar com determinadas situações terapêuticas e analíticas e com isso trazer pouco ou nenhum alívio para o sofrimento desses pacientes, também os médicos se vêem desprovidos de recursos para fazer face a tais desafios. Nestas situações, muitos de nós, de um modo ou de outro, devem ter criado algum método ou técnica auxiliar para sanar dificuldades e poder avançar na terapêutica.

À época em que trabalhava como clínico, há 45 anos atrás, os recursos tecnológicos eram escassos ainda, mas já assistíamos a um movimento significativo de incorporação de recursos tecnológicos à atividade médica, como não ocorrera até então, em virtude dos avanços da mecânica fina e da cibernética. Nessa época, havia espaço ainda para que nós e os médicos mais jovens exercitássemos a relação médico-paciente pela criação de vínculo afetivo, principalmente nas enfermarias e ambulatórios do Hospital-Escola, onde tínhamos a possibilidade de fazer um acompanhamento individual dos pacientes não só porque o número de atendimentos era menor, mas também porque eles passavam por diferentes departamentos dentro do hospital. Da mesma forma, alunos e residentes eram acompanhados por professores-assistentes, a quem cabia a orientação, já que também o número de alunos era reduzido para adequar-se a um padrão de ensino de qualidade, como requeria a medicina da época.

Com a chegada do computador e das tecnologias resultantes do avanço da Física, inclusive da Física de partículas, houve uma explosão tecnológica em todos os níveis da atividade humana. No caso da medicina, não haveria por que ser diferente. Assim, as próprias máquinas que fabricavam outras máquinas para exames diagnósticos, com a incorporação da tecnologia digital, se sofisticaram de tal forma que os diagnósticos médicos puderam alcançar uma precisão sem precedentes nos resultados, contribuindo, sem dúvida, para minorar o sofrimento humano. Simultaneamente a esse avanço, a massificação da formação médica e do atendimento médico no mundo todo ocorria num pano de fundo cultural e econômico-social de mudanças rápidas e profundas, verdadeiramente revolucionado pela incorporação da tecnologia da computação a todos os ramos da atividade humana. Na área médica, a possibilidade de dispor de aparelhos de última geração para a realização de diagnósticos da mais variada natureza passou a significar fator de competitividade e de alinhamento com o que havia de mais atualizado em termos de conhecimento.

Neste contexto, o paciente deixou de ser um ser humano em sofrimento para se tornar um objeto, um produto de prateleira, do qual foram abstraídas as qualidades humanas. O médico, por sua vez, tornou-se simples mão-de-obra, com a função de manipular esses produtos ao menor custo, com o menor envolvimento. Nesse sistema, o médico também se tornou um alienado, tão destituído de qualidades humanas quanto seu paciente: formado sob o menor custo possível, também perdeu sua condição de autonomia profissional, dificilmente conseguindo estabelecer-se por conta própria, vendo-se, antes, obrigado a trabalhar para empresas de medicina, devendo realizar o maior número de atendimentos no menor tempo, sem poder sequer examinar o paciente, muito menos fazer-lhe a anamnese. Essa era a medicina possível para quem começava na profissão, muito distante daquela que se gostaria de exercer.

Nós, psicanalistas, também temos nos comportado com arrogância, olhando negativamente para o que existe no outro, acusando-o de praticar o reducionismo biológico, sem nos darmos conta de que, ao nos situarmos no outro extremo do paradigma da dicotomia mente-corpo, praticamos nós o reducionismo psicológico, tomando o psíquico como expressão da totalidade do ser. Ao nos colocarmos nessa posição alienante, não percebemos que existem de fato muito mais fenômenos que não podemos alcançar com nossa percepção restrita, colocamo-nos na posição privilegiada dos eleitos, que tudo vêem e tudo compreendem pela óptica da Psicanálise, o que, na ordem geral do todo, é muito pequeno, é muito restrito. Também não devemos nos esquecer de que a tecnologia se implantou e foi tomando conta de setores cada vez mais amplos de nossa vida sob nossos olhos, ao mesmo tempo míopes e deslumbrados, com o nosso beneplácito, até que se estabelecesse uma relação inversa, na qual ela, de termo acessório na relação médico-paciente, passou a ser termo integrante e determinante dela. As ciências e os cientistas – e não só eles, mas também eles – deixaram-se apossar pelo espírito da tecnologia, que passou a dominar e a determinar os destinos das investigações e da própria natureza do humano. A vida, a essência última do humano, passou a ser definida e valorizada pelas qualidades ideais do conforto da cultura da tecnologia, por meio da qual, em nome de proporcionar a ausência de angústia e dos sofrimentos naturais diante do fluxo inexorável da vida, que muitas vezes atinge dramaticamente a muitos de nós, forja-se o recurso à falsificação, à camuflagem, à mentira.

Deslumbramo-nos com as possibilidades da ciência tecnológica, que permite que a visão possa ser restaurada ou finalmente concedida ao cego, que mãos mecânicas possam realizar com perfeição funções manuais que portadores de lesões antes não imaginavam alcançar, etc. Extasiamo-nos com a possibilidade de penetrar no mundo do virtual, por meio de nossas conexões neurais ligadas em rede a redes virtuais que possibilitam ambientes inimagináveis e que possamos deles viver ou agir em nossos sonhos diurnos ou noturnos.

Percebemos quão profundamente o sucesso e o domínio da tecnologia impregnaram o pensamento científico-filosófico, de tal sorte que o centro da existência, a essência da vida e do humano se deslocaram para a periferia, para a conseqüência, para o efeito, e as investigações sobre o humano e o humanismo passaram a ser ditadas pela ciência da tecnologia, que busca medir as realizações e as conquistas do engenho humano pela régua do referencial científico e tecnológico.

O que se observa é que as ciências tecnológicas, e, no interior das disciplinas, os ramos que privilegiam a tecnologia, que permite desvendar a intimidade nunca imaginada das estruturas e dos fenômenos, vêm acumulando conhecimentos extraordinários, que alimentam a ilusão da conquista de um saber da totalidade, capaz de decifrar e de esgotar todos os enigmas. É humano que essas condições conduzam o ser humano ao esquecimento de que a causa última continuará intangível e de que sempre restará o inexplicável. Ou, que tamanhas conquistas possam, dependendo de circunstâncias psíquicas pessoais, levar as pessoas a se convencer de que alcançaram as culminâncias do saber. Nesse processo, avançam sobre outras áreas do conhecimento, em geral indispensáveis para completar o saber de sua própria disciplina, tanto uma como as outras igualmente fragmentadas e expressão de um conhecimento necessariamente parcial do real, e, utilizando os instrumentais lógico-formais e da experiência de sua disciplina, buscam apossar-se de um território em que se movem com dificuldade porque não é o seu. Colocando suas impressões num discurso organizado e convincente, acabam por se tornar senhores, na medida em que os titulares dessa outra disciplina se sentem lisonjeados pelo interesse do colega em relação a assuntos e temas que julgam ser de sua competência específica.

Assim, nas nossas lides neuropsicanalíticas, que vêm de longa data, observamos a existência de grupos dentro da própria Neurociência que buscam aproximar-se sedutoramente da Psicanálise, utilizando o mote da aceitação desta, tão a gosto dos psicanalistas, acostumados à exclusão do reconhecimento científico, para, de uma forma perversa, incorporar a Psicanálise ao discurso neurocientífico. Diferentemente dos neurocientistas de vanguarda e daqueles que foram pioneiros no reconhecimento da importância da obra de Freud, ao proclamar que a Neurociência, por si só, não tinha como lidar com o universo do psíquico, por serem outros os seus domínios, os novos grupos de neurocientistas, sem deixar de lado a arrogância da superioridade que atribuem à sua disciplina, fazem um movimento que sugere uma predação, uma colonização. Como partem de uma compreensão puramente cognitiva das obras psicanalíticas, como fazem, a partir de suas disciplinas, apreensões psicanalíticas, apesar de ter em comum com os psicanalistas as mesmas expressões, os mesmos conteúdos, carecem do que é fundamental que é a experiência interna cultivada no processo psicanalítico pessoal e no trabalho diuturno consigo próprio e com o outro no setting psicanalítico. O saber legítimo da Psicanálise é um saber que parte essencialmente da experiência interna, do afetivo-emocional para o cognitivo.

Certamente nossos colegas desconhecem o empenho de um grupo de psicanalistas que há anos se dedica à árdua tarefa de buscar um caminho de integração entre a Psicanálise e a Neurociência por pertencerem a um establishment que tem como paradigma a dicotomia mente-corpo, nitidamente avesso à Biologia e à Neurociência, dentro da tradição dos seguidores de Freud que deram continuidade à IPA. Pertencemos à Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, da qual somos fundadores, e um de nossos cuidados tem sido exatamente o de alertar para o movimento sutil de aproximação sedutora empreendido por alguns setores da Neurociência, ao abordar temas comuns à Psicanálise, utilizando-se de conceitos e até de jargões psicanalíticos, adquiridos em leituras de textos freudianos e em outros autores, mas sem a legitimidade do saber psicanalítico que distingue o psicanalista. No deslumbramento fácil em que são surpreendidos, os psicanalistas, carentes de reconhecimento por parte de outras disciplinas, não se dão conta de que esse grupo da Neurociência está usando a Psicanálise, incorporando as teorias psicanalíticas às suas concepções neurocientíficas de forma perversa.

Do meu ponto de vista, seria extremamente construtivo que os neurocientistas pudessem exercitar a humildade e perceber que, por enquanto, por mais que a tecnologia avance, quer em níveis biomoleculares, quer em níveis de conectividade, falta-lhes a condição de dar sentido ou de lidar com os fenômenos psíquicos em suas infinitas manifestações a cada momento. Eles deverão buscar o suporte de uma outra ciência, como a Psicologia Cognitiva. E naquilo que a Psicologia Cognitiva não puder dar suporte, terão de vencer o preconceito contra as ciências do espírito ou ciências da humanidade, e buscar suporte na Psicanálise, como fazem inúmeros neurocientistas que pertencem à Sociedade Internacional de Neuropsicanálise.

Por outro lado, penso que, de forma geral, nós, psicanalistas, deveríamos fazer uma profunda reflexão, talvez partindo da enunciação: “Suponhamos por absurdo que...”, de forma que pudéssemos abrir-nos para outros ramos do conhecimento e aprender com eles, como a Biologia, a Medicina, a Neurociência, tanto quanto eu tenho aprendido com a Literatura, a Filosofia, etc. Tenho um ponto de vista firmado – de que uma das grandes causas da presença da tecnologia “selvagem” na Medicina, que deixou de considerar a natureza e a condição humanas do paciente, foi o fato de que a Psicanálise se afastou de sua função e responsabilidade social de estar presente junto com a Medicina, na prática médica. Sob a alegação de que o “objeto” da Psicanálise não é o corpo, não é a doença, mas é a realidade psíquica, a Psicanálise deixou a prática sagrada do tratamento dos doentes do corpo, que ficaram à mercê da fisicalização desumana. Ainda hoje predomina nos meios psicanalíticos, principalmente entre aqueles que estão se formando nos institutos, essa postura, herdada de forma transgeracional dentro de um sistema de formação questionável, em que se privilegia a transmissão de conhecimentos estabelecidos como corretos e não transmissão da arte de aprender e apreender livremente.

Creio que para além do “estranho” com que tenhamos que lidar com a questão da tecnologia e sua cultura (estranheza que, do meu ponto de vista, não devia existir), é necessário que nós psicanalistas tenhamos a humildade de fazer uma reflexão autoperceptiva, honesta e corajosa, nos colocando na posição: “Consideremos por absurdo que nós, psicanalistas, temos uma parcela de participação na gênese e na cultura do desvario da tecnologia...”.

 

 

Endereço para correspondência
Yusaku Soussumi
Rua Paes de Araújo, 29/176 – Itaim Bibi
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Tel.: 11 3078-8902
E-mail: soussumi@terra.com.br

Recebido: 24/09/2007
Aceito: 28/09/2007

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Membro honorário da Sociedade Psicanalítica do Mato Grosso do Sul. Membro fundador da Sociedade Internacional de Neuropsicanálise. Presidente do Centro de Estudos e Investigação em Neuropsicanálise.