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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007

 

PUBLICAÇÕES

 

Psicanálise e história das mentalidades

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Levisky, David Léo. Um monge no divã: A trajetória de um adolescer na Idade Média Central. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, 380 p.

O estudo da História sempre me fascinou. Hoje percebo, retrospectivamente, que me fascinava o potencial de revivescência da narrativa histórica. Diante da descrição de uma conquista, de uma revolução, da descoberta de algo desconhecido, meu espírito palpitava da emoção especial de estar presenciando o reencontro de algo perdido. Durante um bom tempo, acho que fiquei hipnotizado por esta emoção. Gradualmente, porém, meu interesse foi se concentrando nos personagens históricos, naquelas pessoas do passado que se destacaram por pensamentos, atos e obras, contribuindo de modo significativo para a configuração do presente e até para a antecipação do futuro. Sentindo-me talvez familiarizado com estes novos amigos, passei a nutrir o desejo curioso de penetrar em suas intimidades, de imaginar a especificidade de suas alegrias e tristezas, a singularidade de suas tomadas de decisão, quem sabe a “grandiosidade de seus fracassos” ou a “pequenez de seus êxitos”.

Olhando agora de relance para o desenvolvimento da historiografia, sou informado que os historiadores da cultura ocidental se deixaram impressionar pela história do poder, pela aparência das vitórias, pelo marketing pessoal dos personagens, descurando assim da contribuição inestimável dos heróis anônimos, da sabedoria profunda da cultura popular, da força imensa das crenças religiosas e da vida emocional. É claro, como sempre, que existiram exceções como a original avaliação de Fustel de Coulanges a respeito da cidade antiga ou o estudo polissêmico de Jacob Burckhardt sobre a cultura do renascimento, onde imagens e monumentos foram tomados como recursos “através dos quais é possível ler as estruturas de pensamento e representação de uma determinada época”.

Visando corrigir essa distorção, dois jovens historiadores franceses, Marc Bloch e Lucien Febvre, resolveram fundar em 1929 uma nova revista denominada Annales d’histoire économique et sociale, em torno da qual pretendiam erigir “um novo tipo de história” voltada à pesquisa interdisciplinar, à valorização de problemas exemplares, ao resgate de uma história das sensibilidades. Esse novo espírito investigativo foi obrigado a valer-se de fontes até então desprezadas como os registros públicos e religiosos, as narrativas autobiográficas, os dados antropo e arqueológicos, as avaliações sociológicas e econômicas: tudo isso, evidentemente, requeria também a construção de uma nova metodologia que pudesse integrar essa multiplicidade de conhecimentos a serviço de um campo histórico pioneiro que, a partir da década de 1960, veio a ser conhecido como “História das mentalidades”.

A Escola dos Annales, como passou a ser chamada, teve como elementos fundantes três estudos que hoje já são considerados clássicos. Em Les rois Thaumaturges, Bloch analisa a tendência dos grupos sociais de eleger figuras carismáticas investidas de uma onipotência difusa, de modo a se sentirem não só conduzidas e protegidas por elas, mas, inclusive, beneficiadas por curas milagrosas. Seu livro foi pioneiro ao explorar aspectos da psicologia religiosa, da socioantropologia histórica e das “representações coletivas”, expressão que ele tomara emprestada de Émile Durkheim. Visando responder a uma indagação específica – “Teria sido Rabelais um ateu?” –, Febvre produziu um livro notável Le problème de l’incroyance au XVIe siècle: La religion de Rabelais, que é um excelente exemplo da história como problema. De fato, Febvre ampliou a questão, passando a discutir a impossibilidade do ateísmo no século XVI, argumentando que o “instrumental intelectual” do período não permitia a descrença por sonegar o surgimento de termos como “abstrato”, “relativo”, “causalidade” e assim por diante, que poderiam embasar explicações científicas alternativas aos dilemas humanos. Finalmente é preciso assinalar um alentado artigo de Georges Lefebvre, a respeito da mentalidade coletiva dos grupos revolucionários, e produzido em resposta às teorias de Gustave Le Bon que se recusavam a admitir padrões emocionais definidos nos comportamentos “irracionais” das multidões.

A consolidação da história das mentalidades produziu uma safra prolífica de autores como Peter Burke na Inglaterra; Jacques Le Goff, Jean Delumeau, Georges Duby, Emmanuel Le Roy Ladurie, Philippe Ariés na França; e Carlo Ginzburg na Itália. Em 1997 os eflúvios desse esforço historiográfico chegaram até nós com a publicação da História da vida privada no Brasil coordenada por Fernando Novais, colocando-nos assim de modo inquestionável no mapa mundial da nouvelle histoire nascida na França.

Isto é o suficiente quanto à moldura, passemos então ao retrato. O retrato, no caso, está focado em um problema que atiçou o espírito inquieto de David Levisky, psiquiatra, psicanalista e doutor em História Social: teria a adolescência existido em outras épocas da civilização humana? Munido dessa inquietação, fruto natural de sua longa experiência clínica com a adolescência, que, inclusive, o levou a produzir uma obra sólida sobre o assunto, David apresenta-se a um renomado medievalista da USP, Hilário Franco Junior, disposto a pesquisar em profundidade o seu problema. Como estímulo adicional, David contava com sua discordância a respeito das teses de Philippe Ariés acerca da pretensa inexistência da adolescência na época medieval.

O “modelo” proposto para ser retratado por David foi o de Guibert de Nogent que circa 1115 escreveu uma monodiae, um canto de voz única, no qual expõe seu drama de ter nascido com a promessa parental de ser um monge devotado ao culto da Virgem Maria. A fonte sugerida foi o estudo de Edmond Labande, “Guibert de Nogent, De vita sua: Autobiographie”, publicado em 1981, numa edição bilíngüe latimfrancês. Mas, indagou-se o retratista, com que “aparelho” metodológico realizar esta fotografia de alguém desaparecido há cerca de novecentos anos nas brumas de uma época que se notabilizou por sua mentalidade obscurantista?

A opção natural para o psicanalista-historiador foi trazer o monge para seu divã, onde, ele acreditava, poderia “identificar características microscópicas da personalidade ligadas às vicissitudes da vida pulsional, da reorganização egóica, da prevalência de certos mecanismos defensivos do ego, dos lutos, da reelaboração dos conflitos narcísicos e edipianos, das redefinições das escolhas objetais”. Após a realização desse árduo trabalho, o caminho natural para o historiador-psicanalista foi publicá-lo sob forma de tese de doutorado em História Social com o título: Um monge no divã: O adolescer de Guibert de Nogent (1053-1124) – uma análise histórico-psicanalítica. Agora adaptada em livro, o subtítulo enfatiza a trajetória de um adolescer na Idade Média Central, ressaltando assim o recorte epistemológico que o autor executou na autobiografia de Guibert.

Essa postura hiperbólica em relação à adolescência perpassa todo o livro, obrigando-nos a ter sempre em mente que ele é também testemunho da trajetória contemporânea de um psicanalista interessado em detectar no “paciente adulto” os vestígios psicoestruturais dos conflitos adolescentes. Mesmo assim, o livro é pródigo na iniciação do leitor comum numa série de questões psicossociais da Idade Média que nos são apresentadas, juntamente com seu léxico particular a partir das vivências pessoais de Guibert. Aos poucos nos defrontamos com palavras pouco conhecidas como simonia, parusia, fabliaux, faides, adoubement, lembrando-nos com fascínio de que estamos adentrando um novo universo histórico apto a nos seduzir com seus encantos e a nos enternecer com suas mazelas.

O livro está dividido em duas partes. Na primeira, nomeada “Uma História de muitas questões”, acompanhamos o psicanalista-historiador na arregimentação de um instrumental conceitual e metodológico que lhe permita acompanhar a metamorfose sui generis de um personagem histórico quase desconhecido num “analisando involuntário”. Somos então alertados para a importância do modelo confessional utilizado por Santo Agostinho e por Jean-Jacques Rousseau; somos convidados a aproximar o conceito de “arquitetura anímica” proposto por Freud com a sugestão de Franco Junior de que os significantes do imaginário alteram os significados da mentalidade, ajudando-nos a entender melhor o conectivo das identificações grupais; somos relembrados do referencial maior da Psicanálise, a metapsicologia, cuja presença deverá nortear sempre as “interpretações” histórico-psicanalíticas. Só então, David nos permite o acesso à sua relação íntima com Guibert exposta na segunda parte, onde ele nos revela, com vigor e autenticidade, o conjunto de hipóteses e indagações que foram brotando em seu espírito enquanto acompanhava a “trajetória de um adolescer na Idade Média Central”.

Uma interessante discussão que impregna todo o livro é a questão da sinceridade de propósitos da Igreja; em que grau suas ações e intenções estão lastreadas numa fé autêntica nos poderes redentores do Divino, ou, então, acabam se contaminando com as fraquezas das ambições humanas, transformando a Salvação num produto a ser consumido através de uma subserviência dogmática. Em resumo, indaga David (p. 142) qual o preço que Guibert teria que pagar para entrar no paraíso, “sabendo-se que o sofrimento é um valor de elevada estima?”. Aliás, numa nota de rodapé a respeito desse questionamento, David declarase imbuído de uma neutralidade relativa em função de sentimentos contratransferenciais em relação ao poder universal e absoluto exercido pela Igreja. No tratamento de assunto tão delicado, seu excesso de zelo me pareceu natural, porém, quero deixar aqui registrado meu testemunho de que, ao longo de seu texto, prevalece sempre uma postura equilibrada de quem está buscando aproximar-se com rigor da verdade histórica.

Tendo rastreado o principal sofrimento de Guibert na área da culpa ligada a conflitos edípicos em relação à mãe (e, secundariamente, em relação ao pai), David utiliza preferencialmente o referencial teórico freudiano concernente às disputas entre as instâncias psíquicas, com ênfase no papel repressor do superego e a importante teorização kleiniana sobre depressão, culpa e reparação. Em última análise, o modelo que prevalece em ambas as teorias é o de uma punição egóica reativa vítima da castração no caso de Freud, ou de uma fragmentação persecutorizante na visão de Klein, ambas vividas como retaliação por parte do objeto ofendido. Assim, o principio subjacente à constituição da subjetividade seria sempre de índole pedagógica e vivencial, o objeto ensinando ao sujeito a maneira adequada de existir.

Alguns autores contemporâneos, como James Grotstein (2000), em especial os capítulos 5 e 6, têm proposto um construto psicanalítico revisado da subjetividade que é de extrema valia para compreendermos melhor o esforço de Guibert para “equilibrar seu espírito num universo de leis próprias e impróprias... onde o diabo e seu Criador buscam sobreviver na dialética entre vida e morte”. Neste estudo, ele cunha a expressão “presença psíquica” para designar o sujeito inefável do inconsciente, o sujeito fenomênico da préconsciência e da consciência, e os objetos subjetivos internos e externos (projetados). No seu entender, a concepção de objeto interno ficou prejudicada pela herança lógico-positivista, oriunda de Freud que embebeu o psiquismo numa terminologia mecanicista como “impulso”, “aparelho” e “objeto”, dificultando assim nossa apreensão das formas monstruosas tomadas pelos objetos internalizados no curso de experiências emocionais caóticas. Neste sentido, o léxico utilizado por Jung, um medievalista inspirado (sic), parece mais bem talhado para descrever essas presenças psíquicas primitivas através de termos como “quimérico”, “anjos”, “homúnculos” ou “diabo”. Aliás, se lembrarmos que a palavra grega dia-bolos significa literalmente “partes dispersas”, entenderemos melhor que, no imaginário medieval, o diabo represente a encarnação do caos, cabendo a Deus extrair alguma coerência do “infinito vazio e informe” proposto por Milton. Ao tentar digerir suas experiências de terror inominado, a criança tenta exorcizá-las com a ajuda de “objetos continentes”: o objeto internalizado sofre repetidas reexternalizações até que o indivíduo consegue retomar sua subjetividade, passando a contar com o objeto somente como marco de alteridade.

Em face do exposto, é fácil depreendermos as naturais afinidades entre História e Psicanálise no campo da iconografia. Este ponto não passou despercebido a David, que nos alerta para a particular importância das imagens construídas pelo psiquismo medieval, seja sob forma de sonhos, visões e alucinações, seja como parte da hagiografia religiosa. Na esteira de Peter Burke (2004), podemos dizer que o psicanalista é “testemunha ocular” do uso da imagem pelo psiquismo não só através do trabalho onírico, mas também na formação de modelos e de ideogramas que, no entender de Bion, constituem a base do pensar. O medievalista David Douglas assinalou a importância das tapeçarias de Bayeux como “fonte primária da história da Inglaterra”, enquanto Emile Mâle reconheceu que as grotescas imagens medievais, como as produzidas por Bosch, advinham da imaginação popular criada “das profundezas da consciência das pessoas”.

Ora, se acompanharmos o relato de Guibert, notaremos algo interessante. As imagens propositivas são produzidas pelo Outro, seja o sonho do educador definindo a opção de investir Guibert como seu pupilo, seja a visão premonitória da mãe com a Senhora de Chartres, indicando a ele a necessidade de permanecer como monge na abadia de Saint Germer de Fly: de si próprio, Guibert só consegue extrair a seleção da imagem silenciosa dos monges sentados na igreja do monastério como inspiração passiva para seu ingresso, ou então a visão noturna de um frágil recém-convertido acossado pelo demônio. Em resumo, a produção imagética de Guibert parece ser essencialmente reativa e tímida, caracterizando uma espécie de “vassalagem psíquica”.

Teria Guibert tido êxito no enfrentamento de seus dilemas psíquicos? Seria muito difícil saber. Entretanto, se acompanharmos com cuidado a descrição que David nos apresenta dos fantasmas que o rondavam como o contratualismo, o dogmatismo, o salvacionismo, os prazeres da carne, o paracletismo, e assim por diante, estaremos pelo menos aptos a imaginar a qualidade das presenças psíquicas com as quais ele se defrontou ao longo de sua vida. Mas, para isso, esta resenha deve sair de cena e, em seu lugar, sugiro a leitura de Um monge no divã, que, de brinde, vem emoldurada por um prefácio de Renato Mezan e por um posfácio de Hilário Franco Júnior. Creio que quem se habilitar não se arrependerá.

 

Referências

Burke, P. (2004). Testemunha ocular-história e imagem.         [ Links ] [Eyewitnessing, the use of images as historical evidence]. São Paulo: EDUSC.

Grotstein, J. S. (2000). Who is the dreamer who dreams the dream?: A study of psychic presences. New Jersey: The Analytic Press.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Rua Helena, 170/123 – Vila Olímpia
04552-050 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3842-3060
E-mail: mr.junqueira@uol.com.br

Recebido: 23/08/2007
Aceito: 27/08/2007

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo