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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Lida o psicanalista com problemas sociais?

 

 

Deodato Curvo de Azambuja*

Endereço para correspondência

 

 

Este texto foi publicado originalmente na ide número 1, em 1975, por ocasião de sua fundação, época em que o referido autor foi um de seus coordenadores editoriais, a convite do editor Chaim José Hamer. Nele, evidenciamos, com extrema clareza, o lugar da cultura na teoria e prática clínica &– a de uma conexão desconcertante &–, por meio do pensamento de um psicanalista sensível e engajado que desenvolveu, passo a passo, a partir da reportagem “A cidade tem medo de si mesma”, do O Estado de São Paulo, sobre uma pesquisa do Intituto Gallup, suas idéias acerca da necessidade e do valor social da psicanálise, já há mais de trinta anos. Daí o fato de ser considerado, por nós, um texto revolucionário, à epoca de sua publicação original.

Com a intenção de resgatarmos os fundamentos da origem editorial da ide, que, desde sua fundação, gira em torno do diálogo entre psicanálise e cultura, estamos republicando-o, pois também foi o ponto de partida para a nossa Entrevista deste número “ide: Uma memória”, realizada pela atual equipe da ide com Deodato Curvo de Azambuja.

Boa leitura e boa rememoração!

***

Penso que o conceito “psicanálise aplicada” deve ser discutido e revisto. Em primeiro lugar porque não existe, a meu ver, possibilidades de aplicação da psicanálise do modo, por exemplo, em que a microbiología é aplicada à medicina. Por outro lado, os trabalhos de Freud que comumente são classificados como psicanálise aplicada (Totem e tabu, Leonardo da Vinci, Moisés, Futuro de uma ilusão etc.) são na verdade trabalhos de exaustiva pesquisa interdisciplinar. Com minha comunicação de agora, apesar de despretensiosa, quero salientar que às vezes se pode ter oportunidade de um cruzamento de dados entre elementos da psicanálise e de outras disciplinas, através da crítica e da reflexão. E isso pode ser visto também como uma outra forma de pesquisa interdisciplinar &– muito rudimentar, é claro.

 

Desenvolvimento

Quem quiser, em qualquer ponto da realidade pode encontrar motivos para reflexão. Assim é que, no dia 6 de novembro de 1975, o jornal O Estado de São Paulo publicou, sob o título “A cidade tem medo de si mesma”, alguns resultados de uma pesquisa realizada pelo Instituto Gallup de Opinião Pública, que despertaram minha atenção e acabaram motivando as presentes anotações.

O levantamento Gallup trata do medo que sentem as pessoas residentes nas duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, e inspirou-se em uma carta enviada pelo advogado carioca Emmanuel Nery ao ministro da Justiça, a qual transcrevo tal como foi publicada em O Estado:

Estou com medo. Estou com medo não apenas porque fui “simplesmente” assaltado à mão armada dentro do edifício em que moro, às 7 e 30 da noite. Estou com medo por tudo o que descobri nos dias seguintes ao acontecimento. Estou com medo porque, sem documentos, a delegacia, em Copacabana, recusou-se a registrar minha queixa. Estou com medo porque o quartel da Polícia Militar, nas cercanias, afirmou que o policiamento no local era satisfatório. Estou com medo pela trivialidade com que todos encaram os assaltos violentos. Com medo da vingança dos assaltantes, que prometeram voltar (grifos do autor).

Se bem entendi, a partir dessa carta o Instituto Gallup fez uma pesquisa sobre o tema Medo nas grandes cidades. Foram entrevistadas 1161 pessoas residentes em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tabulados os resultados, chegouse a uma listagem de vários tipos de medo, configurando o quadro que se segue:

 

 

 

Conclui o relatório:

Estes dados parecem demonstrar que as pessoas que vivem nas duas maiores cidades brasileiras vivem sob pressão de diversos temores, e que esses temores estão acima dos que poderiam ser considerados naturais nos seres humanos. São gerados pelas ameaças que as grandes coletividades representam e que tendem a torná-las &– estas mesmas coletividades &– mais ameaçadoras, porque constituídas por pessoas ameaçadas (grifo do autor).

Não sei se o que o jornal publicou é tudo ou o essencial da pesquisa realizada (se não for, as críticas que vou fazer não devem evidentemente ser levadas em conta). Mas, no que pude ler, existem coisas importantes a serem comentadas, criticadas ou refutadas (com o que, também, não quero dizer que não se devam fazer pesquisas desse tipo). Vamos por partes.

Em primeiro lugar, sublinhei na carta do carioca Emmanuel Nery a frase: “Estou com medo pela trivialidade com que todos encaram os assaltos violentos” porque acho que essa trivialidade &– e não o medo &– é que deveria ter sido objeto de pesquisa. Como, aliás, o próprio resultado do estudo demonstra. É possível salientar, por exemplo:

1) Se as pessoas vivem “sob pressão de diversos temores”, não é absolutamente anormal e sim perfeitamente normal que tenham temores. E isso, exatamente, é o que a pesquisa mostra, e não o contrário (como conclui o relatório). A pesquisa mostra que a maioria das pessoas tem muitos temores &– portanto,ter temor não é anormal. “Anormal é não ter temor.”

2) Se o normal é ter temor e o anormal é não ter temor, o que deveria ser pesquisado é o fenômeno de “não ter temor”, que outro não é “senão a trivialidade com que muitos encaram a violência”.

Em outros termos, tal trivialidade é que é o fenômeno anormal próprio das grandes cidades. E eu gostaria de aventar uma hipótese: de que tal trivialidade é exatamente do que trata a psicanálise. Ou seja, nós, psicanalistas, muitas vezes sem saber, estamos o tempo todo tratando exatamente da trivialidade. Desde que Freud chamou a atenção para os erros e atos falhos &– esses pequenos e triviais acontecimentos &–, nós psicanalistas pegamos a mania de prestar atenção em detalhes. Detalhes que aparentemente não têm nenhuma importância, mas que quando entram no campo te o inconsciente através da análise, quando focalizamos nossa atenção no desenvolvimento da consciência do paciente para coisas que ele está deixando passar como coisas sem importância ou como uma coisa menor ou trivial (sendo que até violências absurdas podem passar, como se viu na carta do advogado, por coisa trivial), quando estamos trabalhando em análise, enfim, estamos tendo uma participação e uma importância social essencial. Isso porque o problema social ou individual em causa não é absolutamente o medo ou o sintoma &– seja qual for &– manifesto. Medo é uma coisa muito salutar. O problema é o deboche, ou o menosprezo, ou a onipotência, ou a trivialidade com que se trata o medo &– interna ou externamente, individual ou socialmente. Tanto é assim que até se podem, examinando com um pouco mais de cuidado o relatório Gallup, ver tantas discrepâncias nos dados manifestos que se torna difícil pensar que seja possível fazer qualquer coisa com eles tomados em si mesmo &– isto é, sem reflexão.

Gostaria de chamar a atenção para alguns pontos, somente. O medo maior, em São Paulo (79%, cf. quadro anexo), é de cobra. A pergunta é: e daí ? Isso quer dizer que São Paulo está infestada de cobras? Ou infestada de cobras ausentes? Ou de fantasmas de cobras? Eu não sei. Bem, se não se sabe, seria o caso de investigar concretamente e matar as cobras? E se cobra for uma outra coisa, se tiver um outro significado? Não quero pensar em pênis simplesmente, porque isso já é jargão ou trivialidade psicanalítica &– mas, e se para a população que não conhece jargão psicanalítico, tiver algum sentido semelhante? Também se poderia perguntar: e daí? Qual a importâncía disso? A importância disso é que a pesquisa se deslocaria para um outro nível, deixando de ter o caráter de mera curiosidade. Suponhamos, por hipótese, que cobra, ou pênis fantasma, signifique identidade socialmente perdida ou dissociada da pessoa.

O exame de outros dados parece indicar isso. Por exemplo: 70% da amostra de São Paulo tem medo de ser presa, enquanto, contraditoriamente, apenas 12% (e 9% no Rio) tem medo de falar com policiais na rua. Não é estranho? Como é que quem tem medo de ser preso não tem medo de falar com policial na rua? Isso quer dizer simplesmente que quando uma pessoa diz que tem medo de ser presa, ela pode estar querendo dizer outra coisa &– não é necessariamente medo de ser presa o que ela tem. Medo de ser presa é apenas um elemento que precisa ser decifrado, como se fosse um sonho. É um elemento que aponta uma configuração ou conjunção que é inconsciente (isso, obviamente, não quer dizer que não existam prisões reais).

Casualmente, na época em que li sobre essa pesquisa no jornal, alguém me trouxe um sonho no qual estava em uma determinada situação e de repente percebeu que a polícia estava dando voltas e voltas em torno do local, cercando-o. Subitamente chamam pelo seu nome por uma espécie de autofalante. Ele sabe que será preso, que está sendo vigiado, e entra em pânico. Consegue avisar alguém para que lhe dêem proteção se desaparecer. Na vida desperta (ou da realidade cotidiana) essa pessoa não faz absolutamente nada que justifique o seu sonho e o seu medo de ser preso &– o qual, circunstancialmente, podia estar existindo naquele dia, não só em sonho. O que, porém, a análise mostrou, é que o sonho de ser preso era para ele igual a ser querido, ter atenção, não ser rejeitado, não ser uma pessoa sozinha e sem identidade (pois sabemos que a polícia identifica &– ficha o preso) no meio da multidão. Era ser chamado pelo nome no meio de mil pessoas, ser envolvido e amarrado, por amor ou por ódio, assim como uma criança é capaz de ficar horas brincando de prender e amarrar um bichinho de que gosta &– porque essa é a forma dela gostar, prendendo. É claro que essa forma de amar e querer ser amado lhe dava muito medo, pois significava também ter responsabilidade a partir da evidência da sua identidade. Então o medo de ser preso era o que aparecia, era o manifesto. O medo latente era outro &– ou, como sabemos, existem sempre duas realidades, uma manifesta e outra latente, e esta é que precisa ser desvendada ou desenvolvida, caso contrário fica-se a chover no molhado.

Se estou fazendo toda essa propaganda da nossa profissão e da nossa “especial capacidade” de enfrentar os conteúdos latentes (e eficientes) da realidade, ou a realidade insconsciente, resta dizer como é que nós psicanalistas estamos fazendo isso. Acho que no próprio consultório, através do nosso trabalho mesmo. É algo nada trivial (é até muito impressionante) que, no meio de milhões de pessoas, alguns pares delas (analistas e analisandos) se encontrem para examinar, para enfrentar, para não deixar passar como coisas triviais a angústia que cada um de nós sente diante do outro, diante do mundo e diante de nós mesmos. Estamos participando socialmente na medida em que prestamos inteira atenção no que outra pessoa nos conta, ou tem medo de contar. Do ponto de vista social, isso é diferente de ouvir e observar um ser humano como se fosse apenas um a mais, uma coisa trivial, uma formiga a mais (ou uma que se desviou do rumo das outras) que tanto faz esmagar ou não. O respeito de cada psicanalista pelos seus pacientes, individualmente, é uma coisa de um peso social muito grande. E é impossível fazer psicanálise sem respeitar a individualidade, a pessoa do paciente &– o que todos sabemos muito bem, na nossa prática. Não é de estranhar, portanto, que a pesquisa Gallup aponte (tal como visto no quadro anteriormente) tanto medo da solidão, na medida em que sabemos que, no isolamento das cidades grandes, não se encontra o respeito exigido à identidade de cada um &– tal a quantidade de gente que, como formigas, podem mesmo ser esmagadas (veja-se o medo de trânsito) se se desorientam, se perdem o rumo, se saem da trilha das outras formigas e se são tratadas como uma a mais ou a menos.

A psicanálise, talvez mesmo sem ter plena consciência, é uma reação contra isso. Portanto, a psicanálise é uma prática altamente social. Não tem nada de isolado, de alienado, único, diferente, inefável, fora da realidade, que não pode ser comunicado etc. Acho que precisamos estar muito atentos para esses tipos de desvirtuamento da psicanálise que, a meu ver, não têm razão de ser e não correspondem a sua necessidade social. E devemos estar atentos principalmente porque a onda de fazer de tudo o que existe de mais importante uma coisa trivial é uma onda incrivelmente forte, e nós somos poucos.

 

 

Endereço para correspondência
Deodato Curvo de Azambuja
Rua João Moura, 647/51 &– Pinheiros
05412 911 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3064-5165
E-mail: deodato@sbpsp.org.br

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.