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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.31 no.146 São Paulo June 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Psicanálise e experiência cultural: qual é a sua?

 

Psychoanalysis and cultural experience: do you have one?

 

 

Antonio Muniz de Rezende*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na forma de um depoimento, o autor fala de sua experiência cultural em várias ocasiões e em vários países, tentando mostrar como no seu caso ela teve muito a ver com as “transformações em psicanálise”, tanto do ponto de vista teórico como prático. O modelo subjacente é o do próprio Bion, considerado pelo autor um cidadão do universo, com uma inegável proposta de expansão do universo mental, com a ajuda de uma “psicanálise de verdade”.

Palavras-chave: Cultura, Diálogo intercultural, História cultural, Inconsciente cultural, Revolução cultural.


ABSTRACT

In the form of a personal statement, the author discusses his cultural experience in several occasions and different countries, seeking to show how personally his cultural experience had a lot to do with the “transformations in psychoanalysis” both from a theoretical and a practical perspective. His underlying model is that used by Bion, a citizen of the world, in the words of the author, with an undeniable proposal of mental universe expansion with the aid of “real psychoanalysis”.

Keywords: Culture, Intercultural dialog, Cultural history, Cultural unconscious, Cultural revolution.


 

 

No dia 24 de dezembro de 2007, véspera de Natal,senti que era chegado o momento de redigir o artigo que a ide havia me pedido sobre “Psicanálise e experiência cultural”.

Resolvi escrever um texto que pudesse ser lido como depoimento a respeito de minha experiência cultural e a influência que teve em minha vida. Isto me permitiu situar-me no contexto das diversas culturas em que me vi inserido ao longo dos anos, para em seguida pensar criticamente o modo como influenciaram, e ainda influenciam, o psicanalista que sou, em diálogo com meus colegas e pacientes. Escrito na forma de um depoimento, meu texto não tem pretensões científico-acadêmicas, tornando-se por isso mesmo ocasião de citações “cultas”, muito mais que de referências “eruditas”. Espero que os leitores aceitem minha proposta de um diálogo bem aberto sobre um tema tão apaixonante quanto este.

1. À noite minha família reuniu-se para a ceia de Natal. A casa estava enfeitada com uma grande árvore natalina, embaixo da qual, discretamente, se viam as figuras do Menino Jesus, Maria e José. Em volta, os presentes espalhados pelo chão. Muitas luzes, muitas cores, num clima propício à rêverie e à meditação.

É inegável o encantamento mito-poético que o Natal desperta em mim. Influenciado por ele, fiquei pensando no que dizer à minha neta, para transmitir-lhe, à meia-noite, o significado maior da festa. No entanto, aos poucos um sentimento mais forte foi surgindo, como se alguma coisa mais séria estivesse acontecendo, com uma inegável sensação de estranhamento. Quase espontaneamente, veio-me à memória a indagação do poeta: “Mudou o Natal, ou mudei eu?”. Honestamente fui levado a responder com alguma tristeza: “Mudamos ambos!”. Nem o Natal é o mesmo de antigamente, nem eu o mesmo, aos oitenta anos de idade.

Lembrei-me do tempo em que, na infância, ajudava minha avó a armar o presépio. Ela guardava num lugar especial todas as peças: imagens do Menino Jesus, Nossa Senhora e São José, os pastores, os anjos e os Reis Magos, mas também o boi e o burro, as ovelhas, os peixes que nadavam em lagos de espelho, e muitos pássaros pousados nas árvores em miniatura. Eu ficava encantado com a habilidade com que vovó pintava longos metros de papel de embrulho e, depois de amassá-los, transformava-os em grandes pedras que iam compor a gruta de Belém. Havia especialmente uma grande estrela, embaixo da qual uma faixa com os dizeres “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”.

Hoje me chama a atenção a desproporção entre a árvore de Natal e o presépio. Aliás, nem é mesmo um presépio, mas tão somente três discretas imagens colocadas no chão, embaixo da grande árvore. O Natal mudou, e a árvore tornou-se mais importante que o presépio. Não só a árvore, mas Papai Noel mais importante que o Menino Jesus.

Chegamos a contar à minha neta um pouco da história em que São Nicolau virou Papai Noel, mas não pudemos esconder nossa indignação quando vimos, na TV, o Coronel da Net comparar-se vantajosamente a ele. “Papai Noel vem da Lapônia, o Coronel pelo cabo da Net! Papai Noel dá presentes uma vez por ano, o Coronel dá presentes todo dia!”. De fato, o Natal mudou muito. A árvore ficou no lugar do presépio, o Papai Noel no lugar do Menino Jesus, os supermercados no lugar dos templos, o coronel da Net no lugar do Papai Noel!!!

Do ponto de vista que nos interessa, uma outra “experiência cultural” nos vai sendo proposta, à qual as novas gerações se vêem expostas desde muito cedo, sem qualquer ajuda crítico-histórica por parte dos adultos.

2. Numa tentativa de ajudar minha neta, lembrando o Natal de antigamente, acabei optando por fazer, antes da ceia, a leitura do relato do nascimento de Jesus, segundo o evangelho de Lucas. Gosto muito desse texto, por sua simplicidade, com um inegável sabor de verdade histórica, com detalhes vividos, aos quais vem juntar-se naturalmente uma dimensão maior de comunicação entre o humano e o divino. Muito humano o evangelho de Lucas, mesmo ou principalmente ao falar da fé na Palavra de Deus! O que Jesus nos ensina é antes de tudo que Deus é Pai, nós somos filhos, e por isso mesmo todos irmãos. A humanidade é a grande família dos filhos de Deus.

Digo isso pensando na outra versão, de João Evangelista, numa linguagem mais transcendental: “No Princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. E o Verbo se fez carne e habitou entre nós!”. O Natal segundo São João é a Encarnação do Verbo de Deus.

Não sei se todo mundo percebe a significação “cultural” da diferença existente entre o texto de Lucas e o de João. Eu mesmo, apesar de já ter estudado as características de um e outro, do ponto de vista teológico, acabei fazendo, recentemente, uma experiência que me ajudou muito a entender a importância cultural do mar Mediterrâneo na história da civilização ocidental-cristã.

Minha mulher e eu fizemos um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Saímos da Itália e fomos direto ao Egito. De lá, passamos por Israel e paramos na Turquia. Visitamos algumas ilhas gregas e rumamos para Atenas. Voltamos à Itália com uma inevitável visita a Roma.

Ora, este foi exatamente o percurso feito pela civilização ocidental-cristã mais propriamente identificada como judeo-greco-latina. São Lucas se dirigiu aos judeus, São João aos gregos, São Paulo aos romanos. Noutras palavras: da cultura hebraica para a grega, da grega para a latina, antes de espalhar-se pelos países que vieram a compor o Império Romano, principalmente depois da conversão de Constantino, no século IV. Nessa mesma ocasião a Bíblia foi traduzida por São Jerônimo, para o latim, num texto que ficou conhecido como Vulgata, exatamente por destinar-se ao grande público, numa “vulgarização” do texto bíblico dirigido ao Povo de Deus.

O texto de Lucas situa-nos no contexto de uma tradição judaica, com especial referência à Palavra de Deus (Dabar), comunicada aos homens por meio dos profetas. O de João, numa tentativa de estabelecer diálogo com a cultura helênica, não hesita em pelo menos aproximar a Palavra de Deus do Logos grego, como característica cultural dos novos cristãos. Já os romanos acabaram privilegiando a Palavra de Deus como Norma ou Lei, segundo uma característica que vai ficar ainda mais evidente no Direito Romano.

Em Éfeso, comovido, visitei a sepultura de João Evangelista bem como os locais em que, segundo a tradição, viveu Maria, Mãe de Jesus. Até mesmo o guia turístico que nos acompanhava não deixou de fazer alusão ao conflito cultural vivido pelos cidadãos hesitantes entre a fé cristã e o culto prestado a Diana dos Efésios. Com mais emoção ainda, me vi em Atenas visitando especialmente a Acrópole, pensando nos grandes filósofos que influenciaram minha formação filosófico-teológica: Sócrates, Platão e Aristóteles. Por último, em Roma, conscientemente tirei uma foto do Arco de Constantino, primeiro Imperador convertido ao cristianismo, ao lado do Coliseu no qual muitos cristãos foram sacrificados.

Foi em Roma que,em 1954, defendi meu primeiro doutorado, no Angelicum, numa tentativa muito séria de aprender e ensinar uma theo-logia que nos era apresentada como aristotélico-tomista. Isto significava literalmente o reconhecimento final da síntese operada pela história entre as três culturas básicas: a judaica, a grega e a latina, na constituição do que passou a ser chamado e reconhecido como civilização ocidental cristã, espalhada por todo o Império Romano.

Quando nos fala de um “mal-estar na civilização”, pressupondo Moisés e o monoteísmo, é principalmente à civilização ocidental cristã que Freud está se referindo. Dos primórdios ao período clássico e à Idade Média, do Renascimento ao período moderno, do racionalismo ao romantismo, para desembocar no pós-moderno, numa completa revisão do itinerário percorrido (isso seja dito sem deixarmos de mencionar a sugestão de Foucault segundo a qual, com Freud, nós entramos num novo período da história que bem merece ser chamado de “era da psicanálise”).

Emigrado para a Inglaterra, Freud tinha motivos pessoais para queixar-se da violência da guerra e de suas conseqüências. Mas, esta não foi uma experiência somente dele. Na viagem que fiz pelo Mediterrâneo, pude confirmar o “mal-estar da civilização” no fato de que, para onde quer que fôssemos, era sempre para visitar “ruínas”. Ruínas no Egito, ruínas na Turquia, ruínas em Rodes e Chipre, ruínas em Atenas, ruínas em Roma! Ao longo da história da civilização (?), assistimos a demonstrações evidentes não apenas das crises, mas da violência com que foram vividas. Quem não se lembra da frase que todo estudante da língua latina aprende a propósito das Guerras Púnicas?: “Delenda Carthago!” (Cartago precisa ser destruída!). Era a destruição como sinal do poder e da vitória dos mais fortes. A mesma prepotência, dos conquistadores-colonizadores, exaltada por Camões no célebre verso dos Lusíadas: “Dilatando a fé e o império”. E quem, na América Latina, visita principalmente o México e o Peru, não deixa de constatar a violência com que os conquistadores destruíram monumentos importantes das culturas inca e asteca.

Não é, pois, de estranhar que também nós, principalmente os mais velhos, tenhamos sido testemunhas de como e quanto uma verdadeira “revolução cultural” foi conscientemente reivindicada nos anos 60. Vou, portanto, mencionar alguns fatos importantes do ponto de vista cultural, com os quais estive seriamente envolvido, numa experiência cultural que mudou minha vida.

3. Em 1974, na cidade de Reims, realizou-se o XVI Congresso das Sociedades de Filosofia de Língua Francesa, sobre o tema da “cultura”. Eram decorridos apenas seis anos desde os eventos de maio de 1968 em Paris. O Congresso de Reims não podia perder a oportunidade de refletir tão profundamente quanto possível sobre algumas das questões mais sérias levantadas naquela ocasião, e que ficaram associadas ao tema da “revolução cultural”. Nesse sentido, o programa do Congresso escolheu os seguintes eixos principais: l. Natureza e cultura. 2. Cultura, culturas e anticulturas. 3. Cultura e comunicação. 4. Cultura, ciência e técnica. 5. Cultura, ética e civilização. 6. A cultura e o tempo. 7. A cultura vista por seus teóricos. 8. Cultura e informática. Com essa ampla problemática, o Congresso de Reims não deixava de posicionar-se relativamente aos eventos de maio de 1968, não apenas em Paris, mas também em Praga, em Roma, e outros importantes centros culturais da Europa. Não sem razão, o movimento de maio de 1968 tornou-se conhecido como proposta de uma “revolução cultural” no mundo ocidental.

Tive a oportunidade de participar desse congresso, apresentando um trabalho intitulado “Por uma definição fenomenológica da cultura”. Em minha comunicação, distingui seis etapas diferentes na evolução do conceito de cultura:

1. A cultura entendida, por exemplo, na Idade Média, como um privilégio de classe, a nobreza, junto à qual e no prolongamento da qual, as universidades e os monges tinham importante papel a desempenhar.

2. O humanismo da renascença acrescentou ao sentido medieval da cultura uma dimensão particular relativa ao conhecimento do passado clássico, bem como à aprendizagem da fala e da escrita. A cultura renascentista é principalmente estética e literária.

3. Com a Enciclopédia, vemos introduzir-se o sentido de uma cultura geral conotando a extensão do conhecimento às mais diversas áreas, de acordo com o antigo sonho de “tudo saber”.

4. O evolucionismo e o positivismo introduziram a idéia de progresso ao mesmo tempo em que restringiram a cultura em termos de ciência e técnica. Passou-se então a falar de países cultos (principalmente a Europa...), e países não cultos, ao mesmo tempo em que se estabelecia uma diferença entre cultura e civilização.

5. O quinto sentido da cultura é tomado a partir da antropologia, no reconhecimento de que os diversos povos têm também sua cultura, como maneira própria de viver. O relativismo cultural foi reconhecido como uma das intuições mais interessantes da antropologia cultural.

6. Finalmente, podemos falar de uma consciência cultural, relativamente à qual a filosofia e a psicanálise têm importante papel a desempenhar.

Partindo do quinto sentido, proposto pela antropologia sócio-cultural, sugeri definir filosoficamente a cultura como “fisionomia própria que um grupo humano adquire através de sua história”. E para torná-la ainda mais ampla, em termos fenomenológicos, como “forma histórica da existência do homem, definido como ser-no-mundo com os outros”.

No momento em que a SBPSP demonstra especial interesse pelo tema da cultura, pareceu-me oportuno tecer algumas considerações tanto de ordem histórica como teórica sobre sua importância também para os psicanalistas. Para isso, vou valer-me em grande parte das preciosas contribuições daquele congresso, levando em conta minha própria experiência.

4. Quando escrevi aquele artigo para o Congresso de Reims, eu mesmo estava morando no Canadá, trabalhando como professor na cidade de Trois Rivières, no Québec. Minha disciplina era precisamente “filosofia da cultura”. Disciplina tanto mais importante no contexto, porquanto o grande projeto, nos anos 60, era a emancipação política do Québec, baseada no fato de ser uma província com cultura significativamente diferente das outras.

De maneira provocativa, eu estava sendo convidado a participar da preparação dos alunos para o plebiscito em que deveriam decidir a respeito da emancipação sociopolítica do Québec, em função de sua diferença cultural, através daquilo que se chamou na época de Revolução Tranqüila.

Esta foi uma das experiências mais interessantes de minha vida como professor. Eu ministrava a parte teórica e os alunos encarregavam-se de dar exemplos da diferença cultural vivida, com todas as suas conseqüências. Aprendi muito com eles e eles um pouco comigo a respeito da cultura e de uma possível revolução cultural. Aliás, tudo isto tem muito a ver com aspectos importantes de minha própria história nos anos 60, especialmente no Brasil.

Por que e como fui parar no Québec, exatamente nessa ocasião? Porque os anos 60 foram decisivos também para nós no Brasil, em termos políticos e culturais. Impossível esquecer o ano de 64, com a pretensa revolução promovida pelos militares, e suas inegáveis características de contra-revolução. Tratava-se de impedir a revolução cultural-sociopolítica que estava sendo preparada pelos setores mais conscientizados de nossa sociedade!

A partir de 64, como professor em Belo Horizonte, participei tanto quanto possível do movimento em prol das reformas (de base) em nosso país. A tensão aumentou progressivamente, a tal ponto que ficou cada vez mais evidente a diferença entre a Doutrina da Segurança Nacional proclamada pela Escola Superior de Guerra, através do general Golbery, e o conjunto de idéias revolucionárias dos setores mais avançados de nossa sociedade, tanto entre operários como entre universitários e religiosos. Foi nessa época que se realizaram os famosos congressos da UNE, com novas propostas tais como a da Ação Popular na política, a Ação Cultural de Paulo Freire no campo da educação, sem falar na renovação ecumênica proposta pelo Concílio Vaticano II. Muitos jovens conhecidos meus foram presos e torturados. Muitos outros expulsos do Brasil.

Foi assim que, também para nós, chegou o ano de 68, com o Ato Institucional número 5, publicado no dia 13 de dezembro, e a adoção de medidas de exceção, atribuindo poderes ditatoriais aos governantes, em nome da segurança nacional. Nesse contexto é que tive de deixar o país. Eu estava exatamente com quarenta anos e, nos termos de Elliot Jacques, em plena crise da meia-idade, disposto a fazer uma revisão completa de minhas opções de vida e engajamento.

Felizmente consegui uma bolsa de estudos na Universidade Católica de Louvain, para fazer um doutorado em filosofia. Embora já tivesse um doutorado em teologia, defendido em Roma no ano de 1954, eu queria passar da teologia para a filosofia, mais precisamente para a fenomenologia, tal como ensinada e praticada por Paul Ricoeur e Maurice Merleau-Ponty. Mais precisamente, queria escrever uma tese que me permitisse fazer uma crítica rigorosa às diversas formas de dogmatismo com as quais me deparava mais recentemente. A primeira era o “dogmatismo militar” da Escola Superior de Guerra. A segunda o“dogmatismo religioso” daqueles que se recusavam a aceitar as propostas do Concílio Vaticano II. A terceira, o “dogmatismo moralista-pedagógico” presente em muitas famílias e em muitas escolas. Por último o “dogmatismo científico” presente em muitas universidades e instituições de pesquisa, tanto no Brasil como em outros países considerados desenvolvidos.

Quando, no entanto, conversei com meu orientador, o saudoso Prof. Alphonse de Waelhens, ele me fez ver como o projeto era vasto demais, e me propôs restringir-me a uma crítica ao dogmatismo científico, com base na obra de Merleau-Ponty. Foi assim que finalmente redigi uma tese intitulada: “Crítica ao dogmatismo científico da psicologia, segundo Merleau-Ponty”.

Não apenas circunstancialmente, essa tese de filosofia, além de proporcionar-me a ocasião de passar da teologia para a filosofia, deu também início a um processo por meio do qual comecei a passar da filosofia para a psicanálise. E ninguém há de estranhar que, ainda hoje, com a ajuda de Bion, eu continue atento ao que poderia ser considerado mais uma forma de “dogmatismo”, agora no “âmbito da psicanálise”.

5. Defendi minha tese de filosofia em 1974, na Universidade Católica de Louvain. Na mesma ocasião, fui absolvido num julgamento havido em Juiz de Fora, e que tornava possível meu retorno à pátria. Foi o que aconteceu em conseqüência de um convite que recebi para lecionar na Unicamp. Voltei em 1975, para trabalhar na Faculdade de Educação da mesma universidade. Minha disciplina, mais uma vez seria “filosofia da educação e da cultura”. Sobre esse assunto acabei apresentando uma nova tese, de livre-docência, com o título “Educação e Ser-no-mundo”, na qual definia a educação como “ensino-aprendizagem da cultura”.

Na década de 1980, entrei em contato com a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, na qual acabei fazendo minha formação. Além da análise didática com a professora Judith Teixeira de Carvalho Andreucci, o que de mais importante aconteceu comigo foi a descoberta de Wilfred Bion, com cujo pensamento estabeleci um contato permanente até os dias de hoje.

Descobri um Bion cidadão do universo, com todas as conseqüências desse fato, tanto do ponto de vista cultural como epistemológico, na sua maneira originalíssima de conceber e praticar a psicanálise. Nascido na Índia, filho de pais ingleses, foi para a Inglaterra aos oito anos, tendo mantido contato assíduo com o continente, especialmente a França. Morou nos Estados Unidos da América do Norte, tendo visitado particularmente a Argentina e o Brasil, na América do Sul. Mas foi principalmente na sua maneira de conceber e praticar a psicanálise que pude constatar a presença de uma cultura pessoal marcada sobretudo por aquilo que ele próprio chamou de “expansão do universo mental”.

No prolongamento das posições adotadas em minha tese de filosofia (crítica ao dogmatismo científico da psicologia), passei a examinar, com a ajuda de Bion, os sinais de um possível “dogmatismo psicanalítico”. Pude então constatar, com agradável surpresa, que esta era igualmente uma preocupação dele. Não só denuncia a arrogância (edípica) na forma de um dogmatismo-moralista-psicótico, como estabelece uma crítica fina ao modelo médico, tanto do ponto de vista teórico quanto prático, principalmente na maneira como muitas vezes é invocada a “soberania” da clínica. Uma “cultura médica”, praticada de maneira autoritária, acabava comprometendo a expansão do universo mental, preconizada por Bion como sinal de um “acordo com O, em direção a O, infinito, informe, inominável”.

Quanto mais releio sua crítica ao modelo médico, em Atenção e interpretação (1973), mais me impressiona sua abertura, a ponto de falar ao mesmo tempo de uma ciência da psicanálise e de uma psicanálise da ciência. Tentei aprofundar, tanto quanto possível, as intuições de Bion, e acabei reconhecendo que, depois dele, nem minha filosofia nem minha teologia seriam as mesmas. Mas reconheci também como era importante, tampouco, a psicanálise fechar-se em si mesma, alienando-se do mundo e da cultura.

Bion propõe-nos uma crítica ao dogmatismo de todos os tipos, não apenas por amor à liberdade, mas principalmente por amor à verdade. Entendendo a cultura como “forma histórica da existência”, e entendendo a própria “existência como ser-no-mundo-com-os-outros”, culturalmente falando a psicanálise de Bion não deixa de ser uma espécie de “revolução cultural no seio da psicanálise”. Numa frase que me parece resumir bem seu pensamento, podemos dizer, bionianamente que “mais que cura, a psicanálise é procura, uma procura da verdade”. Especialmente uma procura da verdade da personalidade e de seu caráter.

Por ocasião de nosso Congresso Interno em Atibaia, escrevi um pequeno texto intitulado “O lugar dos outros, um outro lugar para a psicanálise” (Rezende, 2007). Ele pode ser considerado uma decorrência lógica do que acabo de dizer: não existe um modelo único para a prática da psicanálise, e muito menos para a definição do que seja a função didática. Uma análise crítica da situação pode finalmente mostrar como, por trás de muitas propostas consideradas práticas, pode existir um posicionamento dogmático inconsciente, favorável a um determinado modelo, em detrimento de outros. Especialmente, o modelo médico-psicológico deixa de lado outros modelos, entre os quais o do próprio Bion.

Aliás, ele próprio começa por distinguir três modelos principais: filosófico-científico, estético-artístico e místico-religioso. Surpreendentemente, porém, não esconde sua preferência pelo modelo místico-religioso e afirma que “estas coisas (da psicanálise) se dizem melhor na linguagem místico-religiosa do que nas outras”.

Estou convencido de que esta preferência tem conotações culturais importantes. Uma delas é decorrente do fato de Bion ter nascido na Índia, e ter entrado, desde muito cedo, em contato com o inconsciente cultural de lá. São freqüentes as citações que ele faz da epopéia Mahabárata, especialmente no capítulo dedicado a Baghavad Gitá, a Canção Sublime. Complementarmente, cita com freqüência os textos de Mestre Eckhart, um místico da Renânia, no século XIV, cujas grandes intuições têm bastantes coisas em comum com a cultura hindu.

Estou convencido de que o que aconteceu com Bion pode ser considerado um exemplo eloqüente para os psicanalistas de hoje, na era da globalização e da comunicação informática universal. Com uma vivência cultural em profundidade, sua proposta mais significativa é a de uma expansão do universo mental, que não exclui o diálogo com a ciência e a filosofia, e tampouco um intercâmbio significativo com as artes.

6. Sem restringir o conceito de cultura, torna-se inevitável indagarmos a respeito da cultura do próprio analista. Como estabelecer um diálogo cultural com o paciente se o próprio analista não tiver pelo menos tentado fazer uma análise crítica de sua própria cultura?

Este é o sentido maior do título do presente artigo: “Psicanálise e experiência cultural: Qual é a sua?”. Cabe a cada psicanalista em particular dar sua própria resposta. Pessoalmente, agradeço à ide a oportunidade que me deu de, pelo menos em parte, poder falar da minha. Mas não posso deixar de perguntar a meus eventuais leitores: “Qual é a sua?”. Por isso mesmo gostaria de continuar meu diálogo com todos os interessados no mesmo assunto. Desde já agradeço aos que o quiserem fazer, pelo e-mail abaixo.

 

Referências

Bion, W. (1973). Atenção e interpretação. Uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Rezende, A. M. de (2007). O lugar dos outros, um outro lugar para a psicanálise. Trabalho apresentado no Congresso Interno da SBPSP “Análise do analista e nosso sistema de formação”. Hotel Village Eldorado, Atibaia, 26 a 28 out. 2007.

 

 

Endereço para correspondência
Antonio Muniz de Rezende
E-mail: amurez@yahoo.com.br

Recebido: 20/01/2008
Aceito: 29/01/2008

 

 

* Filósofo. Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.