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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Por uma crítica da economia libidinal*

 

For a critique of libidinal economy

 

 

Vladimir Pinheiro Safatle**

Universidade de São Paulo. Departamento de Filosofia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto visa discutir o impacto de algumas modificações maiores nos modos de internalização da lei social e de socialização diagnosticados por Jacques Lacan e pela Escola de Frankfurt. Tal diagnóstico nos permitirá compreender o advento do que se convencionou chamar de “sociedades não repressivas” a partir de suas patologias específicas. Por outro lado, ele permitirá também desenvolver uma crítica ao horizonte utópico, posto no conceito de “economia libidinal”.

Palavras-chave: Dessublimação repressiva, Economia libidinal, Flexibilização, Sociedade de consumo, Supereu.


ABSTRACT

This article aims to discuss some majors modifications concerning process of socialization and internalization of social law. Modifications pointed both by Jacques Lacan and the Frankfurt School. This process could lead us to understand the pathologies proper to the development of what we call “non-repressive societies”. It could also to sustain a critique of the utopical horizon present in the concept of “libidinal economy”.

Keywords: Repressive desublimation, Libidinal economy, Flexibilisation, Consummer society, Superego.


 

 

Eu não posso imaginar uma cultura que socializa uma juventude
de tal maneira que a faça duvudar continuamente
de seu próprio processo de socialização.

Richard Rorty, 1989, p. 87.

 

Da necessidade de uma economia libidinal

No lugar da questão sociológica a respeito dos modos de integração social e de conflito social, aparece a questão referente à influência recíproca entre pulsões individuais e reprodução econômica &– ou seja, a aproximação possível entre psicanálise e análise do sistema econômico (Honneth, 1991, p. 101).

Esta frase é, na verdade, o núcleo de uma certa crítica de Axel Honneth a Theodor Adorno. Ela consiste em afirmar que o projeto adorniano seria acometido por algo como um déficit sociológico visível na pretensa impossibilidade do filosofo de Frankfurt fornecer uma verdadeira reflexão sobre o sentido e a dinâmica propriamente social dos processos de racionalização. Impossibilidade que cresceria de maneira proporcionalmente inversa a uma espécie de superávit psicanalítico. Como se a psicanálise tivesse impedido Adorno de levar em conta a autonomia sistêmica das múltiplas esferas de valores que compõem a vida social com suas expectativas próprias.

No entanto, a decisão adorniana em sustentar a relevância desta “influência recíproca entre pulsões individuais e reprodução econômica” talvez nos indique algo mais do que um mero déficit sociológico. Talvez este seja o resultado natural da fidelidade a uma intuição já presente em momentos centrais dos ditos “textos sociológicos” de Freud, a saber, a compreensão de que a análise dos processos de racionalização social deve, necessariamente, submeter-se a considerações mais amplas sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos. Ontogênese esta que é, por sua vez, indissociável da análise da dinâmica conflitual dos processos de socialização do desejo no interior de esferas de interação como a família, as instituições sociais, os aparatos midiáticos de massa e o Estado. Ou seja, em última instância, trata-se de propor a compreensão do fundamento dos processos de racionalização social a partir de problemas ligados à socialização do desejo. É tendo tal submissão em vista que Freud pode fazer afirmações arriscadas como: “mesmo a sociologia, que trata do comportamento dos homens em sociedade, não pode ser nada mais que psicologia aplicada. Em última instância, só há duas ciências, a psicologia, pura e aplicada, e a ciência da natureza” (Freud, 1999d, p. 194).

De fato, uma afirmação desta natureza é temerária por parecer tributária de alguma forma de psicologicismo selvagem que nos levaria a um certo imperialismo psicanalítico que sempre interpreta a multiplicidade dos fatos culturais à luz da repetição modular dos complexos de Édipo e das teorias sobre a sexualidade infantil. Psicologicismo ainda mais temerário por parecer nos induzir a tratar o campo social de maneira atomizada através da hipóstase de funções intencionais particularistas (o desejo) como chave compreensiva de processos sociais complexos.

Entretanto, devemos procurar melhor o que está em jogo nesta tendência psicanalítica, presente desde Freud, de operar no ponto exato de contato entre estruturas da subjetividade e modos de interação social. Exigência resultante da certeza de que um campo é sempre exposição sintomática do outro e de que, se a cura sempre obedece à particularidade do caso, ela não pode, porém, deixar de levar o sujeito a reconfigurar seus vínculos com a ordem sócio-simbólica. Pois, a seu modo, a psicanálise acaba por realizar a intuição weberiana a respeito da necessidade de explicar como a racionalidade dos vínculos sociais em geral e dos papéis econômicos em particular depende fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta. Não se trata de incorrer em alguma espécie de déficit sociológico, mas de insistir que nenhuma perspectiva sociológica pode abrir mão de uma análise das disposições subjetivas que implica a compreensão da maneira com que os sujeitos investem libidinalmente os vínculos sociais mobilizando, com isto, representações imaginárias e expectativas de satisfação que muitas vezes acabam por inverter o sentido de determinações normativas que visam racionalizar tais vínculos.

Pode parecer que fazer afirmações desta natureza implica tentar submeter o quadro compreensivo das estruturas de interação social, com suas exigências de legitimidade e aspirações de validade, a um cálculo de interesses baseado na lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. De fato, todo leitor de Freud sabe como ele procura constituir os protocolos de uma verdadeira econômica. Desde o momento em que procura derivar a dinâmica geral dos processos de julgamento de exigências gerais de maximização de prazer e de afastamento do desprazer, Freud parece mostrar como está disposto a submeter expectativas prático-cognitivas a um cálculo econômico de interesses no interior do qual um raciocínio meramente utilitarista desempenharia o papel de fundamento.

Mas há algumas precisões importantes a serem feitas a respeito desta econômica. A primeira é que a psicanálise trouxe uma noção absolutamente particular de cálculo de interesse, uma noção profundamente não-utilitarista. É tendo isto em vista que psicanalistas como Jacques Lacan insistiram que a inteligibilidade da dinâmica pulsional dos sujeitos não está vinculada à lógica polar do prazer/desprazer. Tal inteligibilidade exige a introdução de um outro campo conceitual com sua lógica própria, um campo que desarticula as distinções estritas entre prazer e desprazer. Este campo organiza-se através de uma noção bastante peculiar de “gozo”. Neste contexto, “gozo” não significa o usufruto dos bens dos quais sou proprietário, mas algo totalmente contrário, uma perspectiva de satisfação que não leva mais em conta os sistemas de defesa e controle do Eu, perspectiva que flerta continuamente com experiências disruptivas, ou ao menos com a “retórica” da transgressão (o que não deve nos estranhar, já que uma das fontes desta teoria do gozo vem exatamente da teoria da festa com fato social total em Bataille, Roger Caillois e na Escola de Sociologia)1. Como veremos, isso talvez nos explique uma certa tendência contemporânea em utilizar o gozo como conceito chave para compreender a economia libidinal própria à sociedade de consumo.

Mas há um problema de fundo que subsiste. Através da transformação de estruturas pulsionais e funções intencionais como o desejo em solo privilegiado de inteligibilidade de processos sociais, continuamos assumindo o risco de construir uma visão atomizada das estruturas de interação social. Perspectiva de transformação de uma teoria pulsional em campo de inteligibilidade de processos sociais que causava repulsa a pensadores como, por exemplo, Claude Lévi-Strauss, para quem: “Na verdade, as pulsões e as emoções não explicam nada; elas sempre resultam, seja da potência do corpo, seja da impotência do espírito. Conseqüências, nos dois casos; elas nunca são causas” (Lévi-Strauss, 1962/2002, p. 105). Mas uma afirmação como essa de Lévi-Strauss não leva em conta que podemos aceitar sem problemas e, ao mesmo tempo, que pulsões e desejos não são sistemas causais irredutivelmente individuais e que através da socialização de tais pulsões e desejos internalizamos processos gerais de orientação do julgamento e da ação. Ou seja, através de tais processos de socialização internalizamos padrões gerais de racionalidade que tendem a guiar o comportamento social. Neste sentido, é incorreto afirmar que pulsões e emoções não explicam nada.

É fato que Lévi-Strauss e vários outros gostariam de simplesmente dizer, por exemplo, que o desejo é um efeito do universo simbólico social, uma disposição produzida integralmente por ele, e não sua causa. Assim, eles podem se contentar com explicações sistêmicas e estruturais que não precisam levar em conta a maneira com que os sujeitos fornecem uma perspectiva distinta da perspectiva meramente estrutural de significação de fenômenos sociais. Neste sentido, podemos afirmar que o encaminhamento freudiano é de fato radicalmente “psicologicista”, mas, por isso, ele é mais “materialista” do que o de seus críticos. Pois ao colocar como tarefa fundamental a possibilidade de considerações sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos, ao afirmar que há uma ontogênese social de tais capacidades que se revela na compreensão das dinâmicas de socialização, ela afirma o caráter empírico (no sentido de absolutamente não-transcendental) das estruturas gerais daquilo que estamos dispostos a contar como racional. Há uma gênese empírica das estruturas de orientação do que aspira ser visto como ação racional. A questão freudiana consiste em saber quais são os protocolos fundamentais de determinação de tal gênese.

A natureza desta empiricidade fica mais evidente se lembrarmos que, para Freud e para grande parte da posteridade psicanalítica, os dispositivos de formação e de individuação presentes nas dinâmicas de socialização são legíveis a partir daquilo que compreendemos como sendo processos de identificação e de investimento libidinal. Até porquesocializaré,fundamentalmente,“fazer como”,atuar a partir de tipos ideais que servem de modelos de identificação e de pólo de orientação para os modos de desejar, julgar e agir. No entanto, essa identificação a tipos ideais não pode ser descrita simplesmente a partir de considerações sobre as pressões de conformação presente em núcleos elementares de interação social (família, instituições sociais, medias). Freud compreendeu que as estruturas elementares que orientam o que está em jogo nesses núcleos de interação são figuras privilegiadas da razão. As exigências de racionalidade presentes nestes núcleos são, necessariamente, manifestações privilegiadas do que estamos dispostos a contar como racional. Contudo, Freud nunca deixará de colocar a questão “O que é necessário perder para se conformar a exigências de racionalidade presentes em processos hegemônicos de socialização e de individuação?”, ou ainda, “Qual o preço a pagar, qual o cálculo econômico necessário para viabilizar tais exigências?”. Pois devemos nos perguntar o que deve acontecer ao sujeito para que ele possa se pautar por um regime de racionalidade que impõe padrões de ordenamento, modos de organização e estruturas institucionais de legitimidade. Neste ponto, vale a pena voltarmos a algumas elaborações fundamentais presentes no texto freudiano a fim de encaminhar melhor qual pode ser uma economia libidinal à altura dos problemas da sociedade contemporânea.

 

Pressupostos sociais do supereu freudiano

Um dos principais conceitos criados por Freud para a análise de fatos sociais foi o de supereu. Ao tentar explicar, através do mesmo dispositivo, a gênese da consciência moral, do sentimento de culpa, dos ideais sociais do eu e da internalização da lei simbólica, Freud deparou-se com um processo no qual socialização e repressão convergiam em larga medida. Hoje, as páginas do Mal-estar na civilização que tratam de tal imbricação são arquiconhecidas. “Toda cultura deve necessariamente se edificar sobre a repressão e a renúncia pulsional” é uma frase que ressoou como programa crítico durante todo o século XX.

Grosso modo, a frase de Freud indicava os resultados sociais de uma relação ambivalente que se dá inicialmente no interior da família burguesa; relação marcada pela sobreposição entre rivalidade e identificação que aparece de maneira mais visível no conflito entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como sujeito e como objeto de amor no interior da esfera familiar, faz-se necessário que o sujeito se identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei repressora em relação às exigências pulsionais. O resultado é a internalização psíquica de uma “instância moral de observação”, no caso, o supereu resultante desta identificação parental. Isso faria com que toda afirmação do gozo ligado à satisfação pulsional provocasse, necessariamente, um sentimento de culpa advindo da pressão sádica do supereu sobre o eu. Sentimento de culpa que não deixa de provocar, como benefício secundário, um modo neurótico de gozo.

Sabemos que a psicanálise freudiana normalmente opera com uma perspectiva unívoca na compreensão da multiplicidade das ordens simbólicas. Há, por exemplo, a pressuposição de uma espécie de princípio de articulação estrutural entre a autoridade familiar e a autoridade que suporta outros vínculos sociais, como os vínculos religiosos ou políticos.2 Tal articulação entre esferas aparentemente autônomas de valores (família, religião, Estado) permite a Freud insistir que aquele que suporta a função paterna não é apenas representante da lei da família, mas de uma Lei que determina o princípio geral de estruturação do universo simbólico. Não se trata de tentar derivar as ordens simbólicas a partir do núcleo familiar, mas de insistir no fato de que problemas de socialização do desejo no interior do primeiro campo de experiências do sujeito, ou seja, o núcleo familiar, trazem necessariamente tensões de socialização em esferas mais amplas. Isto abre o caminho para Freud afirmar que o sentimento de culpa: “seria o mais importante problema no desenvolvimento da civilização” (Freud, 1999c, p. 97), e não simplesmente no desenvolvimento da família burguesa. Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das configurações familiares a estruturas sociais mais amplas. Porém, quem diz dependência não diz subsunção simples.

De fato, tudo isso é praticamente um lugar-comum atualmente. Mas algumas modificações substanciais ocorreram em certos processos de socialização e elas fazem com que o problema do supereu ganhe hoje novas configurações. Este ponto não deve nos estranhar, pois, se o supereu tem sua gênese exatamente a partir dos processos de socialização, se ele é: “uma manifestação individual ligada às condições sociais do edipismo” (Lacan, 1966, p. 136),3 então ele necessariamente se modificará à medida que tais processos se reconfigurarem. Fato que, como veremos, Jacques Lacan e a Escola de Frankfurt perceberam claramente ao pensar as incidências clínicas de uma modificação histórica maior bem definida por críticos conservadores da modernidade: o advento de uma espécie de “sociedade não repressiva” vinculada à universalização das práticas de consumo. Isso terá implicações na configuração dos modos de identificação social com suas conseqüências. Para entender o significado e alcance de tais elaborações, valeria a pena darmos um passo para trás.

Muito há ainda a se dizer, por exemplo, a respeito de certas articulações possíveis entre Freud e Max Weber como teóricos da modernização, dos processos de racionalização e de suas conseqüências. Não deixa de ser tentador lembrar como esse supereu que articula uma consciência moral fundada na repressão de moções pulsionais teve, por exemplo, uma função social preciosa no desenvolvimento do capitalismo como sociedade de produção. Isto nos permite afirmar que a economia libidinal da sociedade de produção teria alimentado uma instância psíquica como o supereu repressor, o que pode nos explicar certos motores de sua permanência.

Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca haveria capitalismo sem a internalização psíquica de uma ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no éthos protestante da acumulação de capital e do afastamento de todo gozo espontâneo da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de produção era um trabalho que não visava exatamente o gozo do serviço dos bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que: “não retiram nada de sua riqueza para si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver ‘cumprido’ devidamente a sua tarefa” (Weber, 2001, p. 56). Weber chega a falar em uma “sanção psicológica” (p. 102) produzida pela pressão ética e satisfeita através da realização de um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renúncia ao gozo. O que o leva a insistir que: “O summum bonum desta ‘ética’, a obtenção de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento do todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista” (p. 42). A irracionalidade deste processo de racionalização do trabalho, ao menos a partir de uma lógica eudemonista ou hedonista, pode nos indicar seu caráter superegóico.

Weber nos indica claramente vários traços superegóicos desta Lei da ética protestante do trabalho: a transformação do Pai Celestial que suportava a Lei no Novo Testamento em um Pai Severo superegóico: “Ser transcendental, além do alcance do entendimento humano” (Weber, 2001, p. 83), um trabalho feito como vocação que é resposta à voz do Outro (no caso, o chamado de Deus),4 a culpabilização de todo prazer sensível (rebaixamento do sensível que Freud compreendeu como figura maior da renúncia pulsional) e a entificação obsessiva de um “autocontrole sereno” como ideal de conduta (p. 95).

Sendo assim, se a lei moral que sustenta a disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta econômica é uma figura do supereu,5 então a economia libidinal do capitalismo como sociedade de produção seria impensável sem o desenvolvimento de uma civilização neurótica que só poderia pensar seus processos de socialização através da instrumentalização repressiva do sentimento de culpa. E Freud não teme em falar neste caso de “patologias das comunidades culturais” (Freud, 1999c, p. 505) (Pathologie der kulturellen Gemeinschaften). O que não significa que todos os sujeito de uma determinada sociedade serão neuróticos, mas que os ideais socioculturais responsáveis por processos de socialização baseados em identificações tendem a produzir estruturas libidinais neuróticas.

Tais considerações demonstram a função do recurso à psicanálise no interior de uma teoria dos processos de modernização e racionalização. Costumamos aceitar tacitamente que agir e julgar racionalmente significa, entre outras coisas, determinar a conduta a partir de práticas e instituições que aspiram validade universal. A ação racional pressupõe, mesmo que como horizonte regulador, a possibilidade de institucionalização de critérios de justificação legitimados pelo assentimento não coercivo. Entretanto, tal possibilidade já deve estar atualmente em operação, mesmo que de maneira imperfeita (ou ainda ambivalente), através de instituições e práticas que socializam sujeitos cujas ações e julgamentos aspiram racionalidade.

As colaborações maiores de Freud consistiriam, neste caso,em insistir que tais processos de socialização se dão inicialmente no interior da família e, por isto, são marcados pelos conflitos e representações imaginárias próprias ao universo familiar; um universo em que a demanda de amor e as exigências de submissão estão absolutamente imbricadas. Por isso, eles são, ao mesmo tempo, realização de aspirações racionais e produção de instâncias repressivas que agem individualmente nos sujeitos através da culpabilização de exigências pulsionais. Toda socialização é normativa, ela é normatividade que se impõe à vida com suas exigências de satisfação pulsional. Max Weber não havia mostrado outra coisa ao insistir que a gênese da ética protestante do trabalho na constituição da racionalidade do capitalismo era solidária do ascetismo e da restrição ao gozo.

Contudo, conhecemos várias críticas à plausibilidade desta “hipótese repressiva”, sendo que uma das principais vem de Michel Foucault. Em História da sexualidade, Foucault não deixa de criticar o vínculo entre ascetismo e consolidação da sociedade capitalista de produção. Ele insiste que as tecnologias de si próprias ao mundo burguês moderno não podem ser compreendidas como simples dispositivos repressivos montados contra um corpo libidinal metafisicamente pressuposto, substrato natural que apareceria como base para as operações do poder. Ao contrário, deveríamos: “abandonar o energitismo difuso que sustenta o tema de uma sexualidade reprimida por razões econômicas” (Foucault, 1976, p. 151). Só assim poderíamos compreender que a modernidade foi um longo processo de constituição (e não de repressão) da sexualidade, implementação de um poder disciplinar que constituiu tanto mecanismos de incitação a modos de investimento libidinal reconhecidos socialmente como figuras de resistência; já que o verdadeiro poder não se funda apenas em operações de gestão coercitiva de padrões normativos de conformação, mas, principalmente, na produção dos próprios modos de resistência à “dominação”. Foucault quer liberar a reflexão do poder de temáticas vinculadas à opressão, isto a fim de permitir a melhor compreensão do caráter criador de um poder que engendra, um biopoder que incita modos de investimento libidinal, assim como modos de conflito.

Tendo isso em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, que os processos de entificação do ascetismo e da desqualificação da carne analisados por Max Weber eram inicialmente, na verdade, técnicas de: “intensificação do corpo, de problematização da saúde e das suas condições de funcionamento” (2001, p. 162). Maneira de assegurar a longevidade e a nãocorrupção da descendência. Contra essas práticas disciplinares que constituem a sexualidade não se trataria de consolidar críticas aos processos de interversão das expectativas de racionalidade em regimes de dominação de si. A verdadeira crítica consistiria em, de uma forma ou de outra, “desativar” os dispositivos de sexualidade, cortando o vínculo tacitamente aceito entre sexo e lugar da verdade, suspendendo a economia libidinal alimentada por processos disciplinares.

Há, porém, duas considerações a fazer a respeito desta perspectiva de Foucault. Primeiro, uma análise psicanaliticamente orientada não teria maiores dificuldades em aceitar a temática de um biopoder que engendra dispositivos de sexualidade. Lembremos que o problema maior levantado por Freud a respeito dos modos de internalização da Lei através do supereu consiste exatamente em mostrar como dinâmicas de repressão se transformam em modo neurótico de satisfação, mostrar como aquilo que nos adoece é fonte de gozo. Neste sentido, a hipótese repressiva é apenas a descrição de um modo de internalização de práticas disciplinares.

Mas é fato que a temática da “repressão” nos leva à pressuposição de um corpo libidinal “naturalizado”, isso no sentido de não ser totalmente redutível à condição de efeito da ordem do discurso. Não há porque negar esse ponto, assim como não há porque negar sua importância em temáticas, como a adorniana, de interversão da razão em procedimento de dominação da “natureza interna”. Melhor seria mostrar como o próprio Foucault é muitas vezes obrigado a retomar um substrato corporal para além da esfera da ordem do discurso, isto a fim de sustentar procedimentos de crítica ao poder.6 Ou seja, melhor seria mostrar como não é fácil se livrar da “hipótese repressiva”.

 

Da produção ao consumo

De qualquer forma, não há como esquecer como esse diagnóstico social de bloqueio dos processos de modernização devido a uma socialização construída a partir da repressão pulsional superegóica foi paulatinamente revisto pela posteridade dos leitores de Freud. Muito já se falou, por exemplo, a respeito das incidências do declínio da imago paterna na reconfiguração dos processos de socialização e sua posterior conseqüência na formação de ideais sociais repressivos. Mas vale a pena insistir aqui em um outro ponto. Se é fato que a incidência social da figura do supereu estaria vinculada (embora não se trate necessariamente de uma relação de causalidade simples) a uma certa “dinâmica libidinal” da sociedade de produção através da entificação da ética do trabalho, então devemos pensar as conseqüências advindas do esgotamento da sociedade de produção, ao menos tal como ela aparecia no início do século para Freud e Weber. Podemos seguir aqui aqueles que insistem na temática do declínio da sociedade do trabalho e da obsolescência do paradigma da produção.7Assim, no lugar da sociedade da produção, devemos compreender a contemporaneidade e seus traços a partir da temática da sociedade do consumo, no sentido de que problemas vinculados ao consumo acabam por direcionar todas as formas de interação social e de desenvolvimento subjetivo, assim como é o incentivo ao consumo que aparece como problema econômico central. Ou seja, podemos nos perguntar se a obsolescência do paradigma da produção não implica a queda do trabalho como processo fundamental de socialização e de constituição de padrões de racionalidade social.

Lembremos que, devido ao desenvolvimento tecnológico exponencial e ao aumento da produtividade, cada vez menos sujeitos precisam estar envolvidos diretamente nos processos de produção.8 Mesmo na esfera do trabalho, modificações estruturais ocorreram. Clauss Offe nos lembra que “desde os anos 40 é recorrente a hipótese genérica de que, a partir de um certo grau de industrialização, a tendência de desenvolvimento da sociedade industrial se alteraria no sentido da expansão do setor terciário, e não mais do industrial” (1991, p. 12). Tal crescimento do setor terciário indica, entre outras coisas, que boa parte dos novos empregos estão fundamentalmente envolvidos em processos de ampliação do consumo, de manuseio da retórica do consumo (vendas, publicidade, marketing, design, administração), de “manipulação de símbolos” (Reich, 1993) ou ainda de manutenção da produção em sua forma social (saúde, educação, segurança). Se pensarmos principalmente no primeiro e no segundo grupo, veremos que, no interior mesmo da esfera de trabalho, os sujeitos deparam-se com imperativos conflitantes, pois seu trabalho visa à disponibilização de serviços que não se submetem à reprodução da ética do trabalho.

Compreenderemos melhor este ponto se lembrarmos que a mudança de paradigma, da sociedade industrial da produção para a sociedade pós-industrial do consumo, traz uma série de conseqüências fundamentais, a começar pelo fato de que os modos de alienação necessários para entrarmos no mundo do trabalho não são totalmente simétricos aos modos de alienação que fazem parte do mundo do consumo. De maneira esquemática, podemos afirmar que o mundo capitalista do trabalho está vinculado à ética do ascetismo e da acumulação. O mundo do consumo pede, por sua vez, uma ética do direito ao gozo. Pois o que o discurso do capitalismo contemporâneo precisa é da procura ao gozo que impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo. Ele precisa da regulação do gozo no interior de um universo mercantil estruturado. Isso tende a implicar a secundarização dos processos de socialização do desejo baseados na produção do sentimento de culpa em prol de outro processo no qual socialização e implementação de expectativas de gozo se articulam conjuntamente.

A consciência dessa passagem da ética protestante do trabalho ascético para a ética do direito ao gozo aparece, por exemplo, na crítica conservadora de Daniel Bell contra a dissociação entre os imperativos tecnoeconômicos de produção e os imperativos culturais na modernidade ligados ao desenvolvimento do eu e ao princípio do prazer: “O novo capitalismo (o uso desta palavra data dos anos 20) continua exigindo as regras da moral protestante no domínio da produção &– ou seja, no domínio do trabalho &– mas ele estimula ao mesmo tempo o direito ao prazer e ao entretenimento” (Bell, 1978, p. 85).9 A contradição de imperativos marca a tensão que encontramos na passagem de uma sociedade da produção para a sociedade do consumo. Tensão que o próprio Bell reconhece muito bem ao lembrar que: “O maior instrumento de destruição da ética protestante foi a invenção do crédito. Antes, para comprar era necessário primeiramente economizar. Mas com um cartão de crédito nós podemos satisfazer imediatamente nossos desejos” (1978, p. 31).

 

Dessublimação repressiva e a função social do supereu

O que nos interessa aqui são certas conseqüências psíquicas desta passagem da sociedade da produção à sociedade do consumo. Jacques Lacan identificou talvez a maior delas ao insistir que a figura social dominante do supereu na contemporaneidade não estava mais vinculada à repressão das moções pulsionais, mas à obrigação da assunção dos fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo. Daí porque ele nos lembra que o verdadeiro imperativo do supereu na contemporaneidade é: “Goza!”, ou seja, o gozo transformado em uma obrigação (Lacan, 1975 a, p. 10).

Já há muito, não vemos mais a hegemonia de discursos sociais que pregam a repressão. Hoje, o verdadeiro discurso que sustenta os vínculos socioculturais da contemporaneidade é, digamos, mais maternal. Trata-se, por exemplo, do:“cada um tem direito a sua forma de gozo”(ou ainda “cada um deve encontrar sua forma de gozo”) que podemos encontrar na liberação multicultural da multiplicidade das formas possíveis de sexualidade.10 Devemos pensar aqui na tese de que a incitação e a administração do gozo transformaram-se na verdadeira mola propulsora da economia libidinal da sociedade de consumo, isso em vez da repressão própria à sociedade da produção.

De fato, a Escola de Frankfurt já oferecia um aparato para pensar tal situação através do conceito de “dessublimação repressiva”,utilizado inicialmente para a compreensão de certas características das sociedades totalitárias. Sabemos como a noção de dessublimação repressiva aparece no edifício frankfurtiano, entre outras coisas, como possibilidade de instrumentalização social direta das moções pulsionais sem recalcamento, fruto de uma época na qual o eu não seria mais capaz de se impor como instância de mediação entre as exigências pulsionais do isso e o princípio de realidade. Adorno, por exemplo, chega a falar em “expropriação do inconsciente pelo controle social” (Adorno, 1990, p. 431) que se imporia devido à fraqueza do eu. Em paragens distintas, Lacan, ao falar da “assimilação social do indivíduo levada ao extremo” (Lacan, 1966, p. 146)11 não pensava em outra coisa; à exceção de que, para o psicanalista parisiense, o eu não é exatamente uma instância de mediação, mas já é desde sempre construção reificada de imagens socialmente ideais. Daí a falta de sentido em procurar evitar a expropriação social do inconsciente através de alguma espécie de “fortalecimento” do eu (que Adorno tão pouco estava à procura).

Mas no interior deste debate, devemos lembrar como Marcuse configura corretamente tal expropriação do inconsciente como neutralização social do conflito entre princípio de prazer e princípio de realidade através de uma satisfação administrada, ou seja: “uma liberalização controlada que realça a satisfação obtida com aquilo que a sociedade oferece”, pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao campo dos negócios e dos divertimentos, a própria repressão é recalcada” (Marcuse, 1996, p. 106). Ou seja, abre-se a todos esses autores a consciência de uma modificação substancial nos processos de socialização. Eles compreendem a tendência das imagens sociais ideais não estarem mais vinculadas a representações do “autocontrole sereno” da renúncia pulsional como princípio de conduta. Com a “integração da esfera da sexualidade ao campo dos negócios”, ou seja, com a incitação ao gozo como elemento central na lógica de reprodução mercantil do capitalismo, o que proliferam são imagens ideais daqueles que instrumentalizam seus fantasmas e que pautam sua conduta pela exigência irredutível de gozo.

Para compreender melhor esse aspecto, devemos lembrar que falta à construção frankfurtiana a compreensão de que tal expropriação do inconsciente se dá, na contemporaneidade, através de novas figuras sociais do supereu.12 Não se trata de uma correção sem maiores conseqüências. Suas implicações ficam visíveis se seguirmos o problema do supereu na experiência intelectual lacaniana.

 

A inversão lacaniana do supereu

A longa elaboração lacaniana a respeito do supereu terminou na definição do “Goza!” como o verdadeiro imperativo superegóico.Vale sempre a pena salientar como essa é inversa àquilo que normalmente encontramos em Freud. Sabemos que em Freud o supereu é o resultado de um processo no qual socialização e repressão convergem devido à exigência cada vez mais inconsistente de renúncia pulsional. Como vemos na reflexão freudiana sobre a neurose obsessiva, é a culpabilização do gozo que aparece como resultado da ação do supereu.

Lacan, no entanto, tem clara consciência da modificação dos processos de socialização na contemporaneidade e do seu impacto na configuração da figura do supereu. Em um diagnóstico de época simétrico àquele fornecido por Horkheimer em 1936, ele insiste no “grande número de efeitos psicológicos derivados do declínio social da imago paterna. Declínio condicionado pelo retorno sobre o indivíduo de efeitos extremos do progresso social” como a “concentração econômica e as catástrofes políticas” (Lacan, 2001, p. 60) Podemos pensar que Lacan tem em mente, entre outras coisas, o problema horkheimeano do enfraquecimento da autoridade paterna devido ao impacto, no interior da família, do desenvolvimento impessoal da grande corporação burocrática. Impacto que faz com que a figura paterna (o que não quer dizer a função paterna, tal distinção será utilizada a exaustão por Lacan) seja cada vez mais: “ausente, humilhada, carente ou postiça” (p. 61).

Entretanto, o declínio da figura ideal paterna não significa em absoluto decréscimo da pressão do supereu e de suas conseqüências. Lacan irá trabalhar por trinta anos até chegar à explicação de que o declínio da imago paterna abria espaço para o advento de figuras fantasmáticas de autoridade que se assemelhavam ao pai primevo do mito freudiano de Totem e tabu; ou seja, ao pai-senhor do gozo que pauta suas ações pela procura incessante da satisfação imediata. Figura perversa, feroz e obscena, como dizia Lacan, que pouco tem a ver com a figura tradicional de um pai que converge imperativos de repressão e de sublimação. Isso fará Lacan afirmar, por exemplo, que a verdadeira versão do pai é uma père-version.

A questão de Lacan torna-se então: o que significa pensar processos de socialização a partir de “tipos ideais” que pautam suas ações pela procura incessante de satisfação imediata? Fundamentalmente, significa dizer que a identificação do sujeito com tais tipos será introjetada através de um supereu não mais vinculado à repressão, mas ao imperativo do gozo. Daí porque Lacan pode afirmar que “o supereu se origina deste pai original mais do que mítico, deste apelo como tal ao gozo puro, ou seja, apelo também a não-castração: Goza!” (Lacan, 1971, sessão de 16/06/71).

Porém, poderíamos perguntar: qual o problema com tal supereu? A princípio nada melhor do que uma instância psíquica capaz de impulsionar exigências de gratificação do gozo e que marcaria todos os discursos repressivos com o selo da obsolescência. Ela seria a realização perfeita desta moralidade libidinal necessária à multiplicidade plástica da sociedade de consumo. Mas, “tal ordem [Goza] é impossível de ser satisfeita”, e devemos nos perguntar de onde vem tal impossibilidade estrutural.

Lacan sempre insistiu que a lei do supereu era uma “lei insensata” (Lacan, 1975b, p. 119), que funciona como um significante desprovido de significado. Tal caráter insensato indica, entre outras coisas, que o supereu não tem nenhum conteúdo normativo, ele nada diz sobre como gozar ou qual o objeto adequado ao gozo. Ele diz apenas um “Goza!” sem predicações, um puro “não ceda em seu desejo”. O caráter insensato desse puro gozo fica evidente se pensarmos que toda escolha empírica de objeto é inadequada a um gozo que procura afirmar-se em sua pureza de determinações, em sua independência em relação a toda e qualquer fixação privilegiada de objetos. Ele só pode se realizar no “infinito ruim” do consumo e da destruição incessante dos objetos, que nada mais faz do que atualizar um excedente de gozo.13 Ou seja, estamos diante de um supereu perfeito para uma sociedade marcada exatamente pela obsolescência programada de mercadorias. Sociedade que deve alimentar o fluxo contínuo de equivalências em campos sociais cada vez mais alargados.

Neste sentido, o supereu lacaniano representa um passo além de idéias como, por exemplo, as que animam a compreensão de Michel Foucault a respeito da mudança nas táticas dos processos disciplinares a partir, sobretudo, dos anos 60. Mudança retratada em afirmações do tipo: “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu... mas, seja magro, bonito, bronzeado!’” (Foucault, 1996, p. 147). Ou seja, apresente sua sexualidade, mas no interior de formas socialmente fornecidas e codificadas pelo mercado. Contudo, o que o conceito lacaniano de supereu nos indica é a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados. Volto a insistir, a lei do supereu é vazia, sem determinações privilegiadas. Desta forma, ela pode nos ajudar a compreender porque, na sociedade contemporânea de consumo: “Magro, bonito e bronzeado” pode facilmente ser trocado, por exemplo, por “doente, anoréxico e mortífero” sem prejuízos para sua capacidade momentânea de mobilização de desejos.

O próprio uso de “gozo” como conceito privilegiado para a compreensão da economia libidinal da sociedade de consumo nos diz muito. Como foi dito anteriormente, o conceito de gozo permite a Lacan desenvolver explicações de orientação da conduta baseadas na procura de satisfação pulsional, mas sem, com isso, apelar aos cálculos utilitaristas de maximização do prazer-afastamento do desprazer. Apelo que acabaria por levar a crítica da sociedade de consumo ao campo da denúncia de um certo hedonismo como padrão geral de racionalidade. Não é sem interesse neste contexto lembrar que o conceito de gozo, ao menos tal como Lacan inicialmente o utiliza, vem de uma certa teoria social que procura explicar fenômenos como o sacrifício, a festa, o sagrado, e práticas de consumo de objetos (como o potlatch) que não se submetem à lógica utilitária dos bens. Fenômenos sociais em que a suspensão transgressora da norma e a conservação da norma ordenadora se confundiriam.

Ao ser utilizado para a compreensão das dinâmicas próprias aos processos de socialização e à economia libidinal da sociedade de consumo, tudo se passa como se Lacan afirmasse que o modo de satisfação próprio às sociedades de consumo não está vinculado a simples repetição normatizada de padrões e estereótipos. Ao contrário, o modo de satisfação das sociedades de consumo só pode ser compreendido se aceitarmos a existência de um processo no qual posição de padrões e transgressão estão absolutamente imbricados.

 

A sociedade da insatisfação administrada e seus dispositivos disciplinares

Vale a pena insistirmos mais neste ponto. Como, em última instância, toda determinação se mostrará provisória e inadequada diante de um imperativo superegóico que exige o puro gozo, faz-se necessário que o sistema de mercadorias disponibilize determinações de maneira cada vez mais descartável e de maneira cada vez mais rápida, importando-se cada vez menos com o pretenso conteúdo de tais determinações. Em última instância, isto nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo veiculadas pelo sistema de mercadorias (já que elas são postas para serem descartadas), a começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada vez mais auto-irônica e “crítica”. 14 Ou seja, estamos diante de uma sociedade em que os vínculos com os objetos (incluindo aqui os vínculos com a imagem do corpo próprio) são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de se alimentar dessa fragilidade. Até porque, não se trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de representações sociais através do mercado. Trata-se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado.

O segredo desta sociedade em que os vínculos com os objetos são frágeis, mas que é capaz de alimentar-se desta fragilidade mesma, está naquilo que chamamos de “ironização absoluta dos modos de vida”. Em uma sociedade da insatisfação administrada, os sujeitos não são mais chamados a se identificar com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e uma certa ética da convicção, o que é impossível em uma situação de crise de legitimidade como a nossa. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações em que, a todo momento, o sujeito afirma sua distância em relação àquilo que ele está representando ou ainda, em relação a suas próprias ações. Uma exigência irrestrita de gozo que procura realizar-se através da anulação de toda determinidade “restritiva” encontra sua forma perfeita na ironia absoluta que reenvia todo vínculo com a determinidade ao campo do inefetivo. Assim, a ironização absoluta dos modos de vida com sua lógica de autonomização da aparência nada mais é do que posição subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados própria a essa nova figura social do supereu.. Ela ganha relevância em uma situação histórica, como a nossa, na qual a ideologia no capitalismo pode livrar-se de todo e qualquer vínculo privilegiado a conteúdos substantivos. Pois:

Da mesma forma que o sujeito irônico pode adotar qualquer discurso ou persona, o capitalismo pode colocar no mercado qualquer discurso ou valor... Ironia representa, ao mesmo tempo, uma tendência e um problema do capitalismo. Ela sempre pôs algum ponto para além de todo conteúdo ou valor particular. Neste sentido, ela antecipou a tendência do capitalismo em atravessar contextos e produzir um ponto universal a partir do qual todos os valores podem ser intercambiados (Colebrook, 2004, p. 150).

 

O que vem depois do ocaso da culpabilidade?

Tal configuração sociocultural talvez nos ajude a compreender por que os grandes sintomas da contemporaneidade não são mais o sentimento obsessivo de culpa ou a “conversão” histérica, que pressupunham, cada um à sua maneira, a crença em desejos recalcados em sua própria enunciação por instâncias repressoras. Desejos que habitariam a Outra cena de um corpo erógeno que nunca pode tomar diretamente a palavra e que seriam liberados através de procedimentos hermenêuticos de interpretação de resistências. Se alguns dos sintomas mais correntes na atualidade são “a ansiedade e a depressão”, eles talvez nos indiquem resultados da pressão deste supereu vinculado ao puro imperativo de gozo. Tanto a ansiedade como a depressão pressupõem a consciência tácita da incapacidade em sustentar escolhas de objeto. Enquanto a ansiedade é exigência do desejo em atravessar de maneira cada vez mais rápida escolhas de objeto, a depressão é exatamente a impossibilidade de vincular-se a uma relação de objeto. Os dois casos podem ser vistos com sintomas diretamente resultantes da introjeção de um supereu que ordena uma injunção de gozo tão forte e incondicional que toda tentativa de realização efetiva será necessariamente um fracasso. No caso da depressão, lembremos da idéia central de Pierre Fedida: “A depressão é uma doença da forma &– o psíquico sendo aquilo que dá forma ao vivente. ‘Sinto-me desfeita em minha aparência humana’, diz uma mulher no momento em que começa a se descrever” (Fédida, 2002, p. 12). Lá onde uma escolha de objeto não pode se estruturar, é a própria imagem de si que se desfaz.

No entanto, devemos acrescentar aqui outro sintoma dos processos contemporâneos de socialização. Ao lado da ansiedade e da depressão, devemos pensar principalmente no cinismo como sintoma de “um mundo sem culpa” (Arantes, 2004). “Cinismo” é o nome correto dessa posição subjetiva que é capaz de sustentar identificações socialmente disponibilizadas ao mesmo tempo que ironiza, de forma absoluta, toda e qualquer determinidade (por reconhecer seu caráter descartável). Ela nega reflexivamente aquilo ao qual se vincula, criando assim um universo social “carnavalesco” de “aparências reflexivas”, ou seja, “aparências postas como aparências”. Essa contradição posta que consegue, ao mesmo tempo, ordenar-se como contradição resolvida não é outra coisa do que uma definição perfeitamente adequada da lógica do cinismo. Legitimação que significa: transformar a contradição em uma forma de síntese.

Mas, mais importante do que isso, vemos como o cinismo pode ser compreendido como a posição subjetiva possível para um sujeito que internalizou a Lei sob a figura de um supereu que exige que as condutas sejam pautadas a partir da lógica do gozo puro. A procura incessante de satisfação imediata não pode simplesmente passar por cima dos critérios normativos de racionalização da dimensão prática que, no estágio atual de esclarecimento, seriam intersubjetivamente partilhados e consensuais. Para tanto, será necessário aprender a gozar através das normas partilhadas, ou seja, respeitando o formalismo das normas com suas expectativas de modernização das condutas sociais. O que fazer, pois, quando, por exemplo, o particularismo do gozo se choca de frente com as aspirações universalizantes dos critérios normativos? A resposta na era do supereu repressor era clara: abrir mão do gozo através do apelo à culpabilidade, ou seja,como dizia Max Weber, “tomar banhos frios e trabalhar na sua vocação”. Mas, em um momento histórico no qual o supereu se funda no imperativo de gozo, somos incitados a operar um “modo de ser muito peculiar de suspensão de conflitos”. Basta que as normas possam ser “flexibilizadas” em seus regimes de indexação da efetividade para que o conflito seja suspenso. Em outras palavras, basta que elas sejam seguidas “de maneira cínica” fazendo com que elas justifiquem o contrário do que pareciam indexar.

Essa relação cínica com critérios normativos é um fenômeno que merece nossa atenção. Ela tende a tornar-se hegemônica em situações históricas nas quais imperativos de satisfação irrestrita precisam conviver com expectativas normativas que aspiram validade universal e também a constituir estruturas normativas duais nas quais, como bem demonstra Zizek, a lei sócio-simbólica é sempre complementada por uma espécie de duplo, uma segunda lei superegóica que só pode ser enunciada cinicamente.

Aqui, vale a pena colocar uma questão final. Que a economia libidinal do capitalismo tendia a se organizar a partir de uma racionalidade cínica, eis uma proposição que não teremos dificuldade em encontrar naquele que primeiro forjou o próprio termo “economia libidinal”, ou seja, Jean-François Lyotard. Com precisão, Lyotard insiste que o capitalismo tardio havia chegado à situação de ser: “uma fuga violenta, uma viagem aleatória de libido, uma errância que se marca no ‘não importa o que’ do Kapital” (Lyotard, 1994, p. 19). Maneira de insistir que seu fluxo contínuo de trocas, metamorfoses e equivalência que tudo abarca tenderia a se constituir como característica maior de um sistema que “impõe a predominância do ponto de vista da circulação sobre este da produção” (p. 20), que tem no seu próprio interior a força de desarticulação de seus limites e de subversão de seus modelos. O único axioma intocável seria o valor de troca, Axioma, e não código que permite a determinação de sentido dos fluxos que os processos de equivalência produzem. Axioma que permite a disponibilização desta pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado.

Levando tal característica a sério, Lyotard lembra que é da lógica interna do capitalismo a obsolescência de padrões de socialização baseados na regulagem de identidades próprias ao complexo de Édipo com seus esquemas de constituição de unidades identitárias através da culpabilização de exigências pulsionais polimórficas. A verdade do capitalismo consistiria em ser uma economia libidinal que tende a se aproximar do caráter polimórfico dos processos pulsionais primários descritos por Freud. Longe de ser uma mera metáfora que visa dar conta do caráter de desterritorialização e de flexibilização contínua dos processos de circulação do capital, essa aproximação com a dinâmica pulsional freudiana pretendia instaurar um horizonte de “reconciliação” entre estrutura social e aspirações subjetivas patrocinado pelas promessas de gozo do último estágio do capitalismo avançado. Daí porque Lyotard não temia em dizer: “A dissolução das formas e dos indivíduos na sociedade dita ‘de consumo’ deve ser afirmada” (1994, p. 315). Um pouco como se estivéssemos diante de uma versão pósmoderna da celebração marxista do revolucionário poder de desterritorialização do capitalismo.

Assim, tudo se passa como se a crítica da economia política saísse de cena em prol de uma afirmação da economia libidinal. Uma afirmação que nos levaria à posição de quem diz que, de certa forma, todas as condições de liberação já estão dadas no capitalismo avançado, sua racionalidade cínica já nos livrou das amarras de um pensamento da representação, basta apenas uma espécie de afirmação de potencialidades que, no final das contas, são a própria mola de desenvolvimento socioeconômico do capitalismo.

Das muitas perguntas que teríamos o direito de levantar, talvez valha a pena ficar apenas com uma; pergunta esta que talvez justifique a necessidade de uma certa crítica desta versão lyotardiana da economia libidinal; uma pergunta simples e quase ingênua: por que, 35 anos após a redação dessas análises, tal liberação não ocorreu? Não seria porque Lyotard é, de alguma maneira, demasiado conservador? Ele parece aceitar de forma tácita a idéia clássica de que o totalitarismo está necessariamente vinculado às imagens de harmonia social e completude. Claude Lefort, companheiro de rota de Lyotard no grupo Socialismo ou barbárie, insistia em um ensaio maior de teoria política psicanaliticamente orientada, que todo sistema totalitário fazia apelo à fantasia de um corpo social orgânico (Lefort, 1983). Um corpo harmônico, unificado e egocrata, no qual um órgão é, ao mesmo tempo, o todo e a parte destacada que faz o todo. Dissolver a corporiedade fantasmática do social, afirmar a perda da substância do corpo político seria a condição para a verdadeira invenção democrática. E o que seriam esses fluxos libidinais polimórficos e sem télos do capital a não ser a maneira que encontrou Lyotard de atravessar a fantasia social do corpo uno? Maneira de compreender que a fantasia é, no fundo, uma defesa contra a impossibilidade de uma imagem adequada do povo.

Mas, fica aqui uma questão: e se a fantasmagoria do capitalismo não precisasse mais fazer apelo a imagens de completude e unidade? É bem provável que estejamos em uma época na qual somos assombrados por outra fantasia ideológica: a fantasia do corpo inconsistente do capital, que nos leva a uma forma ainda mais astuta de totalitarismo, já que nos cega para o que permanece idêntico no interior dessa disseminação de multiplicidade. Pois a inconsistência pode servir para sustentar uma Ordem que vigora através da sua própria descrença.

 

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Endereço para correspondência
Vladimir Pinheiro Safatle
Rua Dr. Homem de Melo, 629/2021 &– Perdizes
05007-001 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3637-9828
E-mail: vsafatle@yahoo.com

Recebido: 23/08/2007
Aceito: 30/08/2007

 

 

* Uma versão preliminar e bastante reduzida deste artigo apareceu inicialmente sob o título de “Depois da culpabilidade” em Dunker C. e Aidar, J. (org.) (2005). Zizek crítico: Política e psicanálise na era do multiculturalismo, São Paulo: Hacker.
** Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006) e Lacan (Publifolha, 2007).
1 Ver, por exemplo, Caillois, 1950.
2 Isto levará Freud, por exemplo, a afirmar que “A exploração psicanalítica do indivíduo ensina com uma insistência particular que o deus de cada homem é à imagem do pai, que a relação pessoal a Deus depende da relação ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a partir desta última, e que Deus não é outra coisa que um pai elevado ao nível superior” (Freud, 1999a, p. 177). Ou ainda, a respeito do comportamento social das massas: “Há nas massas humanas uma forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar... A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde vem tal necessidade das massas. Trata-se da nostalgia do pai” (Freud, 1999 e, p. 217). Daí a fórmula canônica a respeito da formação das massas: “Uma massa psicológica é a reunião de indivíduos que introduziram a mesma pessoa no supereu e que, na base desta comunhão, identificaram-se uns aos outros no eu” (Freud, 1999d, p. 74).
3 O que fica muito claro quando Freud afirma que “o supereu adota também as influências de pessoas que tomaram o lugar dos pais, como educadores, mestres, modelos ideais. Ele normalmente se distancia cada vez mais dos indivíduos paternos originários e advém mais impessoal” (Freud, 1999d, p. 70).
4 Lembremos como Lacan insiste que a voz e o olhar são objetos parciais que indicam a redução da Lei à dimensão do supereu. Este caráter superegóico da vocação fica claro em afirmações como: “Contra as dúvidas religiosas e a inescrupulosa tortura moral, e contra todas as tentações da carne, ao lado de uma dieta vegetariana e de banhos frios, prescreve-se: ‘trabalha em tua vocação’” (Weber, 2001, p. 126)
5 Proposição que não seria absolutamente estranha a Freud, para quem a gênese da consciência moral (Gewissen) era necessariamente derivada do fato empírico da ameaça de castração vida do pai e do medo da perda do amor paterno. De onde se segue que, para o materialista Freud, a moralidade é fruto do sentimento de rivalidade em relação ao pai. Neste ponto, remeto ao meu Safatle, 2003.
6 Judith Butler percebeu claramente esta ambigüidade de Foucault, principalmente em um pequeno texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é descrita como vivendo no “limbo feliz da nãoi-dentidade” (ver Butler, 1999).
7 Ver, por exemplo, o clássico Matthes, 1983, ou ainda os trabalhos de André Gorz como Gorz, 2004.
8 Isso gera, entre outras coisas, uma realidade social da flexibilização do trabalho com o conseqüente aumento das horas de trabalho em empregos múltiplos e precários. Fenômeno bem conhecido por “toyotismo”. No entanto, esta nova realidade do trabalho produz uma situação extremamente relevante para nossa hipótese: uma sociedade do trabalho sem ética do trabalho. Ou seja, uma sociedade que exige cada vez mais a disponibilização desesperada dos sujeitos para o trabalho, mas que, por outro lado, não procura mais legitimar tais exigências através de uma ética do trabalho. O que não impede que os trabalhadores empregados pelas grandes empresas possam ter uma percepção de si como de uma elite: “Não porque tenham aptidões superiores, mas porque foram selecionados dentre uma massa de indivíduos tão aptos quanto eles de modo a perpetuar a ética do trabalho em um contexto econômico em que o trabalho perde objetivamente sua ‘centralidade’” (Gorz, 2004, p. 57).
9 Ou, como nos lembra Tom Frank: “Desde a década de 20, pelo menos, o consumismo vem sendo uma forma de revolta contra valores mais antigos, ligados à produção. Enfatizou o prazer e a gratificação, em oposição à restrição e à repressão da tradição puritana” (Frank, 2003, p. 43). Max Weber já havia percebido essa mudança inexorável na moralidade econômica do capitalismo ao afirmar: “No setor de seu mais alto desenvolvimento, nos Estados Unidos, a procura da riqueza, despida de roupagem ético-religiosa, tende cada vez mais a associar-se com paixões puramente mundanas que frequentemente lhe dão o caráter de esporte” (Weber, 2001, p. 143).
10 O adjetivo “maternal” não funciona aqui como uma simples metáfora. Ele faz alusão à noção psicanalítica da existência de um supereu materno resultante da introjeção do investimento libidinal da figura materna, processo anterior à consolidação de um supereu através da introjeção da identificação paterna como saldo da saída do complexo de Édipo. Ele responde também pelo problema referente ao princípio de investimento libidinal em vínculos sociais no interior de uma sociedade marcada pelo “declínio da imago paterna”, para falar com Lacan.
11 Ou ainda, quando ele escreve sobre “o desenvolvimento que crescerá, neste século, dos meios de agir sobre o psiquismo, um manejo concertado das imagens e paixões do qual já se fez uso com sucesso” (Lacan, 2001, p. 120).
12 O que Slavoj Zizek já havia indicado ao afirmar que “a dessublimação repressiva é apenas uma maneira, a única maneira possível, no contexto teórico da Teoria crítica da Sociedade, de dizer que, no totalitarismo, a Lei social começa a funcionar como supereu, assume os traços de um imperativo do supereu” (Zizek, 1992, p. 31).
13 Lacan compreendeu o caráter “puro” da Lei superegóica ao analisar a função da Lei no interior do universo fantasmático do Marques de Sade. A Lei sadiana, que ordena a todos os sujeitos o “direito de gozo”, funda-se exatamente na rejeição de toda fixação privilegiada de objeto. Este princípio de equivalência geral entre objetos leva à negação destrutiva de todo objeto. Neste ponto, ao menos para Lacan, o caráter puro da Lei sadiana seria equivalente ao caráter puro e a priori do imperativo moral kantiano.
14 O que já havia sido claramente compreendido por Debord. Lembremo-nos de sua afirmação: “À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente espetacular: isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento desta matéria-prima” (Debord, 2002, p. 40). Ou seja, nada impede que a frustração com o universo fetichizado da forma-mercadoria e de suas imagens ideais possa se transformar também em uma mercadoria.