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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

A dialética de Eros e o mal-estar na cultura hoje*

 

Eros' dialectic and the civilization and its discontents

 

 

Ronis Magdaleno Júnior**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente ensaio tem como objetivo lançar um olhar psicanalítico sobre a cultura, refletir sobre a prática clínica contemporânea e o lugar do psicanalista dentro desta sociedade mutante e mudada em relação àquela na qual Freud escreveu e inscreveu sua obra. O autor se propõe uma reflexão sobre o que acontece na cultura a partir do século XX, visando expandir o alcance do método em relação ao novo sujeito que se apresenta nos consultórios de psicanálise. Partindo de dois grandes trabalhos de Freud sobre a cultura, Psicologia de grupo e análise do ego e O mal-estar na cultura, o autor propõe a tese que o homem ao invés de se destruir, como temia Freud, encontrou, enquanto espécie, uma saída que protege do aniquilamento à custa de um esvaziamento reflexivo que se expressa por um empobrecimento da linguagem, e que isola o sujeito dentro de seu narcisismo. As implicações clínicas desta mutação antropológica são exemplificadas através de material clínico.

Palavras-chave: Adolescente, Cultura, Pós-modernidade, Psicanálise.


ABSTRACT

The objective of the present study is to launch a psychoanalytic glance at the culture, to reflect about the contemporary clinical practice and the place of the psychoanalyst within this changed and ever changing society in relation to the society in which Freud wrote and registered his work. The author proposes a reflection on what happens in the culture as of the XX century, aiming at expanding the reach of the method regarding the new patient that shows up for psychoanalysis. Stemming from two great works of Freud about the culture, Group psychology and analysis of the ego and The ailment in the Culture, the author proposes the theory that instead of mankind destroying himself, as Freud feared,found, as a species, an escape that protects him from anihilation leading to a reflexive void, that manifests itself through an impoverishment of the language, and that isolates mankind in his own narcissism. The clinical implications of this anthropological change are exemplified through clinical material.

Keywords: Adolescent, Culture, Post-modern times, Psychoanalysis.


 

 

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens havia perdido
a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam
tido &– sem saber por quê. E então, porque o espírito humano tende
naturalmente a criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria
desses jovens escolheu a Humanidade como sucedâneo de Deus.
Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre
à margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão
de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado.
Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles,
nem aceitei nunca a humanidade... Assim, não sabendo crer
em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei,
como outros da orla das gentes, naquela
distância de tudo a que se chama a Decadência.

Fernando Pessoa, 1999, trecho 1, p. 45.

 

Introdução clínica

Vanessa é uma adolescente que me procurou com dificuldades para passar no exame vestibular, mas principalmente porque não se sentia bem com alguma coisa em relação a sua vida, coisa essa que não conseguia definir. Logo de início me preveniu de que não era muito de falar, o que me fez prever mais uma daquelas análises de adolescentes que ficam muito tempo em silêncio, que nada dizem e acabam por se desestimular e interromper o processo. Logo essa expectativa se desfez, pois Vanessa falava o tempo todo, até demais... Mas não dizia nada! De início não entendi o que se passava, e tive mesmo algum alívio com essa fala volumosa da paciente, e com meu “erro de diagnóstico”. Pouco a pouco fui percebendo que meu “diagnóstico” não estava tão errado assim. Seu discurso era vazio, dava voltas sem sair praticamente do lugar, sem insigths, sem elaborações. O tempo todo, palavras vazias orbitavam um centro de atração inalcançável.

O discurso factual era levado às últimas conseqüências. A fala era pontilhada de expressões que, mesmo procurando impor alguma tonalidade afetiva ao discurso, se tornavam também frouxas e serviam para manter uma continuidade, pois não podia parar. Fui me dando conta de que Vanessa realmente não conseguia falar, assim como havia me prevenido na primeira entrevista, que aquela fala ininterrupta nada mais era que um desesperado movimento, utilizado para impedi-la de perceber o imenso vazio de sentido que havia se estabelecido dentro dela.

A minha impressão é de que existia ali um aparelho para pensar construído, não psicótico, ou, melhor dizendo, não cindido psicoticamente, mas vazio, com poucos elementos para negociação. Em suma, estava ali a expressão viva do sujeito contemporâneo, um sujeito formatado, mas vazio. Seria isso um desenvolvimento a partir do mal-estar na cultura descrito por Freud no início do século XX? É o que procurarei demonstrar.

 

Preâmbulo

A pergunta que se impõe a qualquer um que esteja interessado em entender o movimento humano através de seu percurso histórico é a seguinte: O que acontece com Vanessa que fala incessantemente durante sua sessão analítica e, no fim das contas, não chega a lugar nenhum? Que tenta utilizar seu aparelho psíquico, que está ali, intacto, que responde a seus comandos, mas não é eficiente em sua tarefa maior que é fazer frente às exigências feitas a ele? Em meio a um discurso que tende a uma receptividade estéril e ao uso abusivo de clichês de linguagem, tudo isso tendo como pano de fundo uma angústia transbordante, cria-se na relação analítica um clima bizarro de tensão misturado a uma atitude de “não estar nem aí” que poucas brechas oferece para a interpretação.

Creio que o fator de maior peso desse fenômeno está dentro do próprio sujeito que se estrutura de uma maneira tal que lhe faltam elementos articuladores das percepções e vivências, um “aparelho digestivo sem enzimas”. A substituição dos valores que,bem ou mal,forneciam balizamentos para a existência do sujeito e exigiam reflexão, por outros que funcionam como fins em si (dinheiro, corpo ideal, drogas, programas de computadores), vão cada vez mais limitando o universo simbólico e representacional desse novo sujeito da aurora do século XXI, e desemboca nesse ser que já não crê em nada, a não ser em si mesmo e no seu potencial narcísico de resolver tudo apertando um botão.

A crença de Freud na evolução do ser humano pela razão e pela ciência, atingindo seu ápice num funcionamento erigido sobre uma visão de mundo científica, baseada na submissão à verdade e na rejeição às ilusões, tem mostrado sua face mais cruel, ao deslocar o ser humano de suas fontes fantasmáticas e simbólicas, e condená-lo a uma objetivação racional e a uma virtualização concreta. Será a saída uma desumanização do humano? É possível. O que é mais desumano que a perda da capacidade reflexiva? O esvaziamento do repertório simbólico afasta o sujeito de sua condição humana, e talvez seja essa a resposta emblemática atual da espécie humana ao mal-estar da cultura: “não estou nem aí”. Situação dramática, mas que no fundo protege esse indivíduo fragilizado por sua condição de desnutrição mental, tanto de si mesmo como dos outros.

É, a partir desses novos valores (dessa nova visão de mundo que poderíamos chamar de hedonista-consumista), que se propõem inquestionáveis dentro da cultura contemporânea, do mesmo modo que o fazem os fundamentalismos religiosos, que a capacidade criativa e simbólica vai se atrofiando, chegando mais e mais perto de um vazio representacional/fantasmático, cujos elementos foram substituídos por outros concretos e imediatos.

O resultado disso é uma mente como a de Vanessa, que tem as condições mais do que necessárias para uma vida confortável (inclusive com acesso a todos os produtos da vida moderna), exceto os elementos essenciais para que consiga encontrar um sentido para estar viva.

Não existe mais Deus, a humanidade pouco lhe interessa, o curso superior que faz, e que aparentemente era o que queria, tem pouca ou nenhuma representação futura em sua vida e todos os “aparelhos obrigatórios” para a vida de hoje (telefone celular, três computadores em casa, carro, amigos virtuais, Messenger, Orkut etc.) são insuficientes para encontrar um sentido para a vida. O que fazer agora? Se tivesse alguma ruptura interna com tendência a adições, certamente esse seria um caminho: bulimia, anorexia, drogadição e consumo compulsivo. Mas, não. Vanessa não vai por aí. Ela tampouco é uma psicótica. Por estranho que possa parecer, ela faz parte daquilo que hoje, estatisticamente, chamaríamos de uma adolescência normal!

Vanessa permanece em análise, sem saber ainda muito bem o que faz ali, só “sabe” que sofre por alguma coisa que não consegue localizar dentro dela, e que de algum modo eu, seu analista, já percebi isso. Já sabe que o problema é dentro de si, e isso é um grande passo. Por estranho e paradoxal que possa parecer, é essa “falta de sentido” que caracteriza sua normalidade estatística. Esse conceito de normalidade nos remete a uma reflexão sobre um movimento cultural em ação e nos obriga a pensar num rearranjo do sujeito frente a seu meio, que é o que faremos a seguir.

A saída neurótica tem se apresentado cada vez mais distante. O mal-estar neurótico da cultura ao qual se referia Freud vem dando espaço àquilo que eu chamaria de “mal-estar da irrepresentabilidade, do vazio”. Na cultura hedonista do “tudo pode”, a Lei do Pai se dilui cada vez mais na lei do mercado de consumo hedonista, na ilusão da satisfação sempre possível, o terceiro elemento simbólico da triangulação edípica torna-se faltante, e é substituído por outro concreto. Um desequilíbrio da dinâmica edípica se instala. O reflexo imediato disso é narcisificação do sujeito que passa a funcionar a partir de uma relação dual, o que dificulta, e muito, a saída do hedonismo. Outra conseqüência é o empobrecimento da capacidade reflexiva, visto que o pensamento se estrutura a partir da renúncia à alucinação por influencia da Lei, da palavra do Pai que interdita.

O sujeito fica condenado à submersão num mundo bidimensional, onde a crença “ter é ser” se impõe com toda sua força e borra os limites entre identificação e relações de objeto. A angústia irrompe quando já se tem tudo aquilo que se queria, e ainda não se é.

Penso que Vanessa, como representante de um novo sujeito dentro da Cultura, é uma resposta ao mal-estar descrito por Freud, em seus trabalhos em 1921, Psicologia de grupo e análise do ego e em 1930, O mal-estar na cultura. O recalcamento, que era o que mantinha a Cultura, perde seu poder de ação quando o indivíduo, fazendo parte da massa, passa a funcionar segundo leis supra-individuais, onde a capacidade de pensar própria se perde e todos os primitivismos recrudescem, sob a égide da pulsão de morte, e de seu corolário externo, a pulsão de destruição. Seria então o esvaziamento, sob o peso da pulsão de morte, a resposta do indivíduo à incapacidade da espécie de viver enquanto grupo?

 

O paradoxo da cultura e seu mal-estar

Eis minha conclusão secreta. Já que nossa civilização atual &– a mais
evoluída de todas &– pode apenas ser considerada como uma
gigantesca hipocrisia, devemos concluir que, organicamente,
não somos feitos para ela. Ele, ou o Grande Manitu
dissimulado atrás do Destino, recomeçará esta experiência
com uma raça diferente.

Marthe Robert, 1964.1

Em meio aos abalos provocados pelo recém-iniciado conflito mundial, de proporções ainda não conhecidas e imaginadas, Freud no outono de 1914 escreve a sua amiga Lou Andréas-Salomé, a sua “conclusão secreta”, à qual chegou aos 58 anos de idade. Preocupado que esteve até então com os problemas da psicologia individual, vai pouco a pouco, e certamente influenciado pelos acontecimentos ao seu redor, dentro dessa civilização “a mais evoluída de todas”, deslocando o foco de sua atenção para os fenômenos grupais, de massa, talvez numa última tentativa de vislumbrar uma “outra conclusão” a respeito do ser humano, da civilização e da humanidade.

Em Psicologia de grupo e análise do ego, Freud introduz aquela que será sua tese durante todo esse trabalho, e cita Le Bom, que diz:

Pelo simples fato de fazer parte de um grupo organizado, um homem desce vários degraus na escala da civilização. Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos (1921/1976b, p. 100).

Em O instinto e suas vicissitudes (1915/1976a), Freud começa a esboçar aquilo que seria uma mudança paradigmática em sua teoria, ao dar um estatuto próprio ao ódio na dinâmica psíquica, a partir de agora não mais um componente da pulsão sexual, mas uma força independente dirigida a tudo aquilo que causa desprazer. O peso do ódio na homeostase do sujeito passa a ser comparado àquele da sexualidade.

Ao introduzir o conceito de pulsão de morte toca no âmago do problema da destrutividade, que passa a ser constitucional da própria matéria, estendendo-se a partir daí para qualquer espécie de matéria viva, atingindo seu grau máximo de complexidade no ser humano. Ao aplicar esse novo conceito às teorias explicativas do funcionamento grupal humano, surpreende novamente, como tantas vezes o fez, a todos nós ao expor que a civilização humana, inclusive “a mais evoluída de todas”, enquanto massa tende ao primitivismo e deixa fluir, inevitavelmente toda a destrutividade que a duras penas o sujeito individualmente mantém sob recalque para preservar a civilização.

Freud denuncia que tudo aquilo que a moral civilizada insiste em afastar do homem enquanto ser superior, não passa de uma ilusão, e que todos esses primitivismos estão presentes e vivos, conservando toda sua potência no inconsciente, e mais do que isso, dando o tom para aquilo que o homem executa na sua vida em comunidade. Freud desestabiliza, digamos assim, a ilusão sobre a qual se sustenta a idéia de uma sociedade evoluída e civilizada, quando afirma que o homem mantém ativos e atuantes em seu interior o desejo incestuoso, os impulsos canibalístico e homicida, e mais do que isso, os realiza o tempo todo em fantasia, com um agravante:“o ser humano, enquanto grupo, é incapaz de manter o recalque desses impulsos, e passa a funcionar sob seu domínio”.

Em meio à barbárie que se instalou na “mais evoluída de todas as civilizações” no início do século XX, Freud se viu obrigado a rever, como sempre fez durante sua vida, seus próprios pontos de vista e seus paradigmas. Desenvolve então o recém estabelecido conceito de pulsão de morte, silencioso em sua origem, sem objeto definido, e que, portanto, escapa às redes do sistema defensivo do Eu, estando o tempo todo ali se manifestando em favor do diabólico, ou seja, daquilo que desune, desestrutura. Mas Freud não para aí e vai mexer mais fundo na ferida ao desnudar que o ser humano, enquanto célula do grupo, regride a um padrão de funcionamento primitivo sob a égide da diabólica pulsão de morte, regride a primitivismos quase que automáticos, diluindo-se na massa pela perda da capacidade intelectiva e da racionalidade. A moralidade se perde, desfaz-se a instância crítica, que se confunde e se mistura com o ideal grupal e passa a funcionar segundo o modelo hipnótico, submetido a uma vontade superior que não é a dele. Freud desvenda assim a dimensão inconsciente do fato social e aponta, com um realismo cruel, para a condição miserável dentro da qual a humanidade está inserida e aprisionada. Denuncia assim a hipocrisia e a violência da sociedade na qual vivia.

Quando em 1920 Freud desloca a conflitiva pulsional para a tensão entre pulsão de vida e pulsão de morte chega a seguinte dificuldade: a pulsão de vida agiria a favor de um aumento da tensão e, conseqüentemente, do desprazer, ao passo que a pulsão de morte visaria a descarga, o zero energético, e, portanto, o prazer absoluto, que seria a morte. Uma conclusão nada alentadora, e que, sobretudo, não dá conta de compreender a complexidade da vida, e do prazer de viver. Encontra uma saída para esse problema através de dois artifícios teóricos: a noção de fusão/defusão das pulsões e de deflexão da pulsão de morte sob a influência da pulsão de vida, transformando-se aquela em pulsão de domínio e agressividade. Esses fenômenos seriam necessários e condição para a manutenção da vida do indivíduo (autoconservação) e da espécie (sexualidade), mas à custa do desvio, para fora, da agressividade e seus desdobramentos.

É justamente aqui que se coloca o paradoxo da vida, “a dialética própria de Eros”, definida da seguinte maneira por Mezan (1950):

Tendendo ao mesmo tempo à conservação e à ampliação das unidades em que opera, cada uma dessas finalidades pode se opor à outra, pois a integração num conjunto mais complexo limita ou faz desaparecer a unidade individual. É dessa forma que processos desencadeados sob a égide de Eros podem se colocar a serviço da pulsão de morte (p. 452).

A “confissão” de Freud a Lou Andréas-Salomé aponta exatamente para esse dilema, dentro do qual o ser humano se encontra aprisionado, sem uma boa perspectiva de saída. Aquilo que poderíamos considerar o motor da vida, Eros, dirige o indivíduo para um beco sem saída, aquilo que leva o indivíduo a procurar o Outro enquanto fonte de satisfação, de autopreservação e de perpetuação da espécie, obriga-o a formar grupos que a medida que se estabelecem e se desenvolvem, desnudam cada vez mais a face primitiva e selvagem do indivíduo, agora não mais isolado, mas célula da engrenagem do grupo. Está aí o paradoxo desse ser gregário particular que é o homem: quanto maior a capacidade do indivíduo para formar estruturas maiores, maior a exposição de seu primitivismo, menor sua capacidade de diferenciar-se da massa através de seu intelecto e de sua razão.

Freud, em Psicologia de grupo e análise do ego, descreve os grupos como tendo as seguintes características: falta de independência e iniciativa de seus membros; semelhança em suas reações; redução dos indivíduos a indivíduos grupais; fraqueza da capacidade intelectual do indivíduo; falta de controle emocional (submissão à emoção); incapacidade de moderação ou adiamento e inclinação a exceder todos os limites na expressão da emoção e a descarregá-la completamente sob forma de ação. Ou seja, no grupo “há um regresso da atividade mental do indivíduo a um estágio anterior de funcionamento”. A perda da autonomia é, para mim, o fator central desse mecanismo regressivo, aquilo que estaria na base do fenômeno, pois ao perdê-la, o sujeito se torna sugestionável, dilui-se na massa e desaparece enquanto indivíduo.

A diluição do indivíduo, a identificação com um superego exterior, portanto permissivo para o psiquismo individual (um Superego externo tem sempre menor poder de influência do que o internalizado), e a conseqüente liberação da energia do recalcamento, tornando-a disponível para o grupo, coloca em risco a própria civilização, civilização esta que só se mantém, nas palavras do próprio Freud, pelo recalcamento das pulsões. É esse paradoxo que mantém a civilização constantemente ameaçada &– ameaçada pela própria força que a faz existir.

É a esse paradoxo que Freud chegou quando fez sua “confissão” a Lou Andréas-Salomé e a única saída que vislumbrou, naquele momento, foi “recomeçar a experiência com uma raça diferente”. O que não podia imaginar e não viveu para ver, já que morreu em 1939 nos estertores da época moderna, mas ainda inserido nela, foi aquilo que Fernando Pessoa chamou na epígrafe deste texto de Decadência e que se encaminharia para o fenômeno que o filósofo belga, Gilles Lipovetsky, chamou de “Era do vazio”.

Lipovetsky (1983) descreve o processo de “personalização” da sociedade e do indivíduo como um fenômeno que

Negativamente remete para a fratura da socialização disciplinar; positivamente, corresponde à instalação de uma sociedade flexível assentada na informação e na estimulação das necessidades, no sexo e no levar em conta os “fatores humanos”, no culto da neutralidade, da cordialidade e do humor. É assim que opera o processo de personalização, novo modo da sociedade se organizar e se orientar, novo modo de gerir os comportamentos, já não através da tirania de pormenores, mas com o mínimo possível de coação e o máximo possível de opções, com um mínimo de austeridade e o máximo de desejos, com o mínimo de constrangimento e o máximo de compreensão (p. 8).

Considera este processo de personificação como uma verdadeira“mutação antropológica” que se processou a partir de meados do século XX e construiu, a meu ver, uma opção de sobrevivência para a civilização, mesmo que instável e tendendo à falência, através da qual o grupo se mantém unido às custa de uma narcisificação do Ser e de valores hedonistas, individualistas e consumistas. A relação humana é substituída, ou fortemente intermediada, por um tecnologismo e por uma virtualidade crescente, que criam a ilusão de completude, tornam o Outro prescindível, e que acabam por impor ao indivíduo uma submissão ao vazio representacional, já que seu conteúdo simbólico vai sendo substituído pela concretude, seja do ato em si, seja do ato virtual.

É uma saída para o abismo, vejamos...

 

A saída para o abismo, uma liberdade momentânea: a esfinge às avessas

Desse modo, sob a égide de Eros, que empurra a matéria viva em direção da formação de unidades cada vez maiores e que, ao agir assim incrementa o funcionamento disruptivo e regredido da massa, fica o ser humano aprisionado nesse dilema: quanto maior a força agregadora de Eros, maior a energia disponível e mais se potencializam os primitivismos humanos. Frente a essa situação Freud não viu outra saída que a criação de uma nova raça “pelo Grande Manitu dissimulado atrás do Destino”. Mas o tempo se incumbiu de mostrar que a criatividade humana seria capaz de propor algo inusitado, e a humanidade ao invés de se destruir indefinidamente, encontrou uma solução de compromisso, na qual o vazio se oferece como saída possível para o impasse criado. Esse vazio funciona como solução de compromisso entre as duas forças conflitantes das pulsões de vida e morte.

Lipovetsky dá a esse fenômeno o estatuto de uma “mutação antropológica” que se instala no seio da sociedade, como uma estratégia de sobrevivência frente a um sentimento de catástrofe iminente. “O Eu é promovido a umbigo do mundo”, torna-se a preocupação central, à maneira dos psicóticos, mas de forma transformada, silenciosa, como que criando uma “nova normalidade” na qual o isolamento psicótico é travestido de “uma intensa atividade relacional com tudo aquilo que não é humano”, como aparelhos, produtos de consumo, entidades virtuais, mesmo com seres humanos “virtualizados”, drogas (lícitas e ilícitas), atitude essa que encobre o embotamento que a constitui. Essa estranha forma de humanização pós-moderna aprofunda, sob a máscara da interatividade, do acesso irrestrito à informação e à comunicação e da globalização, a fragmentação social, e em conseqüência disto a fragmentação interna do sujeito, tornando-o ainda mais indefeso frente ao poder hipnótico da massa. É uma saída narcísica que “socializa, dessocializando”.

O hiper-investimento do Eu e o desinvestimento do outro trás como conseqüência uma desestabilização e um esvaziamento do Eu em sua própria identidade, tão dependente que ele é do Outro humano como fonte do afeto, da linguagem e da Lei, para se firmar de uma forma estável e consistente.

Desse modo o Eu torna-se um conjunto frouxo, “dessubstancializado”, com pequeno potencial para fazer frente e metabolizar os impactos que vêm de fora e de dentro do sujeito. O sujeito que nasce dentro deste momento cultural tem como objetos de identificação, o Outro narcísico e a virtualidade concreta que se oferece como“objeto”. Não deveria, portanto nos causar estranheza a agonia de Vanessa que cresce a partir da impossibilidade de encontrar representação interna para as pressões e informações, por sua vez cada vez mais volumosas e hipercomplexas, imediatas, que chegam a ela por todos os lados. A sensação paradoxal que ela descreve é de um transbordamento, misturado a uma certa apatia, “como se não fosse com ela”. É essa moldura que dá o enquadramento desse estranho sujeito do século XXI, que combina desespero e apatia, uma queda vertiginosa num abismo com a crença (instável e hesitante) de que esse abismo possa ser virtual, que a partir de algum comando mágico tudo isso possa se desfazer, e ele estar confortavelmente sentado em frente a seu computador “que espera outro comando”.

Esse novo sujeito defronta-se com a “esfinge invertida”, que ao invés de questionar oferece respostas, mesmo antes de serem formuladas questões e que se atira no abismo na frente de um Édipo perplexo que não chegou nem mesmo a se mover, que não teve tempo de pensar, quanto mais de formular qualquer questão. É um Édipo de sensações absolutas, inomináveis, um Édipo perplexo e sufocado... Em vez da pergunta que impõe a reflexão, a esfinge propõe “respostas sem perguntas”, a esfinge é o ato.

O assassinato do pai que impôs a Lei e a linguagem, introduzindo o ser na Cultura, é“substituído pela recusa dela, pela crença no desejo realizado sem restrições”. O Pai, a Lei são recusados em sua origem e na origem de tudo, a linguagem utilitária, econômica, concreta, mutilada, passa a ser utilizada no lugar da fala poética, simbólica, criativa e, portanto, portadora do sentido. A esfinge se atira ao abismo a cada instante, se mata a cada instante, levando com ela todas as respostas que não se dirigem a perguntas, mas à satisfação imediata, masturbatória do desejo, e a seguir se refaz com um toque de botão, como uma fênix moderna que se refaz, não das cinzas, que afinal já foram vida, mas de bites virtuais que no fundo não são nada.

Freud talvez não pudesse ter imaginado essa solução de compromisso, essa “saída”, encontrada pela civilização tão pouco tempo após sua morte. Essa “mutação antropológica”, que tem como pilar de sustentação aquilo que ficou conhecido como “Era do vazio” possibilitou, através de uma auto-mutilação da capacidade reflexiva do sujeito, a sobrevivência da civilização por mais algum tempo. Acompanhamos, nessa virada de século, a falência do modelo pós-moderno, hedonista e consumista e as conseqüências desastrosas dessa falência, com as quais convivemos.

Os “Édipos da esfinge invertida” querem as respostas sem perguntas, e mais do que isso se esqueceram como formulá-las, olham para o mundo atônitos e perplexos, sonhando com uma gorda conta bancária, uma aposentadoria tranqüila, em sua casa própria, podendo desfrutar de seu vazio sem preocupações. Não é de se estranhar que as chamadas “depressões” chegam aos montes aos nossos consultórios, mas infelizmente em sujeitos já automatizados e seduzidos pela mídia, em busca de um “remédio” e não de reflexão. São justamente esses “quadros clínicos” que abundam hoje por todos os lados, como as depressões, os “borderlines”, os transtornos alimentares, os transtornos de déficit de atenção e hiperatividade, doença do pânico, que encobrem, ou melhor dizendo, dão nomes a esse sintoma social grave e que em psicanálise temos tentado estudar sob o nome um tanto genérico de “patologias do vazio” e que têm em sua base estrutural um defeito na constituição das representações mentais. São sujeitos que frente às pressões e à infelicidade comum da vida, não têm recursos mentais para fazer frente a elas e reagem com angústia tóxica, desespero e mais consumo. E o psiquiatra, que também não tem sido mais treinado a pensar, receita “remédios” que condenam ainda mais o sujeito ao empobrecimento interno, fechando-se assim o ciclo perverso que assistimos hoje em relação à saúde mental das pessoas, mas travestido de uma roupagem de avanço tecnológico e científico que exclui qualquer contestação. A pulsão de morte, realmente, age silenciosamente, como se “não estivesse nem aí...”. O mal-estar da cultura hoje, não tem nome, têm diagnósticos!

O fato de Vanessa procurar, e se manter em análise, aponta para uma necessidade de algo novo, novos recursos para sua vida. Ela parece querer falar, querer pensar, começa a se fazer perguntas, quer sair dessa rede na qual, à sua revelia, ficou aprisionada. Interessa-se por mim, seu psicanalista, essa esfinge que insiste em levantar questões e que não dá respostas, em fazê-la parar para pensar, essa esfinge que espera que ela formule suas questões, nomeie sua angústia, que ela encontre suas respostas, mas, sobretudo que perceba que suas respostas não respondem nada, apenas abrem espaço para novas perguntas que insistem em colocar novas perguntas.

O lugar que o analista oferece sem dúvidas não é um lugar confortável, mas é um lugar potencial para a criatividade e para o novo. Cada paciente que entra em nosso consultório traz a crise dentro dele e para dentro de nós, e é aí que se estabelece nosso campo de trabalho enquanto analistas. Estaremos, enquanto psicanalistas sempre em crise sempre denunciando e encarando o mal-estar da cultura, sempre trabalhando para expandir nosso instrumento de trabalho, que somos nós mesmos, para atender às novas demandas de uma sociedade em constante modificação, um organismo vivo que sofre transformações e, como vimos, mutações importantes, que exigem que estejamos atentos para não sermos engolfados pela sedução da massa e nem ficarmos cristalizados em modelos de atuação que já não servem mais.

Quando Vanessa chega até mim, “sem saber muito bem por quê”, está colocando para dentro de minha sala de atendimento a crise do mundo, Vanessa é uma célula da massa, tentando sobreviver enquanto indivíduo autônomo, ela não sabe o que tem e esse é o sintoma, sente-se sem recursos para procurar saber o que se passa, e esse é o sintoma. Olha para mim e diz que “não é muito de falar” e desanda a falar desenfreadamente a ponto de saturar minha escuta, outro sintoma. Em verdade há um abismo entre o que vivencia, e aquilo que pode representar psiquicamente. A esfinge das “respostas sem perguntas” está lá, virtualmente, dentro deste abismo, mas agora essa outra esfinge, o analista, está ali a sua frente, concretamente, e Vanessa começa a aprender o que fazer com ela, até que, quando souber o que é a vida, a esfinge possa desaparecer, e Édipo, com suas marcas, possa seguir o seu caminho... Pois, como disse Winnicott (1969/1975): “Sempre esperamos que nossos pacientes terminem a análise e nos esqueçam; e descubram que o próprio viver é a terapia que faz sentido” (p. 123).

 

Referências

Freud, S. (1974). O mal-estar na civilização. S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 75-171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930).        [ Links ]

Freud, S. (1976a). O instinto e suas vicissitudes. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 129-162). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).        [ Links ]

Freud, S. (1976b). Psicologia de grupo e a análise do ego. S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 89-179). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1921).        [ Links ]

Lipovetsky, G. (1983). A era do vazio. Lisboa: Relógio d’Água.

Mezan, R. (1950). Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

Pessoa, F. (1999). O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

Winnicott, D.W. (1975). O uso e um objeto e relacionamento através de identificações. In: D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (pp. 121-131). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1969).        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ronis Magdaleno Júnior
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Recebido: 30/03/2007
Aceito: 16/04/2007

 

 

* Trabalho apresentado como tema livre no XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise. Porto Alegre, 10 maio 2007.
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Citado por Mezan, 1950, p. 430.