SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número46A dialética de Eros e o mal-estar na cultura hojeA alma nua: Lucian - e Sigmund - Freud índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Os sonhadores*

 

The dreamears

 

 

Maria Helena de Souza Fontes**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No filme Os sonhadores, Bernardo Bertolucci utiliza a linguagem do cinema para narrar o conjunto de atos concretos e fatos psíquicos, vivido pelos personagens, Mathew, Theo e Isabelle, em Paris, convulsionada por uma rebelião de jovens insatisfeitos com as estruturas sociais e educacionais sentidas como ultrapassadas. O filme poderia ser visto como uma ilustração clínica das teorizações de autores tais como Peter Blos, André Green, Raymond Cahn, Winnicott entre outros. Psicanalistas que trabalham com adolescentes têm a oportunidade de testemunhar a turbulência psíquica vivida por eles, no processo de construção da identidade, da aquisição da capacidade de se pensar como sujeito, liberta das identificações parentais ou grupais.

Palavras-chave: Adolescência, Individuação, Regressão, Subjetivação, Turbulência.


ABSTRACT

In the film The dreamers, Bernardo Bertolucci makes use of the cinema language to narrate the group of concrete acts and psychic events, lived by the characters, in Paris, shaken by a rebellion of young peaple frustrated with social and educational structures felt as outdated. The film could be seen as a clinical illustration of the theories of some authors such as Peter Blos, Raymond Cahn, André Green, Winnicott and others. In the same way psychoanalists who work with adolescents have the opportunity to testify the psychic turmoil experienced by them in the process of identity construction and of the acquisition of the capacity of thinking as a subject freed from the parental or group identification.

Keywords: Adolescense, Individualization, Regression, Subjectivation, Turmoil.


 

 

A proposição bioniana da existência de pensamento sem pensador é oportuna para a verificação de que o mesmo fenômeno pode ser apreendido, em sua totalidade, por diferentes sistemas de pensamento e expresso em linguagens distintas. Psicanalistas que trabalham com adolescentes têm a oportunidade de observar a turbulência psíquica vivida, em maior ou menor grau, pelos adolescentes no processo de construção da identidade, da aquisição da capacidade de se pensar como sujeito dotado de mente própria e liberta das identificações parentais ou grupais. Observações semelhantes deram origem a teorizações de autores tais como Peter Blos, André Green, Raymond Cahn entre outros.

No filme Os sonhadores, Bernardo Bertolucci utiliza a linguagem do cinema para narrar com impressionante exatidão o conjunto de atos concretos e fatos psíquicos, vivido pelos personagens, Mathew, Theo e Isabelle, na cidade de Paris, também convulsionada por uma rebelião de jovens insatisfeitos com as estruturas sociais e educacionais sentidas como ultrapassadas. O processo narrado é de tal forma superponível às teorizações dos autores, que o filme poderia ser visto como uma ilustração clínica das mesmas.

O cenário é Paris, 1968, ano emblemático e de grandes transformações &– depois de 68 o mundo não foi mais o mesmo. No bojo de uma rebelião de jovens, a sociedade perde valores tradicionais, costumes e moral estabelecidos e se renova, criando novos paradigmas: os jovens conquistam espaço, a sexualidade não convencional é reconhecida, mulheres e negros ganham voz. É nesse contexto que Mathew, um jovem americano, chega à Paris como estudante. Vem da América dos anos 60, país caracterizado por uma cultura prenhe de contradições &– é a pátria do filósofo Thoreau, cuja principal obra incita a desobediência civil e de Waldo Emerson, cujas idéias e prática de vida servirão de inspiração para o movimento hippie e ao mesmo tempo uma sociedade de rígidos padrões morais, onde a rebeldia à ordem estabelecida é punida com severidade seja pela exclusão familiar, social e até mesmo legal. Enquanto na Europa já se fazia filmes como Jules et Jim, onde a inclusão do terceiro na relação amorosa era mostrada sob o vértice dos sentimentos e não do adultério e Les amants, no qual o sexo oral era insinuado, a moral sexual americana em que pese as diferenças de época, estava mais próxima do puritanismo denunciado por Hathworn em A letra escarlate. A sexualidade dos jovens americanos, só irá afirmar-se com liberdade no lendário festival de Woodstock. O movimento hippie, pregando o flower power, a revolução pela paz e amor, introduzirá uma transformação radical nos costumes e nas relações com a autoridade; rapazes negam-se a obedecer à convocação militar, moças queimam os sutiãs, tomados como símbolo da opressão feminina.

O “pequeno Mathew”, como será chamado por Isabelle, é um jovem bem educado, bem comportado. Escreve diariamente à mãe, dá satisfações de sua vida, pede aprovação dos pais &– “espero que você aprove meus novos amigos”,“espero que papai não se zangue” &– requerimentos indicativos de uma relação pautada pelo modelo hierárquico, onde os pais constituem-se como a autoridade. Do ponto de vista do desenvolvimento da individualidade ele ainda se encontra em um estágio infantil de dependência do ego parental que o auxilia no controle da ansiedade e nos processos reguladores da auto-estima. Mais tarde quando inicia sua revolução pessoal pelo alcance da individualidade virá a lhes reconhecer limitações &– nunca saem de casa, provavelmente nunca leram muitos livros nem foram tanto ao cinema; “queria ter pais como os seus” dirá a seus novos amigos europeus.

Mathew é também um jovem conformado e obediente aos valores do Pai de seu país, que recruta à força seus filhos para matar camponeses civis no Vietnã. Mathew não apenas concorda, também o justifica. Contestação e transgressão parecem palavras ausentes de seu léxico. Ele percebe, no entanto, que nada sabe da vida, ou melhor, o que dela sabe vem da ficção, do mundo mágico da tela: filmes &– espaço transicional que se coloca entre ele e a realidade; é lá que ele experimenta as ações, criações e engajamentos que sente consoante com seus sonhos, ali sonhados com segurança. “Sob o chão está o mar” ou seja, sob a realidade está o sonho, diz a pichação nos muros da Sorbonne. Saindo do escuro do cinema ele se depara com um comício de protesto contra a deposição de Langlois da direção da Cinemateca. Mathew está fascinado pela liberdade e pela cultura européia &– passeatas, comícios, protestos, livros, um palácio para o cinema!

Neste espaço transitam os irmãos Theo e Isabelle, jovens ricos, bonitos e mimados. Mathew os encontra, é convidado pelos jovens para jantar, aí começa seu aprendizado da vida, sua revolução pessoal travada no interior do rico apartamento &– simbologia do mundo interno &– que aos poucos vai se desorganizando e se decompondo. Paris é naquele momento o cenário real de um acontecimento verdadeiro do qual ele e seus amigos se alienam, confinados no interior do apartamento; a cidade decomposta em lixo e paralelepípedos arrancados das ruas constitui-se na metáfora do movimento regressivo vivido por Mathew. Na afirmação de Peter Blos (1996), a adolescência é o único período da vida em que as regressões do ego e da pulsão constituem-se como componentes obrigatórios do desenvolvimento normal.

Desde o início, Isabelle &– mulher fatal &– revela-se fake e a falsidade da sua sedução perpassa as diversas situações da história, revelando o caráter perverso-polimorfo de uma sexualidade pré-edípica: voyeurismo, exibicionismo, jogos sexuais infantis. No entanto a sensual Greta Garbo que Isabelle tenta personificar tem um segredo: seu quarto, reduto intocado de sua infância de menina organizada, onde os ícones são as fotos dos pais e os ursinhos de pelúcia.

Desde o início não há um “eu” na fala de Isabelle, mas um “nós”, denunciando o par simbiótico constituído com o irmão gêmeo.Theo e Isabelle são jovens a quem nenhuma responsabilidade foi exigida: não avisam os pais, como é padrão na cultura francesa, da presença do convidado que trouxeram para o jantar, não limpam o que sujam, etc. Os pais, voltados para si mesmos e um para o outro &– “preparei jantar para dois”, diz a mãe, excluindo os filhos &– parecem não ter dado limites aos filhos. O pai centrado em seus interesses, tarda a desviar os olhos do livro quando a filha entra em seu escritório para apresentar-lhe o novo amigo. A mãe evita a situação de conflito que se estabelece na mesa, entre Theo e o pai, preferindo sair “de fininho”, segundo a expressão que usará no final do filme, carregando o marido. A câmera registra a estranheza do olhar de Mathew ao contato erotizado entre pai e filha, no escritório, assim como entre a mãe e o filho, no “selinho” de boa-noite.

Mais tarde, Theo irá lhe dizer que os pais não lhes permitiram a curiosidade ou a fantasia da cena primária: nunca fecharam a porta do próprio quarto. A sexualidade dos pais é negada pelos jovens “meus pais só transaram uma vez na vida e já fizeram nós dois de uma vez para não ter que fazer de novo”, diz Theo, ameaçado pela reativação das pulsões sexuais infantis, intensificadas pela na adolescência. Maior espanto para Mathew é nessa mesma noite, a descoberta do conluio corporal dos irmãos, dormindo despidos e entrelaçados. Não há privacidade ou interdições nessa família, nenhum limite é estabelecido. Tudo pode, tudo é permitido. É proibido proibir. Theo e Isabelle terão de desfazer, eles mesmos, o par simbiótico, como passo inicial no processo de aquisição da individualidade. A tarefa será muito mais complicada agora, na adolescência, com seus corpos premidos pela força avassaladora da pulsão sexual. De acordo com Blos (1996), o primeiro processo de individuação, supõe a construção de um sentido de si mesmo, da relação com o outro e inserção na cultura; os pais quando têm condições, são elementos fundamentais nessa tarefa, uma vez que os internalizando e identificando-se com eles, a criança pode desligar-se dos objetos primários, vividos em sua dimensão concreta. Tal processo acontece sob a égide da configuração edípica, tornando possível a interdição do incesto, a aquisição da sexualidade genital, o contato e exame da realidade, as diferenças entre as gerações. Theo e Isabelle vivem, no momento mostrado pelo filme, o estado de vulnerabilidade correspondente ao segundo processo de individuação (Blos, 1996). Empobrecidos pela ausência do patrimônio psíquico decorrente da falha parental, terão a dificuldade adicional de mais uma vez não poderem contar com os pais &– nessa etapa eles deverão ser “destruídos” para abrir caminhos às novas escolhas de objetos de amor e ódio. A tarefa de individuação pede urgência: o impulso para o desenvolvimento é a gigantesca corrente que os empurra para adiante. Na verdade, para eles o processo já começara - no quarto de Theo as paredes estão cobertas com posters de seus ídolos, substitutos dos pais idealizados da infância: Mao, o Grande Pai autoritário e poderoso, Marlene Dietrich a mãe erotizada; em frente a sua foto Theo se excita e se masturba. Delacroix é “customizado” com o enxerto de ídolos da nascente cultura pop.

Mathew é inconscientemente buscado pelos irmãos, como auxílio na tarefa de abandono do mundo infantil, da dependência dos objetos infantis internalizados. É um. Está sempre só. É um estrangeiro, um estranho, mas o temor ao desconhecido os faz transformá-lo em one of us. “Só o amor dos pares lhe dão alguma segurança” diz André Green (1994), em relação aos adolescentes. É one of us, como os irmãos repetem após o ato transgressivo, (nem ele mesmo original) inaugural do pequeno Mathew &– bater o recorde na corrida do trio de atores no interior do Louvre, na imitação do filme Bande à part. Agora além das afinidades, do interesse pelos mesmos assuntos, ele é de verdade “um de nós”. Mas nem tanto; igual, partilha a paixão pelo cinema, diferente, Mathew sabe que o espaço da tela e seus personagens não pertencem à realidade externa ou à sua realidade. No jantar com os pais de Théo e Isabelle é capaz de surpreendê-los fazendo considerações metafísicas, ainda que ingênuas. O pai dos jovens percebe a possibilidade de abstração que diferencia o americano de seus filhos, mas de imediato entra em competição com ele iniciando um discurso tedioso, no qual a aparente complexidade esconde o vazio e a inconsistência intelectual. Theo e Isabelle estão convencidos de que não há comunicação útil entre as gerações. “Eles estão fazendo as coisas erradas por uma razão certa” (Blos,1996 p.100) Necessitam mudanças, mas substituíram o desligamento dos objetos internos infantis e a conseqüente mudança de estruturação psíquica que acompanha esse desligamento, pela polarização (Blos, 1996). Adotaram valores e moralidade não apenas opostos aos dos pais, mas também irreconciliáveis. “Eu não quero nunca ser o que você é”, diz Theo a seu pai. Apesar da crueldade da afirmação não é possível deixar de lhe dar razão, ele deveria mesmo ser diferente; nesse contexto é oportuna a colocação de Green (1994, p. 82): “O adolescente, felizmente por pouco tempo, vê o falso-self dos pais; os vê como os pais deixaram-se de ver-se a si mesmo”. No entanto a polarização no oposto evita a transformação da estrutura psíquica e faz abortar o amadurecimento (Blos, 1996). O pai em um momento de sabedoria o adverte: “você toma uma parte do mundo como um todo”.

No momento flagrado pelo início do filme, a revolução de Theo e Isabelle se enfrenta com poderosas forças contrárias: narcisismo, simbiotização, signos ao invés de símbolos. Isabelle absorve-se na leitura de um livro que tem no título o seu nome; Theo admira Chaplin que, segundo Mathew, está centrado apenas em si próprio, em contraposição ao humor refinado do cinema mudo de Buster Keaton, que solicita a inteligência do espectador.

Também Mathew descobre que ali está a oportunidade de fazer sua revolução, ele o narrador do filme, diz: “Eu sabia que depois dali nada mais seria como antes”.

Na ausência dos pais que viajam em férias por um mês, o apartamento é todo deles e juntos vão transformar aquele espaço civilizado, sofisticado e elegante no cenário externo de suas regressões. Progressivamente vão sendo deixadas para trás as regras do mundo e da cultura. Tudo é transgredido, até as elementares noções de nojo e pudor. Nas manifestações da sexualidade predomina o autoerotismo, indiferenciação sexual, a soberania do prazer, o império dos sentidos. É nesse contexto que surge um elemento de verdade: a relação sexual entre Isabelle e Mathew, inaugurando para ela, a sexualidade adulta - o orgasmo, a revelação do amor genital. Por um breve momento a falsidade perde terreno, forma-se um casal; Mathew reivindica o amor do par, separado da confusão indiscriminada e incestuosa vigente entre eles até aquele momento. Vendo-se excluído Théo busca a companhia de uma moça, mas a tentativa de formação dos novos casais é abortada. O par que exclui o terceiro provoca raiva e ataques furiosos dos irmãos. A vivência de ambos é de uma angústia catastrófica. Em conseqüência a posição anterior é restabelecida, as conquistas são perdidas. A renúncia à bissexualidade apenas esboçada é abandonada. A câmera mostra os três jovens entorpecidos pela droga, mesclados no grande caldo amniótico de água morna e sangue menstrual na banheira útero materno.

Mathew transgrediu todos os valores, despiu sua roupa de “ir à igreja” como ironiza Théo, vestindo a florida bata unisex, usou droga, desobedeceu à lei &– no episódio do Bande-à-part &– participou do saque à adega do pai da casa, embriagou-se, abandonou seus antigos padrões morais da sexualidade. Acorda, porém, no momento em que percebe a intenção dos irmãos de emasculá-lo; a tentativa de raspar-lhe os pelos pubianos revela o desejo de apagar os sinais da masculinidade adulta, transformando-o em outra criança, igual a eles, entretidos em jogos infantis. Nesse momento ele acorda do sonho. Sua fala traz a força da interpretação analítica: “Vocês nunca vão crescer se continuarem agarrados um ao outro”, ele diz.

É Isabelle, que ameaçada pela força da palavra interpretativa de Mathew, dá o golpe final na tentativa de estabelecimento da nova ordem &– a ordem do Sujeito, que se discrimina do outro, pode pensar e ter um discurso próprio, com todos os lutos que esse desenvolvimento supõe. Serpente, em movimento oposto àquela que seduziu Adão e Eva fazendo-os comer o fruto do conhecimento, Isabelle atrai astuciosamente os jovens para a cabana da infância, armada na sala, tentativa de negar a passagem do tempo, as inevitáveis mudanças. Adormecidos dentro da pequena tenda, não vêm que os pais chegam de surpresa para trazer o dinheiro solicitado pelos filhos, incapazes de prover suas necessidades mais elementares. Perplexos, frente à visão dos três corpos nus entrelaçados e a deterioração do apartamento, os pais fogem chocados; o cheque deixado por eles é encontrado por Isabelle, insensível magistrada, que promulga a sentença inapelável: todos devem morrer. Seus pais, cegos até aquele momento em relação à sexualidade dos filhos viram o que nunca deveriam ver. No mundo primitivo onde vive sua mente, o casal parental mantém a qualidade de representantes externos do superego primitivo cruel e intolerante, imodificada pela falta de resolução do conflito edípico que possibilitaria a internalização de um superego de características protetoras. O cruel superego primitivo exige punição frente à manifestação da sexualidade, sempre incestuosa. Isabelle traz o tubo de gás da cozinha até a tenda onde Theo e Mathew dormem ainda entrelaçados. Ela fantasia a própria morte como uma repetição de cena de filmes; até mesmo esse ato extremo é ficcionalizado.

Mas eis que “a rua invadiu o quarto”. Os jovens acordam com o ruído do vidro da janela, quebrado por uma pedra atirada pelos revolucionários que tomam as ruas, gritando slogans contra o establishment. É a realidade que se sobrepõe ao sonho. Sem nenhuma reflexão Theo e Isabelle descem às ruas e passionalmente se engajam em outro sonho: a rebelião dos jovens, contra a rigidez dos padrões educativos, contra a disciplina rígida, a estrutura acadêmica conservadora. Revolução pelo novo, pelo direito de mudar a sociedade. Esta também é uma revolução adolescente, mas ecoando no movimento operário resultará mais tarde na desestabilização e queda do presidente De Gaule, dando razão a Winnicott quando adverte para o cuidado que a sociedade deve ter com o adolescente: “Pobre da cultura que não permite a contestação dos seus adolescentes, eles são a parte mais viva e necessária da sociedade”.

Mathew se recusa a acompanhá-los e os adverte: a violência que os faz incendiar carros e atirar pedras nos policiais, se iguala à violência da polícia. Mudanças se darão a partir de idéias, diz ele. Mathew saiu modificado da experiência regressiva vivida com os irmãos, é sujeito de si mesmo, pode pensar, tem acesso à palavra, é ele o narrador da história. Nessa arriscada viagem, foi amparado pela força do ego, formado por estratificações de identificações parentais e fortalecido pelo final do processo de latência. Passou na dura prova representada pela intensificação das pulsões sexuais pré-genitais que reativa as relações de objeto primárias. Nas palavras de Bernard Penot (1975/1988), “passou por um remanejamento libidinal que recoloca em questão suas próprias bases e sua própria unidade”. Abandonado por Théo e Isabelle, segue sozinho; mas talvez seja sua, a afirmativa: Non, je ne régrète rien, que inunda a tela no final do filme.

Theo e Isabelle falharam em suas tentativas de se constituírem como sujeito; sem acesso ao pensar, lhes resta atuar a violência, o confronto selvagem de bombas e destruição. O filme retrata um momento. Na vida real não sabemos como os Theos e as Isabelles evoluirão. O processo de subjetivação na adolescência é feito de avanços e retrocessos, só o acompanhamento final dirá se tudo não passa da turbulência pela qual passam a maioria dos adolescentes ou se trata de uma patologia iniciada na adolescência. “A adolescência abrange um período de tempo durante o qual o indivíduo é um agente passivo dos processos de crescimento....a única cura para a adolescência é a passagem do tempo” (Winnicott, 1964, p. 249).

O mundo não foi mais o mesmo depois de 68. Poderia, como Mathew,ter evoluído para o desenvolvimento,manifestado por ações pensadas ao invés de atuadas. Raymond Cahn (1999) observa que nos últimos decênios tem ocorrido uma predominância do vivido sobre o pensado com o aparecimento de patologias atuadas como na anorexia, bulimia, uso de tóxicos e atos suicidas. Relaciona o fato com a diminuição ou com o requestionamento da função paterna ou de autoridade, a redução de barreiras entre as gerações, o hiperinvestimento dos filhos pelos pais numa aprovação mutua que escamoteia os conflitos fundamentais e seu potencial estruturante. A crise de valores, o prolongamento da dependência e a insegurança ligada à crise econômica são também fatores importantes na constituição dessas patologias. Em um espaço ampliado, a falta de limites de uma Sociedade demasiado permissiva, unido à ausência de líderes que funcionem como modelos identificatórios adequados à nova era, estão conduzindo o mundo à barbárie, como bem disse Saramago no seu Ensaio sobre a cegueira.

 

 

Referências

Blos, P. (1996). O segundo processo de individuação. In P. Blos, Transição adolescente. Porto Alegre: Artes Médicas        [ Links ]

Cahn, R. (1999). Psicopatologia do adolescente. In R. Cahn, O adolescente na psicanálise. A aventura da subjetivação (pp. 16-36). Rio de Janeiro: Companhia de Freud..        [ Links ]

Green, A. (1994). Punto de vista del psicoanalista sobre la psicosis en la adolescencia. Psicoanálisis N/A, 7: 74-89.        [ Links ]

Penot, B. (1988) A identidade em questão (N. Parada Franch, trad.). São Paulo: SBPSP. (Trabalho original publicado em 1975). Não publicado        [ Links ]

Winnicott, D. (1967). La família y el desarollo del individuo. Buenos Aires: Paidós.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Helena de Souza Fontes
Rua Bernarda Luís 508 &– Vila Beatriz
05448-020 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3875 5647
E-mail: mhfontes@terra.com.br

Recebido: 04/06/2007
Aceito: 18/06/2007

 

 

* O processo de subjetivação na adolescência, na linguagem do cinema em Os sonhadores, de Bernardo Bertolucci
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.