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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

A alma nua: Lucian &– e Sigmund &– Freud*

 

The naked soul: Lucian &– and Sigmund &– Freud

 

 

Eva Maria Migliavacca**

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A relação de parentesco entre o fundador da psicanálise, Sigmund Freud, e seu neto Lucian Freud, um dos grandes pintores do século XX, estimula a identificação de interseções e contrastes na apreensão que um e outro teve da alma humana; o primeiro expressando-se pelo uso da palavra e o segundo, por uma das mais antigas formas de arte, a pintura. Este texto contempla aspectos comuns entre Lucian e Sigmund, entrelaçando pintura e psicanálise, preservando a singularidade tanto do psicanalista como do pintor. A base das idéias expostas nasce da experiência analítica e do contato com a psicanálise, e o uso da obra do artista se constitui em um pretexto especial e inspirador para reflexões a respeito do ofício do analista e de condições psíquicas para a ação criativa.

Palavras-chave: Criatividade, Lucian Freud, Pintura, Psicanálise, Sigmund Freud.


ABSTRACT

The family relationship of Sigmund Freud, the founder of Psychoanalysis, to his nephew Lucian Freud, one of the greatest painters of the twentieth century, prompts reflection on similarities and contrasts between their understandings of the human soul; Sigmund by means of the word, whereas Lucian by one of the most ancient art forms, the painting. In this text I draw parallels, observing common aspects between Lucian and Sigmund. Painting and psychoanalysis are intertwined, but the uniqueness of both the psychoanalyst and the painter is preserved. The basis for my thoughts arises from analytical experience and contact with psychoanalysis. The use of the artist’s works constitutes a special and inspiring excuse to reflect on the work of the analyst and the psychological conditions accompanying the creative process.

Keywords: Creativity, Lucian Freud, Painting, Psychoanalysis, Sigmund Freud.


 

 

A relação de parentesco entre o fundador da psicanálise, Sigmund Freud, e de seu neto Lucian Freud, um dos grandes pintores do século XX, desperta curiosidade a respeito de possíveis intersecções e contrastes na apreensão que um e outro teve de aspectos daquilo que podemos chamar o humano. Sigmund desenvolve um método de investigação do psiquismo pelo uso da palavra, e Lucian utiliza uma das mais antigas formas de arte, a pintura, para apresentar ao mundo um modo próprio de ver a alma humana. Neste texto pretendo apresentar um paralelo entre ambos que contemple os aspectos comuns, mas preservando a singularidade tanto do psicanalista quanto do pintor. O uso da obra do artista neste trabalho pode ser visto como um pretexto especial e inspirador para reflexões a respeito do ofício do analista. Não pretendo me deter em explicações técnicas ou mesmo históricas; farei apenas algumas alusões e sugestões, consciente das lacunas decorrentes dessa decisão.

Hoje Lucian é considerado o maior pintor figurativista inglês vivo. Suponho que o fato de ser neto de Sigmund se constitua um interesse a mais para os psicanalistas.

Debruçar-se sobre a obra de outrem implica sempre transformações de acordo com modos próprios de ver e pensar. Acredito que isso seja inevitável. No que diz respeito à arte, o crítico e historiador Baxandall (1985, p.31) começa a introdução de seu livro Padrões de intenção com a seguinte frase: “Nós não explicamos um quadro: explicamos observações sobre um quadro”. Na introdução à edição brasileira desse mesmo livro, Salgueiro (1985, p. 10) reitera que uma “descrição (de um quadro) é antes uma representação do que pensamos sobre a obra do que a representação dela”. Explicamos nossas observações e representamos o que pensamos sobre uma obra apenas como uma sugestão do possível, cientes de que a dimensão excluída é muito mais extensa e ampla do que os aspectos contemplados. Se verdadeiro para a arte, não menos verdadeiro para a psicanálise.

O objeto de investigação do psicanalista encontra expressão nas diversas atividades humanas. Por exemplo, a pintura, a escultura, a literatura, o teatro, a música, o canto e a dança, evidenciam o objeto psicanalítico transformado enfim, nas inúmeras formas de arte. A meu ver, neste campo, o mérito de Freud consiste em ter proposto um método de investigação que propicia conhecer e pensar conceitualmente processos psíquicos dos quais pode resultar uma obra artística. É verdade que sem a experiência real com um analisando, fica-se nas possibilidades e nas abstrações. No entanto, a realização criativa torna evidente a existência de uma realidade psíquica cuja expressão evolui na direção do infinito.

Toda a base das idéias aqui apresentadas nasce da experiência analítica e do contato com a psicanálise, e por meio delas tento falar de aspectos do humano que nos é comum, entrelaçando pintura e psicanálise. No entanto, como acontece com a interpretação do analista na clínica, também a escrita de um texto abre possibilidades de que novas elaborações venham a ser formuladas.

***

Lucian Freud se lembra do avô mais famoso como um homem afável a quem ele queria muito bem, que contava anedotas e presenteava os netos com dinheiro. Isso é compreensível vindo de Sigmund, pois, segundo Gay (1988/2002), uma das preocupações que muito o atormentaram foi a necessidade de prover recursos materiais para sustentar a família. Ele teve tempos economicamente bem restritos e parece ter sido empático com dificuldades alheias. Dinheiro deve ter se tornado um presente de muito valor. Gay relata vários episódios que mostram Freud generoso com seus pacientes e admiradores. Por exemplo, quando o jovem poeta suíço Bruno Goetz foi consultá-lo, Freud teria notado sua pobreza, perguntando quando fora a última vez que ele comera um bom bife. Diante da resposta de semanas de fome, com delicadeza, Freud pediu a Goetz que aceitasse “um pequeno honorário pelo prazer que me proporcionou com seus versos e a história de sua juventude” (Gay, 1988/2002, p. 159). Ao abrir o envelope em seu hotel, Goetz encontrou 200 coroas, tendo então uma crise de choro.

Apesar de estar bem longe de sentir apreço pela psicanálise, Lucian conta que gostava muito de conversar com o avô. Diz ele que a conversa nunca era tediosa. Pelo contrário, Freud era divertido e bem-humorado, com uma disposição nada sombria ou amarga. Lucian o visitava com freqüência e o presenteou com quadros seus. Quando tentou reavê-los anos depois, descobriu, por informação de uma empregada que lhe queria bem, que haviam sido destruídos pela… tia Anna! Talvez, diz ele, porque o avô os tinha apreciado. Lucian detestava Anna e diz que ela era a mulher mais venenosa que ele conheceu e também a rotten doctor (Freud, L., 2006).

Filho de Lucie Brasch e de Ernst Freud, caçula de Sigmund, Lucian, segundo filho de uma prole de três, nasceu em Berlim em 1922, de onde a família migrou para a Inglaterra logo após Hitler ter se tornado chanceler em 1933. De sua infância berlinense protegida por parentes e governantas contra o contato direto com o nazismo, ele levou para a vida adulta, entre outras coisas, a obsessão pela solidão, preservada ciosamente até hoje, enquanto trabalha (Hughes, 1989/2003). Tendo conseguido a cidadania britânica após a mudança do avô para Londres em 1938, Lucian passou parte da juventude sob as bombas da Segunda Guerra, descendente de judeus numa época em que os nazistas dominaram quase toda a Europa, deixando uma mancha indelével na história dos horrores que marcaram o século XX. Daquele período restaram medos e traumas.

Quando Sigmund Freud morreu, Lucian tinha dezesseis anos de idade. Já passara por alguns colégios, sendo um de caráter experimental, cujas propostas liberais ele parece ter explorado bem, aparentemente mais se divertindo do que estudando. Teve uma adolescência turbulenta, autodenominando-se bad boy, inclusive pondo fogo na escola de arte que freqüentava. Em 1942 foi para o mar num navio da Marinha mercante, sendo dispensado pouco tempo depois. Foi readmitido na East Anglian School of Drawing and Painting, instituição de caráter assemelhado a um ateliê, passando a desenhar incessantemente. Granjeou a reputação de menino prodígio nos círculos de arte de Londres ainda durante a Segunda Guerra. Em 1944 fez sua primeira exposição na Levefre Gallery, em Londres. Ganhou o prêmio de pintura do Festival of Britain com Interior, Paddington, 1951. O artista de tendências expressionistas, com fortes traços realistas, escândalo dos bem-comportados, futuro queridinho da aristocracia endinheirada, provavelmente o maior pintor inglês vivo hoje, ainda estava por nascer, porém. Preservando suas inclinações próprias e dedicando-se à pintura figurativa quando se valorizava mais a pintura abstrata, Lucian foi desprezado, insultado, ignorado. Isso viria a mudar radicalmente. Com o passar do tempo, sua obra passou a ser disputada, ocupando um lugar proeminente na pintura inglesa. Grande parte de seus quadros pertence a coleções particulares. Em 2002 a Tate Britain fez ampla exposição de suas obras, com um sucesso retumbante.

O conhecido retrato que fez da rainha Elisabete II em 2000 causou estupefação. Mesmo preservando os traços da modelo real, as feições são brutas, masculinizadas, enfeadas, trazendo a rainha do alto do trono para o nível das docas, num recorte inteiramente pessoal. Após o repúdio inicial, o quadro foi incluído na Royal Collection.

Casou-se duas vezes, tendo feito vários retratos das esposas, sobretudo da segunda, com quem o casamento foi mais longo. Da mesma forma, pintou suas filhas em nus memoráveis.Aliás, seus modelos eram pessoas de suas relações, com raras exceções. São célebres os retratos que fez da mãe deprimida após a morte de Ernst Freud. Lucie teria tentado suicídio e, preocupado com a mãe, Lucian a buscava todas as manhãs para o desjejum, após o qual iam para seu estúdio. Lucie posou para o filho cerca de quatro horas por dia, durante vários anos. Alguns desses retratos sugerem muita ternura e intimidade. Pode-se supor que aquelas sessões de pintura tenham ajudado tanto a mãe como o filho a elaborar o luto pela morte de Ernst.

Avesso a entrevistas, Lucian se manteve discreto a respeito de sua vida particular durante sessenta anos. Recentemente, no entanto, conta à revista Tatler (Freud, L., 2006), alguns detalhes de uma vida sexual movimentada, fala de “maus comportamentos e noitadas selvagens”, que parecem, mais adiante, ter contribuído para o fim do segundo casamento. Segundo ele, outro complicador teria sido o anti-semitismo da família de Lady Caroline Blackwood, sua mulher. A mãe dela teria até planejado raptar a filha e pôr homens contratados no encalço do pintor, o que deixou Caroline muito nervosa, mas não chegou a afetar Lucian, acostumado a “viver entre vilões”, como ele diz.

Segundo Hughes (1989/2003, p. 18) o “turning point do trabalho de Lucian com o barro humano” deu-se a partir de Woman smiling, em 1958. A observação de seus quadros ao longo do tempo mostra nitidamente uma evolução no estilo, passando de uma pintura mais acadêmica para outra mais subversiva, intensa e singular. Certamente essa mudança se deu por necessidades expressivas do pintor, cuja autonomia de escolhas se evidencia em seu caminho na contracorrente das tendências da época.

Ao acentuar as linhas internas dos corpos, marcando-os fortemente e dando início a um estilo próprio, ele teria se tornado mais autônomo em relação a Ingres, uma forte paixão. Notável pintor do chamado classicismo, Ingres (1780-1867) é o herói de Lucian, que atribui à precisão e à beleza de seu desenho em formas bem torneadas “a ultrapassagem de uma barreira em direção a algo inalcançável” (Hughes, 1989/2003, p. 16): nos corpos macios contidos por um traço perfeito, revela-se a textura da pele sobre a carne que, numa direção longe da maciez, também está em Lucian Freud.

As pinturas de Lucian são firmes, de contorno nítido. É pintura desconfortável, incômoda, mas suas qualidades superam o que poderia ser sentido como desagradável. Também não é agradável. É pintura de força extraordinária. Provoca uma resposta estética à medida que não se fica insensível ou indiferente a ela. A pincelada é forte, perceptível. Ele não economiza tinta. As figuras retratadas se destacam do fundo, com nitidez. Não são insinuadas, esfumaçadas, pontilhadas ou sugeridas. O contraste entre sombras e luz é bem marcado. São bem delineadas não só nos limites externos, mas também nas saliências, volumes, vales, reentrâncias, relevos e perspectivas internas, isto é, naquilo que está contido pelo traço externo, que não é exatamente um traço, mas sim um contorno com volume dos corpos retratados.

Os nus, em grande número, não são exuberantes, sensuais, eróticos, que atraiam como nus e convidem a um voyeurismo prazeroso. Não há o aveludado da pele, curvas voluptuosas, formas arredondadas e macias. Figuras masculinas ou femininas são retratadas nos seus aspectos flácidos, feios, decadentes, sem concessões a suscetibilidades. É um nu no qual se desvela o desamparo, o abandono, a depressão, a solidão afetiva, o desalento, retratos da fragilidade humana e de carências expressadas no corpo. Causa uma forte impressão, mas não alegra. Não se tem a vivência de contato com algo que “é lindo”, mas ainda sim deslumbra. Há uma grande riqueza de sugestões que podem ser associadas àquelas representações. Ele capta aspectos da vida que ultrapassam o imediato e as aparências artificiais. Na carne frágil, vulnerável e em estado de abandono, ele desnuda a alma humana.

Lucian considera o modelo um colaborador.Pensar em colaboração significa que um vínculo se estabelece e uma dinâmica específica acontece, fruto do encontro daquelas duas subjetividades. Não é outra dinâmica e nem poderia ser, pois são “aquelas” as pessoas envolvidas, configurando-se uma relação singular que nunca se consegue abarcar no seu todo.

Se isso é verdade para o pintor não é menos verdade para o analista. Entre analista e analisando há uma colaboração, sem a qual a análise não evolui ou sequer é possível. A relação é sempre única. Outro analista com um certo paciente privilegiaria outro aspecto e faria outra interpretação que não a minha, diferente e ainda assim também verdadeira. Ou seja, a realidade é sempre maior e mais do que se pode captar e descrever. Aliás, a consciência dessa amplidão está ao alcance do analista tanto quanto do analisando.Um paciente usou espontaneamente a imagem de um caleidoscópio para se referir à riqueza das nuanças e arranjos das próprias vivências emocionais, e à limitação em expressar tudo o que percebia em si mesmo e entre nós. Se há um continente suficiente, os contidos podem se conjugar de infinitas formas.

Melanie Klein (1940/1996) considera tanto a arte quanto o ato de analisar e ser analisado como tendo uma função reparadora. Ela relaciona a capacidade de criar com a elaboração de lutos, que significa a reparação do bom objeto interno, fonte de esperança e de interesse pela vida. Pode-se supor uma mútua colaboração, silenciosa e doce, entre Lucie e Lucian naquele processo: ela supera a depressão e a tentativa de suicídio e ele se realiza na singularidade de sua arte.A meu ver,um encontro entre mãe e filho no qual o último pode oferecer à primeira aquilo que de mais evoluído ele alcançou no que diz respeito à sublimação e à capacidade simbólica. Quanto a ela... o que se passaria em sua mente, posando para o filho quatro horas por dia, anos a fio? Após a morte de Lucie, ele ainda desenha o retrato de seu rosto, agora imóvel.

Lucian disse que pinta a ruína humana, visível a seus olhos e acessível à sua sensibilidade. O olhar de quem aprecia o resultado talvez coincida com o de quem pinta, mais do que com o de quem serve de modelo. Nos quadros se desenham corpos que sugerem depressão, desalento e abandono, retratos imprevisíveis. Essa ruína é transformada numa obra de arte vigorosa, ainda que inquietante.

No passo anterior e paralelo, Sigmund Freud também se interessou em examinar aspectos do psiquismo subjacentes às aparências, material oculto na alma silenciosa, ruínas a partir das quais se pode desenrolar um processo de reconstrução. Não por meio da paleta, mas sim com o uso das palavras: menos sintético e menos poderoso do que uma imagem, mas o recurso possível tendo em vista os fins; menos imediato na sua ação, talvez. No entanto, para ser tocado por uma imagem, também é necessário um espírito receptivo naquele instante. Ou se dá um encontro na experiência emocional e então algo adquire um sentido, ou este fica por acontecer.

A conotação de ruína em Sigmund e em Lucian parece diferir. Para Freud (Freud, S., 1937/1978), e correndo o risco de ser repetitiva, em psicanálise consiste do mesmo interesse do arqueólogo em busca dos vestígios do que um dia foi uma civilização, com o intuito de reconstituí-la e tornar um certo conhecimento acessível. A ruína sugere o que existiu no passado. Pode-se reconstruir imaginativamente um palácio a partir dos fragmentos restantes. Suspeita-se o que tenha sido um dia o palácio de Cnossos, em Creta. Bion (1977) usa a já mui conhecida imagem dos saqueadores dos antigos túmulos de Ur, propondo um modelo de investigação da mente. Uma pergunta na psicanálise é: pode-se reconstruir o que um dia foi uma mente ainda por se desenvolver, cujo desabrochar foi impedido ou prejudicado por um ou vários desastres psíquicos, dos quais restaram escombros? Talvez não se reconstrua realmente, mas sim se construam recursos de tolerância para com a dor e a perda, quem sabe abrindo caminho para uma relação com a vida, nunca possível antes.

Para Lucian, parece ser a ruína em si mesma que lhe interessa, não como algo a ser resgatado e reconstituído, mas evidenciado sem meias tintas. Numa posição realista e contestando quem o associa com o surrealismo, diz: “Eu não poderia pôr num quadro nada que não estivesse realmente diante de mim. Seria o mesmo que mentir, um mero preciosismo artístico” (Hughes, 1989/2003, p. 13). Isso, para ele é um valor: “Eusintoqueéimoralpôr(noquadro)algo que não está lá (no modelo), mas não é necessariamente imoral deixar fora algo que está lá” (p. 19). O pintor inevitavelmente faz uma seleção de acordo com suas características pessoais, sua personalidade, seus traumas e história de vida, privilegiando certas nuanças com um olhar peculiar e individual.Fica envolvido com o modelo,que também se entrega ao escrutínio do pincel. O modelo não dá apenas o que o pintor retrata, mas sim muito mais, um olhar mais complexo, mais rico em sugestões e possibilidades. O pintor destaca aquele aspecto que se coaduna com sua intenção de pintar a ruína humana nas suas áreas obscuras, talvez espanto diante do próprio desamparo e fragilidade, corpo nu, alma nua, o nu como símbolo de uma entrega cujo resultado na verdade é imprevisível. Então, ele expõe o modelo, mas expõe também a si mesmo no recorte que faz do ser retratado. Não há relação com um outro que não contenha algo do eu. A relação analítica, que é uma relação humana viva, evidencia esse ponto todo o tempo.

À diferença do pintor, que retrata o fruto do encontro usando as tintas e a tela, o analista expressa o vínculo estabelecido, por meio de palavras. À semelhança da pintura, expressar por escrito uma experiência emocional vivida implica sempre uma perda e uma limitação intransponíveis. Algo se perde e, ou se aceita esse fato ou a escrita morre, pelo menos esse tipo de escrita.

As mais profundas emoções humanas sempre encontraram expressão na arte, na literatura, como também nos mitos e religiões. No campo da literatura, Lessing (1994/1997) escreve que a maior angústia do escritor é a de não conseguir expressar aquilo que está dentro de si. Em análise, temos o mesmo problema: como traduzir em palavras o inefável da vida psíquica. Para o pintor, como pôr em imagens aquilo que seu olho capta. Desde tempos bem recentes, a relação analítica pretende dar condições para que as emoções recolhidas na mente inconsciente do indivíduo possam vir à luz e serem elaboradas numa direção nova, abrindo caminho para uma vida mais criativa.A criatividade não se evidencia apenas por meio de talentos artísticos, mas também na contínua busca de soluções para os conflitos psíquicos,que se refletem na qualidade de relacionamento de uma pessoa consigo mesma e com o mundo em que vive.

Em “Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico”, Freud escreve:

A arte promove uma reconciliação dos dois princípios (de prazer e de realidade), por uma via peculiar. Originalmente o artista é uma pessoa que, por não conseguir se haver com a exigência de renúncia requerida pela realidade, afastou-se da realidade e, no mundo da fantasia, deu livre curso a seus desejos eróticos e ambiciosos. No entanto, é capaz de encontrar o caminho de volta desse mundo da fantasia à realidade, graças a um talento especial para transformar suas fantasias em realidades de um novo tipo, aceitas pelas pessoas como imagens valiosas da realidade (1911, p. 69).

Aparentemente, Freud não terminou a vida muito feliz com o que vira e vivera. No mundo de hoje, as políticas sociais são pouco animadoras e os quatro cavaleiros do Apocalipse correm cada vez mais à solta. Pode-se argumentar que os aspectos fortemente predatórios dessa espécie a que pertencemos sempre existiram. Sim, mas salta à vista a necessidade de ampliar recursos à altura da ferocidade humana, para conter e dar um destino um pouco mais benéfico à humanidade, um destino que traga menos sofrimento. Entretanto, segundo entendo Freud no recorte de texto acima, a arte exerce uma função conciliatória e equilibradora, cujo resultado concreto é valorizado pelos homens por aquilo que expressa de verdadeiro. Um exemplo notável também pode ser encontrado na pintura expressionista alemã, logo após a Grande Guerra, a qual tomou um vulto e um rumo tal que não se sabia mais como pará-la (Steiner, 1971/1991). Dix e Grosz tiveram seus períodos mais fecundos nessa época, expressando vigorosamente o caos instaurado, movidos acima de tudo pela cólera. A sua é, de fato, uma arte colérica. E eles nunca fizeram quadros com a mesma força, posteriormente.

Numa parte muito bela de seu texto “Níveis de trabalho analítico e níveis de patologia”, Alvarez (2004) destaca a importância de estados de gratificação e satisfação como estímulo ao interesse pelo mundo e pela vida. Ela comenta que estados mentais agradáveis têm sido freqüentemente descritos em psicanálise como passivos; a par disso, é forte a idéia de que pensamento e realidade só acontecem em presença da frustração e da ausência. Combinando a idéia de Klein da importância da constituição de um bom objeto para a vida emocional com o conceito de realização de Bion, Alvarez enfatiza que as experiências positivas são fundamentais para promover tanto o desenvolvimento mental como o emocional. São experiências que estimulam vitalidade e não passividade. Ela se refere também a uma pesquisa de Wolff, que constatou que os bebês mostravam curiosidade intelectual não quando cansados ou famintos, mas quando bem alimentados, descansados e confortáveis.

Numa visão idealizada, mas exemplar, o mito antigo conta que não há conflito em Deus ao criar o mundo. Deus não é descrito como insatisfeito ou frustrado, menos ainda precisando de algo além de si mesmo. A criação do mundo e do homem não surge pela existência de uma frustração, de uma ausência ou de um conflito, mas a partir de uma plenitude que se realiza e se completa no ato criador. É na plenitude da graça divina, que o mundo e o homem são criados. Não para suprir uma falta, mas como expressão de um Ser.

Nas comoventes Cartas a Théo, Van Gogh (1986) escreveu ao irmão a respeito das angústias que o atormentavam, freqüentemente ameaçado por crises que o impediam de se ocupar de sua amada pintura. Quando em estado mental mais sereno, então conseguia pintar. A pintura não o tirava da angústia; pelo contrário, ele só pintava ao se sentir razoavelmente equilibrado. Pode-se dizer: com o ego mais composto e organizado, podia nascer o artista; com o ego dominado por perturbações mentais, desaparecia o artista.

O poeta John Milton, vítima de cegueira, não se entrega à dor da perda da visão: ele sai dela, da dor, e compõe o magnífico O paraíso perdido (1667/2007). São muitas e belíssimas as referências que ele faz ao brilho da luz, à penumbra e à escuridão. A citação que Bion extrai de Milton, sobre “o infinito vazio e informe” (Milton, 1667/2007, verso 12, p. 167), para o poeta se constitui fonte de vida e inspiração, nascimento de mundos. Para o analista, é modelo de abertura interna para com o desconhecido a ser investigado. A meu ver, tal estado mental, seja no pintor, no poeta, no escritor, no cientista, no psicanalista ou no homem em seu dia-a-dia, se caracteriza por conforto, aceitação e reconciliação com a realidade. Na experiência de analisar é possível identificar nitidamente quando tal condição psíquica se constitui, presente, ativa e criativa, propiciando um trabalho livre da pressa e da ansiedade por respostas. Porém, a constituição desse estado &– que se renova e reconstrói incessantemente &–, nasce de uma dinâmica ainda por ser mais bem esclarecida, a meu ver.

Para usar um modelo que é também uma experiência real: se um bebê vive um estado de privação, a tendência é buscar satisfação; se não a encontra e ela demora para além da capacidade de tolerância daquele bebê, ele alucina. Alucinar é um modo de evadir-se. E a alucinação em si mesma, não é criativa; ela toma o lugar de uma criatividade real.

Bion (1967/1994) escreve sobre evasão ou modificação da frustração. Ele assinala que o método da evasão está ligado ao predomínio do princípio de prazer, enquanto que a modificação se dá na predominância do princípio de realidade, sem esquecer que ambos coexistem. Isso pressupõe um conflito que só pende para a modificação se houver boa tolerância à frustração.

Se frustração significa dor e na experiência da dor o indivíduo busca alívio, seja por descarga, pela alucinação ou por qualquer processo defensivo, a mente fica ocupada com essa tarefa. Se a dor pode ser tolerada, então o estado mental já é outro. Se há tolerância, significa que existe ou se constrói uma reserva de espaço psíquico preservado da tendência à evasão. Talvez uma condição intermediária, um passo posterior à experiência frustradora e anterior à expressão criativa, num processo rápido e quase imperceptível, mas de poderoso efeito. Suponho ser esta a condição que propicia a realização artística, como também a interpretação analítica, a curiosidade científica, ou ainda, a capacidade individual de pensar alternativas para a dor psíquica.

Deste ponto de vista, a criação de uma obra de arte não serve para tirar o indivíduo da frustração, mas é resultante do fato de o indivíduo “já ter saído” da frustração. Ele já a superou e por isso pode criar: nem a dor, nem a frustração, nem a loucura são criativas. Na dor o indivíduo busca aliviar-se &– ou evadir-se. Tolerar a dor já é um estado mental novo, no qual já se constituiu um continente capaz de conter seus contidos fragmentados e em processo de organização, como uma fina película propiciando uma dinâmica de separação e união contínua. Talvez, até o momento, função alfa seja a melhor teoria psicanalítica para pensar esse ponto conceitualmente.

Então, entendo por criatividade um funcionamento cujo efeito consiste de uma satisfação transformadora da realidade que promove crescimento. Pode resultar numa obra e arte quando conjugada com talentos especiais e com os necessários recursos de ego, mas o crescimento se expressa também nas pequenas coisas do cotidiano. Desta forma, pode-se admitir que ali onde nasce a possibilidade de uma mente vir a se desagregar também brota a via da sublimação e da realização criativa.

Lucian Freud se refere à disciplina do artista diante de seus modelos, em nada diferente da desejável ao analista. Nas palavras de Hughes (1989/2003, p. 21), “o modelo não é um instrumento das fantasias do pintor e ele não é livre para pintá-lo sem ser mantendo a cabeça no seu devido lugar”. Sem isso, talvez Lucian sequer pudesse ter pintado nus de suas filhas. Sobrecarregar a cena com projeções e desejos, fazer uso do outro para aliviar tensões, desvirtua o objetivo do pintor como também o do psicanalista. “O único trabalho possível de ser feito”,diz Lucian, “é no próprio íntimo.Eu pinto o tipo de pintura que eu posso, não necessariamente as que eu quero” (Hughes, 1989/2003, p. 21). Palavras que sugerem capacidade de continência, consciência de alcances e limites, que remetem à proposta de Bion (1967/1994) de uma mente livre de memórias e desejos, aberta a captar o desconhecido da experiência, disponível para o ato criativo, tão necessário ao ofício do psicanalista quanto ao do pintor, como também à experiência no mundo.

Não cabe analisar alguém que não autoriza um analista a fazê-lo, mas é fato que ninguém escapa de si mesmo. A vida conturbada de Lucian Freud, sua história íntima e pessoal fora de nosso acesso, seus múltiplos casos amorosos, uma agressividade que o leva a brigar na rua aos 80 anos, a paixão pelas corridas de cavalos que o torna um gambler inveterado, o direito de preservar a solidão no trabalho, um feroz individualismo, a liberdade de se dedicar a um estilo de pintura que antes de expressar uma tendência de época serve para ele expressar a si mesmo, tudo isso e mais o que não sabemos, constitui o homem e desabrocha o pintor.

A disciplina do analista respeita o possível, diferente dos desejos. A aceitação do possível abre o campo para uma mente em evolução, para a elaboração e continência das vivências internas. A função de analisar requer a convivência com um contínuo estado de privação, que adquire um caráter confortável quando plenamente aceito. Seja como ou onde for, um indivíduo é o que pode ser. Aceitar essa condição, bem expressa nas palavras do digno neto de seu avô, liberta o analista para a descoberta de si mesmo e para o exercício da função singular que escolheu.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Eva Maria Migliavacca
Rua Joaquim Antunes, 490/12 &– Pinheiros
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E-mail: emiglia@usp.br

Recebido: 05/11/2007
Aceito: 30/11/2007

 

 

* Trabalho apresentado com modificações em reunião científica da SBPSP em março de 2007.
** Psicanalista pela SBPSP. Professora titular no IPUSP.