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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.31 no.146 São Paulo June 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Destinos*

 

Destinies

 

 

Marion Minerbo**; Any T. WaisbishI,***; Débora S. Seibel I; Eliane S. Muszkat I; Fátima A. P. da Silva I; José Antonio S. de Castro I; Ludmila Kloczak I; Maria Aparecida Rocha I; Maria Beatriz S. Rouco I; Remo Rotella Junior I; Sibila A. M. de Almeida I; Silvia M. Bracco I; Simone W. Feferbaum I; Sonia S. Terepins I; Suzana K. Kruchin I

I Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Duas personagens de um filme de Érick Zonca &– La vie rêvée des anges (1998) &– foram objeto de escuta clínica. Assumindo integralmente a dimensão artística e literária da escuta analítica e da interpretação, os autores participam da obra de arte em exame: entram nos campos subjetivos aí operantes; reconstituem os estilos e padrões subjacentes de pensar, sentir, desejar e sofrer das duas personagens (suas metapsicologias); e oferecem sua capacidade de simbolização e verbalização às experiências de mundo de cada uma. O resultado é uma apresentação dramática do“material”. A relação entre o plano fenomenológico e o metapsicológico das análises fica assim muito mais evidente do que seria possível em uma apresentação clínica convencional.

Palavras-chave: Destino, Escrita da clínica, Estruturas neuróticas e não neuróticas, Psicanálise e literatura.


ABSTRACT

Two characters of a Erick Zonca’s film (1998) La vie rêvée des anges became the object of clinical listening. Assuming entirely the artistic and literary dimension of the analytical listening and interpretation, the authors took part in the work of art under examination: they enter the subjective fields in operation; they reconstitute the styles and underlying patterns of thinking, feeling, desiring and suffering of the two characters (their metapsychologies); and offer their capacity of symbolization and verbalization to the experiences of each one’s world. The end result is a dramatic presentation of the “material”. The relation between the phenomenological plan and the metapsychological plan of the analyses becomes thus much more evident than it would be possible in a conventional clinical presentation.

Keywords: Destiny, Clinic writing, Neurotic and non-neurotic structures, Psychoanalysis and literature.


 

 

Apresentação

As estreitas relações entre a escrita psicanalítica e a literatura de ficção foram admitidas desde que Freud foi levado a reconhecer (meio a contragosto) que suas histórias de casos não obedeciam aos padrões científicos da época e lembravam, ao contrário, novelas e romances. Outros autores (Loewald, 1975) enfatizaram, e valorizaram positivamente, a proximidade dos ‘objetos’ e campo de ação do analista com a arte dramática. Fantasias, complexos relacionais e estruturas conflitivas interpessoais e intrapsíquicas, padrões e estilos pessoais, personagens, reprodução e imitação só podem ser, de alguma forma, acessados e apresentados mediante um uso artístico da imaginação e da linguagem, como na narrativa [semi] ficcional e no teatro.

No trabalho que se segue, um filme de Érick Zonca (1998) &– La vie rêvée des anges &– e seus principais personagens foram objetos de uma escuta clínica. Isso já havia sido feito, em um texto dedicado à caracterização de alguns aspectos da adolescência, conforme o modelo mais tradicional: uma sinopse seguida de uma análise da “fenomenologia da clínica” a que se acrescentava uma discussão metapsicológica (Figueiredo, 2006). No presente trabalho foi adotada uma metodologia diferente e, em certo sentido, mais “psicanalítica”, embora, até onde saibamos, inexistente até agora na nossa literatura.

Assumindo integralmente a dimensão artística e literária da psicanálise, da escuta analítica e da interpretação, os autores participam da obra de arte em exame, no caso o filme: entram nos campos subjetivos aí operantes, reconstituem os estilos e padrões subjacentes de pensar, sentir, desejar e sofrer das duas personagens principais (suas metapsicologias), e oferecem suas capacidades de simbolização e verbalização às experiências de mundo de cada uma. O resultado é uma apresentação dramática do ‘material’, uma apresentação em que os diversos discursos se cruzam e interpelam, se esclarecem e se suplementam em relações metalingüísticas de mútua referência que em nada ficam a dever à complexidade de níveis da escuta do psicanalista. O caráter irônico do saber em psicanálise, no mais exato e próprio sentido do termo, é destacado: nenhum discurso é totalizante e sabe-se desde sempre dos limites da representação, de qualquer representação.

A ironia psicanalítica se encarna,principalmente, na introdução de dois novos ingredientes à trama: uma personagem, Marie, dá seu testemunho póstumo, após o suicídio a que assistimos na tela e que é narrado no texto de diversos pontos de vista; e uma analista, a que uma das personagens recorre vinte anos depois do final dos episódios que o filme retrata. Essa nova personagem relata a última sessão em que se falara justamente dos acontecimentos decisivos na vida das duas adolescentes. A fala post-mortem e o relato ‘profissional’ da sessão, vinte anos depois dos fatos, apontam para a dimensão de posterioridade &– inconclusa, jamais consumada &– que é própria da vida psíquica e da experiência analítica. Em conjunto, a vivacidade na [re] criação dos personagens e seus destinos, faz com que a experiência de ver o filme &– altamente recomendável pela qualidade da película &– torne-se, de certo modo, desnecessária para a compreensão do texto.

A relação entre o plano fenomenológico e o metapsicológico das análises fica assim muito mais evidente do que seria possível em uma apresentação clínica convencional, bem como fica totalmente à mostra a natureza criativa e multifacetada da escuta e da interpretação em análise.

L. C. Figueiredo

 

O destino de Marie

Meu nome é Marie. Tenho 20 anos e vivi o suficiente para saber que a vida é feita de sofrimento e dor; o mundo é mau e perigoso. Não chego a ter consciência disso, mas vivo tensa, assustada e com ódio. Estou sempre com as unhas de fora para me defender do próximo ataque. Quero sobreviver.

O que me ameaça? Tudo. Já me disseram que pareço arrogante, mas no fundo o que eu sinto é medo. Nunca pude confiar em ninguém. Nunca tive quem me protegesse e me ajudasse a viver. Ao contrário, minha mãe sempre me explorou e meu pai é violento. Sofri muito quando criança. As pessoas me atacam e me humilham. Gato escaldado tem medo de água fria. Eu tenho pavor.

Não espero nada da vida. Vou levando um dia depois do outro. Quer ver como não posso confiar em ninguém? Conheci um cara, o Charlie. Ele não queria deixar eu e a Isa entrarmos no show de graça. Ela tentou jogar um charme, mas eu logo o mandei à merda. Quem ele pensa que é? Pensa que eu preciso dele, ou do showzinho dele? Sei que pareço arrogante, mas é só porque ele queria humilhar a gente. Dá um ódio! Aí eu não agüentei: bateu, levou. Parti para o ataque antes que ele fizesse isso comigo. Na noite seguinte ele deixou a gente entrar na balada. Com certeza era só para eu transar com ele. Acabei transando; nem sei se eu queria, mas fui. A Isa não quis transar com o amigo dele, mas ficaram amigos.Nooutro diao Charlie medeudinheiro.“Meu”, não acreditei, ele me deu uma grana sem eu pedir nada! Não sou idiota, como a Isa, de achar que foi para me ajudar, ou porque gostou de mim. Isso não existe. Embora eu pareça muito segura de mim, no fundo sei que não valho nada. Eu também não sou idiota de me ligar a alguém só porque me deu dinheiro. Se eu me ligar, ele vai sumir e me deixar na mão. Disse na cara dura que não gostava dele, que ele é um gordo seboso. Pensei que ele fosse ficar com ódio e me mandar à merda. Mas, para meu espanto, ele só ficou quieto. Não entendi nada. Isa disse que ele ficou magoado. Eu não sei o que é isso, não faz parte do meu repertório.

Já disse que comigo é “bateu, levou”. Danem-se os outros, não estou nem aí com eles. Eles também não estão nem aí comigo. Isa disse que a gente tem de dar um tempo para saber se foi de propósito ou sem querer. Se eu parar para pensar o estrago pode ser maior. Aliás, o que é pensar? Para que serve isso? Só quero me livrar da dor o mais rápido possível. Não vou deixar que me desmontem. Depois, sou eu que tenho que conviver com a ferida aberta, e sozinha, sem ninguém para me ajudar.

Quanto não estou brigando, acho a vida um tédio. Às vezes chamo isso de depressão porque não tenho palavras para descrever o que sinto. É um vazio que não consigo preencher com nada. Só mesmo um back me traz alívio. Então, ou estou entediada, ou com raiva. As pessoas acabam se afastando de mim. Melhor assim. O problema é que não sei ficar sozinha, porque aí eu caio num abismo. Por isso fumo muito. O cigarro é um bom amigo, está sempre à mão, nunca me decepciona.

Isa me chamou para trabalhar. Ficar andando de patins feito uma palhaça para ganhar uns trocados? Eu não! Ela não vê que é humilhante? Vão rir de mim na rua. Ela perguntou como vou ganhar dinheiro para comer. Prefiro não comer. E ela ainda parece se divertir com o trabalho. Nem sei o que é se divertir, ou ter prazer com as coisas. Não sofrendo já está muito bom. No trabalho ela arranjou uma amiga. Morri de ciúme. Senti que não sou suficiente para ela. Isa é minha amiga e me contou a vida dela. No fundo, não me interessa. Nem me interessa contar as minhas coisas. Para ser criticada? Foi o que ela fez quando conheci o Cris.

Isa vai sempre visitar a Sandrine no hospital. Ela vai lá e conversa com uma menina em coma! Ridículo. O que é que ela ganha com isto? Eu só me ligo em quem me dá alguma coisa. Como minha mãe, que só vem me ver quando precisa. Isa diz que está usando o quarto dela e quer retribuir e agradecer. Sente pena e que fazer algo por ela. Agradecer? Retribuir? Sentir pena? Realmente, para mim nada disso faz sentido. Para mim ela é de outro planeta!

Chegamos na parte principal da minha história. Conheci o Cris e esse encontro selou o meu destino. Por um momento eu acreditei que a vida podia ser boa e “baixei a guarda”. Foi a maior besteira da minha vida: criei a expectativa, me apaixonei, fui atrás dele e, claro, não deu certo. O problema é que não consegui me conformar em voltar para o nada. A história é a seguinte.

Eu estava roubando um casaco numa loja e me pegaram. Ele viu e pagou o casaco. Até hoje me pergunto por que ele fez isso. Acho que foi para esfregar na minha cara como ele é poderoso. Achou que eu fosse uma morta de fome. Quis me comprar, me submeter, me dominar. No começo não deixei. Fui arrogante, deixei claro que não tava nem aí nem com ele, nem com o casaco. Nem agradeci, claro. Mas ele insistiu, me xavecou, e eu fui amolecendo. O cara é rico pra caramba. É dono da balada onde o Charlie trabalha.Nunca um cara tão rico me deu bola. Isso mexeu comigo. Será que ele gostou de mim? Afinal, ele me salvou da polícia. Foi bom comigo. Olhou nos meus olhos. Falou sem gritar. Disse que eu era bonita, me convidou para sair, me beijou, fez carinho. Disse que gostava de mim &– eu nunca tinha ouvido isso de alguém tão rico e bonito! Eu me senti melhor do que se tivesse fumado dez backs! Virei no avesso! Pela primeira vez, a Marie carente que eu sou bem lá no fundo se sentiu preenchida. A vida ganhou cor. Em vez daquele “bode” de sempre, senti uma coisa maravilhosa: a sensação de ser amada, de ser importante para alguém! Me senti viva pela primeira vez na vida. Senti que eu valia alguma coisa, que eu não era uma perdedora.

Amoleci. Fui para um motel com ele. Acreditei que ele era um cara legal. Eu precisava acreditar que, desta vez, as coisas podiam dar certo para mim. Que eu tinha encontrado alguém que me ajudaria a entender a vida e a viver. A Isa começou a me encher o saco, falando para eu ter cuidado com o cara. Disse que ele era mulherengo, só porque é dono da balada. Deve ter ficado com inveja, afinal agora eu tinha tudo! Dei um chega pra lá nela. Eu não ia deixar ela estragar o meu sonho. O cara era perfeito! Ele tinha tudo, era poderoso. Pela primeira vez eu achava que a vida era boa. Eu estava salva! Saí da merda! Nunca mais ia passar necessidade, ralar, ficar sozinha. Estava tão preenchida que deletei o Charlie. Aliás, deletei tudo, só ele importava.

Aí veio a primeira decepção. Vi ele com outra garota. Senti que me tiravam o chão. Parecia que eu estava me desmanchando e caindo num abismo sem fim. Nem pensei, ataquei a garota. Queria acabar com ela. A culpa era dela; eu tinha certeza que ele gostava de mim. Fizemos as pazes, ele me levou para a praia, disse que ia ficar comigo. Ficou tudo ótimo outra vez. Pensei que dessa vez era para sempre.

Mas, mais uma vez, apareceu outra mulher. A Isa continuava dizendo que ele não prestava, para eu largar dele. Ela me ofendeu, eu fui grossa com ela, ela me empurrou. Fiquei com tanto ódio que ameacei esfaqueá-la se ela relasse a mão em mim de novo. Ela não entendia que para mim, o Cris era uma questão de vida ou morte. Desistir dele era desistir de viver. Sem ele eu não era nada. Ela me disse que eu estava rastejando, mas isso era o de menos. Eu precisava dele para viver, ia fazer qualquer coisa para ter ele de volta.

Ele era o melhor e o pior que já tinha me acontecido. Como uma mesma pessoa pode ser o melhor e o pior para outra? No começo eu só via o melhor. Quando vi o pior, não acreditei. Neguei de pés juntos que ele era sacana. Por incrível que pareça, não senti ódio. Vai ver que é porque eu não podia perder ele de jeito nenhum. Ao mesmo tempo, não dava para ficar com ele me traindo o tempo todo. Eu simplesmente não conseguia conviver com a ameaça de ele ir embora a qualquer momento. Era um tormento. Me levava para o céu quando ficava comigo; eu me via rica e bonita, a vida ficava colorida. Quando ele se afastava eu voltava a ser nada. Uma montanha-russa.

Até que soube que ele tinha me deixado mesmo. E aí, como eu ia viver, sem meu mundo? Fiquei num desamparo absoluto, em carne viva. Será que eu ia ter de sentir aquela dor dilacerante para o resto da vida, sozinha, sem poder contar com ninguém? Aquilo jamais ia cicatrizar, eu sei. Eu estava desmilingüindo, já não era mais eu. Eu estava morrendo, estava ficando louca. Eu me tornei um nada. Isa até tentou me ajudar, mas eu nem enxergava ela, nem ouvia o que ela me dizia. Só via o abismo. Dei todo meu amor para quem não me amava. Sem amor fiquei vazia, um trapo.

De repente, tive um lampejo de que eu poderia ficar livre daquela angústia de cair no espaço sem fim realizando-a. Quando olhei para a janela, percebi que tinha uma saída. Nem pensei. Nunca pensei na vida, não ia ser agora, no meio do desespero, que eu ia conseguir isso &– ainda mais sozinha. Mas mesmo que pensasse, nessa altura eu não tinha nada a perder, já tinha perdido tudo. Pulei.

 

Testemunho póstumo

Já estatelada no chão, comecei a pensar no que tinha me acontecido. É incrível como a morte nos traz uma nova perspectiva da vida. Descobri que metapsicologia é destino.

Eu era uma borderline relativamente compensada: vivia sem alegrias, mas também sem grandes agonias. Sem um “pára-excitação” adequado, cada vez que me via invadida por angústia eu sentia uma dor psíquica tal, que a única coisa que eu podia fazer era reagir imediatamente, para descarregar o afeto doloroso. Eu não conseguia pensar, dar sentido às experiências de dor. Então, a dor virava ódio e eu atacava as pessoas. Era uma grande atuadora.

Minhas reservas narcísicas eram mínimas, eu me sentia ameaçada e humilhada com muita facilidade: tudo feria meu narcicismo, a ferida estava sempre se reabrindo. Para tentar estancar essa dor aguda eu tinha que investir toda a libido em mim mesma, não sobrava nada para investir na vida, nas pessoas. As pessoas que não entendem nada de metapsicologia me viam como egoísta. O grande problema de não ter libido para investir nos objetos é que isso tornava minha vida um deserto afetivo. Eu não tinha objetos significativos. Daí o tédio e o vazio que eu sentia continuamente. Eu precisava que alguém viesse me preencher, precisava me apoiar em alguém para não desmoronar. Nunca tinha realmente conseguido autonomia com relação ao meu objeto primário; vivia esperando topar com ele em alguma esquina, e então ele me preencheria para sempre.

Enquanto isso não acontecia, a dor crônica fazia com que eu vivesse afogada no meu próprio ódio. Para sobreviver, eu cindia e projetava esse ódio nas pessoas. Isso me dava um alívio temporário, eu podia me sentir boa e gostar de mim. Mas logo eu sentia que as pessoas iam me explorar, me humilhar. Era efeito das identificações projetivas que eu fazia. Vivia perseguida, com medo das pessoas; diante disso eu tinha que redobrar as minhas defesas. O círculo vicioso recomeçava. Era um inferno. Eu vivia no sobe desce da gangorra esquizoparanóide.

Até que me apareceu este cara, o Cris, que alterou profundamente o precário equilíbrio de minha economia libidinal. Ele me ajudou numa hora de aperto e disse que gostava de mim. Bastou isso para eu transformá-lo no meu objeto primário. Foi essa operação psíquica, mais do que tê-lo encontrado, que selou o meu destino. Preciso esclarecer que eu nunca satisfiz minha necessidade de um objeto primário, e por isso eu não consegui internalizar um objeto bom ao longo do meu desenvolvimento mental. Vivi até então na expectativa de encontrá-lo. E eis que ele surge ali, como por milagre, na loja em que eu roubava o casaco.

Depois eu conto a transformação que sua presença operou na minha economia psíquica. Por enquanto, basta dizer que fiz uma transferência maciça com ele, e que meu ego foi a mil: transformou-se no ego ideal,eu voltei a ser o bebê grandioso e perfeito &– aquele que pensa que é o seio idealizado. Em suma, eu o idealizei e me confundi com ele. Isso me convinha enormemente, pois o alívio que eu conseguia com isso era inacreditável. Não percebi que era o meu próprio narcisismo primário que eu via ali. Eu estava, literalmente, alucinando. Não havia nenhum espaço para eu pensar.

De modo que, atraída pela força magnetizante &– ou deveria dizer alienante? &– deste campo transferencial, regredi a uma posição de dependência absoluta. Passei a funcionar de um modo psicótico, anterior mesmo à posição esquizoparanóide &– o momento pré-ambivalente da fase oral precoce, em que tudo é perfeito, sem ambivalências. Nesse momento não me seria possível sequer lançar mão do ódio ao objeto mau para me estruturar. O mundo mudou totalmente: passei a viver em um estado mental alucinado, em que os afetos ganham um colorido absoluto: tudo era inacreditavelmente maravilhoso quando estava com ele. Mal sabia eu que o jogo ia virar para o exato oposto: o desespero absoluto. Nessa posição, o que a gente sente são agonias impensáveis, angústias de cair para sempre no espaço sem fim, mas não ódio. O fato é que, enquanto eu estava em plena regressão, num desamparo absoluto, ele me deixou na mão sem uma explicação. Eu não tinha como sobreviver a isso. Surtei feio; me desintegrei.

Se eu tivesse conseguido internalizar um objeto bom eu teria ficado com o Charlie, que era bom e paciente comigo. Ele me agüentava, não ia me largar. Ele sobrevivia aos meus ataques, ao meu mau-humor, à minha insensibilidade. Ele gostava de mim como eu era.

Quanto à minha experiência com o Cris, não foi um acaso azarado. Do ponto de vista da falta de um bom objeto interno, ele era o cara certo, aquele que eu estava esperando; aquele que pareceu me tratar do único jeito que eu necessitava (e que até minha mãe falhou em me proporcionar): tinha tudo, era poderoso, me salvou, cuidou de mim, e até gostou de mim do jeito dele; mas ele me largou, me esqueceu, me abandou. Foi então que entendi que esse era o meu destino: sem um objeto interno bom, eu só iria conseguir me ligar a outros objetos-Cris na vida. Eu ia procurar quem me ajudasse a sobreviver, mas, mesmo indo para a China, minha busca redundaria em mais um fracasso. Minha vida mental estava sob o domínio de Tânatos, não havia como escapar da compulsão à repetição.

Eu precisava de um bom objeto, um que não respondesse da mesma maneira, mesmo que eu o empurrasse para esta posição. Precisava de análise. Só assim, quem sabe, eu conseguir me ligar aos “Charlies” que me aparecessem. Sem este novo começo eu jamais teria objetos internos bons o suficiente, nem mesmo para reconhecer, neles, parceiros possíveis para mim. Provavelmente eu nem ia me dar conta da existência deles, muito menos da chance que eu estava perdendo. O pior é que eu também não ia conseguir usar as “Isas” que surgissem &– boas amigas, tolerantes, capazes de me ajudar.

Isa pensa que pulei pela janela de forma impulsiva, sem pensar. Agora que estou morta, posso afirmar que pulei porque tive um vislumbre da minha própria metapsicologia.

 

O destino de Isabelle

Cara Sandrine,

Meu nome é Isabelle Tostin. Tomo a liberdade de te escrever vinte anos depois do nosso “encontro”, no fim de nossa adolescência. É verdade que você não me conhece &– nós nunca nos falamos pessoalmente &– mas, posso dizer que te conheci bem naquela época. Quis o destino que eu lesse o seu diário (depois te conto como) e então eu quis te conhecer enquanto você estava em coma. Sua mãe tinha morrido no acidente, mas você não sabia. Eu ia te visitar e lia trechos do seu diário para você. Acredito que isso teve algo a ver com sua recuperação. Hoje sei que foi a experiência mais significativa da minha vida.

Sabe, Sandrine, queria te agradecer por ter escrito um diário e pedir desculpas por tê-lo lido. Foi muito importante perceber que você passava por problemas muito parecidos com os meus, e os elaborava através da sua escrita. Ler o que você escrevia sobre sua vida me ajudou a entender a minha. Estou fazendo análise e ontem falei muito daquela época. Senti necessidade de te contar a história da qual você participou, e que mudou o rumo da minha existência. Devo isso a mim e a você. Quem sabe a minha história também te ajude.

Meus pais se separaram quando eu era criança. Morei com a minha mãe, com quem tenho um bom relacionamento. Visito-a sempre que posso. Ela fez o melhor que pôde para me educar, mesmo sozinha e com dificuldades financeiras. Foi uma boa mãe. Depois fui morar com meu pai, queria me aproximar dele. Mas não consegui ser incluída em sua nova família. Desisti, fui embora. Foi doloroso. Isso deixou uma marca profunda, pois tenho dificuldades nos relacionamentos amorosos até hoje.

Quando acabei o colegial resolvi passar um tempo viajando, curtindo a vida. Sempre acreditei na vida. Ao contrário de Marie, que acha que o mundo é perigoso, eu sinto que, apesar das dificuldades, o mundo é acolhedor. Com uma mochila nas costas vim para cá, pois tinha um velho amigo que morava aqui. Mas ele tinha ido embora. Fiquei, é claro, assustada por estar completamente sozinha e sem dinheiro em uma cidade onde não conhecia ninguém. Mas não entrei em pânico,acabei “me virando”. Sempre confiei na minha capacidade de sobrevivência. Inventei uns cartões fáceis de fazer e bonitos, que vendia na rua. Era até divertido inventar uma história diferente de acordo com a cara do freguês &– sempre tive uma imaginação fértil. Um deles me ofereceu emprego numa fábrica de roupas. Não quis perder a oportunidade e disse que sabia costurar.Pensei que seria fácil,mas a realidade se impôs: eu não entendia nada daquilo, não deu para enrolar, fui despedida.

Mas valeu, porque conheci Marie. Fizemos muitas coisas gostosas juntas. Conversamos, bagunçamos, fizemos amigos, fumamos maconha. Tudo isso antes de ela conhecer Cris, claro. Depois te conto este pedaço. Lembro especialmente de uma vez em que fomos procurar emprego, e tínhamos que imitar algum cantor, fazer um pequeno show. Eu imitei a Madonna, fiz toda a coreografia de “Like a virgin”. Ficou bem legal, eu era bem desinibida, tinha bom humor, para mim foi uma brincadeira. Fiquei espantada quando ela se limitou a imitar Lauren Bacall fumando; naquela hora percebi que ela não sabia brincar.

Enfim, a Marie foi a primeira boa surpresa daquela viagem. Ela estava morando na sua casa depois do seu acidente. Era uma pessoa difícil, tímida, de pouca conversa. Não era muito simpática: estava sempre com as unhas de fora. Mas como também estava sozinha e achei que podíamos ser amigas. Para encurtar a história, como estava na pior, tomei a iniciativa de me convidar, e acabei indo morar com ela no seu apartamento. Foi assim que descobri o seu diário.

Bem, voltando a Marie, quando ela se matou depois de ter sido abandonada pelo Cris, um namorado cafajeste, eu fiquei em estado de choque. Durante anos eu me perguntei se não poderia ter feito mais alguma coisa para evitar. Na verdade, fiquei muito preocupada quando a vi se isolar de tudo e todos, esquecendo até do seu namorado, o Charlie, que era um doce com ela, para viver em função do Cris. Eu me lembro de como tentei abrir os olhos dela, e também de como me tratou mal porque eu dizia o que ela não queria ouvir.

Depois eu percebi que eu não poderia ter evitado que Marie pulasse pela janela. E isso por uma razão muito simples: eu não concebia a possibilidade de alguém, jovem como eu, querer acabar com a própria vida, mesmo no maior desespero. Ainda mais depois de ter visto você lutar durante meses para sair do coma e viver, o que felizmente aconteceu. Se esta idéia &– de que ela pudesse realmente se matar &– tivesse me passado pela cabeça, teria pedido ajuda para cuidar dela. Nesse ponto, vivíamos em planetas completamente diferentes. Se eu tivesse perdido um namorado, poderia ficar muito triste, e mesmo desesperada, mas ia pedir ajuda. E sei que, mais cedo ou mais tarde, ia conseguir superar a perda. Mas ela certamente achou que o luto seria impossível e intolerável. Foi só quando entendi isso que eu consegui superar a perda de Marie e parar de me sentir culpada.

Nunca tive oportunidade de agradecer a você e à sua mãe por terem, sem querer ou saber, me proporcionado um teto, um abrigo numa cidade desconhecida. Foi esse sentimento de gratidão, além de ter me identificado com o que você escrevia em seu diário, que me levou a ir te conhecer no hospital. Naqueles meses eu dividia meu tempo entre fazer uns bicos para ganhar dinheiro, curtir os amigos que eu e Marie fizemos &– o Charlie e o Freddo, com quem mantenho contato até hoje &– visitar você, pintar. Eu ainda gosto muito de pintar, e sempre arranjo tempo para isso. Quando era adolescente trabalhei para uma artista; ela gostou de mim e me deu um trabalho dela que para mim era precioso. Fiquei tão grata à Marie pela amizade que o dei de presente para ela. Não sei se ela deu tanto valor a ele. Pelo que te conheci, acho que você teria gostado.

Veja como o nosso destino depende das pessoas que encontramos pela frente. A Marie encontrou o Cris, e eu encontrei você. Com ele, ela se afundou de vez. E eu, que estava meio perdida, naquela fronteira que todo adolescente vive entre ser e não ser &– a tal crise de identidade &– me estruturei graças a você. É essa história que eu revivi ontem na análise e preciso te contar.

Eu ia te visitar regularmente. O pessoal do hospital me conhecia, e achavam que eu era sua amiga. Disseram que, mesmo em coma, você podia escutar, e me incentivaram a conversar com você. Então eu lia o seu diário para você, com a esperança de que ouvir a sua própria história pudesse te ajudar; achei que poderia te dar forças para lutar pela vida, voltar a ver seus amigos, namorar... Agora sei que o lia também para mim. Você não esboçava nenhum sinal de que estava ouvindo, mas eu não desanimava.

Percebo que ao ler o diário eu estava apostando em sua vontade de viver, talvez movida pela minha própria alegria de viver. E você não imagina minha felicidade quando você saiu do coma! Não apenas porque você ia viver, mas porque isso reforçou a minha crença na minha capacidade de ajudar as pessoas. Passei a acreditar em mim e no meu valor num momento crucial da minha vida. Basta dizer que Marie se matou porque quando foi abandonada pelo Cris, perdeu completamente a crença em si própria e no seu valor. Sua auto-estima oscilava muito, e dessa vez foi definitivamente para o fundo do poço. A minha analista me mostrou que graças a você, eu pude ter a experiência real e concreta de que consigo realizar coisas boas para mim e para os outros. E eu levei esse ensinamento precioso para a vida toda. Ainda hoje, nos momentos em que eu desanimo ou me sinto mais frágil, lembro de você e recupero a esperança.

Foi por pouco que, em lugar desta experiência tão preciosa, eu não levo para a vida a experiência oposta. É que em certo momento você quase morreu de uma infecção respiratória. Cheguei para te visitar e o teu leito estava vazio, arrumado como se fosse para outro paciente. Achei que você tinha morrido. Você não imagina como chorei! Eu mesma me surpreendi com isso. É que, apesar de nunca termos conversado, você tinha se tornado uma pessoa importante para mim. Não vou dizer “amiga”, porque não era bem isso. Mas, quando chorei a sua perda, percebi quão ligada eu estava. Não só porque te visitava regularmente, mas porque gostava da pessoa que eu tinha conhecido no diário. Você era uma adolescente bem bacana. Além disso, agora que estou em análise percebo que você foi uma espécie de analista, pois o seu diário me ajudava a por em palavras as minhas próprias experiências. Enfim, se você tivesse morrido, eu teria me sentido abandonada no meio de um processo de autodescoberta. E o pior é que eu teria sentido que meus esforços haviam sido em vão, e que eu perdera minha aposta em você. Provavelmente isso teria afetado bastante minha auto-estima e minha capacidade de apostar na vida.

Nessa altura você deve estar se perguntando por que, então, eu não fui te conhecer quando você saiu do coma. O meu primeiro impulso foi ir correndo te ver, e me apresentar a você. Mas de repente percebi que não era você, sua pessoa, que tinha me feito tanto bem. Poderia acontecer, inclusive, de você não ir com a minha cara, ou eu com a sua. No fundo, apesar do diário, eu não te conhecia. O importante tinha sido a experiência de ler o seu diário do seu lado, e de me conhecer através dele. O importante tinha sido apostar em você e ter dado certo. O processo de construir a mim mesma através de você é que tinha sido importante. Era essa experiência que eu tinha que levar comigo pela vida, e não você como amiga ou como pessoa real. Foi por isso que nunca te procurei, e foi por isso que nunca te esqueci. Na última sessão eu pude elaborar tudo isso que estou te contando. Naquela época eu li o seu diário; agora te mando uma página do meu. Acho justo.

Para finalizar a narrativa daquele período da minha vida, depois do suicídio de Marie eu fui embora de Lille. A Isabelle que estava indo embora era muito diferente da que tinha chegado poucos meses antes. Eu já não era tão ingênua e sonhadora. Achei que já tinha tido experiências suficientes, tanto ótimas quanto péssimas. Era o fim da minha adolescência. Amadureci. Arranjei emprego e me tornei mais uma operária francesa numa linha de montagem. Quem me visse diria que eu havia desistido da vida, perdido minha vivacidade. Não é verdade: eu apenas estava me enquadrando dentro do sistema para sobreviver, mas ainda há um anjo sonhador dentro de mim.

 

Isabelle em análise

Recebi em análise há algum tempo uma mulher de uns quarenta anos. É uma pessoa agradável, cativante, que associa livremente e tem uma excelente capacidade de elaboração e de simbolização. Tudo indica que tem um funcionamento psíquico predominantemente neurótico. Nunca se casou, mas tem muitos amigos e uma vida cultural rica e interessante. Falou-me ontem sobre o fim de sua adolescência, marcada por dois episódios singulares: sua amiga se suicidou na sua frente, sem que pudesse impedi-la. Por outro lado, ajudou uma jovem desconhecida a sair do estado de coma em que se encontrava.

Senti necessidade de escrever sobre este caso porque a trajetória de Isabelle nos mostra as vicissitudes do processo de subjetivação na adolescência. Nesta fase, quando a identidade está em plena reestruturação &– está em curso a elaboração do luto pelo que já não é, e uma incerteza quanto ao que será &– o encontro com o objeto é decisivo. Ele pode facilitar ou dificultar o processo de subjetivação. Ao mesmo tempo, sabemos que o encontro com o objeto não é uma experiência completamente nova: ele será vivido, experimentado, “processado” e significado, a partir de uma estrutura psíquica, ou, como prefiro dizer, de uma matriz simbólica, preexistente. Esta, por sua vez, irá se reorganizar a partir deste encontro. O acaso é moldado pelo determinismo psíquico, ao mesmo tempo em que pode, até certo ponto, modificá-lo. Do ponto de vida metapsicológico, destino é essa interação dialética entre acaso e determinismo; entre o objeto encontrado, e a maneira pela qual ele foi significado e incorporado ao psiquismo.

Antes de abordar o encontro com o objeto, e como ele facilitou o processo de subjetivação desta paciente, apresento o contexto metapsicológico em que ele se deu. A maneira pela qual Isabelle elaborou esses episódios supõe uma história emocional anterior favorável e um aparelho psíquico bem constituído. De fato, ela tem um objeto primário bastante continente e capaz de efetuar ligações. Um “pára-excitação” resistente a ajuda a manter-se integrada mesmo diante de situações potencialmente traumáticas, como o suicídio da amiga. No entanto, foi pouco erotizada pela figura paterna, o que parece ter dificultado a elaboração do Édipo, pois fracassou em suas relações amorosas. De fato, é pouco feminina, sem chegar a ser masculina: é um tanto assexuada e, em certos momentos, um pouco infantil.

Elaborou suas angústias de separação, de modo que apresenta uma autonomia total com relação ao objeto primário; tem uma crença sólida em sua capacidade de sobrevivência. Em outras palavras,o objeto bom está firmemente internalizado, o que lhe garante um predomínio das pulsões de vida. Tem um mudo interno rico, que lhe faz companhia em situações de solidão. O episódio em que se viu completamente sozinha em sua chegada em Lille, bem como as soluções que encontrou para lidar com as dificuldades daquele momento, demonstram o bom funcionamento da capacidade simbólica e imaginativa. Da mesma forma, a capacidade de brincar, de trabalhar, e seu envolvimento com a arte, especialmente a pintura, mostram que há libido suficiente para atividades sublimatórias genuinamente prazerosas.

Seu envolvimento comigo e com a análise mostram que ela estabelece vínculos significativos com seus objetos. Minha contratransferência me informa que suas relações de objeto se dão num nível predominantemente genital, isto é, ela reconhece a alteridade, e tem a capacidade de se preocupar com o seu objeto. Tudo isso mostra que em seu desenvolvimento pré-genital ela atravessou a posição depressiva. O fato de não ter de lidar com angústias arcaicas lhe permite funcionar de acordo com o princípio do prazer. De fato, sua história mostra que o balanço narcísico é positivo: tem um self bem constituído e as auto-representações são positivamente investidas. Daí ser uma pessoa cativante. Suas defesas são maleáveis, não rígidas. Isso lhe permite estar em contato com sua vida psíquica, o que faz dela uma pessoa rica e interessante.

Passo, agora, aos dois episódios marcantes, a recuperação de Sandrine e o suicídio de Marie.

A relação que estabeleceu com Sandrine mostra, muito especialmente, sua capacidade de investimento libidinal e de identificação com o objeto. Graças a essa dinâmica, ela foi, realmente, generosa e empática. Ontem comentou rapidamente que precisava expressar sua gratidão, e que pretendia lhe escrever uma carta contando a papel que teve em sua vida. Achei a idéia muito boa. Seria uma maneira, para ela, de rever e de se apropriar do momento em que sua economia narcísica se estrutura de modo positivo a partir de uma experiência de reparação bem sucedida. Espero que o faça.

Além disso, tenho a impressão de que Sandrine funcionou um pouco como analista num momento especialmente delicado de sua adolescência. Seu silêncio teve o mérito de forçar Isa a se haver com suas próprias questões a respeito da sexualidade, tema recorrente no diário. Ela ainda se lembrava, vinte anos depois, de uma história curiosa ali registrada. Sandrine havia colocado uma faca sob o colchão de sua mãe para que o namorado dela ficasse impotente. Ontem minha escuta estava particularmente aguçada: interpretei o material como fantasias de rivalidade com relação à figura materna, até então preservada de qualquer hostilidade. Falei também de seu ataque à cena primária. Formulei a interpretação de uma maneira simples, que não despertou maiores resistências: “Você preferia que sua mãe fosse apenas mãe, que ela não fosse também uma mulher”. Eu não disse, mas pensei na hipótese de que a inveja da sexualidade materna tenha dificultado sua identificação com uma figura feminina boa, o que se manifesta por uma vida sexual pouco satisfatória ao longo da vida.

Passo agora ao material referente ao suicídio de Marie. O encontro com Cris mostra, como eu dizia no início deste texto, o efeito do encontro com o objeto no processo de subjetivação na adolescência. Esse objeto falhou gravemente em acolher e transformar suas angústias de aniquilamento. Repete-se o trauma precoce, levando o processo de subjetivação a um impasse e ao suicídio. Isabelle me contou a cena final com todos os detalhes. Descreveu o segundo exato em que viu a amiga pular pela janela, enquanto permanecia totalmente paralisada. Emocionou-se enquanto contava, parecia estar revivendo a situação. Falou do pavor e do horror que sentiu ao ver a amiga estatelada no chão. Fomos percebendo que esse episódio a assustou muito porque a colocou em contato com suas próprias partes psicóticas, e também com aspectos autodestrutivos de sua personalidade. Apesar de Isa ter uma estrutura predominantemente neurótica, o material de ontem nos aproximou de núcleos psicóticos que nunca haviam sido trabalhados.

Pude mostrar à minha paciente que Marie representava também uma parte dela mesma, e como ter um lado louco a apavorava. A partir dessa interpretação, ela foi entendendo o fato surpreendente de que tenha ido trabalhar numa linha de montagem logo depois do suicídio: ela buscava um enquadre firme e confiável que contivesse os aspectos mais disruptivos de sua personalidade. O gesto da amiga a colocou em contato com o seu próprio desamparo brutal e com sua dependência absoluta. Essa identificação a levou a “agarrar-se” à linha de montagem como o bebê agarra a mãe para não cair no abismo e para conter angústias de fragmentação. Isa entendeu isso perfeitamente, pois acrescentou que esse trabalho, tão necessário naquele momento, foi trocado por outro mais prazeroso assim que suas condições psíquicas lhe permitiram.

Além disso, finalmente elaborou sua culpa com relação ao suicídio da amiga. Percebeu que na época, em função do seu próprio momento de vida, estava mais identificada com a cura e a vitalidade de Sandrine do que com o desespero de Marie. A partir da descrição de Isa, tenho a impressão de que essa Marie era uma moça cujo funcionamento psíquico era predominantemente psicótico &– eu diagnosticaria aí um estado-limite. Isso significa que provavelmente ela não tinha a pré-concepção de um objeto interno que a ajudasse a fazer o luto pela perda do objeto. Assim, por mais que Isa tentasse &– e ela me conta que realmente tentou &–, não poderia ocupar um lugar psíquico inexistente no mundo interno da amiga. Acho que consegui ajudar minha paciente a entender isso. Foi uma sessão produtiva e gratificante.

 

Referências

Figueiredo, L. C. (2006). Saindo da adolescência. In M. R .Cardoso (Org.) Adolescentes (pp. 63-77). São Paulo: Escuta.        [ Links ]

Loewald, H. W. (1975). Psychoanalysis as an art and the fantasy character of the psychoanalytic situation. Papers on psychoanalysis (pp. 352-371). New Haven: Yale University Press.        [ Links ]

Zonca, E. (Diretor). (1998). La vie rêvée des anges [Filme-vídeo]. France:Diaphana Films.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marion Minerbo
Rua Alcides Pertiga, 78 &– Pinheiros
05413-100 &– São Paulo &– SP
E-mail: marion.minerbo@terra.com.br

Recebido: 20/01/2008
Aceito: 29/01/2008

 

 

* Este texto é o trabalho de conclusão do curso “Psicopatologia e pensamento metapsicológico”, ministrado por Marion Minerbo, no Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, no segundo semestre de 2007. Os co-autores são membros filiados que participaram do seminário. L. C. Figueiredo gentilmente aceitou escrever a apresentação. A redação final ficou a cargo de Marion Minerbo.
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
*** Membros filiados do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.