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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Contradições da nova cidade

 

Contradictions of the new city

 

 

Ricardo Ohtake*

Instituto Tomie Ohtake

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A cidade moderna e a arquitetura moderna foram concebidas para apresentar áreas agradáveis por meio do uso de tecnologia concreta. Isso se perdeu quando a nova cidade dividiu todas as funções e pessoas, o que resultou numa maior dificuldade para a convivência.

Palavras-chave: Arquitetura moderna, Conflitos na cidade, Convivência, Espaço urbano, Técnica arquitetônica.


ABSTRACT

The modern city and the modern architecture were designed to have pleasant areas, using concrete technology. This was lost when the new city divided all functions and people, which resulted in a greater difficulty in living together.

Keywords: Modern architecture, City conflicts, Acquaitance, Urban areas, Architecture technique.


 

 

Um dos conceitos que foi se diluindo, nas últimas décadas no Brasil, é o de espaço público &– local da convivência espontânea, dos encontros não programados. No lugar de uma praça, empreende-se um shopping center. As áreas abertas para o esporte, como os campos de várzea, são substituídas por academias de ginástica, superequipadas. Em contraposição à interligação entre público e privado, agora encontramos muros, grades e portões eletrificados “protegendo” as praças e parques públicos. As varandas cedem lugar às salas com ar-condicionado. Menos metrô, mais automóvel são as palavras de ordem.

Simultaneamente ao advento de tecnologias sofisticadas, que demonstram o alcance do conhecimento e da produção do homem, são fabricados equipamentos que isolam cada vez mais o indivíduo: a TV; o computador com seus programas de pesquisa, serviços, diversões etc.; o aparelho de som com fones de ouvido e inúmeros utilitários sem os quais não se concebe mais a vida hoje.

A cidade, em nome da segurança, está se reduzindo a guetos, e, possivelmente, o desejo inconfesso da burguesia é a total separação das camadas mais pobres, vistas como sujas, malvestidas, sem o discreto charme. Os condomínios fechados e as ruas com cancelas são exemplos disso. Como se vê, os seres urbanos estão condenados a, ou escolheram, participar de pequenos grupos, ou até mesmo ao isolamento, tanto do ponto de vista real como simbólico.

A chegada do capitalismo no campo, a formação de empresas agrícolas, ao lado de uma certa política agrícola (agrobusiness), expulsaram milhares de trabalhadores rurais para as periferias das cidades, as quais não apresentavam um projeto urbano e social para acolhê-los. A inexistência de um modelo socioeconômico capaz de pensar sobre a necessidade de gerar um desenvolvimento sustentável implicou, para a população abaixo da linha de pobreza, forte desesperança no futuro.

Algumas preocupações com esse estado de coisas resultaram nas proposições urbanas expostas pelos arquitetos modernos, a partir do final dos anos 1930. Esse é o período da renovação do Brasil, iniciada vinte anos antes nas artes plásticas e na literatura, quando se deu a Semana da Arte Moderna, em 1922. Para a arquitetura, durante o manifesto e nos anos seguintes, o estilo neocolonial ainda era considerado moderno, e assim foi até a chegada do racionalismo.

A indústria da construção, como acontecia na Europa, lançou um novo paradigma: as paredes deixam de ser estruturais e são substituídas por pilares e vigas, o que permitiu grandes aberturas, espaços amplos e lajes com total liberdade de utilização em planta. Isso também possibilitou que os térreos das casas e edifícios ficassem livres, ou ocupados apenas parcialmente, privilegiando a função coletiva dessa área que se integra à paisagem urbana.

Tais conquistas da técnica abriram novas perspectivas para a arquitetura, já que os espaços não precisavam mais ser limitados. Isso, por sua vez, colaborou para a criação de áreas de convivência: salas maiores nas residências e nos locais de trabalho, o escritório panorâmico.

Da mesma forma, os espaços interiores e exteriores tornaram-se mais interligados mediante as grandes superfícies transparentes ou vazadas, ou, então, pelo espaço externo que avança debaixo da edificação.

Essas aberturas, ao aumentar a capacidade de ventilação das edificações, fizeram, de um lado, com que a questão da higiene atmosférica fosse mais bem resolvida, no entanto, de outro provocaram uma nova necessidade, a de isolar e separar as edificações para que a insolação e a circulação do ar pudessem ocorrer mais facilmente.

É nesse momento que a jardinagem começa a fazer parte das áreas ao redor das edificações, que se ligam para além dos limites do terreno, o espaço público. Numa sociedade em que a convivência é uma necessidade, as áreas privadas dos lotes e as áreas públicas das ruas e praças se interligam, não há mais separação.

As questões interior/exterior, privado/público foram propostas pela arquitetura moderna, e os profissionais mais avançados, em conjunção com os proprietários mais democráticos, possibilitaram que o diálogo prosperasse.

É possível imaginar, por exemplo, os edifícios, residenciais ou comerciais, com o térreo liberado, mesmo em parte, eliminando os muros de separação, promovendo a interligação de todo o quarteirão. E ainda as residências sem os muros, como em muitos bairros de cidades pelo mundo. Tudo isso é qualidade de vida, enquanto o isolamento, a perda da liberdade, representam justamente o contrário. Mas é a lógica do confinamento que vem influenciando a sociedade e seu habitat. Se foi melhor há quarenta ou cinqüenta anos, nas últimas décadas perderam-se o senso democrático, a consciência cidadã e o espírito coletivo.

***

Na arquitetura da cidade de São Paulo, temos exemplos extremamente interessantes que enriquecem a questão do público e do privado e conferem novo sabor ao espaço urbano. Um deles é o conjunto residencial Louveira, formado por duas lâminas, separadas por vinte metros, onde um grande jardim e rampas curvas dão para a praça Vilaboim. As lâminas são voltadas uma para a outra e as faces que dão para a praça são cegas, sem janelas, caso raro na cidade, pois criam no espaço interno, privado, uma praça sem muros a determinar limites em relação ao terreno. Portanto, praça pública e jardim interno privado se interligam. O projeto arquitetônico é de Vilanova Artigas, grande mestre da arquitetura moderna em São Paulo. Esse projeto foi realizado em 1948, no período pós-guerra, em que o ideal de reconstrução de valores da cidadania se fazia presente e se iniciava a idéia de um projeto de país.

O ícone paulistano, o edifício Copan, desenhado por Oscar Niemeyer, três anos após a construção do edifício Louveira, é outra lembrança interessante. Sua planta consiste em uma edificação em “S” &– para ser rigoroso, em “S” invertido &–, de 32 andares e outro volume de vinte andares (esse segundo volume, que seria construído mais tarde, incompreensivelmente não foi dado a Niemeyer projetar, embora o volume já tivesse sido definido por ele). Entre os dois volumes foi aberta uma via pública e instaladas lojas nos dois primeiros pisos, fazendo com que em um mesmo conjunto houvesse edificações e rua interna, com lojas comerciais. A mescla de funções torna o espaço movimentado de dia e de noite, diferentemente de áreas só residenciais ou só comerciais que, em alguns horários, se tornam desertas.

Paulo Mendes da Rocha também projetou sua residência interligada com a de sua irmã, com térreos livres e amplos para possibilitar as brincadeiras infantis. Foi o modelo proposto pelo arquiteto para se estender por todo o quarteirão. Partiu-se, então, do privado para se pensar e ampliar o espaço público.

Mais um exemplo nos é dado pelo conjunto onde está localizado o Instituto Tomie Ohtake, formado por dois edifícios de escritórios e um conjunto cultural no térreo e nos primeiros andares. Se nos edifícios comerciais há controle de entrada, a área dedicada à cultura é aberta, livre, na qual o público pode apreciar as exposições e, ainda, o restaurante, o café, a loja de objetos e a livraria. Com isso, o conjunto, projetado por Ruy Ohtake e inaugurado em 2001, consistiu numa proposta atual de convivência entre espaço público e privado, numa época em que o item segurança figura como o primordial em qualquer construção.

Estes são alguns poucos exemplos de projetos na cidade de São Paulo realizados por arquitetos brasileiros. Evidentemente são referências que representam uma mudança de mentalidade, em que a arquitetura e o urbanismo passam a andar juntos, prescindindo da caótica aglomeração de muros, cercas e portões. Neste sentido, os locais públicos, de encontros espontâneos, deveriam permitir aos moradores da cidade estar sempre próximos uns dos outros, estimulando a convivência, e se constituir em espaços em que a violência seria mais controlada.

Porém, o urbanismo recente não só reduziu o espaço de lazer a shopping centers, excelente aliança entre a compulsão consumista e o isolamento social, como também aprisionou o exercício físico e o esporte em locais fechados e cobrados, com equipamentos sofisticados que justificam o preço. A diversão noturna, a “festa”, acontece em espaços fechados, apertados, com músicas ensurdecedoras, com guardas que controlam o ingresso dos milhares de candidatos à diversão. Trata-se de um universo complexo, pouco romântico, de convívio-quase-uma-luta. São dados da vida atual, resultantes da nova realidade, na qual a supremacia do dinheiro e a concentração de riqueza são “princípios” a serem perseguidos. Acomodação torna-se a palavra de ordem e luta fratricida também.

Alguns autores já pressupõem, como o espanhol José Miguel G. Cortés (2006), em Políticas del espacio,1 a cidade a “estruturar-se em torno de pequenos lotes privados nos quais não existe nenhum sentimento de coletividade. Território de cada cidadão, começa e termina em sua própria casa: fora de seus muros, o resto é escuridão, silêncio e insegurança”.

A segregação espacial é a forma mais primária de pensar a perpetuação do poder urbano. No entanto, deixa à vista as discriminações e mantém à margem setores da realidade da cidade, sem os quais se cria um desequilíbrio cuja tentativa de rearmonização se dá com os instrumentos de que os marginalizados dispõem, como a violência, que se conhecem hoje nas sociedades. É evidente que, advinda desses desequilíbrios urbanos &– e sociais é claro &–, a população de uma cidade estará permanentemente numa contenda.

 

Referências

Cortés, José Miguel G. (2006). Políticas del espacio-arquitectura, gênero y control social. Catalunya: Institut da Architectura Avançada de Catalunya.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ricardo Ohtake
E-mail: ricardo.ohtake@institutotomieohtake.org.br

Recebido: 20/01/2008
Aceito: 30/01/2008

 

 

* Arquiteto pela FAU-USP, trabalha em design gráfico. Foi professor em diferentes faculdades de arquitetura, artes plásticas e design; diretor do Centro Cultural São Paulo, Museu da Imagem e do Som, Cinemateca Brasileira; secretário de estado da Cultura e secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente. Atualmente é diretor do Instituto Tomie Ohtake.
1 Será brevemente lançado no Brasil pela Editora Senac.