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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Restos transferenciais

 

Transferencial remains

 

 

Adela Stoppel de Gueller*

Instituto Sedes Sapientiae. Departamento de Psicanálise da Criança
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cogeae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto trata do viés pelo qual Lacan analisa o caso do homem dos lobos, em 1952. Tomando as notas inéditas dessas aulas como cena originária que pode ser lida a posteriori, reflete-se sobre uma pergunta recorrente na obra posterior de Lacan: quais são os efeitos de uma análise? Levanta-se a hipótese de que o fato de o homem dos lobos ter se submetido a uma segunda análise &– com Ruth Mack Brunswick &–, na qual pôde trabalhar os restos transferenciais não liquidados da análise com Freud, incidiu na teorização de Lacan sobre o fim da análise, articulando essa questão ao desejo do analista. O homem dos lobos revela a Lacan a importância que esse segundo tempo de análise teve para pensar a incidência do desejo de Freud e compreender o laço transferencial que esse sujeito manteve até o fim de seus dias com a psicanálise.

Palavras-chave: Fim da análise, Homem dos Lobos, Lacan, Transferência.


ABSTRACT

The text is about the analysis of the case of the Wolf Man, under Lacan’s perspective, in 1952. By considering the unknown notes of these lessons as originary scene which can be read a posteriori, the author reflects about a recurrent question in the posterior work of Lacan: which are the effects of an analysis? The fact that the Wolf Man submitted himself to a second analysis &– with Ruth Mack Brunswick &–, in which he could work out the transferencial remaining portions of the analysis with Freud, had an important role on Lacan’s theory about the end of analysis, establishing a connection between this question and the desire of the analyst. The Wolf Man discloses to Lacan the importance that this second moment of analysis had to consider the incidence of Freud’s desire and to understand the transferencial ties this patient kept with psychoanalysis until the end of his days.

Keywords: End of the analysis, Wolf Man, Lacan, Transference.


 

 

Os acontecimentos iniciais de um percurso deixam de ser casuais quando se reordenam retroativamente. Por isso tentarei articular algumas hipóteses sobre a incidência que pode ter tido na obra de um seminário conhecido como seminário “zero” ou “menos um”, que foi tardiamente incluído na série de seus seminários e do qual não temos publicações oficiais. Não se trata de um dos primeiros trabalhos de Lacan, que, nessa época, já tinha publicado sua tese de doutorado e redigido e publicado seus primeiros escritos. Trata-se do que a posteriori foi ordenado como sendo o início de seu ensino oral. Ele é de um tempo em que, segundo os historiadores, Lacan reunia discípulos em sua casa - era o ano de 1952, quando foi nomeado diretor do Instituto -, momento imediatamente anterior ao começo formal de edificação da teoria. Um ano antes, pois, do discurso de Roma (Lacan, 1984b), escrito fundante do ensino de Lacan e do Seminário I (1984a), primeiro seminário aberto ao público em geral.

Temos desse seminário anotações pouco sistemáticas e ainda anônimas. Por que, então, voltar a essas notas, não incluídas na “história oficial”? Pareceu-me que essa podia ser uma forma interessante de se trabalhar a questão da memória, da lembrança e da repetição. Chamou-me a atenção que nesse seminário Lacan se dedicasse a analisar o caso do homem dos lobos (Freud, 1918/1996a), texto de 1914, contemporâneo de “Recordar, repetir, elaborar” (embora aquele só tenha sido publicado em 1918). Então, me propus refletir conjuntamente sobre esses dois textos de Freud que tratam dos limites da rememoração para tentar pensar por que Lacan inicia seu ensino com a análise desse caso, ao qual voltará ainda nos seminários I, II, III, IV, V, IX, X, XI, XIII, XIV, XV, XVI, XVIII e XXIV, além de referi-lo em alguns escritos.

A pergunta sobre os limites da rememoração toca à questão das origens. Será uma coincidência que seja essa a questão central no texto sobre o Homem dos Lobos? E, ainda, que seja por ali que Lacan comece sua retomada dos textos de Freud? Tomarei, pois, como cena originária essas reuniões na casa de Lacan falando sobre a cena originária do homem dos Lobos. Que retorno a ela podemos fazer? O que ficou como lembrança? O que se repete? O que podemos elaborar?

O caso do homem dos lobos, talvez o mais comentado da história da psicanálise, despertou um interesse especial em Lacan. Minha hipótese é que esse interesse, ao menos naquele momento, não era na dificuldade diagnóstica, nem na evolução da doença, nem sequer na polêmica em torno do estatuto da cena primária, mas no fato de esse sujeito ter sido o único dos cinco grandes casos de Freud a ter passado por uma segunda análise, com outra analista.

Sabe-se que, em 1926, Serguei Pankejeff, o homem dos lobos, foi encaminhado pelo próprio Freud a Ruth Mack Brunswick, que era sua analisanda, sua supervisionanda e sua médica pessoal, ou seja, alguém de sua inteira confiança. Sabe-se, também, que sua análise com Freud durou quatro anos, de 1910 a 1914, e que, em 1918, Serguei lhe fez uma visita, na qual ouviu a recomendação de um pós-tratamento, em função de subsistir um resto no analisado, e que esse tratamento durou seis meses. Por causa de uma depressão, ele mesmo quis retomar a análise com Freud, em 1926, mas Freud, que já estava doente, o encaminhou à d Brunswick, que tratou dele inicialmente por cinco meses e, passados quase dois anos, recebeu-o em caráter intermitente durante vários anos. Algo não tinha sido analisado, dito, e o Homem dos Lobos voltava para demandar análise uma e outra vez.1 Freud considerava que essa análise se tinha finalizado, mas Serguei o questionava nesse ponto, ao voltar a bater à sua porta. Foram esses restos transferenciais, que reapareceram na análise com a dra. Brunswick, o ponto que, segundo minha hipótese, fisgou a atenção de Lacan e talvez o tenha levado mais tarde a pensar o acting-out como transferência sem análise. Ele tinha lido seu depoimento, aparecido primeiramente no volume IX da International Journal, de 1928, revista de que Lacan era leitor voraz, e que reapareceu em 1948 em The psychoanalitic reader.

Sobre esse depoimento, intitulado “Suplemento à história de uma neurose infantil de Freud”, Lacan faz seu comentário, no Seminário “menos um”. Nesse segundo tempo, diz Lacan, Serguei só falou do que Freud significou para ele. O que está no centro do segundo momento da cura é a transferência com Freud (Lacan, 1952, p. 76). Isso parece querer dizer que, na segunda análise, o que está em jogo não é uma transferência da transferência com Freud, mas a possibilidade de se retomarem com outra analista as questões que ficaram sem resolver da primeira análise, ou seja, de ver o que era possível fazer com a transferência não liquidada com Freud. Análise sem transferência ou transferência sem análise? - é a pergunta que gostaria de deixar em aberto.

Evidentemente, o homem dos lobos não é o único caso atendido por Freud a ter ficado com restos transferenciais não analisados. A pergunta é: qual de seus analisandos tinha efetivamente liquidado a transferência com ele? Não será essa uma questão que tocava a todos os analistas que tinham se analisado com Freud? E, se assim for, como abordar uma questão tão ampla e de incidências tão marcantes para a Psicanálise?

A pergunta de Lacan podia então ser formulada do seguinte modo: o que tinha se passado com os analistas que tinham se analisado com Freud? Essa era, e continua sendo, uma questão decisiva para se pensar o quê da analise se transmitia e como, e também o que era mera repetição e como se inscrevia algo novo na psicanálise. Por isso, no Seminário XI, referindo-se explicitamente a Abraham e a Ferenczi, Lacan chega a dizer:

através das flutuações da história da psicanálise, da intervenção do desejo de cada analista, conseguiu-se somar algum detalhe, alguma observação complementar, refinar alguma incidência, e isso nos permite qualificar a presença de cada analista no plano do desejo. Ali deixou Freud esse bando - assim chamava os que o seguiam (Lacan, 1987, p. 165-166).

Assim, na série inaugurada por Ferenczi e Abraham, gostaria de incluir a dra. Brunswick, que, como dissemos, também foi analisanda de Freud. Qual era o desejo dela? De que modo ficou implicada no pós-tratamento de Serguei? Que detalhe, que observação complementar ela acrescentou?

Ruth Brunswick deixou seu testemunho sobre a experiência de ter escutado um dos cinco grandes casos de Freud. Esse documento tem um valor muito especial para Lacan, porque só a segunda análise permitiria compreenderem-se os efeitos da primeira. Só a segunda análise permitiria analisar a incidência do desejo do analista numa análise, sem esquecer, é claro, que, nesse caso, o desejo em questão é o de Freud. Há aí algo que se torna matricial (ou modelar) para Lacan e que incidirá na forma como ele pensa a repetição, a transferência e a transmissão da psicanálise. Não é casual que tenha sido Lacan quem descobriu e deu um estatuto inédito ao nachtraglichkeit freudiano, rebatizando-o aprés-coup, e que tenha dado ao atraso, ao tempo suplementar - a Verspatung freudiana - um lugar central que ninguém tinha dado até esse momento.

Mas voltemos ao momento da primeira análise. Se,no caso do homem dos lobos, Freud estava obcecado por encontrar a cena originária determinante da neurose de Serguei, é porque seu próprio desejo de analista estava em causa. Isso quer dizer que sua causa - a causa da psicanálise - estava sendo jogada, nesse tratamento, num “cara ou coroa”. Sabemos que o caso permitiu que Freud discutisse com Jung e Adler - interlocutores manifestos na história clínica -, mas também com aqueles que já tinham tratado do mesmo sujeito, fosse por meio da hipnose, como o neurologista Bechterev, fossem psiquiatras como Ziehen,em Berlim,e nada menos que Kraepelin,em Munique.2 Todos eles tinham fracassado. Freud não podia fracassar. Tinha que mostrar para a comunidade médica que a psicanálise tinha êxito ali onde a medicina fracassava. Por esse motivo, a questão da cura desse sujeito era decisiva. Isso me fez pensar que o Outro da fala de Freud, no caso do homem dos lobos, não é nem Adler, nem Jung, mas a psiquiatria contemporânea, diante dele representada por Kraepelin. Por quê? Porque esse famoso médico alemão não só escreveu um monumental manual de psiquiatria de 2.500 páginas, mas foi o primeiro a começar a se interessar pelos antecedentes biográficos dos doentes, foi o primeiro a fazer a psiquiatria ir além da descrição e da classificação, ao introduzir a idéia de psicogênese. Kraepelin foi o primeiro a afirmar que havia loucuras adquiridas de origem exógena, entre as quais estavam as neuroses gerais, a paranóia, a loucura maníaco-depressiva, os estados psicopáticos e as detenções no desenvolvimento psíquico. Tal é o ordenamento operado por Kraepelin, que delimita o campo das loucuras de que tratarão Freud e a psicanálise. Freud ocupa esse campo, mas, uma vez instalado no novo território, ousa dar um passo a mais: pede ao paciente que fale livremente, que associe. O que ele pede não é informação, como Kraepelin. O que supõe, então, esse enigmático pedido de Freud? O que o analista quer saber? Falar, expor, explicitar, explanar - o prefixo “ex” supõe pôr para fora diante de um outro. A palavra implica a presença do Outro, a quem se dirige e que escuta.

No primeiro dos Dois verbetes de enciclopédia, de 1922, denominado “A psicanálise”, Freud define a Psicanálise como:

1) um procedimento psicológico de investigação de processos psíquicos quase inacessíveis de outra maneira, 2) um modo de tratamento das desordens neuróticas fundado justamente no procedimento de investigação dos processos inconscientes e 3) uma série de concepções metapsicológicas adquiridas por esse meio e que se desenvolvem juntas para formar progressivamente uma nova disciplina científica.3

Essas três definições remodelam o campo inicialmente traçado por Kraepelin, fazendo com que, na psicanálise, método, técnica e teoria sejam indissociáveis. Se um fracassa, os outros dois desmoronam.4 Por isso, no tratamento de Serguei, Freud põe todas as suas fichas em jogo. Ele devia provar que o inconsciente já estava ali,que sempre esteve, e que ele, Freud, só o tinha descoberto, teorizado e encontrado um método que lhe permitia ter acesso a ele. Provar isso era necessário para que a Psicanálise fosse reconhecida pelo discurso médico, e não fosse considerada um delírio do próprio Freud.

Lacan não precisava provar a existência do inconsciente. A psicanálise já era um fato de cultura, porque tinha existência discursiva. Freud tinha aberto esse sulco no real, com seu desejo. Tinha inscrito um conceito fundamental no real e, do mesmo modo que no âmbito cientifico, a prova da existência desse conceito - o inconsciente - era que ele se mantinha vivo.

Embora possa parecer que estamos falando do mais íntimo da subjetividade de alguém, já que falamos no desejo de Freud, o que Lacan afirma é que a ciência mais dura - a Física - age exatamente do mesmo modo. Segundo ele, nem na Física podemos nos livrar de incluir o desejo do pesquisador.5

Mas, se Lacan não precisava provar a existência do inconsciente, sim,desejava avaliar os efeitos da inscrição desse novo conceito, ou seja, analisar o modo como ele se mantinha vivo, e isso só podia ser feito a partir dos efeitos produzidos nos sujeitos que tinham passado por uma psicanálise. Eis que Lacan tem que incluir,nesse preciso lugar,os analistas,já que todos eles passavam por uma análise, como parte de seu processo de formação. Lacan define, então, o psicanalista como alguém que levou sua análise até o fim. E surge a pergunta: e, no caso de Serguei, o que se passou? Quais foram os resultados dessa análise?

No prefácio que escreveu para o livro O homem dos lobos pelo homem dos lobos, de Muriel Gardiner, outra analisanda de Brunswick, contendo a autobiografia de Serguei Pankejeff e o relato da segunda análise, Anna Freud diz que a análise do homem dos lobos “elevou” esse sujeito, “já desde seu tratamento inicial, do nível de paciente ao de um colega mais jovem que seu analista, um colaborador que, com ‘um explorador experimentado, empreende o estudo de um país novo, recém-descoberto’” (Freud, A. in Gardiner, 1976, p.13).

Essa é uma afirmação de Anna Freud, e não de Lacan. Foi ela quem disse que a analise do homem dos lobos fizera dele um analista. Dificilmente Lacan terá lido esse prefácio, que foi publicado pela primeira vez pela Basic Books, de Nova York, em 1971. Ao que parece, há ali uma mesma concepção sobre o que se espera de uma análise.

Lacan não parece ter ido tão longe quanto Anna, não falou de Serguei como de um colega, mas talvez fosse essa a questão que ele perseguia, ao se interessar pelo texto da dra. Brunswick. A meu ver, Lacan teve uma obsessão do inicio até o fim de sua obra: pensar os efeitos que a análise produz no sujeito, se ela introduz um novo tipo de subjetividade. E, para pensar nesses efeitos, a própria análise e a supervisão não lhe pareciam suficientes. Era preciso pensar um tempo suplementar6, um segundo tempo, em que o sujeito conte para outrem o que se passou em sua análise. Esse modelo - conhecido como o modelo do passe, mas do qual Lacan dá também outras modalidades - foi inaugurado pelo homem dos lobos. Ele foi o primeiro a falar com outro - a dra. Ruth Brunswick - do que tinha se passado com Freud.

A obsessão de Freud e a de Lacan são idênticas ou há alguma diferença entre elas? É o desejo de Lacan o mesmo desejo de Freud? Diria que só parcialmente, já que o desejo de Lacan é saber sobre os efeitos produzidos pelo desejo de Freud.

Lacan afirma que, se Freud determina um tempo final para o tratamento do homem dos lobos, é porque seu intuito era “devolver a palavra ao sujeito” e que, nesse momento de virada, Freud esperava que o paciente assumisse a análise em primeira pessoa - tentava que o Moi desse lugar ao Je. Mas essa operação - realizada por Freud em termos de aposta - malogra, porque o sujeito não pôde, no final das contas, assumir essa palavra (Lacan, 1952, p. 68).

Lacan também diz que essa mesma manobra permite inferir que Freud supunha que houvesse uma verdade que já estava lá, escondida, oculta, soterrada, nas profundezas, no passado da história do sujeito, o que quer dizer que, para Freud, o inconsciente tinha um estatuto ontológico. “No inconsciente, nada pode ser encerrado,nada é passado ou está esquecido”(Freud, 1900-1001/1996b, p. 606). E, mesmo que a lembrança não possa ser lembrada - já que “com freqüência, os traços de memória são mais poderosos e permanentes quando o processo que os deixou atrás de si foi um processo que nunca penetrou na consciência” (Freud, 1920/1996d, p. 35) -, é necessário levá-los à consciência, para poder tornar consciente o inconsciente, seja pela via da lembrança ou por meio de uma construção.

Essas afirmações, que datam de momentos muito diferentes do pensamento freudiano, podem ser analisadas por duas vias - uma, clínica e outra, epistemológica. Na primeira, o que pode ser destacado é o desejo de Freud de analisar, e analisar até o fim. Furor curandis ou desejo de levar até as últimas conseqüências seu desejo de encontrar provas da existência do inconsciente?

A segunda vertente tem um viés aparentemente mais filosófico, sobre o qual proponho que nos detenhamos um pouco. Essa suposição, dissemos, contém uma crença ontológica no inconsciente, que Lacan tentará por todos os meios desconstruir, dizendo, por exemplo, que o recalcado vem do futuro e não do passado (Lacan, 1953-1954/1984a, p. 250). Para Lacan, os significantes oriundos da história do sujeito não estão soterrados em qualquer lugar, logo, não devem ser procurados - se deixarmos o sujeito falar, ele acabará deparando com eles. Por isso, em termos ônticos, o inconsciente não é o passado que não passou que se reatualiza no presente da transferência, mas o que terá sido. Assim, Lacan situa o inconsciente num tempo verbal denominado futuro anterior.

Por esse empreendimento de desconstrução ontológica a que se dedica com afinco no Seminário XI, Lacan foi acusado de fazer filosofia, mas gostaria de indicar que essa tarefa tem uma preocupação eminentemente clínica. Explico. Lacan diz que a determinação de um tempo de conclusão para a análise do homem dos lobos, que depende dessa crença ontológica de Freud no inconsciente, tem “efeitos que são impossíveis de ser revertidos em seus resultados” (Lacan, 1984b, p. 310-311).

Segundo Lacan, Freud, em favor do momento da conclusão, anulou o tempo necessário à compreensão, precipitando a decisão do sujeito sobre o sentido do acontecimento original. E essa decisão não pode ser antecipada para o sujeito, senão como indefinida. Se, para o analista e para o analisando, o prazo da verdade pode ser previsto, aconteça o que acontecer nos encontros entre ambos, é porque a verdade já está ali. Logo, diz Lacan, “Freud continuou sendo aquele que possuía a palavra da história do homem dos lobos. Freud sabia da verdade de seu paciente. Mas essa verdade Serguei Pankejeff não pode conquistá-la nem assumi-la” (Escars, 2002, p. 178).

A crença de Freud numa verdade ontológica teve, pois, efeitos clínicos decisivos. Ao ter fracassado essa operação,Seguei ficou filiado ao significante proposto por Freud: homem dos lobos. A análise com Freud lhe deu uma nova identidade e uma nova filiação: ele se considerava “o filho favorito de Freud”, diz sua segunda analista (Lacan, 1952, p. 77). E, para Lacan, ele passou a ter o estatuto de múmia psicanalítica. Pode se perceber, então, que, ao criticar essa concepção de inconsciente, Lacan está preocupado com os efeitos de identificação com o analista, ou melhor, com os significantes do analista que uma análise conduzida com essa convicção pode promover?

Freud estava preocupado em encontrar os fatos traumáticos da primeira infância, em discutir a realidade do acontecimento, a cena originaria. Lacan se satisfaz com situar a “cena devastadora” ao final do estádio do espelho e se preocupa em pensar na historicidade do acontecimento. Daí que, para Lacan, na análise, se trata menos de rememorar do que de reescrever a própria história (Lacan, 1953-1954/1984a, p. 28).

Mas o que é a história, para Lacan? Uma verdade que tem a propriedade de fazer com que o sujeito se constitua como tal, se a assume, e, simultaneamente, que passa a depender desse mesmo sujeito, já que ele se apropria dela de um modo singular.

Pode-se ler aqui um raciocínio circular. Não é o primeiro nem o último que encontramos em Lacan. Essa aparente tautologia tem uma razão de ser: trata-se da tentativa de formular uma questão epistemológica maior da Psicanálise - a transmutação da clássica divisão entre sujeito e objeto. Para tanto, é preciso formular uma nova lógica, que deve dar conta da causação do sujeito, do nosso sujeito, do sujeito de que se ocupa a Psicanálise, que Lacan denomina sujeito dividido, e do nosso objeto, que ele batiza objeto a.

Note-se que não falo de inversão nem de relação, mas de transmutação, ou seja, de algo inédito na história do pensamento, para o qual, portanto, as categorias conhecidas não são apropriadas nem suficientes. Lacan se propôs formular essa lógica. Trata-se de uma empreitada gigantesca. O que podemos dizer aqui é que essa nova lógica não pode se reger por oposições binárias, nem pelo princípio do terceiro excluído, nem pelo princípio de identidade. Daí todos os mergulhos que ele fará depois nas lógicas modernas, buscando aproximações para tentar arrematar sua teorização. Lacan tateia, pois, à procura de referências já formuladas no campo do conhecimento7. O que podemos adiantar é que se trata de uma topos-lógica, ou seja, de uma lógica que imbrica logos e lugar, tempo e linguagem.

Para o que tentamos delimitar aqui, talvez valha a pena dizer que essa questão já está esboçada de alguma maneira nos primeiros trabalhos de Lacan, que retomam outro texto de 1914, “Introdução ao narcisismo”. No seminário que tomamos como ponto de partida - “Notas sobre o homem dos lobos” -, Lacan já dizia que havia“uma ambigüidade total no narcisismo, já que ali o sujeito é ao mesmo tempo ele e o outro” (Lacan, 1952, p. 73). Essa questão que dá como paradoxal a relação entre sujeito e objeto está, pois, colocada desde o inicio de seu ensino.

Gostaria de levantar mais uma questão, que parece ser importante tanto pela retomada que Lacan faz dela mais tarde quanto pelo tema que aqui nos convoca. Ele diz que, na análise do famoso sonho do homem dos lobos, aparecem dois modos de memória. Por um lado, Serguei se lembra de histórias como a dos sete cabritinhos, a de Chapeuzinho Vermelho, a do alfaiate e a do lobo sem cauda, contadas pela avó. Esses contos, diz Lacan, funcionam de um modo mítico e têm uma função socializante, porque permitem que Serguei se comunique com os outros. Por outro lado, há também algo que Freud interpreta como a visão da cena primária em meio ao seu sono, que existiu mas que não pode ser rememorado no plano simbólico. Naquele momento, em 1952, Lacan afirma que o recalcado é o que não foi memorizado simbolicamente e, no ano seguinte, no Seminário I, se pergunta: o que não pode ser lembrado é o que está recalcado? E eis que ele encontra no texto de Freud o significante nachträglich. Lacan vai dizer, então, que há um inconsciente não recalcado, anterior ao momento do sonho dos lobos, tempo em que se produzem os efeitos de efração imaginária perante o espetáculo da cena primordial. Antes disso, a cena não estava integrada ao sistema verbalizado do sujeito nem tinha adquirido significação.

De início, Lacan parece pensar como Freud, parece afirmar que tudo é passível de ser integrado ao simbólico. Mais tarde, ele muda claramente de posição, ao definir o real como impossível, ou como aquilo que não pode ser simbolizado.

Lacan voltará inúmeras vezes a esse ponto, que parece mostrar-lhe algo que faz desse relato de Freud que sua análise seja inesgotável: trata-se da irrupção do real. Assim, a abertura da janela no sonho dos lobos retoma a mesma questão que a garganta de Irma. A janela aberta “é o inverso do véu que cobre o sujeito” (Lacan, 1952, p. 73): é um espelho onde o sujeito se vê olhando sob a forma dos lobos que o olham. E, por outro lado, seus olhos, como janela, abrem-se em meio ao sono, num brusco despertar, e ele olha uma cena agitada: a relação sexual de seus pais. Ele “esqueceu” essa cena e não pode integrá-la a sua memória consciente. Essa cena só ressurge posteriormente, quando ele tenta mediatizar seu desejo, criando uma relação simbólica com o pai, logo, é aprés-coup, que se fixa no seu inconsciente numa relação homossexual (Lacan, 1952, p. 73).

Os olhos como janelas que nos conectam à realidade e ao real são significantes oriundos desse caso, que se repetem em diferentes textos de Lacan. A cada vez, uma nova volta, um novo sentido é procurado. Quem olha e quem é olhado, nesse ponto em que o sujeito já não pode dizer onde está? Por isso, no Seminário da angústia, Lacan diz que por essa janela o homem dos lobos nos mostra o fantasma puro revelado em sua estrutura: o olho que pode se olhar sem que, no entanto, o sujeito se veja, ou aquilo que, no ano seguinte, ele denominará a esquize do olho e do olhar.

Retornar a Freud, relê-lo é o lema inicial do ensino de Lacan, mas essa releitura, essa volta às origens, ao texto originário, é um meio, e não um fim em si. É um modo - para Lacan, o único modo - de ter uma palavra própria. Em outros termos, não se trata de falar do pai, mas de autorizar-se a falar em nome do pai. Essa é a tarefa que ele se propôs em primeira pessoa e é também a que propõe a cada um dos analistas, um por um: “Eu sou freudiano; sejam vocês lacanianos, se quiserem”, ou seja, façam com meus textos o que eu faço com os textos de Freud. Eu não posso me ver no meu próprio espelho.Vocês são os únicos que poderão me dizer quem sou (Lacan, 1980).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Adela Stoppel de Gueller
Rua Dr. Homem de Melo, 736 &– Perdizes
05007-002 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3864-8702
E-mail: adelastoppel@terra.com.br

Recebido: 14/05/2007
Aceito: 21/05/2007

 

 

* Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autora de Vestígios do tempo. Paradoxos da atemporalidade no pensamento freudiano. São Paulo: Arte & Ciência, 2005. Coordenadora do curso de especialização em Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae. Professora do curso de especialização em Teoria Psicanalítica da Cogeae-PUC/SP.
1 Lembremo-nos de que, em francês, demande significa “perguntar” e também “pedir”.
2 Kraepelin também tinha tratado anteriormente do pai do homem dos lobos, por ataques de melancolia.
3 Tomo aqui a tradução de Paul-Laurent Assoun, in Metapsicologia freudiana: uma introdução (p. 24) .Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966, por me parecer mais rigorosa do que a da Edição Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, in Dois verbetes de enciclopédia, p. 287.
4 Talvez haja aí uma semente do que Lacan articulará, nos anos 1970, com o nó borromeano.
5 Nessa mesma linha, no seminário sobre a angústia (1962-63), Lacan traz como exemplo nada menos do que Pavlov.
6 Aliás, é exatamente esse o termo que a dra. Brunswick usa para intitular o relato da análise que faz com o homem dos lobos: “Suplemento à história de uma neurose infantil”.
7 Ele se dedicará a essa tarefa com afinco especial na lógica da fantasia.