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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Depois de Strachey*

 

After Strachey

 

 

Adam Phillips**

Universidade de York

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor e psicanalista Adam Phillips escreve sobre o planejamento e a recepção das novas traduções de Freud para o inglês.

Palavras-chave: História da psicanálise, Sigmund, Freud, Strachey, James, Tradução.


ABSTRACT

The author and psychoanalyst Adam Phillips writes about the planning and the reception of new Freud translations into English.

Keywords: History of psychoanalysis, Freud, Sigmund, Strachey, James, Translation.


 

 

Nunca, sob qualquer circunstância, é por causa dos excessos de uma
outra pessoa que, ao menos na aparência, alguém se sente sobrecar-
regado. É sempre porque os excessos dela coincidem com os seus.

Lacan, 2007.

Agora que estão encerradas as guerras freudianas1, o momento parece bom para uma nova tradução. Este é certamente um bom momento para a psicanálise: por estar amplamente desacreditada, por não trazer prestígio, glamour ou dinheiro, ocupam-se dela somente pessoas que têm um interesse genuíno. E agora que as palavras de Freud são rejeitadas com tanta naturalidade, uma defesa mais articulada do valor de sua escrita se faz necessária. Embora se destine a permanecer amplamente ignorada &– e ferozmente questionada pelos restantes devotos e proprietários da psicanálise &– uma nova tradução deveria ser algo como um novo começo para quem ainda estivesse curioso. Uma oportunidade, no mínimo, para se ver o que resta de Freud após sua escrita ter atravessado o moinho das instituições psicanalíticas e universidades.

Quando a Penguin me consultou pela primeira vez a respeito da possibilidade de uma nova tradução, não havia qualquer indicação de que eu participaria. O copyright de Freud havia expirado na União Européia e eles estavam conversando com diversas pessoas, diziam-me, sobre a viabilidade de uma nova versão. Eles já possuíam uma boa parcela da Standard Edition em brochura, com exceção dos artigos sobre técnica, e não era evidente o que poderia ser um suposto “novo” Freud, ou o que haveria de suficientemente novo para colocá-lo no mercado no momento em que ataques a Freud e guerras freudianas eram mais notórios que a leitura de Freud, e a psicanálise já não era a terapia favorita entre as pessoas da classe média. Das pessoas que consultava a Penguin queria saber como seria possível fazer um Freud para o novo século. Não posso fingir que o assunto me interessasse muito naquela época. Não sou lingüista, não sou um acadêmico por natureza ou inclinação; adoro ler e escrever e exercer a psicanálise, mas jamais fiz qualquer coisa semelhante ao que se costuma chamar de pesquisa. E também sempre havia admirado a tradução de Strachey, e a exemplo de muitos outros eu efetivamente a via como a edição-padrão. Tal como a Bíblia do Rei James, se me for permitida a analogia pouco feliz, ela é tão boa &– ou fomos de tal maneira educados para ver sua bondade &– que parece ser a coisa autêntica. É bem verdade que me perguntei, ao receber o primeiro telefonema da Penguin, se Freud “soava” diferente em outras traduções; mas, por outro lado, a leitura de Brill, Joan Riviere, Katherine Jones e Robson-Scott não havia sido animadora. Noutras palavras, eu não achava de fato que Strachey era o problema em Freud. Estava satisfeito em prender-me ao Freud de Strachey e ao mito da Standard Edition, em supor que ela era satisfatória para qualquer época.

Assim como a formação psicanalítica carrega o risco de fazer as pessoas se interessarem mais pela psicanálise do que por outras pessoas, os textos freudianos carregam o risco de tornar os leitores mais interessados por Freud do que por outros escritores &– de tornar toda a escrita, de um modo ou de outro, freudiana. Eu queria descobrir se existia um Freud útil para algo que não fosse mais psicanálise (e também para ela). O jovem Auden, por exemplo, era fascinado por Freud, mas não terminou escrevendo poemas freudianos ou, ao menos na juventude, poemas que soassem como os de qualquer outro. A psicanálise pode informar projetos que não estão obrigados a promover a própria psicanálise.

Minha pressuposição consciente de que eu não trabalharia no projeto deu-me a liberdade para dizer como imaginava que pudesse ser um novo Freud; eu não precisaria enfrentar as conseqüências de minhas sugestões e poderia arriscar idéias fazendo-me passar por mais dogmático do que eu realmente era. Evidentemente, nenhuma pessoa envolvida com a psicanálise, nenhuma pessoa enredada por ela, é serena ou indiferente quando fala sobre Freud. Mas, em várias ocasiões achei mais prazeroso conversar sobre Freud com editores do que com psicanalistas. Afinal de contas, eles querem apenas persuadir os outros a comprar Freud, e não a crer nele. Se a psicanálise é uma linguagem que demanda a mesma espécie de assentimento concedida à linguagem religiosa &– se existem formas de utilizá-la que não sejam formas de se deixar convencer integralmente por ela &– é uma questão para as leituras de Freud no futuro.

Fiz as seguintes sugestões, durante um almoço, aos representantes da Penguin: que a edição não fosse completa porque, a exemplo de todos os chamados grandes escritores, uma parcela de Freud era entediante, uma outra repetitiva; que não deveria ser um corpus impeditivo, dividido por volumes, nem pressupor que quem não lesse tudo não teria lido nada; que não demandasse, como fez Joyce para o seu Ulisses, a dedicação de toda uma vida. Nada impede que Freud seja degustado aos poucos: se o leitor se sentir tocado, intrigado ou atraído, ele irá adiante. A seleção deveria ser generosa, mas não assídua; e os artigos sobre técnica deveriam ser incluídos porque figuram entre os escritos mais reveladores de Freud a respeito da psicanálise e do que ela pode ser para ajudar uma pessoa. Freud é um grande escritor de nossos receios quanto a ajudar e ser ajudado. Disse que achava que cada livro deveria ser traduzido por uma pessoa diferente, e que não deveria existir consenso sobre termos técnicos: cada tradutor escreveria um prefácio em que poderia comentar suas escolhas e os prazeres, enigmas e dificuldades de traduzir Freud. Em condições ideais, pensei, seriam tradutores que já tivessem traduzido textos literários e não teriam necessariamente lido Freud antes: Freud teria assim uma chance como o escritor que queria ser, e de fato é, bem como o cientista que queria ser, e talvez seja (se a psicanálise é uma ciência, deve progredir; se é uma arte, não deve ser entediante). E os tradutores, supõe-se, saberiam o que significa a palavra “Saussure”. Sugeri que cada livro deveria trazer uma introdução de um autor das chamadas “humanidades” e que deveria haver dois requisitos: esses autores não deveriam ter uma prática analítica nem filiação a sociedades psicanalíticas, e deveriam ser convidados apenas para escrever seus ensaios acerca e a propósito dos textos selecionados pelo editor. As introduções apresentariam o leitor à leitura de Freud, e não a Freud.

Eu esperava que o afastamento de analistas pudesse significar que as pessoas envolvidas não estivessem presas ao que ainda se chama de política psicanalítica, e não seriam exageradamente ciosas do que outros profissionais pudessem pensar sobre essas questões, especialmente a terminologia. Não surpreende que os membros de grupos psicanalíticos tenham uma transferência muito forte, tanto negativa quanto positiva (por assim dizer) com relação aos textos de Freud; eu queria pessoas que não fossem tão enredadas, ou que estivessem enredadas em outras coisas. E que fossem pessoas habituadas a ler e interpretar textos, e não apenas a estudá-los e usá-los como manuais de instrução. Achei que o projeto teria vida somente se o editor tivesse prazer com ele.

É de se supor que o caráter, na falta de termo melhor, das pessoas que participam de projetos como este tenha importância; sempre fui assombrado por uma história a respeito da análise de Winnicott com Strachey. Winnicott encontrava Strachey cinco vezes por semana, e nos seis primeiros meses de análise Strachey supostamente não teria falado nada. Até que Winnicott levantou-se do divã, depois de falar por seis meses, e disse alguma coisa no sentido de que ele vinha há seis meses e Strachey ainda não havia dito nada, ao que Strachey teria aparentemente respondido: “E nem você”. Jamais soube se a história foi inventada ou não, mas é uma história sobre um homem com uma noção rigorosa do que escuta, do que ele quer da análise. As pessoas podem querer coisas de toda espécie dos textos de Freud, e as escolhas dos editores, pensei, deveriam refletir isso &– deveriam supor que isso era possível, que o trabalho de Freud tem uso indeterminado. Eu disse que achava que o editor-geral não deveria ler alemão, de modo que ele ou ela lesse as traduções em busca da legibilidade &– em busca de notas dissonantes, infelicidades verbais, estranhezas sintáticas &– e não da exatidão; a boa fé e a perícia dos tradutores (com trajetória conhecida) seriam pressupostas em vez de haver, digamos, um tradutor-chefe aos qual eles seriam remetidos ou ao lado de quem eles trabalhariam (os caçadores de minúcias teriam a oportunidade de atacar as publicações). O editor-geral deveria permanecer disponível para consulta, mas tradutores e introdutores teriam a palavra final sobre seus textos. Não seria um projeto em que a autoridade ou mesmo a visão do editor-geral ficasse estampada de maneira ostensiva. Os livros, e mesmo os textos de Freud, apareceriam em vozes diferentes.

Achei que, como regra geral, somente quem aceitasse o convite com firmeza &– como todos aceitaram &– deveria ser admitido no projeto; que ele deveria ser planejado como um experimento e não ser executado como obrigação, por mero carreirismo. E achei que era necessário deixar claro que o projeto não visava usurpar ou substituir Strachey, e sim descobrir como soariam versões alternativas. Ele não seria organizado de modo a competir com Strachey em termos de formato, seleção ou abrangência. Imperativos territoriais deveriam ser postos de lado &– essa foi uma das razões pelas quais eu não quis a participação dos analistas no projeto &– em parte porque Strachey é encantador, na maioria das vezes, e porque o campo precisa ser arejado. Parecia-me desnecessário recordar àquela altura quais as vantagens concretas e limitações evidentes de possuir uma chamada edição-padrão de Freud em inglês. E se essas questões ainda possuem interesse, elas interessam somente ao universo razoavelmente estreito da profissão psicanalítica (depois de me decepcionar no correr dos anos com o que a profissão psicanalítica fez de Freud &– sem contar algumas exceções notáveis &– interesso-me cada vez mais pelo que dizem os não-profissionais, hostis ou não). Afinal de contas, não havia algo chamado interpretação-padrão em psicanálise; e novas traduções podem anular a mística, a aura de uma tradução única e padronizada. Eu achava improvável que pudesse haver um novo Freud, mas que poderia haver surpresas, e até mesmo coisas nas quais Strachey estava errado. Achei que era importante, pelo sinal dos tempos, que os livros fossem breves, que não fossem tomos (que apresentassem um Freud que não fosse nem intimidador nem fácil ou superficial) e que deveriam ser atraentes: livros que uma pessoa gostaria de ter por perto ou imaginasse ser capaz de ler. Deveriam pertencer claramente à série de Clássicos Modernos da Penguin, alinhando Freud a outros autores modernistas, no mesmo formato de Joyce, Conrad, Ford Madox Ford, Woolf e outros; e deveriam trazer, a exemplo dos Clássicos Modernos da Penguin, um aparato acadêmico muito pequeno: apenas as notas de Freud, se possível; e sem índices, tendo em vista o que eles dizem implicitamente a respeito de um livro e seu gênero.

Achei que os livros deveriam ser divulgados separadamente; que uma dispersão era necessária; que seriam um teste para descobrir quem &– se houvesse alguém &– queria ler Freud hoje, e falar e escrever sobre ele; e quem &– se houvesse alguém &– acharia interessante ter novas traduções se já havia uma mais do que satisfatória em circulação. Acredito que era, na linguagem em que fui formado, e que jamais abandonei, um chamado ao leitor comum, mesmo que ele não exista, e talvez nunca tenha existido. Minhas idéias pareceram-me, quando as apresentei, liberais, otimistas e bastante dignas &– coisas provavelmente concebidas por alguém da minha geração que fizesse sua formação literária no leavisianismo2 da rede pública, nos anos sessenta, e no anti-leavisianismo de Oxford, nos anos setenta. Parecia, por alguma razão, uma coleção que Orwell talvez admirasse: edições despojadas e acessíveis de um escritor que vale o esforço de seus leitores, e que dispensam declarações pomposas. Se os escritos de Freud irão sobreviver à profissão da psicanálise, como sugeriu certa vez Harold Bloom, e se levarmos a sério a idéia de que Freud realmente é, para a língua inglesa, um autor traduzido, então neste caso me parece que as novas versões têm valor potencial. Nem mais, nem menos. Não “precisávamos” e nem “precisamos” de novas traduções de Freud, mas podemos querê-las.

Se havia um problema &– e parece um pouco dramático chamá-lo assim &– ele não se encontrava em Strachey, mas somente na idéia de que existia algo que definia ou pretendia definir a si mesmo como Standard Edition. As desconfianças com relação a Strachey têm dois gumes que são evidentes em seu “Prefácio Geral”.

Quando a Standard Edition começou a ser planejada avaliou-se que haveria uma vantagem se uma única mão fosse responsável por modelar todo o texto; e de fato uma só mão executou a maior parte do trabalho de tradução, e irá notar-se que uma vasta remodelagem foi imposta mesmo onde uma versão anterior serviu como base. Isso infelizmente implicou na exclusão de várias traduções antigas, em si mesmas estimáveis, em benefício desta opção pela uniformidade. O modelo imaginário que sempre tive presente são os escritos de um homem de ciências inglês, de cultura vasta, nascido em meados do século dezenove. E gostaria de frisar, no espírito da elucidação e sem patriotismo, a palavra “inglês” (Strachey, 1966, pp. xviii-xix).

Strachey, ao traduzir Freud, imaginava a si próprio como o equivalente inglês de Freud, algo que um romancista presumivelmente faria; mas não há nesta declaração de intenções nada que não se possa discutir. O cientificismo do Freud de Strachey, que Bettelheim lastimou ao dizer que a alma havia sido retirada de sua escrita, confirma o compromisso da psicanálise com a ciência que Freud reitera tantas vezes. E a invenção de termos pouco familiares (notadamente “catexia” e “superego”) serve, por modos instrutivos, para desfamiliarizar os textos de Freud (o argumento de Deleuze e Guattari, segundo o qual a filosofia deveria criar termos novos e insólitos &– que a opacidade rebarbativa da linguagem seja talvez o alvo e não o problema &– pode aplicar-se igualmente à psicanálise). E a vantagem de uma tradução feita predominantemente por uma só mão consiste, é claro, em replicar ao menos a escrita de Freud por uma única mão.

Quando decidiu batizar sua versão como a “Edição-Padrão” [Standard Edition], Strachey a tornava prisioneira da própria sorte. Quem afirma que este é o padrão, e porque precisa afirmar isso? Quem definiu o padrão, e quais são os critérios? É uma provocação nomeá-la como edição-padrão? Poderia haver uma outra? Neste caso, que nome teria? A edição sem-padrão [non-standard edition], a edição sub-padrão [sub-tandard edition]? E quem autoriza os autorizadores? Por que alguém iria querer fixar o texto para todo o sempre? Afirma-se a uniformidade porque a desordem se faz sentir por toda parte? Noutras palavras, por que os ingleses não se dispuseram a um debate, a uma série de traduções que fossem possivelmente díspares e concorrentes? O que os afligia, o que afligia a profissão psicanalítica, a tal ponto que buscassem uma saída nesse tipo de formação canônica e dogmática? E ainda, por que os detentores dos direitos autorais não permitiram que a tradução de Freud fosse livre para todos? As traduções do New Penguin Freud participariam necessariamente da escavação destas perguntas. E embora elas me parecessem ter algum interesse, talvez maior hoje do que naquele tempo, eu não estava nelas de corpo e alma; falar sobre a tradução de Freud é falar sobre muitas outras coisas.

***

Ofereceram-me o posto de editor-geral e eu o aceitei. Todas as minhas sugestões foram acolhidas; no entanto, não encontramos um número suficiente de tradutores, e por isso contávamos ao final com dez tradutores para dezesseis volumes. E havia a participação de um analista: eu. Quando me ofereceram a editoria geral, e quando eu a aceitei, fiquei surpreso: parece uma ingenuidade, e talvez seja. E sinto-me feliz por ter aceito &– mas, acredito, sempre me senti. O trabalho era maior do que eu gostaria, e um gênero de trabalho que não me seduz. Sempre li pelo prazer e pela experiência da leitura, e agora, em certa medida, com a intenção de escrever. E lia apenas aquilo que me interessasse &– algo que, por não ser acadêmico ou professor, estou livre para fazer; o projeto Freud interferiu nisso. Eu nunca sabia quando uma tradução poderia chegar, e li versões diferentes em muitos casos (li três versões de Interpreting dreams [A interpretação dos sonhos3] em um ano). A leitura das traduções, envolvente à sua maneira, e no geral interessante, exigia o tipo de cuidado e desvelo que não quero sustentar. Aprecio o tipo de liberdade para ler &– para a leitura, e não para o tratamento &– que é inevitavelmente excluída no trabalho editorial; a atenção exigida é o oposto da atenção livremente flutuante.

Apresento este depoimento especial como uma via à questão maior sobre as razões para se dar ao trabalho de fazer um novo Freud, tendo em vista os interesses diretos por sua obra e sua crescente marginalização.Ao falar sobre as traduções de Mann ou Kafka, não falaríamos sobre a legitimidade do tradutor para verter os textos, nem veríamos novas traduções como uma provocação ou, para lembrar os termos de Perry Meisel em The literary Freud [O Freud literário], “tomadas pelos riscos do caos e da decadência” (2006). Devemos supor que o problema solucionado por novas traduções de Kafka ou Mann se deveria ao fato das traduções anteriores serem vistas como imprecisas ou enganosas. O assunto seria a correção, e não a sanção oficial. Entre os estudiosos de Kafka, ou entre seus tradutores, talvez aconteçam debates acalorados, mas eles jamais teriam a intensidade que a tradução de Freud aparentemente possui. O que haveria no Freud escritor que deixa as pessoas tão inquietas a propósito da tradução &– e inquietas de um modo tal que ameaça matar seu prazer com a novidade e a experimentacão e as faz defender com tanto exagero a Standard Edition? Que problema existe em se traduzir Freud, a um tal ponto que, no momento em que foram anunciadas as novas traduções de Freud pela Penguin, o Instituto de Psicanálise em Londres &– detentor dos direitos autorais sobre a Standard Edition &– notificasse a direção da editora para esclarecer que as novas traduções não deveriam apoiar-se nas traduções existentes4?

Além da pergunta óbvia &– por que uma nova tradução iria apoiar-se numa anterior se ela seria, por definição, uma nova tradução? &– vale a pena examinar, se nos servirmos deste caso como exemplo, o que podemos temer e o que podemos perder ao retraduzir Freud. E por que o caso de Freud é especial (se ele é de fato)? Não acho que essas perguntas encontrem uma resposta adequada ou interessante quando se diz que novas traduções libertam os textos do controle institucional. Ao produzir, promover e defender a Standard Edition, os institutos de psicanálise não controlavam de modo algum a interpretação dos textos de Freud. Acho possível que exista, para usar a linguagem psicanalítica, um desejo de controle &– por estranho que pareça &– da diversidade de histórias pessoais que entram em contato com os textos de Freud quando há uma variedade de tradutores, sendo que nenhum deles foi analisado (Strachey, não esqueçamos, foi paciente de Freud), e muitos deles possuem visões diferentes sobre a linguagem de Freud. A Standard Edition é, além de tudo, uma transferência com a qual Freud teve contato e que ele em certa medida analisou; e que foi supervisionada por um comitê de analistas. Tendo em vista o que sabem os analistas acerca do poder da transferência &– o poder da transferência para traduzir seus objetos &– deveria existir um medo concreto quanto ao que se pudesse fazer com os textos de Freud sob o nome aparentemente inócuo de uma “nova tradução”.

Supondo que isso esteja certo, é desanimador que seja uma visão tão estreita da transferência, limitada e talvez injustamente temerosa, como se a transferência se resumisse apenas a uma forma de prejuízo. O psicanalista Joseph Smith (1991) em Arguing with Lacan [Discutindo com Lacan], escreve:

A transferência foi compreendida inicialmente como a capacidade para distorcer ou ler erradamente um novo objeto nos termos de objetos anteriores. A experiência analítica ensinou-nos a ver este primeiro esboço de seu significado apenas como a transferência no sentido mais estrito. De modo similar, a concepção da análise como um modo de corrigir as distorções da transferência representaria um conceito inexoravelmente limitado do processo de análise... atualmente, a ênfase não recai sobre a transferência como erro de leitura, e sim na transferência como capacidade para ler um novo objeto ou situação e ligar-se a eles. Ela é a capacidade para investir e ingressar numa relação ou situação de um modo pessoal, à luz da própria experiência passada. Ela é a capacidade para estar aberto a uma nova experiência de modo a permitir não apenas que o antigo afete o novo como também que o novo afete o antigo (1991).

Nesta descrição a transferência não é somente o problema: ela é também o alvo. Qualquer pessoa pode ler Freud, mas &– ao menos até pouco tempo atrás &– nem todas podiam traduzir Freud. Mas se a tradução, o que mais ela possa ser, é uma função da transferência (a psicanálise se organiza inevitavelmente ao redor de sua transferência com relação a Freud), e se a transferência faz existir novas coisas, torna-as possíveis em vez de simplesmente excluí-las, neste caso um elenco de transferências a partir do contato com os textos de Freud será também um modo de torná-los novos. A escrita de Freud será como o paciente em análise que quer mudar permanecendo igual e quer permanecer igual mudando. Os novos tradutores iniciaram uma relação com o texto de Freud, cada um ao seu modo, à luz de suas experiências passadas; e o resultado, a tradução apresentada, ficou disponível para exame na esfera pública.

Até recentemente os leitores da Standard Edition de Strachey tinham pouco com o que pudessem compará-lo. Após as novas traduções já se pode ter alguma conversa &– sobre Strachey e sobre as novas versões &– onde antes havia um “pegar ou largar”, por assim dizer. Não conheci nenhum analista cuja desconfiança a respeito de Strachey fosse tão séria que ele estivesse em busca de novas traduções. Mas, é claro, eles teriam pouquíssimo material para discutir caso não soubessem alemão. A tradução, a exemplo da transferência que Joseph Smith descreve, é imprevisível e idiossincrática e, cumprindo-se os requisitos estipulados, pode ser tornada disponível para reflexão como algo sobre o que podemos pensar. As novas traduções de Freud pela Penguin são um novo conjunto de relações transferenciais com os textos de Freud. E daí? Por que antes várias do que uma? Uma resposta seria que várias traduções permitem comparação. Por exemplo, pode ser instrutivo tanto para analistas como para leitores de Freud descobrir que, como escreve John Reddick em seu prefácio a Beyond the pleasure principle and other writings [Além do princípio do prazer e outros escritos], caso o parágrafo de abertura da versão de Strachey para On narcisism [Sobre o narcisismo]

fosse entregue como exercício de tradução feito por um aluno, seria inundado por um lápis vermelho, com tudo o que existe desde marcas leves até grossas linhas sublinhadas e fileiras de pontos de exclamação, pois é a tal ponto povoado por lacunas, deslizes e omissões que representa uma caricatura do original de Freud... Muito embora nenhuma destas infelicidades [listadas por Reddick] faça grande diferença por si mesma, seu efeito cumulativo consiste na alteração da tonalidade e do vigor da passagem... Entretanto elas nada são se colocadas ao lado de dois erros surpreendentes de tradução que se revelam nestas poucas linhas [de abertura]... Mais grave ainda é a adulteração do título... Aqui (e em outras partes) o programa, além de claro, não é pouco pernicioso: a escrita de Freud não deve ser apresentada como uma luta intensa e desgastante com idéias intratáveis e por vezes loucamente ousadas, e sim como um corpus pré-preparado de dogmas inquestionáveis (2003, p. xxxi).

Se o trabalho especulativo selvagem e em evolução de Freud está traduzido como um elenco de inferências científicas ou convicções, Strachey está nos desencaminhando e, evidentemente, abalando nossa confiança quanto ao restante de sua tradução. Eu jamais viria a saber disso &– não saberia, por não falar o alemão, que havia um problema &– sem uma nova tradução, ou melhor, sem um prefácio do tradutor. Nem saberia que o importante artigo de Freud sobre a técnica, intitulado por Strachey “Observações sobre o amor de transferência” [“Observations on transference love”] foi, ao que parece, traduzido com maior precisão por Alan Bance para o New Penguin Freud como “Observações sobre o amor na transferência” [“Observations on love in transference”] &– um título que sugere (como Freud de fato sugere em seu artigo) que talvez não exista diferença decisiva entre o amor de transferência e algum outro tipo de amor. Noutras palavras, todo amor pode ser transferência. A crítica de Reddick e a revisão de Bance trazem conseqüências consideráveis. Evidentemente, uma das realizações do New Penguin Freud consiste em colocar esta e outras questões em exame. Sozinho, Strachey &– embora não exista motivo para supor que fosse esta a sua intenção &– oculta o que pode ser questionado, ou que as questões existam.

***

Quero examinar que tipo de excesso pode estar presente quando se dispõe de uma tradução-padrão da obra de Freud e que tipo de excesso pode estar envolvido quando há várias traduções. Ou, falando de modo um pouco diferente, por que se prefere o consenso à coexistência quando se trata da tradução de Freud, e por que um Freud pode ou não ser melhor do que vários. Freud, acredito, oferece uma descrição vantajosa do assunto em seu famoso relato sobre como e por que o monoteísmo suplantou com sucesso o politeísmo. É óbvio que cronologicamente a situação é o oposto da tradução de Freud, e mesmo de Freud com seus chamados discípulos; no princípio, apesar das tentativas inaugurais de Brill e Riviere et alii, existia um Freud inglês &– o de Strachey &– e agora existem vários. Precisaremos começar pela descrição de Freud do triunfo do monoteísmo, lendo este relato sob o aspecto do excesso que acaba tornando-se insuportável. Como é comum em Freud, uma história sobre o sagrado ilumina o secular.

Na obra de Freud, todas as referências ao monoteísmo e ao politeísmo e seus méritos relativos estão no texto tardio e estranho de 1939, Moses and monotheism [Moisés e o monoteísmo]; mesmo em Totem e tabu os termos não são empregados (os termos ingleses, entenda-se: não conheço os alemães). Curiosamente, Freud conclui seu segundo prefácio ao texto, redigido em junho de 1938, em Londres, com um receio, um medo pela tradução [translation]. Freud tinha sido transportado [translated] para Londres e por fim estava pronto para Moisés e o monoteísmo, agora em sua versão completa que seria traduzida para o inglês.

Nas minhas poucas semanas de permanência recebi inúmeras saudações de amigos que estavam contentes pela minha chegada, e de pessoas estranhas e desinteressadas que somente queriam manifestar sua satisfação por eu ter encontrado aqui liberdade e segurança. Vieram ainda, com uma freqüência surpreendente para um estrangeiro, comunicados de outro gênero, preocupados com minha condição espiritual, e que mostravam o caminho de Cristo e queriam esclarecer-me sobre o futuro de Israel. A boa gente que escreve dessa maneira não poderia saber muita coisa a meu respeito; mas espero que, quando este trabalho sobre Moisés tornar-se conhecido entre meus novos compatriotas numa tradução, eu venha a perder uma parte da simpatia que várias outras pessoas têm por mim (Freud, 2004, p. 221).

Ao tornar Freud conhecido, a tradução do trabalho pode fazer com que o conheçam em demasia: neste momento ele é acolhido na “amável, livre e magnânima Inglaterra”, como diz, até mesmo por estranhos desinteressados e desconhecidos, mas a tradução &– seja dele mesmo, por implicação, e de seu livro &– oferece a outras novas pessoas um modo de acesso diferente a ele; e Freud teme perder assim a sua simpatia (quanto mais se conhece uma pessoa, menos ela inspira simpatia). É como se Freud especulasse, ao menos consigo mesmo e com seus leitores alemães, se diante das circunstâncias não seria melhor se Moisés e o monoteísmo não fosse traduzido, ou então presumivelmente todo o resto de seus escritos. Traduções podem ser perigosas e há uma resistência a elas; e mais adiante em Moisés e o monoteísmo ele se refere ao modo como o paciente em análise não compreende os símbolos de seu sonho “a não ser que um analista os interprete para ele, e mesmo neste caso ele se recusa a acreditar na tradução” (2004, p. 261). O que se conquista com o acesso é mitigado pelo sofrimento implicado.

Não me preocupam aqui os meandros do argumento de Freud &– seu empenho em provar que Moisés era egípcio, o percurso do monoteísmo judaico desde o monoteísmo egípcio, etc. &– e sim apenas o modo pelo qual Freud caracteriza nestes textos as supostas diferenças entre politeísmo e monoteísmo. (Uma das coisas que aprendemos com a leitura de Freud, e com o exercício da psicanálise, é o valor da teoria fraca: teorias flagrantemente equivocadas convidam ao diálogo; teorias fortes criam um impasse entre “pegar ou largar”). Freud inclina-se a descrever essas formas religiosas a partir de seus excessos, o que pode servir como analogia nítida e instrutiva para a diferença entre a existência de uma tradução de Freud, a Standard Edition, e a existência de várias &– ou servir apenas como um outro modo de comentála. Evidentemente é necessário ter em vista o dado teleologicamente intrincado de que, embora Strachey parecesse ser Freud, há o original por trás da tradução oficial de Strachey. Existem, portanto, o desejo por uma e o desejo por várias.

Há em Moisés e o monoteísmo aquilo que Freud geralmente caracteriza no texto como o “monoteísmo rígido”, duas palavras quase sempre enganchadas uma na outra, e aquilo que ele menciona em uma só passagem como sendo o “politeísmo sem limites”. Freud escreve que na religião judaica, tal como foi retraçada a partir de Moisés, “existe somente um deus, ele é único, onipotente, intangível; os humanos não suportam vê-lo, não podem criar imagens suas, sequer podem pronunciar seu nome”, enquanto na religião egípcia existe “um elenco quase incontável de divindades com graus diversos de mérito e origens diferentes... Os hinos em louvor a tais deuses... os remetem prontamente uns aos outros de um modo que podemos considerar irremediavelmente obscuro... magia, ritual, atos, feitiços e amuletos dominam o culto a estes deuses” (2004, p. 180). O deus único dos monoteístas possui um excesso de poder, um excesso de mistério, um excesso de privacidade e incognoscibilidade, e uma excessiva intolerância perante os rivais. Os vários deuses dos politeístas têm valor e origem excessivamente variáveis, são excessiva e desorientadoramente similares (isto é, não são suficientemente distintos), e aliados excessivamente a práticas mágicas.

As desconfianças de Freud, como sabemos, são reservadas aos monoteístas: “Era um monoteísmo rígido”, ele escreve, “a primeira tentativa do gênero na história do mundo, até onde sabemos, e com a crença em um deus único nasceu &– digamos, inevitavelmente &– a intolerância religiosa, algo que o mundo antigo desconhecia antes”. Ao fazer, como ele escreve, “deste deus universal o deus único, tudo o que se dizia a respeito de outros deuses eram equívocos e mentiras” ao lado do deus único, “qualquer outro seria inconcebível” (2004, pp. 181-182). A exemplo do ego, o deus único se constitui através do repúdio: ele define a si mesmo a partir do que rejeita. E ao explicar o anti-semitismo, perto do final do texto, Freud faz um depoimento apaixonado sobre o ressentimento criado e a violência cometida pela unificação imposta, pelo consenso coagido.

Não se deve esquecer que todas as nações que atualmente se distinguem por seu ódio aos judeus tornaram-se cristãs apenas na história recente, tendo sido em muitos casos subjugadas por uma coerção violenta. Todas tiveram, podemos dizer, um ‘batismo imperfeito’; sob o fino verniz de Cristianismo elas continuaram a ser o que eram seus ancestrais, aderindo a um politeísmo bárbaro. Ainda hoje não superaram seu ressentimento pelo fato de a nova religião ter-lhes sido imposta, mas todas deslocaram este ressentimento para a fonte pela qual o Cristianismo chegou até elas (Freud, 2004, p. 254).

Forçar várias versões em uma, impingir ou impor um consenso onde ele não existia, afirma Freud, liberta uma violência tardia (a exemplo do que faz uma narrativa excessivamente elaborada ou coerente da vida do paciente no tratamento psicanalítico). O politeísmo é bárbaro nesta tradução, no sentido de que “bárbaros” eram os “não-gregos”. O monoteísmo, segundo a descrição de Freud, cria renegados a serem odiados ou destruídos, ou torna os renegados &– isto é, versões competidoras, alternativas &– literalmente impensáveis, inconcebíveis (a crença em um deus único como um ataque calculado contra a capacidade individual para pensar ou imaginar). Existe o mundo de confusão em excesso e lealdades múltiplas, e o mundo de claridade em excesso e crenças mutuamente excludentes.

Ele não é nem jamais poderia ser tão rígido assim, e nem mesmo Freud chega a sugerir que a violência não exista no politeísmo, mas apenas que um excesso de violência foi necessário para a criação do monoteísmo, e que isso engendrou violência excessiva. Não sinto que alguma violência tenha sido feita contra mim pela única e irrepetível Standard Edition; mas penso que podemos, pelo caminho psicanalítico, começar a enxergar retroativamente, à luz das novas traduções, o que a Standard Edition e seus promotores fizeram com Freud e com todos nós. Deveria ser este o caminho psicanalítico para se preferir a coexistência ao consenso.

Tradução: André Carone.

 

Referências

Bance, A. (2002). Translator’s preface. In S. Freud, Wild analysis (pp. xxvii-xxxii). London: Penguin Books.

Forrester, J. (1997). Dispatches from the Freud wars. Cambridge; London: Harvard University Press.         [ Links ]

Freud, S. (2004). Mass-psychology and other writings. (J. A. Underwood, trans.). London: Penguin Books.         [ Links ]

Lacan, J. (2007). The seminar of Jacques Lacan: Book 17: The other side of psychoanalysis: London: W. W. Norton.         [ Links ]

Meisel, P. (2006). The literary Freud. London: Routledge.         [ Links ]

Reddick, J. (2003). Translator’s preface. In S. Freud, Beyond the pleasure principle and other writings (pp. xxxi-xxxvi). London: Penguin Books.

Smith. J. (1991). Arguing with Lacan: Ego psychology and language. New Haven; London: Yale University Press.         [ Links ]

Strachey, J. (1966). General preface. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (Vol. 1, pp. xiii-xxvi). London: The Hogarth Press.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Adam Phillips
University of York, Heslington
Department of English and Related Literature
York, UK. YO10 5DD
E-mail: engl8@york.ac.uk

Recebido: 30/01/2008
Aceito: 10/02/2008

 

 

* Trabalho originalmente publicado na London Review of Books em 4/10/2007. O texto original encontra-se disponível para compra no site http://www.lrb.co.uk.
** Adam Phillips, escritor, psicanalista residente em Londres, é o editor-geral das novas traduções de Freud publicadas pela Editora Penguin, coleção The New Penguin Freud, que conta até o momento com dezesseis volumes publicados. É professor visitante honorário na Universidade de York, onde apresenta três conferências anuais.
1 Provável referência ao livro de John Forrester, Dispatches from the Freud wars [ Relatos das guerras freudianas, 1997]. (N. T.).
2 Referência ao crítico literário Frank R. Leavis (1895-1978). (N. T.).
3 Como os títulos das novas traduções nem sempre coincidem com o título oferecido por Strachey, eles aparecem, na primeira ocorrência de uma citação, em português entre colchetes ao lado dos títulos mencionados em inglês pelo autor. (N. T.).
4 Quando li uma versão deste ensaio numa conferência em Harvard, Mark Solms, membro do Instituto de Psicanálise, informou gentilmente ao público que a carta do Instituto havia sido motivada pelo temor de queda na arrecadação com a Standard Edition, o que parecia perfeitamente plausível; entretanto, ao menos da perspectiva psicanalítica, supõe-se que as pessoas geralmente façam alguma coisa por mais de uma razão, e que as razões que apresentam não sejam as únicas que possuem.