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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

DEBATE

 

Linguagem*

 

 

Este texto refere-se ao Debate realizado entre os autores e leitores das ide 44 e 45, ambos os números voltados para a investigação do tema Linguagem.

***

ide: Vamos abrir nosso encontro para tentarmos articular nossas idéias a respeito da força da palavra na psicanálise e celebrar a original inauguração, pelo Freud, do “tratamento pela fala” e seus desdobramentos em várias linguagens.

Selecionamos como disparadores dois pequenos trechos de dois livros. O primeiro é do livro O rumor da língua (Martins Fontes, 2004), de Roland Barthes:

Na minha região, que é o Sudoeste da França, terra tranqüila de modestos aposentados, estando um dia a passear, pude ler, em algumas centenas de metros, à porta de três casas, três tabuletas diferentes: Cão bravo. Cão perigoso. Cão de guarda. Essa região, como se vê, tem um sentido muito aguçado da propriedade. Mas, não reside aí o interesse; está no seguinte: essas três expressões constituem uma só e única mensagem: Não entrem (caso contrário, serão mordidos). Em outras palavras, a lingüística, que só se ocupa com as mensagens, apenas poderia dizer a respeito algo de muito simples e banal; ela não esgotaria, nem de longe, o sentido dessas expressões, porque o sentido está na sua diferença: “ Cão bravo” é agressivo; “ Cão perigoso” é filantrópico; “ Cão de guarda” é aparentemente objetivo. Em outras palavras ainda, através de uma mesma mensagem, lemos três escolhas, três envolvimentos, três mentalidades, ou, se preferirem, três imaginários, três álibis da propriedade; pela linguagem de sua tabuleta &– por aquilo que eu chamaria de discurso, já que a língua é a mesma nos três casos &– o proprietário da casa abriga-se e sente-se seguro atrás de certa representação, e eu diria quase certo sistema da propriedade: aqui, selvagem (o cão, quer dizer, certamente, o proprietário, é bravo); ali, o protetor (o cão é perigoso, a casa está armada); acolá, legítimo (o cão guarda a propriedade, é um direito legal). Assim, no nível da mensagem mais simples (Não entrem), a linguagem (o discurso) explode, fraciona-se, afasta-se: há uma divisão das linguagens, que nenhuma ciência simples da comunicação pode tomar a seu encargo (...) (p. 136).

Agora, leremos o trecho-abertura do livro Intimidade (Cia. das Letras, 2000), de Hanif Kureishi, que se situa num outro “clima”:

É a noite mais triste pois estou indo embora e não vou voltar. Amanhã de manhã, quando a mulher com quem vivi durante seis anos, sair de bicicleta para o trabalho e as crianças forem jogar bola no parque, arrumarei a mala, deixarei minha casa levando pouca coisa, torcendo para que não me vejam, e pegarei o metrô até onde Vitor mora. Lá, dormirei no chão por um período indeterminado, no quartinho que ele me ofereceu gentilmente, ao lado da cozinha. Devolverei o fino colchão de solteiro ao guarda-louça, todas as manhãs. Guardarei o acolchoado malcheiroso numa caixa. Ajeitarei as almofadas de volta no sofá.
Não retornarei a esta vida. Talvez deva deixar um bilhete informando: “Cara Susan, não vou voltar”. Talvez seja melhor telefonar amanhã de tarde. Ou fazer uma visita no fim de semana. Ainda não resolvi os detalhes. Mas tenho quase certeza de que hoje à tarde ou à noite, não revelarei minhas intenções. Adiarei. Por quê? Porque as palavras são atos e provocam acontecimentos. Depois que saem, não se pode recolhê-las. Algo irrevogável terá sido feito, e eu estou temeroso e inseguro. A bem da verdade, trêmulo. Passei a tarde assim, o dia inteiro (p. 7).

Agora, deixaremos a bola rolar...

Yeda A. Saigh: Quero parabenizar e agradecer a ide pela iniciativa de criar este espaço de interlocução entre nós, autores, e os leitores a respeito do que escrevemos e publicamos. Dá vida à publicação!

Seguindo o disparador do Barthes lembro que uma vez estava andando com meu filho e havia uma tabuleta com os dizeres: “Cabeleireiros Fame”. Ao invés da grafia correta, em francês, “Femme”, estava escrito “Fame”. Ele, que não entende francês, olhou e disse: “Mãe, deve ter comida lá”. Então, as palavras têm este poder transformador de sentidos. Se você interpreta de outra maneira, aquela palavra vai embora... A palavra na sala de análise é misteriosa porque às vezes não entendemos o que o paciente diz, outras, fazemos uma interpretação e o paciente entende da maneira dele e a coisa vai embora, não temos controle, nos perdemos.

Alfredo Naffah Neto: O disparador do Barthes remetenos à questão da polissemia, da multiplicidade de sentidos, à questão da ambigüidade da linguagem e como nós, psicanalistas, temos que lidar com isso o tempo todo, suspendendo qualquer certeza de que sabemos sobre o que o paciente está nos falando.

Deodato Curvo de Azambuja: A pergunta-título do texto do Nelson da Silva Jr.: “Who’s there?”, publicado na ide 44/Linguagem I, poderia ser transportada para nós aqui: “Who’s here?” e relacionada ao disparador do Barthes. Que tipo de cachorro nós somos? Estamos guardando alguma coisa? Somos perigosos? Essa é uma idéia que, ao ler os textos da ide, especialmente a conversa entre o Alfredo e o Ignácio, chamou-me a atenção: a aproximação entre a linguagem e a música. Penso na polissemia, da qual o Alfredo se referiu, no sentido de que a linguagem, na análise, tem a ver não só com a linguagem do psicanalista, mas também com a linguagem do paciente. O que o paciente busca, ao buscar um psicanalista? Certamente ele busca uma linguagem perdida ou, talvez, uma linguagem que ele nunca tenha encontrado. E essa busca de análise continua sendo, no mínimo, um mistério que abre para muitas perspectivas. Então, quando perguntamos: “E agora, quem somos nós?”, ou, “Quem está aqui?”, não podemos responder de imediato, pois temos que esperar para ver como se abrem as perspectivas de conversa entre nós. Nessa abertura de perspectivas, nesse projeto que a ide traz, de conversarmos aqui hoje &– muito importante, como a Yeda disse &–, nessa proposta de nos concentrarmos em um determinado tema, no caso o tema da linguagem, tem tudo a ver com o tema da própria situação daquilo que fazemos na análise, não só como analista, mas como paciente também. Que linguagem podemos encontrar, ou não encontrar, na análise? A linguagem na análise não é propriamente uma linguagem comunicativa, é uma linguagem em que há, por trás, uma perda de comunicação. Nessa falta de comunicação, então, a partir desse vazio, o que se poderá encontrar? Estamos aqui nessa sala superlotada, há uma angústia... havia certo silêncio no início... há uma angústia de plenitude e, no entanto, essa plenitude... o que estamos buscando com ela? Que vazio estamos procurando preencher? São estas algumas perguntas que me parecem ter muito sentido em relação à linguagem. A linguagem é uma coisa que foi perdida, mas está sempre sendo buscada.

ide: O texto do Menezes fala do luto na rememoração e traz a idéia do Pontalis que o poder das palavras na análise reside nas vacilações da fala, contida no livro O amor dos começos,

Num dado momento faltam palavras, a um ou a outro, é desse oco, desse leve desnivelamento que faz tropeçar uma atividade verbal até então segura, que se pode dizer, na falta da língua, tanto o que falta como o que ilusoriamente o preenche: por exemplo, o rosto de uma mãe, sob a luz, ocupada em sua costura, enquanto se brincava de dominó perto dela (Pontalis, 1986, p. 90-91).

Nesse registro encontramos uma conexão com o pensamento do Deodato sobre a ilusão de nossas certezas, a presença e ausência do objeto materno na nossa busca de plenitude e de preenchimento do vazio.

Marion Minerbo: O artigo do Alan e Sandra, “Restituição da metáfora: A condição de linguagem na análise”, publicado na de 44/Linguagem I, se dedica exatamente a escutar, através do que é dito, aquilo que ainda não pode ser dito, sequer pensado. O caso discutido neste trabalho é muito interessante, porque o paciente fala uma série de coisas “barra pesada”, e no meio delas, adormece. Os autores mostram que o que se pode escutar ali, com alguma sensibilidade, é o terror em relação ao próprio mundo psíquico. Esta foi uma leitura completamente inesperada para os participantes do seminário clínico em que o caso foi discutido, pois se tratava de ouvir o paciente em outro nível, em outra camada. Esse trabalho tem tudo a ver com o disparador que a ide trouxe. Cão bravo, cão perigoso, cão de guarda são falas em que se deve ouvir outra coisa: “não entrem”. Provavelmente, outros artigos também problematizam essa questão, e os próprios autores &– aqui presentes &– poderiam identificar pontos de continuidade e de contato com os disparadores trazidos, que foram muito instigantes.

Paulo César Sandler: Eu diria que podemos falar, no sentido em que Barthes mostra, que a palavra diz alguma coisa. Porém, em termos de psicanálise, o modo de exploração da fala é aquilo que a não-linguagem fala. É linguagem e não-linguagem. É um paradoxo: os dois juntos.

Na música, o que seria a não-linguagem, que talvez fale mais? Na música temos as pausas. Às vezes, a pausa diz tanto ou mais do que a música, do que as notas concretamente faladas. O que a pessoa fala? A pessoa, às vezes, fala para disfarçar seus sentimentos. Voltaire colocava isso em suas crônicas. Podemos falar do concerto Opus 61, de Beethoven, o único concerto dele para violino, que começa com quatro pausas e quatro notas. É só isso; é muito simples. Pausa e nota. Essa situação, em geral, dá uma sensação de suspense, em quase todos que a ouvem. Quem lembra da música, pode recordar. Na escultura, também, temos a sombra que revela a luz. São as duas coisas. E a luz é melhor quando vem pela sombra. Há os dois sempre juntos. O que não está sendo falado... É aí que a psicanálise entra.

No terreno da não-linguagem, podemos pensar em quais são as invariâncias e as transformações. Barthes dá uma certa invariância: todos estão preocupados com a propriedade. Eu diria que o Barthes não era psicanalista. Um psicanalista se interessaria pela experiência individual ou subjetiva daquela pessoa que escreveu aquilo. Nosso colega Alfredo disse: “não sabemos o que paciente está dizendo”. O código de valores do paciente pode não ser igual ao do analista.

Se o sujeito coloca a tabuleta “meu cão é perigoso”, eu não sei o que vai pela cabeça dele. Como psicanalista, eu estaria interessado no que passa pela cabeça dele. Aquela tabuleta pode ter duplos vínculos porque tem extensões nas não-palavras, na não-linguagem. Do meu ponto de vista, esse é o assunto do psicanalista.

Marilsa Taffarel: Irei na seqüência do que o Paulo disse. Não concordando... mas, irei na seqüência.

Acho que a palavra fala, que a palavra diz. Nós lidamos, na psicanálise, com a palavra falada e não com a palavra escrita. E a palavra falada diz &– no sentido que Isaias ensina e que se refere a uma certa teoria da linguagem &–, pelas ressonâncias musicais da própria palavra, ou seja, no sentido de que se imaginamos alguém falando “esse cachorro bravo”, com determinada entonação, isso poderá dizer uma coisa. O mesmo dito com outra entonação dirá outra coisa. Nós, psicanalistas, tratamos da escuta dos chamados concomitantes da fala.

O exemplo do disparador do Barthes é interessante porque ele abre, não sei se tanto para a polissemia, mas para diferentes campos semânticos: o campo do “bravo”, do “perigoso” e do “guarda”. Toda palavra é polissêmica e “bravo”, dependendo do modo como é dito pode ser “bravinho”, ou outra coisa. Acho que o Barthes está mostrando justamente a linguagem em oposição à língua.

O segundo disparador, o trecho do livro Intimidade, remete-nos ao quand dire c’est fait, do Davidson, ou seja, a palavra faz! Para ele, a palavra “estás casado” te torna casado, “estás batizado” te torna batizado, “estão separados”, declara o juiz, então, estamos separados. Nesses exemplos, a fala é claramente um fazer. Isso abre para nós, psicanalistas, a questão: quando, na sessão analítica, o dizer ou a falaé um fazer?

Sérgio Telles: Vou partir do disparador do Barthes porque achei muito curiosa que tenha sido trazida a história dos cães, dos avisos em relação à propriedade, dos cuidados e defesa da propriedade, numa reunião como esta, dentro de uma instituição que se abre para convidados, situação em que as territorialidades ficam em questão, em que se pode temer que espaços sejam invadidos, que territórios precisem ser defendidos. E, independentemente da situação institucional, temos a situação da revista em si, em que cada autor tem seu território teórico, o qual talvez esteja disposto a defender com unhas e dentes. Então, achei muito positivo, muito saudável, que a gente se disponha aqui a trancar nossos cachorros e a entrar no diálogo, a conversar sobre a linguagem.

A linguagem, a meu ver, hoje em dia, na psicanálise, não pode prescindir da dimensão trazida por Lacan, que sobre ela estruturou a sua teoria do simbólico. Em meu artigo, cito Pontalis. Lembremos que Roudinesco considera Pontalis e Laplanche dois florões da psicanálise francesa, do lacanismo, representantes do que é chamado pelos americanos de “the french Freud”, o Freud francês. Penso que Pontalis sintetiza a forma como Lacan concebia a linguagem ao dizer: “A linguagem é essencialmente melancólica”. É melancólica por fazer permanentemente menção ao objeto perdido. Penso que a maneira como a psicanálise entende a linguagem está sempre ligada a esta questão da perda do objeto. Está sempre em jogo a questão da coisa e da palavra, do objeto perdido e da representação esse objeto perdido, que será sempre recuperado através da linguagem.

Há um artigo do Octave Mannoni chamado “Mallarmé para psicanalistas” que é muito bonito. Mallarmé é um poeta, que faz um uso da linguagem extremamente curioso em que por trás de uma situação formal absolutamente perfeita, o sentido nos escapa. Há poesias do Mallarmé que considero intraduzíveis &– todos os grandes poetas para mim são praticamente intraduzíveis &– exatamente porque, como diz Mannoni, evocam esse aspecto primário da linguagem que é a relação fusional com a mãe. Ele diz que os grandes poetas recuperam esse elemento da linguagem, que é o momento de ligação com o objeto primário, a simbolização desse objeto primário e a perda desse objeto primário.

Em meu artigo faço um recorte do filme “O livro de cabeceira”, de Peter Greenaway, cineasta que considero um dos maiores criadores atuais de cinema &– tendo apenas um companheiro à sua altura, David Lynch, do recente “Inland Empire”, filme muito interessante, na medida em que se expressa numa estrutura narrativa característica do processo primário. Em meu recorte de “O livro de cabeceira” pretendo mostrar a maneira como Greenaway coloca a questão do objeto e da representação do objeto por meio do escrever em corpos. No início vemos como o corpo &– que é o objeto de desejo &– está fundido com sua representação, a escrita que nele faz Nagiko. Progressivamente, vamos ver que a representação desse objeto (do desejo) se dissocia do objeto, adquirindo completa autonomia. Inicialmente, Nagiko escreve no corpo de homens, o editor recebe o corpo, e está interessado primordialmente no corpo. Aos poucos seu interesse se dissocia do corpo, do objeto de seu desejo, centrando-se no texto, ou seja, na representação do objeto de desejo. Ocorrem desdobramentos e o corpo é assassinado, destruído, etc. Esta questão do objeto, de sua perda e representação foi teorizada por Hanna Segal nos conceitos de “equação simbólica” e “simbolização”. Na “equação simbólica”, o símbolo está confundido com o objeto e serve para negar sua perda, e na “simbolização” há justamente uma cisão entre o objeto e o símbolo, que existirá não para negar a perda do objeto, mas sim para tentar superá-la. Assim, o filme “O livro de cabeceira” não só traz questões ligadas à sexualidade, às peculiaridades da feminilidade do personagem em função do pai bissexual, como também uma elaboração sobre a questão da linguagem e da representação do objeto primário, das formas pelas quais isso se processa.

Waldo Hoffman: Precisamos amarrar nossos cachorros para conceituar a expressão “linguagem”. A comunicação da linguagem é a parte mais pobre da linguagem. Acho que a linguagem aparece mais quando fazemos poesia ou piada, momentos em que ela escorrega. Já se referiu aqui à linguagem como tentativa de alcançar o objeto perdido, do não-dito etc. Nós, humanos, somos seres que dão sentido às coisas do mundo. Facilita-me pensar na linguagem como toda produção de sentido, tanto faz se é por meio de sons, de expressões, de figuras da linguagem visual, filmográfica ou musical. Quaisquer duas marcas desarticuladas às quais damos um sentido é linguagem. Damos sentidos para a cara do cachorro. É importante ter a idéia da linguagem como sendo mais ampla do que só a linguagem verbal. É toda a expressividade ou todo o sentido que damos para qualquer marca diferencial.

Camila Salles Gonçalves: Os textos de Marion e de Sérgio Telles falam de dois filmes terríveis, “Laranja mecânica” e “O livro de cabeceira”, respectivamente. Eu os associo com a questão da inscrição da linguagem, e numa aparente oposição &– é bom frisar essa aparência &– entre os enfoques tratados por um e por outro. Talvez, exagerando, digo que Marion fala de algo como uma falência do simbólico. E a análise que Sérgio faz parece mostrar o êxito do simbólico.

A inscrição também entremeia a discussão sobre linguagem. Temos a inscrição, por exemplo, mencionada no artigo do João Frayze sobre os artistas plásticos e que se relaciona com algo que a Marion colocou em seu texto: que não é possível, para certos artistas contemporâneos, a tinta simbolizar fezes ou sangue, é preciso usar concretamente fezes ou sangue. Estamos aqui na linha da falência do simbólico e da inscrição ao pé da letra, que aparece nas personagens do filme do Greenaway &– escrever na pele &–, que depois se aproxima do mais terrorífico. Temos também a inscrição presente na memória, que o Menezes levanta tão belamente no texto dele.

Bernardo Tanis: Falar de temas que envolvem linguagem, pensamento é um pouco assustador porque é adentrar em temas que têm um repertório de teorias tão forte, tão constituído... Mas, me identifico bastante com a fala do Sérgio e com outras colocações que foram feitas. Um vetor para pensar a questão da linguagem, em psicanálise, é como a gente significa certos momentos da nossa clínica. Parece-me um ponto central o que foi citado do Pontalis, a propósito da questão melancólica da linguagem, que retoma também o texto do Menezes sobre a memória, sobre as condições de emergência da linguagem, na análise. Em determinadas patologias isso se torna quase crucial, como em certas situações de angústia, de vazio, em que não há palavra &– o que foi colocado de modo bastante clínico pelo Deodato &–, que impõem a necessidade de construir símbolos, construir linguagem, construir pensamento.

Por outro lado, há uma outra dimensão, que talvez seja um outro modo em que a linguagem se faz presente na análise: a palavra que busca a não-palavra. Uma palavra evocativa, talvez no sentido usado pela Marilsa, que chama algo que não sabemos o que é, e que vai se presentificando. Vejo duas grandes forças operando com intensidade na minha experiência clínica: a busca da linguagem e a linguagem que nos leva para outras dimensões; a possibilidade de simbolização através da linguagem e a possibilidade de desconstrução a partir da linguagem.

Alan Victor Meyer: Há muito me interesso pelo tema da linguagem. Fui muito influenciado por Pierre Fèdida, sobretudo no modo como ele apropria o pensamento do filósofo M. Heidegger, cuja reflexão sobre a linguagem considero fundamental. Lacan, no seu texto Função e campo da palavra, o famoso Discurso de Roma, também é influenciado por Heidegger. Apresentei, recentemente, em Paris, um trabalho sobre esse texto de Lacan que foi publicado na Revue Française de Psychanalyse, em que procuro mostrar a importância do filósofo para o psicanalista. O foco na fala e na linguagem implica numa releitura do texto freudiano. Para aqueles que se diziam lacanianos, ele retrucava: “vocês são lacanianos, eu sou freudiano”. Lacan sempre se dizia freudiano. Essa releitura, essa volta ao texto alemão é importante, pois começa a retirar a pátina que encobriu o texto freudiano, devido a enorme influência da tradução inglesa. Felizmente estão surgindo novas traduções inglesas, uma delas pela Penguin Books, dirigida por Adam Phillips, traduções de cunho mais literário e que permitem captar o sentido do húmus da linguagem na obra do Freud. E é justamente esse húmus que o pensamento de Heidegger ajuda iluminar.

Nosso colega Daniel Delouya mergulha nas origens da questão da linguagem em Freud, ao retomar o texto de 1890, sobre o tratamento psíquico, passando pelas afasias, pelo “Projeto para uma psicologia científica”, continuando pelos “Estudos sobre a histeria”, para estabelecer o sentido da reflexão de Freud sobre a linguagem e da sua importância na própria constituição do humano.

Heidegger e Wittgenstein &– talvez os dois filósofos mais importantes do século passado &– têm sua importância na crítica radical que ambos fazem à metafísica ocidental, crítica essa importante para esse retorno a Freud e que vai permitir deslumbrar sua radical ruptura com toda uma tradição.

Camila ao tratar de Sartre, em seu artigo na ide 44, também salienta sua importância para Lacan. Apesar de indicar que a linguagem não é tematizada de maneira explícita por Sartre, creio que pelo simples fato de ser um grande escritor, especialmente na sua capacidade descritiva, essa influência, mesmo não reconhecida, se faz sentir. A discussão que a Camila faz a propósito de uma consciência anteriorà própria ordem dos signos, coloca uma questão muito atual, relativa à possibilidade de se abordar uma dimensão pré-predicativa.

Essas questões têm sua relevância para a psicanálise, pois implicam a pergunta: o que é o sujeito, o que é o humano? O artigo do Nelson: “Who’s there?” (ide 44), pergunta sobre esse humano, o que é a constituição do sujeito? A importância de Heidegger é ter pensado essas questões na analítica do Dasein, na primeira parte do Ser e Tempo. O retorno de Lacan a Freud é ler Freud de acordo com Freud, ou seja, tomando em consideração a dimensão do inconsciente, como um novo modo de pensar o humano. Lacan dizia se debruçar sobre o texto de Freud para entrar numa relação intestinal com a questão nele envolvida e com o modo como encontra as palavras para tanto. Em seguida, pergunta pela noção de verdade, qual é a verdade do que se diz? É preciso mudar o próprio conceito de verdade. E essa crítica da verdade ocidental, que é operativa, Lacan vai reencontrar nos pré-socráticos. Essa báscula da noção de verdade, do mundo pré-socrático para o mundo pós-socrático, é a passagem da noção de alethéia para a noção de ortotés. Ortotés surge em Platão, que é a “visada exata”, que vai dar na adequação da coisa à concepção ou idéia que dela se tem. A noção de mente me parece muito redutora, e é um termo da psicanálise inglesa e não de Freud. É preciso restituir uma certa radicalidade na abordagem da linguagem e da verdade, sem o que a dimensão poética da linguagem no seu sentido de revelação, termo freqüente em Lacan e que corresponde ao de desvelamento em Heidegger, ficará reduzida a uma unção comunicativa ou operativa. Wittgenstein diz “num pingo de gramática entra a metafísica inteira”. Essa é a questão. Num pinguinho, numa coisinha, entra toda uma metafísica. O hábitoé tão enraizado, que é muito difícil mudar alguma coisa.

O artigo do Sérgio (ide 44) trata questão da inscrição por meio do filme “O livro de cabeceira”, do cineasta Peter Greenaway. Lembro da questão da escritura que o Fédida desenvolve de uma maneira belíssima, ao dizer que a escritura não é só a escritura da palavra, é a escritura no próprio corpo. Recentemente li um trecho, numa apresentação que fiz aqui na Sociedade, do livro L’ombre et le nom, de uma lacaniana chamada Michèle Montrelay. Nele, ela fala da sombra, mas da sombra do feminino, da sombra que sempre acompanha o nascimento da criança. Diz que quando uma mulher dá à luz a uma menina, ao viver todas as angústias com seu bebê ela revive a angústia de seu próprio nascimento junto à sua mãe, só que agora na posse da palavra. Ela vai captando uma dimensão de sensibilidade, ao nível do feminino, que solicita, em nós homens, o nosso feminino, para poder apreender essa dimensão extremamente complexa e, ao mesmo tempo, a passagem do que ela diz “da noite orgânica do corpo para o corpo humano”. A constituição do corpo humano já é uma questão de linguagem. A linguagem da medicina estabelece o corpo anatômico, corpo que surge da dissecação dos cadáveres, lá pelo séc. XVI &– o primeiro livro de anatomia foi da Universidade de Bolonha em 1520 &– já é determinado por uma linguagem que permite a sua apreensão &– uma linguagem científica. E a linguagem da psicanálise é outra linguagem; mais próxima do poético, dessa inscrição e dessa captação. Este filme do Greenaway é realmente notável para essa reflexão. Bem, só procurei juntar algumas considerações esparsas a partir de alguns textos de colegas que merecem muita reflexão.

ide: Vou aproveitar a colocação do Alan a respeito das recentes traduções inglesas das obras de Freud para contar que a ide está publicando a tradução, feita pelo André Carone, de um texto do Adam Phillips, publicado originalmente pela London Review of Books. Nele, o Adam Philips discorre sobre sua concepção ao organizar, como editor-chefe, a nova tradução das obras de Freud, pela Penguin, para a qual ele convidou vários tradutores, na sua maioria historiadores. A organização desta tradução pelo Adam Phillips apresenta inovações significativas de concepção, principalmente, do ponto de vista da linguagem. É uma tradução mais literária das obras de Freud e se contrapõe à tradução inglesa do Strachey e a do Laplanche, ambos muito preocupados em organizar os conceitos. A proposta do Phillips é rastrear a dinâmica da linguagem do próprio Freud.

O Alan disse que “quem fala em mente, mente”, e eu quero trazer a questão da ironia abordada no texto da Ines Loureiro. Ela começa falando sobre a ironia, tomada pelo senso comum, que é uma figura de linguagem, o “dizer o contrário do que se pensa”, que é a questão da dissimulação. Daí caminha pela ironia literária, pela ironia como atitude estética ante a existência, e pelo ironismo em Rorty, chegando a colocar que a linguagem freudiana é uma linguagem ironista. Acho importante convocar uma discussão sobre esta última noção de ironia porque, geralmente, nós, psicanalistas, nos atemos mais a discuti-la como aparece em O chiste e sua relação com o inconsciente.

Alan V. M.: A mentira, em Lacan, é básica para a constituição do humano e tem um forte peso ontológico.

Marilsa T.: E, também, na Teoria dos Campos, do Fábio Herrmann. Mas, não vamos diabolizar a interpretação sentencial, não vamos diabolizar a palavra “mente”.

Luis Carlos Menezes: Em inglês, “mente” tem um sentido, também, de idéia, como substantivo. Por exemplo, no metrô, em Londres, podemos ler numa placa: “tenha em mente não cair”.

Alan V. M.: É uma frase genial, é o mind the gap, é a falta,é o hiato, o buraco entre o vagão e a plataforma, para você não colocar o pé no meio. É um alerta: “tome cuidado”!

Luis C. M.: Ouve-se falar das obras completas do Laplanche e se esquece de um livro, que aconselho a quem quiser ler Freud, em francês, dirigido pelo Pontalis, editado pela Gallimard e que tem uma orientação também distinta da inglesa e da do Laplanche, e muito mais próxima à do Adam Phillips, com realce para a linguagem.

Nelson da Silva Junior: Gostaria de trazer também o meu beagle para a discussão. A gente se esquece de que além de bravo, o cachorro pode também ser o melhor amigo do homem! Há uma longa tradição de amizade entre estas duas espécies bastante heterogêneas. Isso é uma prova de que é possível fazer algumas transposições dos abismos entre as diferentes espécies.

Vou seguir na linha do que vem sendo dito por vários participantes sobre a função &– colocada em primeiro plano por Lacan &–, da anterioridade da linguagem. Recebi vários comentários sobre o meu texto, como por exemplo, “seu texto é muito difícil”, “muito complicado”. Então vou explicar como funciona o meu beagle.

O título do meu texto “Who’s there?” tem uma primeira importância no que diz respeito ao momento. O momento em que essa frase se localiza na obra de Shakespeare, em Hamlet, é o momento de sua abertura. A abertura era o momento em que, de fato, o teatro elizabetano inaugurava, instaurava e colocava o espaço cênico enquanto tal. Essa questão, “Who’s there?”, pareceu-me interessante justamente no sentido de que o momento de abertura em que ela é colocada a torna uma questão dirigida teoricamente a um espaço imaginário já constituído. Contudo, ao mesmo tempo, essa pergunta instaura a constituição desse espaço imaginário enquanto tal. Temos aí uma frase evocativa, que não só coloca, enquanto uma realidade imaginária já dada, um certo fantasma &– o pai de Hamlet &– mas, apresenta simultaneamente, essa entidade enquanto algo pensável a partir do questionamento da identidade de cada espectador. A duplicidade desta pergunta é uma função da linguagem que diz respeito também à escuta do analista, ao modo como o analista escuta uma pergunta. Em princípio, ele escuta, também, a partir desse questionamento radical da própria existência. Questionamento radical sobre quem, cada um de nós, somos e se somos &– quem cada um é e se de fato somos. Ou seja, essa pergunta é uma cutucada na questão sobre se nós existimos, que é o desencadeador, digamos, de cada sessão, de cada momento analítico. Essa é a abertura do texto.

A segunda parte do texto é bastante teórica, com uma vocação de historicização dos modelos hermenêuticos, dos modelos de constituição do intérprete na cultura ocidental e também uma crítica do modo pelo qual nós, psicanalistas, nos apropriamos, às vezes, sem saber, de princípios de interpretação, princípios de constituição do intérprete que estão aí, nadando na cultura, mas que fazem parte de momentos bastante metafísicos &– como disse o Alan &–, momentos, radicalmente incompatíveis com a própria escuta analítica.

Acho que Heidegger prestou um grande serviço, ao começar uma teorização, uma conceitualização da negatividade bastante diferente da hegeliana, ao colocar a negatividade dentro de uma lógica de imprevisibilidade necessária. Nesse sentido, a pergunta “Who’s there?”, quem somos nós, pode se tornar uma pergunta constitutiva da escuta. Acho que esse é o salto. Não é uma pergunta que encontramos ou não, ela nos constitui. Uma pergunta que nos constitui enquanto seres auditores, por assim dizer. É um texto complexo, mas esse é o meu cachorrinho.

Alan V. M.: Estar com Shakespeare não é nenhum cachorrinho...

Liana Pinto Chaves: E Beagle é o nome do navio do Darwin (risos)!

Nelson da S. Jr.: A teoria do Fernando Pessoa sobre ironiaé muito interessante. Ele divide a ironia em duas etapas hierárquicas. A primeira ironia seria a ironia de Sócrates que diz: “só sei que nada sei”. A segunda ironia é a de um ser que ele chama de Sanchez &– nome que remete a Sancho Pança certamente &–, e que diz: “nem sei se nada sei”. De fato, tal ironiaé algo que só é dado a alguns, e Fernando Pessoa é bastante elitista. Para ele, “a ironia é a análise paciente e conscienciosa dos nossos modos de nos desconhecermos”. Há aí uma definição de ironia bastante interessante para a teoria psicanalítica. O que seria a metapsicologia senão uma teoria sobre “os nossos modos de nos desconhecermos”? Acho que não há definição, mais precisa, sobre o processo de teorização psicanalítica do desconhecido.

Camila S. G.: A teoria do disfarce também pode ser considerada.

Ines Loureiro: Meu cachorrinho é mais manso ainda, é muito dócil e conversa com tranqüilidade.

Vou começar pelo final da fala do Nelson. Essa idéia do Fernando Pessoa talvez seja bem compatível com a noção de ironia do Rorty, que trago ao final de meu artigo. Porque Rorty talvez seja, na linha da crítica da metafísica, entre os nomes contemporâneos (ele faleceu no ano passado), aquele que mais tomou a ferro e fogo essa luta contra a metafísica. Ele é um filósofo pragmatista e simplesmente abre mão da idéia de que é possível conhecer o que quer que seja &– nós, inclusive. De modo que o ironista é, para ele, exatamente, aquele que abre mão das pretensões de que a linguagem possa dizer a coisa, de que exista a verdade ou qualquer tipo de substrato real, independente dos vocabulários usados pelas pessoas &– filósofos, poetas, literatos&– para descrever o que existe. Nessa medida, o que sabemos sobre nós é simplesmente aquilo que podemos dizer sobre nós nesse momento, a descrição que nos é possível dar nesse momento com o vocabulário disponível. Essa descrição não é mais ou menos verdadeira em relação ao eu oculto, ou a algum tipo de substrato real existente.

Rorty fala, na condição de teórico, evidentemente, sobre o processo de análise e aí tem tudo a ver com noção de que “a fala faz”, citada aqui a partir do trecho-disparador do livro Intimidade. A análise, para ele, seria a possibilidade do sujeito de aceder a um outro tipo de redescrição de si mesmo. Redescrever é acessar um novo modo de ser, uma possibilidade de criar um outro eu igualmente contingente. É claro que o eu tem suas determinações causais, por exemplo, na infância, mas ele diz que a redescrição é a possibilidade que temos de transformar e criar, a partir de certas condições (que ele não nega que existam). Para ele, a linguagem é capaz de criar e a análise é essa situação de redescrição do sujeito. A produção de um sujeito ironista seria quase como um final, uma meta da análise. O sujeito ironista seria aquele que consegue abrir mão das pretensões de verdade, de necessidade de uma verdade; pode entender a verdade e a realidade como fruto da contingência ou da fortuidade dos acasos da vida. Uma visão bastante polêmica, mas acho muito interessante essa desancoragem radical que o Rorty realiza em relação a qualquer pretensão, anseio ou nostalgia de uma ontologia mais sólida

Luis C. Menezes: A Inês falou em cachorrinho dócil, e eu achei demais porque ele me parece desdentado (risos). A palavra sem a pulsão, sem o corpo, no campo da psicanálise, fica esquálida. Pensando na clínica e na experiência humana, inclusive na minha, para poder fazer isso que a Ines descreveu, referindo-se ao pensamento do Rorty, é preciso que certas amarras, certas certezas estejam muito bem constituídas. Porque nós sabemos de experiências que temos na adolescência &– penso na minha própria &– em que a pessoa vive, com certa freqüência, uma incerteza radical sobre se ela existe ou se não existe e isso é terrível. É uma experiência em que as coisas se desfazem. Quando eu lembro da minha adolescência, me lembro das coisas se desfazendo, de experiências de despersonalização, de desfazimento. Para poder viver essa situação descrita pelo Rorty, em que não me interessa ficar afirmando nada &– porque é o meu ego neurótico que precisa ficar afirmando “eu sou isso”, “eu sou aquilo”, pondo os cachorros aqui, os cachorros ali &–, em que pensamos: “ah! deixa prá lá”, “deixa barato”, “sou um pouco assim mesmo”, “sei lá como eu sou”, “também não estou interessado em saber como é que eu sou”, em que já estamos desistindo da metafísica, ficando no cotidiano, mais para Sancho Pança do que para Sócrates e não se levando tão a sério, é preciso que eu esteja justamente liberado do sintoma neurótico, como quem saiu de uma análise que deu certo e pode se dar a esse luxo. Mas, no miolo da análise tem que haver a estruturação de amarras muito sólidas para alguém poder ficar assim como esse autor deva ser, suponho eu. Então, a partir do objeto da experiência do Rorty, vejo que ele deve se lembrar muito pouco, ou não deve de ter tido experiências de despersonalização.

Ines L.: O Rorty é um autor interessantíssimo. Escreve muito bem, polemiza muito bem, não deixa um crítico sem resposta, enfim, é um artista do debate. Ele tem várias falas sobre o Freud e no livro Contingência, ironia e solidariedade, que acaba de ser traduzido, ele faz uma avaliação do Freud como teórico, como pensador que coloca em cena um vocabulário novo para falar da subjetividade. Ele faz uma leitura do Freud como um autor não-metafísico, ou seja, puxa o Freud prá sardinha dele.

Quando Rorty fala de clínica, de fato, é complicado. No meu artigo eu assinalo que ele só pode dizer certas coisasà custa de um expurgo absoluto da dimensão do pulsional; mais do que isso, do expurgo de toda essa dimensão &– usando um termo mais romântico &–, mais demoníaca, mais sombria, mais agressiva, em suma, mais trágica, que qualquer um que tenha passado perto de um divã sabe que existe. Ele próprio se dá conta disso; a descrição que ele faz da situação analítica é tão racional, que numa nota de rodapé ele diz: “Poderia parecer que para mim, o analista é como se fosse um moderador de simpósio, numa discussão entre vários ‘eus’” (risos). Para ele, a análise seria uma “conversarada” entre vários eus (que são sistemas independentes de crenças e desejos), o lugar de embate desses vários eus; o analista estaria lá, tentando conciliar, ou fazer, pelo menos, com que esses vários eus se reconheçam existentes. De fato, é uma versão da análise completamente, digamos assim, peculiar, para dizer o mínimo. Mas nem por isso podemos descartar ou olhar com desdém para as contribuições que Rorty deu para situar Freud e a importância dele na história do pensamento.

Ignácio Gerber: Fui assistir “Ressurreição”, sinfonia de Mahler, pela Osesp. O que quer dizer o nome “Ressurreição”? Ele precede e orienta a nossa escuta ou ele resulta de alguma coisa que está lá? Havia uma soprano, menos carismática, digamos, e uma contralto, com uma voz impressionante &– era uma sinfonia com palavras. Mesmo para um alemão, que entende a língua, depois de duas ou três palavras, as palavras somem. Existe algo que está além, de repente, é pura música, quando ela fala. Então perguntaríamos: é proibido ouvir a palavra? Ou, se alguém quiser se fixar, exclusivamente, na palavra e fruir o seu prazer daí, não pode? Ou então, alguém não pode, no meio de um movimento fragmentar totalmente a escuta? Ao ouvir, me surpreendi, de repente, pensando nos meus analisandos, com um sentimento muito amoroso, e de repente volto para a música. É anti-musical? Não. Há evidentemente alguma coisa que nos escapa, mas, por outro lado, havia 2000 pessoas lá, unidas em certo momento, por um sentimento, embora a captação de cada uma pudesse ser totalmente diferente. Devemos poder ter essa liberdade total de não determinar caminhos. Se dissermos “esse é o bom” ou “esse é o ruim”, não conseguimos mais ouvir, em psicanálise. É um paradoxo que devemos viver. Temos caminhos, mas como vamos abandonando esses caminhos tem sido o meu grande esforço. Como vamos remetendo todas essas teorias para o inconsciente e como acredito no inconsciente, digo: “o inconsciente ordena isso de uma maneira e, conforme o que ele me mandar durante a sessão, eu simplesmente serei porta-voz”. Tentando não pensar e, ao mesmo tempo, pensando.

Assisti recentemente a dois filmes americanos, “Onde os fracos não têm vez” (2007), dos irmãos Cohen, e “Sangue Negro” (2007), de Paul Thomas Anderson, que, de cara, podemos pensar: “são filmes para Oscar”. Eles são de uma pós-modernidade impressionante no uso da linguagem tradicional da música de Brahms, de Arvo Pärts, que simplesmente há uma quebra de qualquer tentativa de raciocínio que façamos. Acabou o negócio da visão de Lacan, da visão de Klein, isso já tem 50 anos. Será que as pessoas não estão percebendo a absoluta pós-modernidade de toda uma série de autores americanos, em que, entre outras coisas, a linguagem é tão clara, direta? A mim impressiona muito e queria chamar a atenção para isso. Não sei se outros estão acompanhando esse movimento. Não estou dizendo que é melhor ou pior, mas que ela deve ser considerada e que precisamos nos dar conta do que é pós-modernidade, do que é passagem do tempo e do quanto estamos ligados a uma lógica que a própria física ou a matemática estão distorcendo e fazendo crescer.

Sérgio T.: Quero fazer um acréscimo ao que o Ignácio colocou sobre a questão das escolas francesa, inglesa. Há elementos que marcam certas diferenças e não devemos negá-las. Existem, sim, diferenças. O que ocorre é que sempre que se notam as diferenças, nossa reação é soltar nossos cachorros. E é justamente aí que precisamos tentar segurar os cachorros para trabalhar essas diferenças. A escola francesa, a partir de Lacan, em relação à linguagem, trouxe uma contribuição fundamental. Falamos sim, mas Lacan diz: “nós somos falados pelo discurso do outro”. A linguagem implica o discurso do outro. Esse desejo do outro “nos fala”, nós somos falados por ele. Isso é uma reviravolta técnica, teórica, freudiana, de certa maneira, mas que é muito importante e não pode ser negada. Falamos sim, mas falamos porque somos falados, fomos falados. Ao nascermos somos mergulhados no universo lingüístico, dentro do grande Outro, da linguagem que articula o desejo dos pais, o desejo da mãe. E isso é fundamental. Isso nos constitui. Essa é a linguagem que, a meu ver, nos interessa na psicanálise. É a linguagem do objeto perdido, é a linguagem que interessa aos poetas e aos analistas. Não se trata da linguagem meramente comunicativa, operacional, mas a linguagem que transmite essa outra dimensão, que é a dimensão essencialmente humana. Porque os animais têm um código de comunicação, todos os animais se comunicam, mas a linguagem humana é diferente.

Marion M.: Muito tempo atrás, quando me inscrevi para falar, eu ia dizer alguma coisa que tinha a ver com a intervenção da Camila, do Sérgio e do Bernardo. Mas tive que esperar, pois a coordenadora do debate disse que eu “já falei”, e que estavam dando preferência aos que “ainda não tinham falado”. Ora, o que é “falar” para o psicanalista? É verdade que eu tomei a palavra no início do debate. Mas não sinto que falei. Era uma fala-ato, tinha a função de dar mais um pontapé na bola, pois o debate estava iniciando e estava aquele ‘clima’. Então, falei alguma coisa sem importância nenhuma, era só um fazer...

Alan V. M.: Como sem importância nenhuma...? Você mencionou o meu artigo, pôxa! (risos).

Marion M.: O que estou tentando dizer é que aquela primeira fala tinha função de ato; quando me inscrevi para uma segunda fala, teria sido uma fala significativa, pois eu realmente tinha algo a dizer. Eu teria estado inteira naquelas palavras. Passado todo esse tempo, se eu tomar a palavra para emitir aquela segunda fala, novamente eu não estarei falando, pois agora aquelas palavras estão vazias, ficaram esvaziadas de sua pulsionalidade. Eu já não estou lá. Então a única fala possível agora é esta, a terceira &– embora, paradoxalmente, não tenha havido a segunda &– na qual estou plenamente implicada. Esta terceira fala, que é uma metafala, problematiza a questão da linguagem, tema do debate: afinal, o que é falar, para o psicanalista? Esta minha fala faz referência a uma fala-ato, a uma fala pulsionalizada/significativa, a uma fala vazia, a uma meta-fala, além de ser, em si mesma, uma fala significativa para mim. São alguns dos níveis da linguagem que o analista vai discriminar quando escuta seu paciente.

Leda Spessoto: A Marion, espontaneamente, colocou uma situação com a qual me identifico. Também me inscrevi há muito tempo e as coisas foram se transformando porque a música foi andando e estamos agora em outro compasso, não faz mais sentido inserir as notas que eu teria colocado naquele primeiro momento. Faço esta analogia com a música para já entrar no meu texto “O que observa um observador psicanalítico?”, publicado na ide 45, em que conto uma experiência que atravessa a música, que vai aquém e além da linguagem enquanto palavras. Ali falo em observador psicanalítico de bebês, mas pode ser de não-bebês. É o olhar do psicanalista que interessa. Identifico-me também com a sensibilidade do trabalho sobre “Linguagem musical e psicanálise”, ide 44, que trata de uma conversa entre o Ignácio e o Naffah, em que eles enfatizam os aspectos da observação da musicalidade do ser humano. Acho que estamos dentro da arte contemporânea, como o Ignácio lembrou, e isso evoca muitas coisas. O contemporâneo sustenta, simultaneamente, muitas possibilidades e tem também algo que não é harmônico. A discussão hoje de ateve mais ao disparador dos cachorros do que ao disparador Intimidade, porque a nossa dificuldadeé como conviver com as diferenças, como sustentar a tensão frente aos diferentes olhares que a contemporaneidade nos oferece. A gente fica morrendo de vontade de se apoderar de um olhar e dizer que aquele olhar é o melhor, é o único, porque tenta quebrar a tensão. Quem trabalha com música e conhece estrutura musical sabe como se constrói harmonicamente ou se destrói, ou se acalma alguém. Você faz uma finalização “tam-tam-tam-tam” e pronto, vivemos felizes para sempre. Ou, então, você deixa em aberto e sustenta o clima de tensão. É angustiante, mas, às vezes, é necessário assim como são necessários os silêncios.

Certa ocasião, minha filha trouxe uma placa para pendurar em casa que dizia: Attenti al cane e al padrone (risos).

Marilsa T.: Fiquei segurando o meu afetivo-emocional para poder falar, para não perder o momento. O que a Marion falou é uma colocação em inteira seqüência em relação ao que o Menezes e a Ines disseram.

O resto da linguagem do melancólico é um resto que nunca passa, é um luto que contamina a linguagem. Mas, quero fazer um contraponto a isso, também a partir de Lacan, do Isaias Melsohn, de Freud. Lacan, em Função e campo da palavra, escreve sobre a busca da palavra plena. Então, faço uma colocação e uma pergunta ao mesmo tempo, porque eu penso, a partir de uma certa teoria da linguagem, que a palavra pode ter plenitude. A metáfora radical de que Cassirer fala é exatamente aquele primeiro momento da passagem que retém a corporeidade na palavra expressiva; é, então, uma palavra cheia e não melancólica. Ele se refere ao preenchimento da fala, como nos sentimos preenchidos com uma poesia, com uma interpretação. Encanta-nos encontrar a palavra para o momento.

O Rorty é um filósofo que estudei e li bastante. Embora não seja o tipo de filosofia que me encante, acho-o muito importante. Ele fala de Freud como um filósofo revolucionário e coloca-o ao lado do segundo Wittgenstein e de outros que estimamos. Ele diz que Freud criou um novo vocabulário. Se descrevermos um certo comportamento como“culposo” ou “edípico”, ou, tomando Marx, se re-descrevermos alguém como “um burguês”, possibilitamos uma nova relação com o mundo e a emergência de um novo “eu”. É só isso o que ele quer, nada mais. Ou seja, a palavra permite essa liberação que vem do efeito reflexivo da renovação do vocabulário e é a abertura para uma nova relação consigo e com o mundo.

Eu acho que, na psicanálise, quem tem uma interface com Rorty, sem nem sequer tê-lo conhecido, segundo sei, é o Fábio Herrmann, porque seu conceito de ruptura de campo vai justamente desarranjar todo o campo, porém sem oferecer uma palavra que permita ao paciente se segurar. Pelo contrário, espera-se surgir no paciente a palavra. Então, na minha tese de doutoramento, eu passo pelo Rorty, para, de um lado, aproximá-lo do pensamento de Fábio e, de outro, mostrar a diferença. Fábio conserva o pulsional na ruptura de campo e, além disso, para ele, não é o analista que oferece a “redescrição”.

ide: Vou pegar o mote em que minha fala tinha força, como dizia a Marion, em que minha fala tinha se enganchado em algo mais pulsional. Penso que o Greenaway se digladia com a insuficiência da palavra em seu filme “O livro de cabeceira”. Nele, a palavra é insuficiente para falar do que pulsa, das paixões que estão ali e é preciso do corpo. Acho que apontamos, o tempo todo aqui na discussão, para duas marcas. De um lado, para a insuficiência da palavra que leva à sua falência e constrói toda a questão pós-moderna, e, por outro lado, para a potência da palavra, a palavra que faz a ação conforme foi trazido pelo nosso texto-disparador do livro Intimidade, e a palavra que cria, na linha do Rorty ao dizer que a palavra cria a realidade. Pensamos que este campo de oscilação seja próprio da questão da linguagem na obra do Freud. Uma báscula, entre um momento em que a representação dá conta do pulsional e um outro momento em que temos que prestar conta ante uma polaridade anti-representacional por excelência. É entre estes campos que fatalmente os artigos se distribuem e oscilam nos dois números da revista, e nós diríamos que os cães podem esbravejar, mas eles continuam em terrenos diferentes.

Marina Miranda: No meu artigo trabalho com meninas anoréxicas, que estão com as palavras muito perdidas, num funcionamento bastante arcaico. Então, a palavra é um objetivo de chegada, vamos dizer assim. A causa da escritura não é só a leitura, mas sim a criação desse desenho interiorizado, conforme Fédida. Uma palavra dita pelo analista, no momento em que a escuta apresenta uma brecha de entrada produz muito mais do que uma comunicação entre duas pessoas, pois suscitam imagens, sons, memórias. Uma palavra dita, num momento feliz, na comunicação com essas pacientes de difícil acesso, pode proporcionar um primeiro desenho interiorizado que poderá se constituir numa linguagem, numa possibilidade de metáfora. É um caminho poético. Ao atingir a metáfora há então a possibilidade de instauração de sonhos, que foram perdidos nessas mentes, que estavam encarceradas na linguagem corporal. Esse é o caminho, digamos, da instauração, da inscrição de uma possibilidade simbólica. Vai do primeiro desenho interiorizado até se chegar na possibilidade de criação.

ide: Apareceram enfoques de diferentes naturezas ao falamos de um assunto tão amplo como a linguagem.

Em relação à escuta, cabe indagar sobre os estados que estamos, ou, nos colocamos, quando escutamos? O Paul Valéry fala de seus estados poéticos, que se davam ao longo de suas caminhadas, durante as quais o mundo ia sendo mexido dentro dele, os passos evocando pensamentos, idéias, desenhos internos e ele se percebia num certo estado poético. Isso tem uma relação bastante evidente com certos momentos com nossos pacientes. Algo é evocado, que, inicialmente, se apresenta na forma de um turbilhão, em que o analista ainda não tem um desenho, não tem o que dizer, mas a partir da sustentação deste estado evocado poderá surgir a poesia. Valéry diz que ficava num estado de turbulência, de vivacidade em relação a uma série de imagens, idéias despertadas dentro dele que perduravam um certo tempo. E ele conclui: “ao final desse tempo, uma poesia nasce”. Ou, uma interpretação pode acontecer. Algo se modifica a partir do contato com alguém que inclui também a inacessibilidade do outro. Nós temos acesso àquilo que é evocado dentro de nós. O artista consegue sustentar esse estado e trabalhar com ele na radicalidade possível do momento. Essa é a tarefa do analista também que é alguém que se debruça e se envolve com o outro. Tem uma frase, talvez do Mário de Andrade, que diz: “somos primitivos de uma nova era”. Podemos falar, até o momento, porque daqui para frente chi lo sa?

Alan V. M.: Na questão da arte, acho muito interessante a apropriação que o Lacan faz, no Seminário 7, sobre a noção de das Ding &– a noção de “coisa”. Ele coloca este “além” para o qual a obra de arte sempre aponta, e, ao mesmo tempo, mantém distância. Faz, inclusive, uma discussão sobre a noção do “belo” ligando-a com algo que aponta para alguma coisa que nos escapa.

ide: Lembramos que a próxima ide será sobre Cultura. Foi uma manhã inesquecível pelas ricas contribuições. Agradecemos a todos os participantes.

 

 

* Edição: Jassanan Amoroso Dias Pastore e Silvia M. Deroualle. Debate realizado no dia 8 de março de 2008. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.