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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

PUBLICAÇÕES

 

Graus de perturbação psíquica ou de expansão de consciência: uma visão de conjunto dos elementos psicanalíticos

 

 

Ana Clara Duarte Gavião*

Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Trinca, Walter. O ser interior na Psicanálise: Fundamentos, modelos e processos. São Paulo: Vetor, 2007. 378 p.

Não é fato novo o amplo reconhecimento da originalidade das contribuições de Walter Trinca no campo da Psicologia Clínica, especialmente em Diagnóstico Psicológico, sob os referenciais da Psicanálise. Agora, passados mais de trinta anos de experiência na clínica psicanalítica, na pesquisa e docência na universidade e, também, na publicação de muitos livros e artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, o autor apresenta um modelo compreensivo e integrador da variada gama de fenômenos mentais, englobando desde as mais graves e limitantes perturbações psíquicas até os estados expandidos da mente.

Embora Trinca explicite que não apresenta conceitos novos ou originais, já que se fundamenta nas teorias de Freud, Klein, Winnicott e Bion, a originalidade se revela pela organização dos complexos processos da mente em um continuum evolutivo delineado, essencialmente, pelos vários graus de contato que as pessoas estabelecem com seu núcleo de verdade existencial, o qual, neste modelo, se distingue do self, conforme detalhado adiante.

Como já esclarecido pelas teorias psicanalíticas clássicas, os diferentes estados mentais abrangem desde a tendência predominante ao inanimado, ao concreto, ao artificial, ao sensorial até a presença menor ou maior da atividade viva do sonhar, da simbolização, da verdadeira criatividade, da imaterialidade que humaniza e expande a consciência.

O modelo de Trinca põe em evidência o que seria o fio condutor que percorre esses variados estados de mente &– o grau de contato com o próprio ser interior &– da sensorialidade excessiva em direção à mobilidade psíquica, à medida que esse contato aumenta. São destacados fatores obstrutivos que levam alguém a se perder de si e a perder o comando da própria vida. Quanto à visão topográfica desses processos mais radicais de desconexão, Trinca também adota um novo vértice ao empregar a noção de oclusividade para compreender as insuficiências da estruturação inconsciente, quando a pulsão de morte opera de forma mais avassaladora.

Mas por que o autor diferencia um núcleo da verdade existencial, designado como ser interior, do conceito de self? Não seria esse núcleo o que Winnicott já designara por verdadeiro self?

Trinca parte da revisão das várias concepções de self apresentadas por autores como Hartmann, Jacobson, Kohut, Winnicott, Lacan, Laplanche, Pontalis, Castoriades, Aulagnier, Green, Tenembaum, Bollas, entre outros, em que o self é compreendido como um campo de forças em estado de conflito, já que a visão que temos de nós mesmos inclui a diversidade, a descontinuidade, a inconstância, a contradição, o paradoxo. O self assim concebido se caracteriza por uma pluralidade de formas pessoais possíveis, que variam em função das relações com o mundo objetal, o que, portanto, não permite pensar na unidade da pessoa, mas sim em equilíbrios instáveis que se alcançam e se rompem continuamente. Trinca então pergunta: “Como discriminar o que é sensorial e condicionado, separando-o do que é verdadeiro e genuíno?” (p. 268).

Destacando as contribuições de Winnicott para a questão, Trinca menciona a proposição desse autor referente a um núcleo do self experienciado como unidade e como continuidade, que se distingue claramente dos componentes que são variáveis, multiformes e, também, dos processos que substituem o contato real e verdadeiro. Mas Trinca considera que tal distinção contém uma contradição implícita na concepção de self, uma vez que pressupõe que em sua composição haveria um núcleo de natureza diferente do restante de suas partes. Trinca prefere, então, manter a concepção de self como uma composição instável, polimorfa e multifacetada, cujo núcleo se distingue pela predominância de certos aspectos que também podem se alterar. Adota, assim, a idéia de que a oposição, o conflito e a luta das partes entre si são características inerentes ao self como um todo, não havendo nele uma realidade existencial que correspondesse ao verdadeiro ser da pessoa, mas sim referências centrais que se deslocam e se modificam dentro de disposições peculiares que alcançam um domínio central apenas relativo.

Essas reflexões o levam a distinguir as referências básicas e essenciais da pessoa das referências inconstantes e variáveis, respectivamente, ser interior e self. No decorrer dos capítulos essa distinção vai se esclarecendo, o que implica uma concepção psicanalítica de ser humano que não se prende a modelos concretistas da ciência clássica, tal como inaugurada por Freud.

Por exemplo, Winnicott é resgatado quando Trinca relaciona o ser interior à inserção no espaço potencial, concebido como “alguma coisa” ou sensação entre o bebê e o objeto, constituindo os fundamentos da formação simbólica que diferenciam o ser. Preexistente aos cuidados da mãe, seja ela suficientemente boa ou não, essa “alguma coisa” chamada neste modelo de ser interior se diferenciará com maior ou menor visibilidade, dependendo da qualidade desses primeiros contatos emocionais. Em uma passagem interessante sobre estados psicóticos graves ou oclusivos, Trinca se refere à teoria do pensar de Bion, levando em conta que, como proposto por esse autor, o pensar é atacado por ser um elemento vincular e por conter fatores de coerência e unidade. Trinca então argumenta que, para se poder pensar, é preciso haver contato com “aquele” que pensa, com o sujeito do pensar, ou seja, os pensamentos são coerentes e referidos a uma unidade quando há um pensador que se experimenta e se reconhece pensando, optando por nomeá-lo de ser interior.

Nesta perspectiva, o ser interior corresponde àquilo que a pessoa intrinsecamente é desde o começo até o fim de sua vida e que está na base das experiências de existência própria. Como núcleo essencial, não se confunde com o que é superficial ou circunstancial e, em sua condição existencial, é uma unidade. É o que assegura a noção fundamental de continuidade, constituindo um fluxo permanente de energia vital, como uma fonte primordial de vida particularizada em cada pessoa. Enquanto matriz existencial é relativamente estável, o que não significa que seja estático, pois se expande apenas em conformidade com o que essencialmente ele é.

No modelo proposto, portanto, enquanto o ser interior é um foco de existência não-sensorial, o self é um órgão mental de consecução dessa existência, um meio através do qual essa existência se efetiva. Sobre as relações entre o ser interior e o self, Trinca afirma:

(...) são estreitas as relações entre ambos. Maior ou menor presença do ser interior no self determina diferentes modalidades de self, desde as formas diferenciadas e bem-estabelecidas até as formas embrionárias e fragmentárias. Como órgão de contato, o self tem a capacidade de se conectar em maior ou menor grau com o ser interior. Estruturalmente, não é o ser interior que forma o self, pois, como componentes psíquicos, são distintos entre si. Dinamicamente, porém, dependendo de maior ou menor influência do ser interior sobre o self, este se estrutura em maior ou menor conformidade com a verdade existencial da pessoa, com aquilo que ela essencialmente é (p. 33).

Quanto mais próximo for o contato do self com o ser interior, maior será o fluxo de significações à vida mental, em consonância com a verdade existencial da pessoa; quanto mais distante for esse contato, mais a pessoa fica à mercê de forças conflitivas, caóticas e obscuras. Ainda nas palavras do autor: “Ao tentar se estabelecer por conta própria, distanciando-se do ser interior, os aspectos do self que predominam são parciais, fragmentários e conflitivos, geralmente relacionando-se à sensorialidade e à fragilidade” (p. 38).

Como adverte o autor, a denominação ser interior não deve ser confundida com conotações metafísicas ou místicas, mostrando-se, no modelo apresentado, bastante operativa na apreensão dos fatores em jogo nas perturbações psíquicas, bem como nos estados mentais mais expandidos. Vale a pena acompanhar como Trinca apresenta esses fatores e sintetiza suas correlações no desenvolvimento do texto. De fato, vários conceitos psicanalíticos clássicos estão implícita ou explicitamente presentes no pensamento clínico do autor, porém o que é selecionado e como é apresentado deixa transparecer o frescor de uma elaboração particularmente criteriosa e elucidativa, além de incluir, sim, algumas inovações metapsicológicas.

Muitos quadros clínicos se tornam dinamicamente compreensíveis na escala proposta, como: catatonia, enrijecimentos e apagamentos, autismo, esquizofrenia, bipolaridade, fobias e/ou pânico, explosividade psicótica, depressão psicótica, destrutividade anti-social, formas de homoerotismo, formas de drogadição, falso self, psicose branca, estados paranóides, esquizoidia, transtornos obsessivo-compulsivos, alheamentos e desligamentos, inveja, transtornos dissociativos, depressão forma B, desenfoques e dispersões, narcisismo, voracidade, inconsistências generalizadas, insônia simples, depressão forma A, possessividade, ciúme, características pós-modernas. Não se trata, obviamente, de um raciocínio classificatório, mas integrador de elementos que podem se apresentar dispersos ou estereotipadosà percepção do psicanalista.

Uma maneira de entender este trabalho de Walter Trinca seria considerá-lo fruto de uma atitude mental profundamente sensível e aberta, que permitiu uma apreensão de conjunto dos fenômenos estudados pela Psicanálise, tais como se apresentam no cotidiano de uma prática clínica viva, sutil, intensa, diversificada e inseparável de um autêntico compromisso científico. A inteligibilidade e a coerência dadas à complexidade das manifestações clínicas descritas põem em relevo o que, provavelmente, seja a motivação principal que leva alguém a se interessar pela Psicanálise ou, simplesmente, pela vida: a busca de sentidos genuínos para a própria experiência de existir.

 

 

Endereço para correspondência
Ana Clara Duarte Gavião
Rua Capote Valente, 439/122 &– Jardim América
05409-001 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3085-3906
E-mail: anaclaragaviao@hotmail.com

Recebido: 08/09/2007
Aceito: 10/09/2007

 

 

* Mestre e doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Candidata do Instituto de Psicanálise da SBPSP.