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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EDITORIAL

 

Jassanan Amoroso Dias Pastore*

Endereço para correspondência

 

 

Foi ao abordarmos o entrecruzamento da Psicanálise com a Cultura, no número anterior da revista, que a problemática das fronteiras emergiu. Fronteira tomada como lugar onde se destaca o Outro &– diferente/estrangeiro/temido/sonhado &– no nosso imaginário.

As questões que se relacionam com a posição do estrangeiro estão entre os problemas mais candentes que a humanidade tem enfrentado. Temos vivido períodos de guerra e de terrorismo entre nações, comunidades, etnias, raças, religiões, períodos que impõem pensar sobre o lugar ocupado pelo estrangeiro no contemporâneo.

Se, de um lado, a figura do estrangeiro se situa na fronteira do subjetivo e do singular com o social e com a pólis, para a psicanálise o conceito de estrangeiro traz outra marca, que coincide com aquele estranho-familiar que não quero ser eu, mas que, não obstante, habita em mim. Nesse sentido, o homem é sempre, por definição, um estrangeiro; ele é impelido por algo que lhe é estrangeiro e não é integrado em si mesmo. Interrogar o estrangeiro é interrogar as relações do eu com o outro, mas, sobretudo, com o outro de nós mesmos.

Em seu texto Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud alerta para a dimensão social da vida fantasmática, para o fato de que a Psicanálise, ao formular uma psicologia do indivíduo, comporta sempre também uma dimensão social e coletiva, ou seja, o outro é parte integrante de nossa constituição, considerado que é a partir de quatro posições:

Na vida psíquica do indivíduo, o outro é freqüentemente tomado em consideração, seja como modelo, seja como objeto; ou ainda como aliado, ou como adversário; por isso é inteiramente justificável que se considere a psicologia individual também, desde o início, ao mesmo tempo, como psicologia social, no sentido amplo do termo(1921, p. 91).

Estaria incluída aí a referência ao(s) outro(s) da cultura e da sociedade &– esferas que possibilitam as identificações e contraposições, as ligações de pertencimento e de exclusão, entre o sujeito e o outro. Entretanto, na relação com a cultura e com a alteridade, em certas circunstâncias, criase a condição que tem sido chamada de estrangeiro. Indagar sobre essa condição foi o nosso tema.

Orientados por essas considerações, procuramos investigar o lugar do estrangeiro sob alguns ângulos da cultura atual: num mundo globalizado, com ideais de homogeneidade; nos regimes políticos, nas religiões e nas diversas formas de preconceito e de segregação.

É na interpenetração das três grandes correntes do pensamento teológico-político do Ocidente &– a saber, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo &– e nas tentativas de pôr em evidência os paradoxos e as possibilidades da democracia e da tolerância no mundo contemporâneo que o cerne da questão do estrangeiro se mostra inventariado. Nesse registro, é relevante a contribuição de Freud, ao questionar, em Moisés e o monoteísmo (1934-38), as noções de origem e de identidade como instâncias homogêneas e estáticas, e ao considerar que todas as formas de identidade e de origem, que se pretendem uma e una, têm antecedentes diversos. Assim, como sujeitos, constituídos de matéria tão informe e múltipla, somos condenados a identidades provisórias.

O percurso rumo ao reconhecimento do estrangeiro em nós mesmos transporta-nos para uma terra desconhecida, em que as fronteiras são permanentemente desfeitas e reconstruídas. Hostilidade e hospitalidade, desagregação e agregação, exílio e habitação, desterro e morada, desenraizamento e pertencimento coexistem na arriscada travessia de acolhimento do estrangeiro. Jacques Derrida ilumina a questão, ao trazer a idéia de “desconstrução” como princípio fundador da hospitalidade. Desconstrução permanente dos instrumentos metodológicos e epistemológicos da psicanálise diante do estranho que nos aparece a partir da denominada “mundialização da cultura”.

Os textos mostram que não se trata, pois, de assimilar o estrangeiro e, ainda menos, de “apagá-lo”: cabe à psicanálise sustentar o debate a respeito de como abrir lugar a ele, no sentido de admiti-lo e tolerá-lo no inquietante estranhamento que é de todos nós &– ou seja, de como pensar o sentimento de ser estrangeiro tendo como horizonte a perspectiva da hospitalidade que tende a incluir o exercício do jogo da convivência entre identidades flutuantes e díspares em busca de um lance incerto.

Podemos depreender, a partir das reflexões contidas neste número, no que se refere à posição da psicanálise na contemporaneidade, que precisamos, no mínimo, de uma crítica que não se restrinja apenas ao nosso próprio campo, mas que se amplie pelos planos da cultura e da sociedade, em interlocução permanente com outras formas do pensar. Desse modo talvez possamos lidar clinicamente com as múltiplas formas de subjetivação que nela se apresentam, incessantemente, num mundo cada vez mais (des)encantado no que diz respeito à “visitação” do estranho.

 

 

Endereço para correspondência
Jassanan Amoroso Dias Pastore
R. Capote Valente, 432/82 – Pinheiros
05409-001 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3081-4349
E-mail: jassanan@uol.com.br

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.