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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

Os muitos e o um: logos mestiço e hospitalidade

 

The many and the one: the half-caste logos and hospitality

 

 

Olgária Chain Féres Matos*

Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do ensaio é indicar de que maneira o princípio de identidade metafísico se traduz, na política, em fundamentalismos políticos e preconceito. Toda origem é, em si mesma, mestiça, porque mista e misturada. Assim, do puritanismo estético aos fundamentalismos religiosos e ódios étnicos, opera a exclusão do Outro, do diverso, do contraditório, segundo uma lógica da evidência e do incontrovertido. Reconhecer o Outro dentro de nós é acolher um logos híbrido e plural que se traduz em cosmopolitismo e hospitalidade.

Palavras-chave: Alteridade, Cosmopolitismo, Hospitalidade, Identidade, Preconceito.


ABSTRACT

The aim of this essay is to indicate the ways in which, in politics, the metaphysical principle of identity translates into political fundamentalism and prejudice. Every origin, in itself, is half-caste, because it is mystical and mixed. Thus, from the estetical puritanism to religious fundamentalism to ethnic hatred operates an exclusion of the Other, the different, the contradictory, according to a logic of the evidence, of the uncontroverted. Recognizing the Other inside ourselves is to lodge a hybridand plural logos that translates into cosmopolitism and hospitality.

Keywords: Alterity, Cosmopolitism, Hospitality, Identity, Prejudice.


 

 

Para compreender os paradoxos e possibilidades da democracia e da tolerância no mundo contemporâneo é preciso rever o modo de formação e as mutações da cultura no Ocidente, no entrecruzamento das três grandes correntes do pensamento teológico-político: o judaísmo, o cris tianismo e o islamismo1. Se para alguns autores os conceitos da filosofia política, do direito, da lei natural e da justiça procedem de idéias teológicas secularizadas, pode-se dizer que o presente volume questiona a atitude que vê na Idade Média a filosofia separada da política, da literatura, do direito e das artes. Que se pense na Baixa Idade Média e no intenso diálogo de Santo Tomás de Aquino com os filósofos árabes, Avicena e Averróis, para nos darmos conta da urgência dessa reflexão retardatária entre nós, uma vez que nem sequer os Departamentos de Filosofia, em que se estuda a Filosofia Medieval, apresentam uma disciplina voltada para a contribuição islâmica. Pensar o islamismo em seus trânsitos com as demais culturas no Ocidente europeu de que somos tributários é questionar a noção de origem e de identi dade como instâncias homogêneas e estáticas. Eis por que Freud (1971), em Moisés e o monoteísmo, contradizendo ortodoxias consagradas, afirma a identidade não-judaica2 de Moisés no sentido de ter sido ele egípcio, de tal forma que as idéias do líder “hebreu” são herança do Faraó Aquenáton, inventor do monoteísmo. Pondo de lado as mais recentes pesquisas em egiptologia &– que datam o monoteísmo anteriormente a Aquenáton &–, o mais significativo em Freud é o questionamento da noção de identidade. Com efeito, ele assevera que a circuncisão é uma prática egípcia, e não hebraica ou judaica, e que foram os levitas &– os “mais judeus entre os judeus”, segundo a tradição &– que acompanharam Moisés para as novas terras, como seus mais fiéis seguidores. Importa a Freud restabelecer um quadro laico e histórico das origens teológicas, éticas e políticas das religiões e, no caso, do monoteísmo. Se Moisés era egípcio, ele era estrangeiro com respeito ao povo que o adotou como chefe, de maneira que, ao estudar a arqueologia da identidade judaica, Freud mostra que ela não começava coincidindo consigo mesma, mas com outras identidades: a egípcia e a árabe. Os procedimentos teóricos de Freud revelam que o “princípio de identidade” &– que subjaz a toda reivindicação de uma origem fundadora sólida e estável, religiosa ou laica &– se desfaz3. Para ele, todas as formas de identidade e de origem, que se pretendem uma e una, têm antecedentes diversos. No caso da identidade judaica, eles são não-ju daicos: os judeus não são uma raça asiática, mas um compósito de vestígios dos povos mediterrâneos, com o que Freud mostra a que ponto as identida des são provisórias4. Todos os indivíduos ou coletividades que se prendem a uma identidade essencialista do passado não aceitam a irreversibilidade do tempo, com o que tentam enfrentar o presente, cristalizando-o em uma “imagem eterna do passado”. A crítica à noção de identidade indica a fonte ideológico-teórica da intolerância de todos os universalismos abstratos, bem como dos particularismos regressivos e privatizantes.

Derrida, por sua vez, considera a necessidade de se proceder a uma história dos conceitos da metafísica ocidental e, no caso, da idéia de “ho mem”, pois tudo se passa como se este não tivesse uma origem, ou qualquer limite histórico, cultural e lingüístico (1972, p. 179)5. A crítica à identidade significa dis solver todo essencialismo filosófico, teológico-político ou ético-religioso. A multiplicidade dos relatos históricos poderia contrarrestá-lo, começando por atenuar, se não suspender, a oposição excludente de termos como mas culino e feminino, homem e animal, racionalidade e instinto, natureza e cultura, oposições tão indesejáveis quanto perigosas. Todas as formas de dogmatismo &– que inviabilizam a tolerância e a hospitalidade &– provêm da adesão a uma origem identitária factícia que produz uma patologia da co municação, uma ruptura na compreensão recíproca assim perturbada, resul tando em desconfiança universal. Vencer esse propósito requer ultrapassar situações e sentimentos de opressão e medo, de sua coincidência, já que a representação que se identifica aos acontecimentos não precede nem sucede o real, sendo-lhe simplesmente contemporânea &– o que priva os homens do tempo necessário ao pensamento do que lhes sucede. O medo, ou ainda, o pânico, recusa qualquer “prazo”, inviabilizando reflexões e condutas sobre a natureza e sobre o que ocorre, o que resulta em angústia e atos sem saída: a coincidência do real e de sua representação &– que determina o pânico &– defi ne, também, aquilo a que se denomina catástrofe. Há catástrofe sempre que o acontecimento cola-se à representação por coincidir excessivamente com ele, de forma a que não reste mais àquele que nele está engajado senão agir de maneira irreflexiva, precipitada e, de maneira geral, ineficaz &– de maneira precisa &– “catastroficamente” (Rosset, 2004, p. 138). O sentimento da catástrofe em permanência oblitera a compreensão de que todos os homens fazem parte de uma comu nidade universal e cosmopolita6.

Cosmopolitismo e hospitalidade, na tradição filosófica do Ocidente, encontraram na phylia grega e no amor ao próximo [não matarás] &– do judaísmo, cristianismo e islamismo7 &– uma forma de resistência e reinvenção dos valores da tradição, à distânciado mundo das convenções ideológicas travestidas de religião.

Esse tempo necessário ao pensamento encontra-se nas grandes obras, justamente as que trazem à luz essa consciência. Assim, o poema-filosófico Ilíada. Primeira obra escrita no Ocidente, para alguns, ela pode parecer pa radoxal, pois deveria tratar da guerra entre gregos e troianos, contendo ao todo, no entanto, quatro dias de batalha. Zeus adia ao máximo os combates, como que a dilatar o tempo a fim de que os gregos tirem proveito do retar damento da ação e possam evitar a luta mortal, “ceifadora de vidas”, de “tantas lágrimas”, de “sofrimentos atrozes”. “Efêmeros” &– “seres de um dia” &–, es creve o poeta sobre os homens, gregos ou troianos. Os homens, na visão do poeta, nãocumprem, assim, um destino já decidido por Zeus. Homero pre-psicanálise preserva aos homens-heróis a iniciativa de reencontrar a paz e evitar o sangue, a começar por Páris, o “raptor” de Helena, que propõe um enfrentamento a dois, entre ele próprio e Menelau, o rei grego, o marido abandonado. No Canto III, Heitor, o troiano, adianta essa proposta aos gregos que o recebem já apontando-lhe suas flechas. A que Agamenon pondera: “não atirem, ó filhos dos Aqueus! Heitor &– o de casco cintilante &– propõe-se a nos falar”. Surge, emblemático, um Heitor pacífico que sonha e só pensa em evitar a guerra. Importa menos, aqui, a discussão das causas do combate &– se a necessidade de espólios ou a vontade de poder. O decisivo é refletir acerca do que separa e do que une os homens, ánthropos, brotós ou andres. Com efeito, ánthropos refere-se ao homem em sua relação horizontal com outros homens, seu destino compartilhado de mortais, iguais entre iguais na pólis; brotós fala da verticalidade e superioridade dos deuses imortais e de homens perecíveis que acompanham, nunca se lhes apresentando visivelmente, mas falando-lhes ou enviando-lhes emissários; e andres, por fim, o homem “viril e corajoso”. Gregos e bárbaros recebem seu lote de glória e de heroísmo, são mais que amigos e inimigos, são, antes de mais nada e primeiro de tudo, seres expostos, vulneráveis, mortais.

Com efeito, a filosofia grega antiga viria a conceber para o Ocidente o ideal cosmopolita de um mundo sem fronteiras. Diógenes de Sínope, entre os séculos V e IV a.C., reconhecia nelas convenções que separam os homens e os isolam, produzindo perseguições e guerras em nome das quais ora os indivíduos se entrematam ora trocam medalhas: “verdade aquém, falsidade além dos Pireneus”, exclamava, mais tarde, Pascal. Experiência do absurdo e da ambição dos homens, o “cidadão do mundo” nasce, pois, de um generoso cosmopolitismo apátrida que faz do mundo um mundo comum compartilhado.

Também o humanismo da Renascença endossava a unidade do homem e da natureza, recepcionando-a agora pelo enlaçamento de todos os viventes do universo pela “alma do mundo”. Nesse horizonte inscreveu-se, também, a visão internacionalista que esperava do proletariado mundial a emancipação do gênero humano, herói libertador do atavismo da exploração e da dominação e que reuniria, por sua ação criadora, poesia e revolução, em que a ação “fosse a irmã do sonho”, dissolvendo barreiras entre os homens e as nações. Um prin cípio de reciprocidade entre culturas diversas esperava uma harmonização do diverso e mesmo do oposto. Humanismo renascentista8 e iluminismo marxiano possuíam uma determinada interpretação do homem e da sociedade, a partir da qual procuravam formar o homem para o aperfeiçoamento de si, de seus talentos e habilidades, e para a concórdia na cidade, de modo a prevenir a cisão entre poderosos e oprimidos, arrogância por um lado, humilhação por outro, tudo o que pudesse engendrar ressentimento e desejo de vingança.

A partir da Revolução Francesa e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos &– e, mais tarde, com os direitos dos animais e da natureza &–, direitos e responsabilidades foram ampliados e novos foram criados, a começar pela ecologia e a luta contra os fins anti-humanos de certos de senvolvimentos da ciência e da tecnologia &– como a exploração produtivista da natureza para fins de consumo e o desenvolvimento irresponsável da industrialização a qualquer preço, que receberam o nome de progresso, como, por exemplo, as usinas nucleares, tecnologia tão próxima à catástrofe que alguns a ela se referem com a expressão “genocídio” e não “progresso”. Esse ideário de desalienação, para que os homens retomem o uso e os sentidos de suas vidas, passou a constituir o mais nobre do pensamento moderno. Sua transmissão, na alternância das gerações, faz-se pela educação formadora do caráter na vida privada e nas instituições de cunho social &– como a escola &– e a tolerância no espaço público. Com efeito, e-ducere significa “conduzir para fora de”, evocando a idéia de itinerário e caminho, de um ponto a outro, um ao Outro. Tolerare, por seu lado, é “levar”, “suportar”, mas também “combater”. Neste caso, tolerar é o esforço para desfazer ortodoxias, revelar a dessemelhança no que parece homogêneo, a fim de que se possa ir ao encontro do Outro. Se a tolerância é algo que se aprende e se ensina, seu lugar preferencial é a escola.

Com a instituição da escola pública e a educação universal humanista de qualidade, aboliram-se privilégios privatizantes, advindo a “modernidade”, modernidade que veio a significar, entre outras coisas, ler pensadores clássicos no Ocidente, no original, grego ou latim, porque ricos e pobres, religiosos ou ateus, raças ou nacionalidades dividiam os mesmos bancos escolares. Tratava-se, aqui, de progresso entendido no sentido de que só haveria avanços quando os desenvolvimentos tecnocientíficos e econômios correspondessem ao desenvolvimento e felicidade humanos. Hoje, ao contrário, a idéia de progresso fusiona conquistas tecnológicas e científicas com o desenvolvimento da humanidade enquanto tal, dissimulando as regressões da sociedade, que passam a ser consideradas “acidentes de percurso ” rumo ao bem-estar das gerações futuras, ou seja, o sacrifício dos vi ventes de hoje em nome de um futuro hipotético e abstrato. A fé na ciência, independentemente de suas injunções ideológicas, políticas e econômicas, produz a ideologia de que a maior parte dos problemas dos homens pode ser resolvida por ela9.

Nosso século combinou de maneira singular industrialismo e militarismo, expansão do capitalismo milionário e dissipação do Estado-nação, racismo e patriotismo em um misto praticamente indiscernível entre ciência e falsa consciência, entre conformismo científico e político. Sua gênese dessa combinação pode ser encontrada na racionalidade que constitui o mundo moderno. Nesse sentido, Hannah Arendt pôde escrever ter sido Galileu um dos primei ros a realizar um gesto de alienação do homem no mundo, ao transformar a observação à longa distância &– pela utilização do telescópio &– em alienação do homem com respeito ao universo. Para ela, trata-se aqui de uma das formas de privatização da política &– da vida em comum dos homens &–, que se torna um monopólio oligárquico subtraído à esfera pública cidadã, com a crescente distância entre os centros de decisão, a tecnicização e a redução instrumental da vida entre os indivíduos-cidadãos levados a termo pela ideologia da racio nalidade tecnológica,seja na política seja na ciência ou na sociedade.

Diferentemente do saber medieval, que pretendia preparar o homem para a santidade, ou do Renascimento, que buscava a geometria cósmica e a expressão do divino na Terra para inscrever o homem no reino da criação, utilizando o que Deus lhe oferecia para seu bem-estar e dignidade, a ciência moderna é essencialmente mundana e destituída de valores (wertfrei) “limitativos” &– como a busca dos fins últimos e do sumo Bem entre os gregos, da sacralização da natureza na Idade Média, que não permitia ao saber hu mano rivalizar com o divino. A ciência contemporânea confunde liberdade de pesquisa com onipotência e se legitima porque dela derivam nossos bens úteis e materiais. Além disso, a ciência contemporânea desenvolve-se em um universo que ignora os homens e seus dias, enquanto o homem é o habitante de um mundo que desconhece o universo. Sobrepondo-se à humanidade, a ciência constrói um sujeito abstrato ao qual corresponde uma natureza con vertida a triângulos, retas e planos. O mundo “natural” passa a ser considera do segundo realidades quantificáveis, pretendendo abranger o homem que é, ao contrário da tecnologia e de seus artefatos, incoerente e imprevisível.

A predominância da racionalidade tecnoburocrática resolve- se no pla no político, no genocídio. A catástrofe não se aloja mais no domínio da natureza, mas no da cultura: o homem tem hoje muito mais a temer que a natureza hostil. O terror e o pânico são obras humanas: “o terremoto de Lisboa”, escreveu Adorno,

foi suficiente para curar Voltaire da teodicéia leibniziana, e a catástrofe, ainda compreensível da natureza, foi mínima se confrontada com a segunda, social, que escapa à imaginação humana. Porque, nos campos de concentração, não morria mais o indivíduo, mas o exemplar. O genocídio é a integração absoluta que se prepara, onde os homens são homogeneizados, onde “acertam o passo”, como se diz em jargão militar (Adorno, 1966/1970, pp. 326-327).

Se o terremoto de 1755 constituiu um acontecimento filosófico crucial, isso não se deveu a seus incontáveis mortos, às ruínas, à destruição da cida de, mas à reinserção, no centro das investigações metafisicas, da questão do mal na natureza, o que abalava os fundamentos da harmonia preestabelecida do mundo leibniziano e seu “melhor dos mundos possíveis”. Quanto à catás trofe atual, ela não se vincula mais à história da natureza, mas à da cultura, posta a nu na “desordem” estabelecida por Auschwitz, como matriz do “mal radical”10, já antecipado pelos desenvolvimentos científicos da eugenia dos fins do século XIX europeu (Bauman, 1995), que aniquilou o mais inassimilável do humano no totalitarismo. Tão abstratos quanto os números são os homens quando reduzidos à condição de conceito ou sujeito des-subjetivado, na indiferen ciação entre os momentos lógico e psicológico do conhecimento, uma vez que a ciência é indiferente a seus objetos de reflexão. A predominância do cânone das ciências exatas hoje resulta, entre outras dimensões, em uma sociologia sem sociedade, em uma democracia sem democratas.

Na razão científica, Adorno indica o que torna possível a exclusão, a perseguição, o preconceito. O mundo, construído pela ciência e pela mul tiplicação de instrumentos técnicos
que medeiam e freqüentemente pres cindem do contato direto entre os homens, culmina em sua desertificação técnica desresponsabilizadora de ações. Com efeito, a responsabilidade de atos se transfere aos objetos técnicos. Eis por que, para Adorno, procedi mentos teóricos e metódicos da ciência demitizadora não passam “de práti cas mágicas sublimadas”, exigindo, freqüentemente, sacrificios de sangue: “o animismo animou o inanimado, o industrialismo reificou a alma” (Adornno & Horkheimer, 1982/1985, p. 29)11.

A conversão de todos os existentes à condição de coisas provém, a um só tempo, do mercado mundial e da ciência planetária: “sem pretender mi nimamente aproximar-me do significado das causas econômicas da guerra”, escreve Walter Benjamin, “podemos afirmar que a guerra imperialista [o filósofo refere-se à Primeira Guerra Mundial], no que tem de mais terrível e fatal, é co-determinada pelo abismo entre os gigantescos meios da técnica, por um lado, e sua exígua iluminação moral, de outro” (Benjamin, 1986, pp. 130-137). A associação entre ciência e guerra ocorre no apogeu do domínio humano sobre a natureza: a humanidade, que renunciou ao milenarismo na História12, o adotou, não obstante, em sua imagem tecnocêntrica:

(...) o saber que é poder não reconhece limites. Esse saber serve aos empreendi mentos de qualquer um..., na fábrica ou no campo de batalha, está a serviço de todos os fins da economia burguesa. (...) A técnica é a essência desse saber. Seu objetivo não são os conceitos ou imagens, nem a felicidade da contemplação, mas o método, a exploração do trabalho, o capital (Adorno & Horkheimer, 1982/1985, p. 98).

Assim fetichizadas, os homens perdem o controle do sentido e dos usos da ciência e da técnica. Seu universo é o da sociedade tecnocrática e sua forma moderna de fetichismo, fim da centralidade do trabalho, sua dispersão planetária e a criação de objetos parciais e nunca da completude de um objeto. Sociedades da “otimização” e das “competências”, elas formam destros escultores, sem que jamais se tenham interrogado sobre o que é o belo; formam hábeis construtores que utilizam materiais de ponta, mas que desconhecem as nervuras do conhecimento; substituem a lei pela regra, em seguida, a regra pela fórmula, para o funcionamento lógico do pensamento. Com exímios gestores financeiros , não se corre o risco de enfrentar o drama da condição humana e do sentido da vida. O método científico transforma o saber em instrumento: “(...) o avião de combate enquanto artilharia eficaz, o telecomando enquanto bússo la de maior confiança. O que os homens querem aprender da natureza é como aplicá-la para dominar completamente sobre ela e completamente sobre os homens. (...) Poder e conhecimento são sinônimos” (Adorno & Horkheimer, 1982/1985, p. 98).

O nazismo, como protótipo do mal radical, fez que se questionasse otimismo científico. Fanatismos, racismo, etnocentrismos e guerras ocorrem meio às conquistas da ciência, cujos desenvolvimentos viabilizariam, para utilizar a expressão de Marcuse, a passagem não mais do socialismo utópico ao científico, mas do científico ao socialismo utópico. A cultura, fundada no princípio científico-filosófico da identidade e no de fetichismo e “previsibilidade” na economia &– esta última tomada como uma ciência &–, tem como aliado o princípio de “origem”. Havendo sempre algo de primeiro e uno, cada qual se vê como o seu verdadeiro representante e herdeiro, ori gem tão identitária quanto sedentária.

Não se podem, porém, encontrar em um homem características gerais, que permitam assimilá-lo a outros e dizer: “sou grego, sou alemão”. Quando, Nietzsche analisa a palavra Entstehung (origem), ele se dirige à história do século XIX europeu,

pátria de misturas e bastardias, época do homem-mistura; o europeu não sabe o que ele é, ignora que raças se misturam nele, procura o papel que poderia ter; não possui individualidade (...) Os alemães se pretendem a raça pura para dominar a confusão das raças de que são constituídos! (Nietzsche, 1949).

Assim como Nietzsche aponta na cultura grega clássica o princípio apolíneo como negação interna de seu dionisismo, algo semelhante se passa nas guerras de seu tempo: “tal
como os gregos se enfureciam no sangue grego, assim agora o fazem os europeus no sangue europeu” (Nietzsche, 1972). A hybris da identidade é a da ciência, da política e a do mercado mundial, essa forma moderna do destino. Neutralidade da ciência e lei da equivalência só reconhecem o poder como o princípio de todas as relações.

A associação entre indústria, guerra e ciência já se encontra, até certo ponto em Bacon, que, no século XVI, em seu Novum Organum, associa a ciência ao desenvolvimento industrial agressivo, sob os auspícios expres samente materiais. Sua crítica pode ser encontrada nas palavras do filósofo francês do século XX, Alain, quando trata da Primeira Guerra Mundial: “essa guerra é um erro do pensamento” (Alain, 1938, p. 27). Se o filósofo assim a considera é por reconhecer nela um engano teórico e intelectual, uma vez que na explosão sangrenta e na destruição há um fio condutor dirigindo os homens e as armas: “a guerra não é a manifestação periódica da violência ou a eclosão espontânea da agressividade”. Implica, ao contrário, em organização, controle, autocontrole, subordinação e obediência, disciplina, “educação para a guerra” (Alain, 1938, p. 37). A cultura do pânico, como a denominou Hermann Broch em 1944, é a de nossa contemporaneidade. Diferentemente do medo &– que se liga a um perigo iminente &–, o pânico é do campo do delírio, pois não pode ser desmentido pela realidade &– além de se consolidar segundo o desejo de obediência e de servidão voluntária. Assim se completa o que Foucault já indicara, em seu Vigiar e punir.

O panóptico, idealizado por Benthan no século XVIII, fora concebido para fins carcerários e se transformou, segundo Adorno, em uma prisão a céu aberto na modernidade. A modernidade é panóptica como a estrutura arquitetônica de Benthan, que permitia vigiar prisioneiros, os quais, por sua vez, não tinham acesso ao olhar de seus vigias, protegidos estes, em seus escritórios, por biombos. Os prisioneiros são, ao mesmo tempo, visíveis, mas incapazes de ver. Há aqui um dispositivo de visão que é, melhor dizendo, uma sugestão de visão: o indivíduo se toma dócil, submetendo-se a uma vigilância tanto real quanto virtual. O panóptico é um pequeno teatro em que cada detento aprende a desempenhar seu papel de prisioneiro para um público hipotético. O pânico conduz à abdicação das leis e das liberdades em nome da “segurança”, e todo choque é tal como um “prodígio” &– algo que se produz de maneira incompreensível e incognoscível, daí seu caráter “único”, que o fecha sobre si mesmo, de tal modo que lhe falta qualquer outro objeto a partir do qual possa ser interpretado: o estado traumático sente como estra nho o que vê e não entra em contato com o que vê. Um contato “sem duplo”. Os acontecimentos não encontram qualquer inscrição na consciência ou na memória &– donde o desaparecimento de qualquer possibilidade de “sentido”: o sentido, escreve em um outro contexto Clément Rosset, “é, de agora em diante, reconhecido como invisível”.

Para as situações de pânico e de paranóia, o “real” não é senão, e no, melhor dos casos, anamorfose no espaço e no tempo. Trata-se de um “eter no presente”, vazio, pois o pânico não reconhece a passagem do tempo e esse é vivido como “irreversível”, ou melhor, como se não houvesse um passado, tão-somente repetição e eterno retorno, pois a reversibilidade em sentido enfático existe na idéia do perdão. Na repetição, no ressentimento, no trauma, desaparece a noção de futuro como advento do “novo”, do “miraculoso”. Ele é confiscado. O futuro é visto como previsível e controlável e é evocado como necessitarismo a fim de responder às contingências do presente coisificado, autonomizado com respeito ao tempo do agir histórico, da cicatrização das feridas, do perdão, do esquecimento ativo, porque este, primeiramente é inscrito na memória, simbolizado, “irrealizado”, ficciona do, para depois poder ser esquecido.

O discurso oficial celebrativo da insegurança &– próprio à contemporaneidade, seja de catástrofes iminentes, seja do retorno ao hobbesianis mo social &– não reconhece os descontentes da civilização e dessocializa os esforços civilizatórios de toda a história do pensamento, das tradições filosófica, literária, religiosa, artística e científica e de suas inter-relações e transculturações, circunstância a que Haroldo de Campos dedicou a ex pressão “De Babel a Pentecostes: uma utopia concreta”. O filósofo, poeta, crítico e tradutor, referindo-se à experiência da amizade e da hospitalidade do encontro das línguas, afasta-se de qualquer visada “nacionalista” entre povos, homens, literaturas:

a questão do “nacionalismo” literário não pode ser encarada de um ponto de vis ta monológico. Desde o barroco... não podemos pensar-nos como identidade conclusa, acabada, mas, sim, como diferença, como abertura, como movimento dialógico da diferença contra o pano de fundo da universalidade (no caso, da “literatura universal”). Nacionalismo dialógico, portanto, modal relacional, ao invés de ontológico, xenófobo, fundamentalista... Sob o signo bíblico da “Torre de Babel”, o homem dispersou-se, dividiu-se em línguas e nações. A balbúrdia dos particularismos, ensina-nos a história, poucas vezes tem encontrado condições harmoniosas de coexistência não-excludente. Sob o signo da reconversão de Babel em Pentecostes &– de que a literatura e a cultura podem muito bem ser portadoras &– a humanidade do novo milênio conseguirá, quem sabe, reencontrar-se num espaço convivial planetário, plural e transcultural, expandindo no sentido pleno o conceito fecundo de Weltliteratur, tão caro a Goethe como ao goetheano Marx (Campos, 1998, p. 32; 345)13.

Nesse horizonte, os ideais de respeito, tolerância e autonomia do pensamento, mesmo anacrônicos, podem constituir uma reversão de dogmas que geram preconceitos, se a esses se contrapuser a prática do diálogo. Noção das mais importantes, ela se encontra intimamente ligada não somente à Filosofia, mas ao próprio ato de pensar. Diálogo supõe movimentar-se num campo semântico e conceitual que leva em conta a distinção, a diferença. O diálogo “é o fazer-se palavra da consciência” (Perniola, 1985, p. 140).

A assim denominada “mundialização da cultura” pela cultura midiática produz uma inflação da linguagem, contrária ao diálogo. O prefixo dia justaposto ao logos indica, ao mesmo tempo, o que une e o que distingue contrários. Para haver diálogo &– na sociedade, na política e entre culturas &–, é preciso haver encontro, o que só ocorre com a condição “de que duas culturas tenham esquecido a própria origem, e isto depende de que cada uma tenha já se tornado dupla com respeito a si mesma” (Perniola, 1985, p. 145). Ressoam aqui as palavras de Montaigne: “somos duplos em nós mesmos. (...) Eu agora, eu depois, somos a bem dizer dois” (Montaigne, 1972, II, 16; III, 9). Somos constituídos de matéria tão informe e diversa que “cada peça, cada momento faz seu jogo. E há mais diferença de nós a nós mesmos do que de nós a um outro” (Montaige, 1972, II, 2). Segue-se, em Montaigne, um respeito “pela estranheza aparente do Outro”, que seria logo adiante compreendida na naturalidade universal deste país “ampliado” que somos diversificado e tolerante:

Tive, por longo período, um homem comigo (um indígena vindo do Brasil a Rouen em 1556) que permaneceu dez anos (entre nós). O novo mundo foi descoberto em nosso século, no lugar em que Villegaignon aportou e denominou França Antártica. A descoberta deste país infinito deve ser levada em consideração... Esses homens estrangeiros e estranhos não conhecem nenhuma forma de contato (como aqueles estabelecidos entre nós) (Montaigne, 1972, I, 31).

São frugais, diferentes dos europeus, canibais em certas horas, mas de forma alguma desprovidos de bom senso nesse rito, tendo talento poético em seu folclore. Montaigne hesita em chamá-los de bárbaros: “pode-se muito bem tratá-los de bárbaros, de acordo com as leis da razão, mas não em comparação conosco que os ultrapassamos em toda espécie de
crueldade” (Montaigne, 1972, I, 31). Montaigne critica o domínio colonial dos espanhóis e da Igreja dizendo que os nativos da América nada têm a invejar nos europeus, nem em habilidades, e “quanto, à sua devoção, observância das leis, bondade, generosidade, sinceridade e liberdade (franchise) nos foi muito útil não tê-las tanto quanto eles” (Montaigne, 1972, I, 31). Os massacres com os quais os colonos dizimaram homens no México e no Peru são matanças, horríveis hostilidades e miseráveis calamidades. Montaigne defende religiões e raças contra todos os excessos das religiões e das raças.

Interrogar a intolerância é, pois, questionar as relações do eu com o outro, mas, sobretudo, de nós conosco mesmos. Ou, nos termos de Freud, este Eu, que nos é tão íntimo, é também inquietantemente estranho. Partindo do estudo semântico do adjetivo heimlich (familiar) e de seu antônimo unheimlich (secreto, escondido), Freud indica a coincidência final entre conhecido e desconhecido. Na própria palavra inverte-se o mais conhecido em seu con trário, nessa enigmática presença do estranho no mais familiar, familiar que, em certas condições, manifesta-se como estranho. Eis que o medo fixa o estranho fora de nós, revelando naquilo que um dia foi familiar algo poten cialmente “impregnado” do estranho, no caso, o inconsciente (Montaigne, II, 12). Também nosso eu primitivo, ainda não delimitado pelo mundo externo, projeta para fora de si tudo o que experimenta como perigoso e assustador: assim um duplo &– estranho e inquietante justamente por conter a destrutividade de nosso próprio eu. Diante do estrangeiro que recusamos sem consciência da recusa &– e com o qual nos identificamos sem o saber &–, perdem-se os limites entre o real e o imaginário, de forma que se estabelece o conflito entre a neces sidade de identificação com o outro (para que não permaneça desconhecido e ameaçador) e o medo de consegui-la (e perder-se na alteridade).

Orientados pelas considerações freudianas, Horkheimer e Adorno mos tram como procedem o preconceituoso racista e o fanático religioso: confundindo representações verdadeiras acerca de si, atribuem-nas falsamente aos outros. Sua prática é a do “bode-expiatório”. O antisemita inveja secretamente o judeu por qualidades que ele lhe confere e não suporta a frustração de não as ter. Pratica, por assim dizer, a identificação com um opressor imagi nário para tomar-se ele próprio, “justificadamente” agora, o próprio opres sor. Trata-se de um dispositivo que os filósofos denominam “falsa mímesis”, adaptação, através da tecnologia e da maquinaria social, a algo tomado como inanimado: como observam Adorno e
Horkheimer, “é o medo que favorece a assimilação do diferente ao idêntico &– o exorcismo do perigo através do talismã da identidade” (Adorno & Horkheimer, 1982/1085). Quanto mais fraco o ego, mais forte é sua ancoragem no idêntico. A mímesis é, neste caso, projeção fóbica e destruidora.

Reconhecer o estrangeiro em nós mesmos nos revela um país desconh ecido, onde fronteiras e alteridades são permanentemente construídas e desfeitas. Não se trata, pois, de “integrar” o estrangeiro e, ainda menos, de persegui-lo, mas acolhê-lo neste inquietante estranhamento que é tanto o seu quanto o nosso: “somos cristãos”, anotou Montaigne, “a mesmo título que somos perigordinos ou alemães” (Montaigne, II, 12). Trata-se de um cosmopolitismo de tipo novo, transverso a governos, economias e mercados &– aquele que instala em nós a diferença como condição de nosso estar com os outros. Disso resulta a ampliação de nossa identidade. Se os princípios de identidade e de não contradição determinam um “terceiro excluído”, rever este “princípio de razão” significa apreender um pensamento eclético e plural que recusa a lógica binária das ortodoxias. “Razão mestiça”, poderíamos dizer, porque mista e porque joga com descobertas, “com plasticidade e metamorfose, destacando um terceiro termo que, incluído, é a tolerância heterodoxa” (Varela, 1996, p. 96)14.

Poder-se-ia aqui falar em sincretismos e hibridizações, compreendendo-os como uma metodologia, indicando um plano diferente daquele que se engaja em uma verdade essencial, espécie de identidade eleata, garantidora de uma origem. O sincretismo é um outro logos &– que atesta a crise das aculturações violentas e corsárias, aparentando-se ao oximoro: uma loucura (oxy) da linguagem que põe em desordem as fronteiras das palavras para dar novos sentidos às coisas. Oximoros, sincretismos, heterologos provêm de lógicas “ilegítimas” e sem “coerência” transitando em assimetrias, contagiando significações permanentes, desviando-se de universalismos intolerantes, indigenizando-se em mutações culturais. Disciplinado numa síntese, o heterogêneo recai na universalidade homogênea, que tudo reconverte à dimensão do mesmo: o sujeito soberano. Necessita-se, pois, manter o passado em sua dispersão, procurando demarcar os ínfimos desvios ou mesmo completas reversões que lhe deram nascimento. O pensamento que presume ter encontrado a verdade é falso jus tamente por subentender a pacificação entre o pensamento e a coisa. Pondo o Eu em estado de questão, o heterologos mestiço dá-se plena liberdade de se contradizer, já que a singularidade do Eu não responde “à realidade do real”. Nas palavras de Pascal: “Tudo é um, tudo é diverso. Quantas naturezas na do homem” (Pascal, 1964, p. 107). Nesse sentido, o Outro não é nosso limite externo, mas o que nos pluraliza e através de quem podemos nos totalizar. Restritos a uma única iden tidade de origem, diminuímos em realidade, em humanidade.

Viver é mais do que sobreviver. No século XVI, La Boétie escrevia: “‘Não pode haver amizade onde há desconfiança, deslealdade, injustiça. Entre os maus, quando se reúnem, é um complô e não companhia. Eles não se entre - têm, entretemem-se. Não são amigos, mas cúmplices” (La Boétie, 1982, p. 106). A sociedade que não se funda nos laços da amizade e da fraternidade é, também, sem compaixão. Essa é uma “tristeza mimética” pela qual desejamos o fim do sofrimento de um outro nós mesmos. Não é algo que se descobre na reflexão apenas, mas que é criado com a ampliação de nossa identidade e sensibilidade aos pormenores da dor, pois o que os homens têm em comum é serem todos suscetíveis a sofri mentos e decepções. O co-padecimento funda-se em nossa capacidade de iden tificação no sentido de que “o caminho mais curto de chegarmos a nós mesmos é o que dá a volta ao mundo”. Relativizando nossos costumes, saberemos que se ninguém possui a verdade, todos têm direito a serem compreendidos (Kundera, 1992).

Em Heródoto encontramos indicações sobre a exemplaridade de conhecer-se a si mesmo pela mediação do Outro. Quando o historiador narra detalhadamente e com admiração respeitosa os costumes dos egípcios, é a própria Grécia que dá a conhecer:

Entre os egípcios, as mulheres compram e vendem, enquanto os homens ficam em casa a tecer... Os homens carregam os fardos na cabeça, mas as mulheres os carregam nos ombros... Nenhuma mulher é consagrada ao serviço de divindades, sejam estas masculinas ou femininas. Os homens são os sacerdotes de todas as divindades. Os filhos não são compelidos contra a vontade a sustentar seus pais, mas as filhas devemfazê-lo mesmo sem o querer (Herodote, 1997, p. 45).

Conhecer o Outro é conhecer melhor a si mesmo. Se o Outro é um nós mesmos invertido, podemos dele nos aproximar pelos laços da confiança e da amizade. Horkheimer, por sua vez, quando ainda existia o socialismo histórico, o do Leste Europeu, anotou: “Os estudantes fugidos do Leste, nos primeiros meses depois de sua chegada à Alemanha (Federal), são felizes porque há mais liberdade, mas logo se tornam melancólicos porque não há amizade alguma” (Horkheimer, 1971, p. 194). Um mundo no qual só conta a lei do valor e a lógica do saber a ele associada não é o mundo humano, mas o do capital. Sociedade sem espaço para a amizade e para a fraternidade não mereceo nome de ci dade , mas antes o de solidão (Spinoza, 1968).

Recentemente, Derrida, ao considerar a amizade, referiu-se à hospitalidade, contrapondo-a ao cosmopolitismo ou, pelo menos, indicando-a como seu limite. Ao cosmopolitismo corresponde a noção de tolerância. No par cosmopolitismo- tolerância, trata-se, sempre, de um “direito de visita”, de não ser admitido como inimigo em terra estrangeira. A tolerância “encontra-se”, observa Derrida,

do lado da “razão do mais forte”, que é uma marca suplementar de soberania &– é a boa face da soberania que, do alto, significa ao outro: eu te deixo viver, não me és insuportável, eu te ofereço um lugar em minha casa, mas não te esqueças, estou em minha casa. Eu te acolho com a condição de que te adaptes às leis e normas de meu território, segundo minha língua, minha tradição e memória (Spinoza, 1968).

Quanto à hospitalidade, ela é incondicional, diz respeito ao estrangeiro que chega sem ter-avisado: “A hospitalidade é antecipadamente aberta a quem não é esperado nem convidado, a todo aquele que chega como visitante &– visitante absolutamente estrangeiro, alguém que chega e que não é nem identificável nem previsível” (Spinoza, 1968, p. 43). A hospitalidade é da ordem do puro “dom”, ultrapassando as noções comuns ligadas a formas jurídicas e políticas, ambas resguardando a noção de “dívida”. A hospitalidade é um “salto” absoluto para além do saber e do poder, da norma e da regra, sendo a condição de possibilidade do mundo ético e político; nela não há sequer a noção da “alteridade do Outro”, daquele que entra em nossa vida sem dizer que vinha. Experiência só pos sível &– a da hospitalidade &– quando já se fez a experiência da identidade instável e cambiante. Como escreveu o filósofo: “não existe um limite a que podemos chegar e dizer, enfim, esse sou eu” (Plotino, 1992, p. 204).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Olgária C. F. Matos
E-mail: olgaria@uol.com.br

Recebido: 18/05/2008
Aceito: 22/05/2008

 

 

* Filósofa. Doutora, livre-docente e professora titular pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Autora dos livros: Rousseau, uma arqueologia da desigualdade, São Paulo: MG Editores; Paris 1968: As barricadas do desejo, São Paulo: Brasiliense, Coleção História; Os arcanos do inteiramente outro: A escola de Frankfurt, a melancolia, a revolução, São Paulo: Brasiliense; A escola de Frankfurt através dos textos, São Paulo: Moderna. Publicou os ensaios: “W. Benjamin: desejo de evidência, desejo de vidência”, in O desejo, São Paulo: Companhia das Letras; “A civilização sem descontentes”, in Tempo e História, São Paulo: Secretaria Municipal da Cultura/Companhia das Letras; “Sombra e luzes do Iluminismo”, in Revista USP; “Algumas reflexões sobre o amor e a mercadoria”, in Revista Discurso, entre outros.
1 Não está nomeada explicitamente a filosofia grega, uma vez que a assimilação do estoicismo em grande parte realizou-se no cristianismo, como, por exemplo, a ética do sofrimento e da resignação, suportar a dor e renunciar ao prazer.
2 Freud não distingue, para fins de sua argumentação, os antigos hebreus da época de Moisés e os “judeus” pós-Judéia.
3 Freud afastava-se, avant la lettre, de qualquer desejo de confirmar “materialmente” as serções bíblicas, que visavam legitimar o Estado de Israel como E stado teológico-político. Lembre-se que os imigrantes provenientes da Europa com destino a Israel, em particular depois de 1948, experimentavam um sentimento tanto de parentesco como de estranhamento com relação ao país que os acolhia e que deveria tornar-se um lugar de pertencimento e de auto-reconhecimento (Seligmann-Silva, 2003) bem como toda a literatura que trata do exílio (Massimo, 1998).
4 Referindo-se à idéia de um passado identitário e a tradições sedentárias, Freud escreve: “todo elemento que ressurge do passado (recalcado) impõe-se segundo uma forma particular, exerce uma imensa influência sobre as massas e toma-se um irresistível objeto de fé contra o qual qualquer objeção lógica é impotente. Esse estranho aspecto só pode ser compreendido se comparado aos delírios da psicose” Freud (1971, p. 85). Recorde-se que Freud realiza essa obra sem ter conhecido o traumatismo da Segunda Guerra Mundial, uma vez que seu desaparecimento ocorreu no ano de 1939.
5 As preocupações de Derrida desenvolvem-se nas relações que o homem estabelece com a natureza, donde a necessidade de proceder à genealogia ou desconstrução do poder do homem sobre a natureza e sobre todos os viventes do universo, em particular sobre outros homens e sobre os animais. Quando e por que o homem se concebeu como um ser soberano na natureza, fazendo da racionalidade o elemento de superioridade e destituindo os demais seres do lógos? A esse respeito observa que “os seres ‘privados de razão’ foram obrigados a sofrê-la”. Também a diferença entre zoé (vida) e bios (modo de vida) é da maior importância para as análises biopolíticas e os genocídios modernos (Agamben, 1999, entre outros). E, ain da, Derrida (1994), Fontenay (1996), Adorno & Horkheimer (1982/1985). Tradução para o português com o título, discutível, de Dialética do esclarecimento; principalmente os fragmentos finais sobre “Anti-semitismo” e “Vida dos Animais”.
6 Kant, em seu A paz perpétua, diz existir um direito que autoriza todos os homens a fazerem parte de uma sociedade pelo direito de posse comum da superficie da Terra, pois, sendo esta esférica, os homens não podem se dispersar ao infinito e devem acabar por “se tolerarem uns aos outros”, de tal forma que “a violação deste direito em um lugar da Terra é imediatamente sentido em todos os lugares”. (Grifo do autor).
7 Levinas, em diversas obras, como também em Totalité et infini, vale-se de Kant e do respeito ético incondicionado ao Outro. Para Levinas, o Outro encontra-se, a um só tempo, dentro e fora de nós, e a lei ética &– que antecede ou é um “além” da política, como também sua condição de possibilidade &– encontraem Kant a formulação: “talvez não haja no código civil dos judeus passagem mais sublime que o mandamento: ‘não farás na Terra imagens nem símbolosdo que está no céu ...’. Este mandamento basta para compreender o entusiasmo que o povo judeu, em sua época de vida em cidade, sentia com respeitoà religião, como também o orgulho que o Islã inspira. O Algo semelhante ocorre com respeito à lei moral em nós’ (Kant, Observação Geral, 1995).
8 É preciso lembrar ao menos três figuras do humanismo para sua compreensão: o humanismo ligado à modernidade tecnocientífica, ao mundo desencantadoe des-animado e inanimado; a modernidade como abandono da prática de sacrifícios &– rituais que exigiam a imolação do “escolhido” &– e a modernidade citadina. O humanismo que predominou e deu origem à modernidade pode ser representado por Bacon no Novum Organum e pelo momento galilaico-cartesiano &– projetos de dominação e posse da natureza e soberania do homem sobre a natureza e todas as criaturas. Esse exercício de poder se contrapõe a outra compreensão do humanismo, como a de Montaigne e sua atitude de reconciliação com o mundo, com a terra, com o corpo, contra a visão religiosada Idade Média e seu ascetismo. Esse humanismo, na senda de um certo ideal de doçura grega &– o de Teofrasto e de Plutarco, que se recusam a limitato e do poder de dispor de toda rex-extensa e de todos os seres vivos, contrapõe-se àquele que não dissocia ciência, literatura, filosofia e pintura.
9 Sobre o discurso hegemônico da ciência e sua força intimidadora (Lefort, 1975; ainda, Habermas, 2001, Marcuse, 1969, entre outros).
10 A expressão é de Kant, mas utilizada não em seu sentido próprio.
11 Tradução para o espanhol, Dialectica del iluminismo; para o francês, Dialectique de la raison; para o português, Dialética do esclarecimento (1985).
12 Essa afirmação leva em conta a idéia moderna, datando do Iluminismo, segundo a qual a História é racional e a Razão nar a filantropia -, constitui o sentimento de humanidade dos homens, estendido aos animais. Assim, o humanismo metafísico, fundado na experiência do Cogi História, ou a luta entre as classes, ou a práxis, supõem a vontade e a liberdade. Não obstante, a crença na razão histórica segundo a qual “todo real é racional e todo racional é real”, ou seu sucedâneo &– o pressuposto lógico na racionalização do campo histórico pela ação revolucionária do proletariado &– são reconhecidos como formas de milenarismo e de fé na racionalidade da história (racionalidade da Razão, racionalidade do antagonismo entre as classes). Políticas teológicas, as milenaristas afastam-se da práxis, que diz respeito a um mundo comum compartilliado, onde o conflito é legítimo e resolvido pela política e não pelo recurso à violência dita revolucionária ou reacionária, ambas dominadas pelo princípio do “realismo político”, donde o elemento absolutista comum a ambas (Arendt, 2003; Derrida, 2000; Derrida & Habermas, 2004; Levinas, 1972, 1974, entre outros).
13 Haroldo de Campos lembra ainda: “Em pleno século XIII, o rei castelhano Don Alfonso x, EI Sábio (1221-1284), entreviu (essa utopia concreta) e trovava em galaico-português (sob a influência da Provença, cuja língua dominava) e foi ele que auspiciou a ‘Escola de Tradutores de Toledo’, onde o grego, o latim, o árabe e o hebraico permeavam-se num confraterno e se minal movimento translatício. Gostaria de invocá-lo como patrono, ao subscrever-me, poeta brasileiro e cidadão ecumênico da língua portuguesa, no limiar de um terceiro milênio que auguro pentecostal e pós-babélico” (Campos, 1998, p. 35).
14 Para a compreensão das hibridizações culturais, algo semelhante pode ser encontrado no conceito de sincretismo, para além da restrição que lhe confere o âmbito religioso. Na origem da palavra “há algo de enigmático e de alusivo (...). Dizia-se, de fato, que os cretenses, sempre dispostos a uma luta entre si, se aliavam quando um inimigo externo aparecia. Sincretismo é a união dos cretenses, um conceito defensivo que ultrapassa a fragmentação política interna (...). Essa determinação em unir grupos conflituais, em busca de alianças entre partes da própria Creta, serviu para a posterior migração do conceito, da política à religião” (Canevacci, 1996, p. 15).