SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número47Os muitos e o um: logos mestiço e hospitalidadeA conduta indiferente índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

Sobre o fundamental*

 

On what is fundamental

 

 

Adam Phillips**

Universidade de York

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Consideramos fundamentais as coisas que não podem ser submetidas à troca, em torno das quais não devemos negociar. Concebemos nossa civilidade como um produto de nossas crenças fundamentais, e, no entanto, são precisamente essas crenças que nos levam a perder nossa civilidade. A este quadro a psicanálise veio a acrescentar que estamos com freqüência enganados quanto às coisas fundamentais e que nem sempre agimos em nome do que pensamos agir. Isso faz da situação analítica um espaço útil para se discutir nossa adesão a valores fundamentais e o nosso aparente temor quanto ao fundamentalismo.

Palavras-chave: Freud, Sigmund, Fundamentalismo, Psicanálise, Religião, Terapia psicanalítica.


ABSTRACT

Fundamental things are the ones we cannot exchange for others, the ones we should never negotiate. We understand our civility as a product of our core beliefs, but precisely these beliefs can make us lose our civility. To this picture psychoanalysis adds that we are often wrong about what is really fundamental to us, and that we usually do not act for the sake of what we believe we act. This turns the analytic setting into a useful space to discuss our commitment to fundamental values as well as ourapparent fear of fundamentalism.

Keywords: Freud, Sigmund, Fundamentalism, Psychoanalysis, Religion, Pscychoanalytic therapy.


 

 

Pertence à natureza dos sistemas vivos ser radicalmente indeterminados,
construir continuamente seus &– nossos &– futuros,
mesmo que em circunstâncias alheias à nossa escolha.

Steven Rose, Lifelines (2005).

 

As coisas consideradas de fundamental importância, de valor fundamental, não podem, por definição, ser tratadas conforme o caso. Na verdade, um modo de reconhecermos as coisas fundamentais quando elas aparecem numa conversa é pelo fato de as pessoas perderem a compostura ao falar delas. Uma regra geral evidente seria: as pessoas se tornam violentas, perdem a civilidade ao perceber que alguma coisa fundamental para elas está ameaçada. A isto a psicanálise acrescenta que às vezes as coisas fundamentais são deslocadas &— que ao falar de pornografia, por exemplo, também falamos das nossas aflições sobre o que se passava dentro dos corpos de nossas mães; não podemos estar tão certos quanto gostaríamos de saber o que estamos discutindo. Se, temos educação, como disse Robert Frost, para poder escutar os outros sem perder a tranqüilidade, então não há como ignorar que a educação nem sempre funciona no entorno das coisas fundamentais; não existe educação que o impeça de ficar inquieto quando se apaixona, ou seu filho adoece, ou quando você começa a discutir sobre o Estado de Israel. As coisas fundamentais são aquelas que nos perturbam; e embora imaginemos nossa civilidade como sendo formada por nossas crenças fundamentais, nossa civilidade e nossas crenças fundamentais entram em choque com facilidade. Matamos pessoas para defender nossos vícios, e não nossas virtudes.

Nunca tantas pessoas tiveram opiniões sobre o fundamentalismo, e opiniões sobre a posse de crenças rígidas &– sobre qual gênero de experiência é a crença e sobre quais devem ou deveriam ser as implicações de uma crença. E um dos pontos que precisamos explorar agora é como acreditamos conhecer o fundamentalismo, e o que fazemos para conhecer tais coisas e falar a seu respeito. Isso se aplica, é claro, para pessoas que foram educadas no seio de crenças tradicionais e para as que se desviaram delas. Na história de cada um é provável que existam pessoas com crenças fortes, pessoas incapazes de pensar a si mesmas, de pensar o que seja, sem uma relação com o seu Deus ou deuses.

Por nos inclinarmos a pensar no fundamentalismo à luz de acontecimentos recentes, somos mais do que nunca atraídos a pensar no fundamentalismo muçulmano. E para aqueles entre nós que não são muçulmanos, e para alguns que são, isso significa reconhecer que sabemos muito pouco; e que se quisermos saber alguma coisa deveremos ler livros e conversar sobre o assunto com as pessoas. Para boa parte dos ocidentais brancos não-muçulmanos o conhecimento sobre o Islã, quanto mais sobre o fundamentalismo islâmico, será acadêmico e sensacionalista a um só tempo, derivado da leitura dos livros de supostos especialistas, das reportagens de televisão e dos relatos escritos por jornalistas. O fundamentalismo cristão (e o cristianismo é a única religião universal que nos dá a conhecer a expressão) é definido pelo Oxford English Dictionary (2005) como “a estrita adesão às doutrinas ortodoxas tradicionais (por ex., a infalibilidade da Escritura) que são consideradas fundamentais à fé cristã; opõe-se ao liberalismo e ao modernismo”. Ele representa algo conhecido ou ao menos familiar para vários entre nós. Mas para muitos dos que estão nesta sala o fundamentalismo cristão é alguma coisa com a qual fazemos conexões, geralmente pejorativas e caricaturais, mas não algo que tenhamos vivenciado. Entretanto, é claro, somos todos &– este é um passo que a psicanálise colocou em demasia ao nosso alcance &– fundamentalistas a respeito de alguma coisa. Talvez a psicanálise nos diga, para falar a linguagem mais singela, que existe um fundamentalista dentro de todos nós. Podemos nos ver conscientemente, por assim dizer, como liberais e modernistas, mas estas formas relativamente novas de auto-descrição se confrontam com um fundamentalista mais antiquado, ou mesmo arcaico e interno. O linguajar psicanalítico converteria esse fundamentalismo interno em algo que nós, liberais e modernistas, teríamos superado em condições ideais. É preciso notar a presença de um mito progressista toda vez que liberais e modernistas &– e os que são instruídos pela psicanálise &– falamos a respeito dos fundamentalistas. Embora não queiramos ser racistas a tal ponto, somos talvez levados a acreditar que fundamentalistas sofrem de uma fixação regressiva. Eles são, como antes se julgava que fossem os homossexuais, privados de alguma coisa: riqueza, educação, democracia, cuidado materno suficiente e assim por diante. O fundamentalismo não é, usando a linguagem psicanalítica, um de nossos ideais do ego; não desejamos que nossos filhos sejam fundamentalistas e para tanto temos bons argumentos, derivados de nossas tradições liberais e aparentemente modernistas. Exceto como vocação artística e paixão familiar, o extremismo é uma coisa que aprendemos a ver com extrema precaução. Você pode ser “fanático” pelo bem-estar de seus filhos, e a bem da verdade deveria ser; e pode ser inflexível quanto à sua necessidade, digamos, de pintar, o que provavelmente irá defini-lo como a coisa verdadeira &– um artista genuíno. Mas até onde somos capazes de cindir os domínios, você não deve ser o que poderíamos chamar de um fanático na sua vida erótica, ou em suas concepções políticas ou religiosas. Depois de tornar-se um fanático &– uma pessoa que acredita, literal ou metaforicamente, na infalibilidade literal de sua escritura &– você se transforma de adversário em inimigo, na linguagem do filósofo político Chantal Mouffe; você cessa de ser alguém com quem se pode travar a espécie de conflito produtivo que sustenta a democracia, segundo crê Mouffe. E de fato, ao pensar hoje no fundamentalismo nós o concebemos, e temos sido incitados a concebê-lo, como o inimigo da democracia. Para o fundamentalista debater é errar o alvo; ou melhor, debater de certa maneira. Na conciliação de argumentos opostos, nossa forma predileta da vida política, existe argumentos opostos que o fundamentalista não pode tomar em consideração. Mas o democrata, a exemplo do fundamentalista, deve decidir quais são os argumentos inadmissíveis. Nós democratas acreditamos que o argumento fundamentalista é inadmissível.

Seria um engano crer que o democrata acredita que tudo pode ser negociado, que todas as perspectivas devem ser examinadas. Todas as democracias liberais contemporâneas estabelecem limites para a liberdade de expressão relativa à incitação ao ódio racial e agressão. Para utilizar o título do livro salutar de Stanley Fish, O que se chama de liberdade de expressão não existe e é melhor que seja assim. Nas palavras de Fish, “a fronteira entre o que se permite e o que se repudia sempre está sendo traçada e retraçada, e as estruturas de coerção estão simultaneamente em seu lugar e sujeitas a revisão caso os tempos exijam e existam recursos para tanto” (1994, p. viii). Para o Fundamentalista &– que difere, na linguagem de Fish, apenas em grau, mas não em gênero com relação ao democrata &– a fronteira entre o que se permite ou repudia ou foi traçada para todos os tempos ou pode sempre ser retraçada em graus mínimos, por um grupo seleto de pessoas com legitimidade. Para o Fundamentalista, ao menos na versão caricatural que fazemos dele &– referimo-nos quase sempre a “ele” &– as estruturas de coerção por princípio não são traçadas e retraçadas, não são submetidas ao capricho, circunstância ou interesses diretos em oposição. Nesse sentido, para o Fundamentalista não pode existir o que se chama de progresso, exceto talvez o progresso na permanência das coisas como elas estão, sob pressão &– pressão da secularização, globalização, modernização. “O que se chama de liberdade de expressão não existe”, escreve Fish, “porque desde o primeiro instante o entendimento que você possui do grau de liberdade que a expressão deveria ter é obscurecido pela sua identificação &– e pelo seu compromisso &– com o bem em cujo nome os atos de expressão devem ser justificados” (p. 14). Somos livres para nos expressar se o que dissermos servir aos nossos valores elementares em vez de sabotá-los. Para o Fundamentalista, como para o democrata, as pessoas podem dizer o que bem entendem; mas quando começam a dizer coisas que se destinam a destruir os pressupostos fundadores de sua cultura política deve haver punição. Afinal, o que significaria valorizar uma coisa e não querer protegê-la? Se os democratas valorizam de fato o dissenso, argumentos concorrentes e visões opostas, qual seria a natureza de seu compromisso, a natureza de sua crença, se eles permitissem que tudo isso fosse violado? Naturalmente o mesmo vale para o fundamentalista. A questão passa a ser o que implica atribuir valor às pessoas, e como estamos implicados nisso. As pessoas estão preparadas para morrer e matar pelos outros e por suas sentenças. Então, a outra pergunta seria aproximadamente: que imagem fazemos de uma crença fundamental, ou de um valor absoluto? Como imaginamos que essas coisas atuam dentro de nós e entre nós de modo que estamos dispostos a oferecer por elas o sacrifício extremo de nossas vidas? Se existem crenças, ou descrições fundamentais para a idéia que temos sobre nós mesmos e o tipo de vida que desejamos, por que faríamos outra coisa senão toda e qualquer coisa para protegê-las? Que tipo de coisa são as crenças se aceitamos trocá-las por outras crenças?

Se algo é fundamental devemos supor que não se submete a redescrição. Se tomarmos nossa breve definição inicial do fundamentalismo pelo anglicano Oxford English Dictionary do século dezenove &– “a infalibilidade literal da Escritura” &– poderemos vê-la como a afirmação de que existem pessoas que compreendem a si mesmas como portadoras ou transmissoras da verdade de sua escritura, mas para elas a verdade de sua escritura não se discute. Discuti-la seria não entendê-la; considerá-la aberta à interpretação, exceto pelos poucos que possuem qualificação, seria tratá-la como algo que ela não é. Se leio o Novo Testamento como uma ficção aparentada a outras ficções &– como um tipo de romance ou série de histórias curtas &– da perspectiva do fundamentalista isso não é o que eu chamaria de um erro de percepção: é um pecado. O cristão, o cristão caridoso, talvez dissesse que eu resisto à mensagem do Evangelho, que não estou preparado para receber a boa nova. Por conhecer a verdade de sua revelação, a sua infalibilidade, o fundamentalista conhece também a condição daqueles que não partilham sua crença. Aqui os problemas são tão sérios que ninguém irá “concordar na discórdia”. O melhor que se pode esperar da margem liberal &– e que soa otimista diante da nossa atual adversidade &– é aquilo que o filósofo político John Gray denomina modus vivendi. “Podemos entender o projeto liberal”, ele escreve:

não como a aspiração por um regime ou uma forma de vida universal, mas como a busca por modus vivendi entre regimes e formas de vida distintas. Compreendido dessa maneira, o liberalismo não é a aspiração sectária pela autoridade universal de uma moral particular e sim a procura por termos de coexistência entre moralidades diferentes. Nesta concepção alternativa o liberalismo toma parte na moderação dos conflitos de culturas que permanecerão sempre diferentes, sem fundar uma civilização universal (2002, p. 158).

O projeto, escreve Gray, é a coexistência e não o consenso. De uma perspectiva psicanalítica (freudiana) fica claro que a descrição de Gray parece genuína. Na apresentação freudiana do sujeito moderno cindido não há consenso possível entre as instâncias em conflito, não há regime universal ou forma de vida partilhada pelos chamados id, ego e superego. A busca por termos de coexistência entre moralidades distintas é, efetivamente, uma descrição tão boa quanto outras, para o projeto psicanalítico, para o que Lacan denominou “a oportunidade psicanalítica”. No retrato freudiano da psique o fundamental é o caráter inevitável e conseqüentemente necessário do conflito. Também é fundamental &– e está vinculado a ele &– a idéia de resistência. Em toda análise o paciente e o analista se deparam com algo no paciente &– e provavelmente com algo no analista &– que não é negociável. Tudo o que for inegociável no paciente, o ponto em que nada pode ser permutado, em que for libertada nele a violência mais intensa &– ali está o que podemos denominar agora o fundamentalismo do paciente. E pode ser aqui que a análise começa, que está o seu assunto, ou então o ponto em que ela emperra. Mas aparece o enigma: a partir destes termos, quem é o fundamentalista, aquele que reconhece a resistência ou aquele que resiste? Evidentemente, podemos reconhecer sinais de resistência sem saber contra o que se resiste. Quem já sabe contra o que está resistindo, ou sabe o que deve resistir, provavelmente está próximo do fundamentalista. Mas essa é a situação do paciente no momento em que não acolhe nada do que diz o analista. Em psicanálise, como em todos os chamados relacionamentos, encontramos sempre um choque de fundamentalismos, conflitos acerca do que é fundamental e do que representa reconhecer estas coisas fundamentais. Neste sentido, as pessoas sempre encontram outras, cruzam com outras, em um impasse. Pode ser que este dado, tomado em si mesmo, faça da situação analítica um espaço interessante para examinar do que falamos, afinal de contas &– em um plano comum, ou até secular &– quando nos referimos, em nossa mais profunda ignorância, ao fundamentalismo. Talvez não precisemos descobrir nada, informar-nos como deveríamos, porque sabemos demais a respeito dele, ainda que não sejamos, nos termos de John Gray, “fundamentalistas do esclarecimento”. (Evidentemente, não é por acaso que fundamentalistas nos fascinam: jamais somos indiferentes a eles). Pode ser vantajoso, acredito, retornar ao tópico antigo e antiquado das defesas, e das defesas como formas de reconhecimento. Como muitos já indicaram, não surpreende que a história da psicanálise seja também a história da ascensão do fascismo e do nacionalismo na Europa Ocidental. A obra de Freud, o que mais ela venha a ser, é uma tentativa de descrever o que o indivíduo moderno confronta em si mesmo e nos outros; ela fala do indivíduo moderno e de sua auto-proteção.

É possível afirmar que uma das coisas partilhadas pelo liberal modernista e pelo fundamentalista é aquilo que, após Freud, os psicanalistas definem como uma resistência; cada um acredita existir algo que o outro se recusa a ver, e que ele considera verdadeiro, ou pelo menos melhor. Se o outro lado fosse capaz do reconhecimento requerido, crêem ambos, o mundo seria como deveria ser. Viveríamos a vida que nos foi solicitada viver &– solicitada por Deus, ou pelo núcleo relevante de crenças e autoridades seculares. Entretanto é uma situação em que persuasão, negociação e até a discussão se rompem; nós, liberais modernos, poderíamos dizer que as palavras não funcionam mais como queremos; deparamo-nos aqui com a dificuldade real em transformar as pessoas. Essa é claramente uma versão do sentimento que a maioria dos casais vive em algum momento, quando, como se costuma dizer, nem adianta discutir. A cura pela fala acabou nos mostrando o que a fala não consegue curar. Podemos acreditar naquilo que chamamos de discussão e debate, progresso e diferença e assim por diante; mas eles podem acreditar em revelação e tradição, autoridade e pureza e assim por diante. Falamos do momento em que as pessoas começam a acreditar, com desespero ou alívio, que nossa melhor opção é a coexistência e não o consenso; ou inversamente eles acreditam que os descrentes &— os que não têm a mesma orientação &– devem ser erradicados. Noutras palavras, a coexistência é a última esperança dos liberais modernos, o último ideal político remanescente, que sobreviverá apenas se houver um acordo em torno dele. Quem não acredita na coexistência &– quem dá mais valor a suas crenças fundamentais do que a sua própria vida &– não vai se empenhar para definir quais seriam as condições para a coexistência.

Há um claro risco em negociar com quem considera a negociação um pecado, com quem acha que tomamos por regra exterminar o inimigo em vez de negociar com ele. Quando negociamos com pessoas deste tipo conspiramos, querendo ou não, com a nossa própria destruição. “Os religiosos moderados”, escreve Sam Harris em O fim da fé [The end of faith] (2004), “são, em grande parte, responsáveis pelos conflitos religiosos em nosso mundo, pois suas crenças proporcionam o contexto que jamais permite a oposição adequada entre literalismo escritural e violência religiosa”.

Admite-se o problema, mas corre-se o risco de prolongá-lo; religiosos moderados, por serem moderados, aquietam os fanáticos e assim permitem que eles prosperem. Mas Harris não pode, por definição, propor que paguemos com a mesma moeda, a violência religiosa com violência religiosa. A questão perene do pósiluminismo é: como opor adequadamente o literalismo escritural e a violência religiosa que ele abriga com frequência? Como não violar nossas crenças elementares pela maneira como as defendemos? Se, atiçamos os atiçadores, traímos a nós mesmos em ambos os sentidos. Se, está na base da crença fundamental de alguém que ele deve destruí-lo, o que você lhe diria &– ou, em termos mais realistas, o que você faria com ele? Você pode imitar seu inimigo e tentar destruí-lo, ou pode aderir a um projeto permanente para proteger-se contra ele e limitar seu poder.

Seria óbvio, para qualquer pessoa informada sobre a psicanálise, que o chamado modelo freudiano da mente é uma caricatura deste embaraço: o ego do moderno indivíduo freudiano enfrenta dois fanáticos, o superego e o id, duas instâncias que não demonstram reservas com relação aos seus compromissos, e ambas fundamentalistas segundo a definição de Lord May, o zoologista e ex-presidente da Royal Society. O fundamentalismo, ele diz,

não deriva necessariamente de textos sagrados. É o ponto em que uma crença derrota um fato e se recusa a confrontar-se com os fatos. Todas idéias deveriam ser abertas para exame e seu mérito deveria ser estimado a partir do vigor das provas que as sustentam e não a partir das credenciais e afiliações dos indivíduos que as propõem. Não se trata da receita para uma vida confortável, mas é comprovadamente um mecanismo poderoso para compreender como o mundo efetivamente funciona e para aplicar este modo de compreensão (Discurso de despedida de Lord May na Royal Society, reproduzido pelo The Guardian em 30.11.05).

No esquema freudiano, diria alguém, o id possui desejos que derrotam os fatos e o superego &– o “obsceno” superego, como o definia Lacan &– possui crenças que também fazem isso. Os “impulsos” do id são, neste retrato, os impulsores fundamentais de nossa existência, o superego o impulsor fundamental de nossa existência na cultura. No tratamento psicanalítico as idéias, as representações de id e superego estão, nas palavras de Lord May, abertas para exame e são, em certo sentido, estimadas a partir do vigor das provas que as sustentam. Mas cabe ao que Freud denomina “ego” a tarefa de criar o contexto que permite a oposição adequada entre literalismo moral e violência instintual (parodiando os termos de Sam Harris). Gostaria de sugerir que aquilo que Freud denomina ego é um experimento que consiste em imaginar e descrever o que estaria disponível em nós para gerenciar as formas dominantes de fundamentalismo nas quais vivemos e estamos inseridos. Afinal, o que hoje chamamos fundamentalismo era até muito recentemente uma versão daquilo que as pessoas tendiam a chamar crença religiosa.

Se uma maneira de descrever o chamado modelo freudiano da mente seria como uma guerra de fundamentalismos em combate &– os impulsos de base biológica e não-escritural do id e os ditados morais escriturais e ao menos parcialmente assimilados do superego &– então poderemos enxergar de modo satisfatório o ego como o artifício de Freud na busca por caminhos para tolerar os fundamentalismos que são a herança do indivíduo ocidental moderno. O ego, diríamos, é um personagem da ficção moderna que tenta levar uma vida boa ou satisfatória na medida do possível, sob a influência de convicções e desejos potencialmente assassinos. E o espantoso é que Freud acredita na existência desta parcela, desta versão da identidade que articula tais coisas. Freud sabidamente afirmou, com relação ao ego, que o montador deve guiar o cavalo na direção que o cavalo quer seguir, que o ego não é senhor em sua própria casa etc. E, no entanto, ele também acreditava &– com ambivalência, é verdade &– que existia uma prática social chamada psicanálise que poderia ajudar o chamado paciente, o que se dava quando o analista formava o que ele denominou “uma aliança com o ego” do paciente. Havia os determinismos intratáveis dos impulsos e da moralidade tradicional, e havia ainda, ou deveria haver, essa outra entidade, o ego, que evidentemente tem sido objeto de muita desconfiança. Talvez não surpreenda que os psicanalistas posteriores a Freud tenham debatido o ego, sua procedência, sua função, seu poder. Noutras palavras, por intermédio das ficções da psicanálise Freud se pergunta se não haveria mais nada para o indivíduo moderno, nada além dessa guerra de coisas fundamentais que sempre preexiste ao indivíduo, e dentro da qual ele já nasce. Freud quer saber a quais extremos os indivíduos modernos estão sujeitos, e porque não queremos descrever a nós mesmos como extremistas. A obra de Freud integra o projeto pós-iluminista de avaliar o que podemos ser se não somos fanáticos, ou se isso já não seria a ilusão derradeira do indivíduo progressista moderno. Poderia fazer parte deste projeto, do qual creio que a psicanálise participa, encontrar a descrição de uma boa vida em que não estivessem implicadas crenças a respeito de matar, morrer ou torturar. Em sua obra tardia O mal-estar na civilização, ao referir-se a Eros como “o portador da tarefa de unir indivíduos separados em uma comunidade ligada por laços libidinais” (1961, p. 139), Freud o apresentava como um dos lados da equação do que julgava ser a essência humana, a guerra entre Tânatos e Eros.

Mas na topografia freudiana, como afirmei, foi delegada ao ego a tarefa pouco auspiciosa de garantir a sobrevivência dos fundamentalismos. Possui interesse histórico manifesto e pertinente o fato de o Freud da virada do século, dos grandes primeiros trabalhos &– Estudos sobre histeria, Três ensaios sobre a sexualidade, os livros sobre a piada, o sonho e a psicopatologia da vida cotidiana &– estar mais para um psicólogo do id, hábil em contar-nos histórias que falam das vicissitudes do desejo sexual, enquanto o Freud tardio, da Primeira Guerra Mundial e seus espólios, está mais para um psicólogo do ego, hábil em contar histórias sobre os expedientes do ego em face do que Laplanche viria a denominar “o ataque das pulsões contra o ego”, sobretudo das pulsões agressivas, e contar histórias sobre por que a psicanálise era tão difícil. E a quinze anos do final da Segunda Guerra Mundial houve o ataque dos críticos do ego em que se apresentava a questão fundamental, se um ego fortalecido era o problema ou a solução para o sofrimento individual moderno. A psicanálise seria um humanismo iluminista ou um anti-iluminismo? O projeto consistia em ser tão dócil quanto o possível, como sugeriam os kleinianos, ou tão desejoso quanto o possível, como pregavam os lacanianos? O analista bem analisado estaria mais inclinado a apaixonar-se pelo paciente, como disse Lacan, ou, menos inclinado como garantiam todas as outras escolas analíticas? Na psicanálise, e na cultura em geral, a questão passou a ser quem &– caso existisse alguém &– teria o controle sobre o indivíduo moderno: considerando o que é nossa essência, continua a ser plausível a noção de auto-controle, ou mesmo a noção de uma identidade, ou de uma vontade? Afinal, faria parte da própria natureza do chamado ego ser plausível (para si e para os outros), e seria este o auto-engano fundamental? E não seria a função de uma essência &– uma descrição daquilo que é fundamental para a nossa existência &– tornar-nos plausíveis? Nos termos mais esquemáticos possíveis, ou o ego freudiano era, na linguagem de Lacan, uma estrutura alienada, a sede do desconhecimento do sujeito, ou ele era, nas diversas psicologias do ego, a única esperança do indivíduo em uma vida viável. O ego encontra-se por definição em um campo de batalha, mas é o único que pode tocar a obra adiante. “O ego sai vitorioso”, escreve Anna Freud na conclusão de seu grande livro O ego e os mecanismos de defesa,

quando suas medidas defensivas alcançam a meta, ou seja, quando estas lhe permitem restringir o desenvolvimento de angústia e desprazer e ainda transformar os instintos de modo a garantir, mesmo sob circunstâncias adversas, uma certa medida de gratificação, para assim formar as relações mais harmoniosas possíveis entre id, superego e as forças do mundo externo (1937/1936, p. 176).

Escritas em 1936, estas palavras soam como um otimismo estóico; o objetivo do indivíduo moderno é, em sua expressão medida, “certa medida de gratificação”, alcançada por meio da restrição, e não pelo controle do ego sobre id, superego e as forças do mundo externo. Na perspectiva psicanalítica clássica, estes são os três elementos fundamentais. No entanto fica subentendido, por estranho que pareça, que o ego possui algum instrumento, alguma escolha, coisas que o indivíduo pós-iluminista considera essenciais à sua existência. O intratável, o inegociável, está por toda parte e, no entanto, existe, queira-se ou não, uma margem de oportunidade; e aqui a gratificação está protegida. O ego possui o que Anna Freud denomina “a faculdade de auto-observação”: toda criatura capaz de refletir sobre si mesma, imagina-se, será em decorrência uma criatura capaz de transformar a si mesma; e uma criatura que possa refletir sobre si mesma também será, imagina-se, uma criatura inclinada a moderar seu desejo. O id e o superego podem ser observados, mas não são observadores. Eles são cegos, no sentido de que não tentam de forma alguma transformar a si próprios; são próximos dos fundamentalistas por não trabalharem para mudar, contradizer ou questionar seus projetos. Tal como nós, modernos seculares e liberais que acompanham com tremores os fundamentalismos do Ocidente e do Oriente, o ego vê a si próprio como aquele que estabelece &– ou procura &– as relações mais harmoniosas possíveis; a exemplo do ego, vemos a nós mesmos como os únicos capazes de observação e reflexão, enquanto eles avançam cegamente por seus caminhos violentos e farisaicos. Democrata em um mundo de fascistas, o ego deseja (na verdade, necessita) que todos tomem a palavra sem tomar o poder; a “vitória” do ego não é a derrota do id ou do superego, mas apenas a sua restrição. Trata-se supostamente de um processo civilizatório &– onde havia o id, deve advir o ego &– e incivilizados são os que não buscam a permuta, que não estão interessados em criar as relações mais harmoniosas possíveis. Seria possível afirmar neste contexto que o ego representa a criação mais radical de Freud, sua ficção mais moderna e progressista; o id e o superego &– e o mundo externo, em outro sentido &– são versões dos antiquados fundamentalistas: vozes que dizem a verdade absoluta a seu respeito, quais as coisas em que você acredita, o que necessita, o que você é, o que pode e não pode fazer. São vozes da “infalibilidade literal”; surge então uma coisa nova, moderna, dizendo que podemos refletir sobre estas vozes, que é possível viver uma vida que não seja servil, uma vida sem dominação, sem a “estrita adesão a doutrinas tradicionais ortodoxas”. Ela nos diz, em resumo, que onde havia o fundamentalismo pode advir a racionalidade; onde havia revelação e escritura pode advir o diálogo. Como produto de seu tempo, a psicanálise faz uma pergunta simples: no indivíduo moderno existem vozes que não sejam fundamentalistas? E como elas soariam? É importante notar que isso não é o mesmo que perguntar se existem vozes que sejam anti-fundamentalistas. Há vozes com as quais temos que tratar, os fundamentalistas em nós mesmos; e há vozes que não são fundamentalistas. A psicanálise, como uma cura pela fala, pode nos auxiliar nesta distinção.

Nas descrições de Freud e de sua filha, o ego, tal como nós, frente aos fundamentalistas, é tão atarefado &– ele protege seu prazer através de ações defensivas suficientes &– que tem pouco tempo para a voz não-fundamentalista. Na verdade uma formulação para o conflito em torno à psicologia do ego, e que representa o sintoma de um mal-estar cultural mais amplo, seria especular se existe para o ego a possibilidade de não se tornar fundamentalista em sua batalha com os fundamentalismos. Ou, falando de outro modo: seria possível para o ego descrito acima não ser o fundamentalista da imagem preferida de si mesma, não ser fanático quanto ao reconhecimento que demanda? Recentemente o filósofo Richard Boothby apresentou em seu livro Sexo no divã um relato bastante útil sobre o funcionamento do ego freudiano. “O ego funciona”, ele escreve,

para categorizar objetos e pessoas no mundo externo (aqueles com quem me identifico versus aqueles com quem me confronto), mas sobretudo o ego discrimina entre as forças antagônicas de meu próprio desejo (os impulsos que deixarei agir versus os impulsos que irei recusar e reprimir). Para esta concepção da estrutura psíquica é fundamental o pressuposto de Freud segundo o qual somos animados por uma vasta heterogeneidade de impulsos. Somos, em alguma esfera elementar de nós mesmos, um caos de ímpetos conflitantes. O ego está por conseqüência conectado à economia restrita de impulsos que sustentam a sensação de que possuo uma identidade estável e previsível. O ego realiza sua seleção a partir de um amplo quadro de energias impulsivas e deixa as restantes para trás. O “id” designa o restante de meus ímpetos e atos incipientes que foram excluídos do ego e mantidos em repressão (2005, pp. 71-72).

A exemplo de Anna Freud, Boothby refere-se ao ego como sendo restritivo &– “O ego está por conseqüência conectado à economia restrita dos impulsos &– e não dominador ou controlador; aqui o ego categoriza, discrimina e seleciona, servindo sempre no sentido de preservar “a sensação de que possuo uma identidade estável e previsível”. O ego simplifica a identidade a serviço da sobrevivência. Mas é evidente que para fazer isso ele precisa saber com antecedência, por assim dizer, quais impulsos provocam interrupções desnecessárias. Noutras palavras, como é freqüente em Freud, o ego é apresentado aqui como se estivesse misteriosamente informado sobre sua própria natureza; tanto ele pode pressentir um impulso que possa arruinar o sentimento de que tenho uma identidade estável e previsível quanto possui, em certo alcance, o poder para reprimi-lo. Como se fosse um esteta extremamente requintado, o ego seleciona os impulsos que o farão ser quem ele quer ser. Como, poder-se-ia perguntar, isso difere dos fundamentalismos que descrevemos? O fundamentalista deve ser por definição a pessoa que sabe exatamente o que quer (mesmo que descrita nos termos do que Deus quer para ele). A expressão “uma identidade previsível e estável, a exemplo de “as relações mais harmoniosas possíveis”, não é incompatível com a noção de uma “estrita adesão a textos ortodoxos tradicionais”. É como se o ego devesse saber com antecedência a quê deve aderir &– embora não se trate, em sentido estrito, de um texto &– para se sustentar. Isso, talvez se possa dizer, é o fundamental: a crença de que sempre sei com antecedência o que quero. Na linguagem psicanalítica, esta é a crença de uma pessoa com uma orientação perversa. A voz que denomino “não-fundamentalista” não sabe por antecipação o que quer, não entende a si mesma como alguém equipado com um texto ou algo próximo a um texto, que possa lhe oferecer semelhante conhecimento, semelhante direção, semelhante orientação. Se acreditar em algo (ou alguém) significa saber o que você quer, e se o que denominamos fundamentalismo é uma versão extrema deste saber &– extrema a tal ponto que pessoas matam e morrem por ele &– então ao falar sobre alternativas ao fundamentalismo falamos sobre a busca por diferentes formas de querer. São as formas de seu querer, se podemos chamá-las assim, que as pessoas não se empenham em abandonar. O fundamental, na linguagem psicanalítica, são os modos nos quais fazemos nosso querer. É isso que caberia ao ego freudiano modelar.

***

Pensar em si mesmo como uma contingência significa pensar
nas coisas que mais lhe importam sem importar por razões
profundas, e sim apenas pelo tipo de pais que teve,
o tipo de sociedade em que cresceu, e assim por diante.

Richard Rorty, 1989

Seria enganoso sugerir ou sequer pressupor que a linguagem da psicanálise ofereceu alguma espécie de resposta para o que nós, liberais, julgamos ser o problema do fundamentalismo e fundamentalistas julgam ser o nosso problema. Vocês terão notado que empreguei por vezes as palavras fundamentalista, fanático e extremista como se fossem intercambiáveis (como de fato a imprensa e os tablóides as empregam) &– mas, que não são. Acho que é preciso notar como o trabalho onírico da mídia transforma a informação, criando conexões e equivalências onde elas talvez não existam. E utilizei a palavra “nós” para assinalar todas as pessoas no lado oposto, como se houvesse entre elas um consenso &– mas que não há. Na verdade o único elemento partilhado pelas generalizações disponíveis acerca do fundamentalismo &–, e a expressão teria sido empregada pela primeira vez no início do século vinte por protestantes no sul da Califórnia &– é a noção de que os diversos fundamentalismos têm sido reações à modernização e não a recusa dela; como evidentemente foi a psicanálise, que precisa ser vista como um outro espaço, uma outra linguagem na qual são examinadas estas questões. A partir dos termos da boa divulgação de Karen Armstrong, o fundamentalismo, no sentido que os contemporâneos empregam para a palavra,

é uma reação contra a cultura científica e secular que surgiu no Ocidente mas a seguir criou raízes em outras partes do mundo. O Ocidente formou um tipo de civilização inteiramente diverso e sem precedentes, de modo que a contestação religiosa a ele tem sido singular. Os movimentos fundamentalistas formados em nossos dias possuem uma relação simbiótica com a modernidade. Eles podem rejeitar o racionalismo científico do Ocidente, mas não têm como escapar dele. A civilização ocidental transformou o mundo. Nada, sequer a religião, pode voltar a ser o que era. Ao redor do globo as pessoas se batem com estas novas condições e são forçadas a reexaminar suas tradições religiosas, destinadas para um tipo de sociedade completamente diferente (2000, pp. xi-xii).

Freud pertencia mais do que explicitamente ao empenho iluminista para desmascarar a religião pela invalidação. Mas, talvez o mais interessante seja ele ter deslocado o problema que Armstrong e vários outros comentadores situam no coração da modernidade, a desmontagem das sociedades tradicionais. Ali onde Armstrong menciona pessoas em confronto com as novas condições do racionalismo secular e dos mercados globais, forçadas a “reexaminar suas tradições religiosas, destinadas para um tipo de sociedade completamente diferente”, Freud fala de pessoas que são forçadas a reavaliar suas infâncias, que eram destinadas a um tipo de sociedade inteiramente diverso. Noutras palavras, no lugar de “tradição religiosa”, Freud lê a sexualidade infantil com o complexo de Édipo em seu cerne e descreve o individuo moderno que resiste a todo custo à modernidade da vida adulta. E o paciente freudiano, acima de tudo, precisa tomar consciência, articular os modos primordiais do querer que organizavam sua vida. Crescer, segundo a descrição freudiana, é uma parábola dessa transição do tradicionalismo religioso para a modernidade secular que os indivíduos modernos foram obrigados a efetuar, na qual algo aparentado ao anseio e à adoração fundamentalista por pais e família precisou ser substituído por algo diferente &– substituído e, com sorte, apaziguado em meio ao processo. Na história freudiana o indivíduo em formação deve sacrificar seus desejos mais ternos (pelos pais) por um substituto humilde, mas supostamente mais promissor.

A psicanálise nos oferece, em resumo, uma outra linguagem para redescrever as coisas que consideramos fundamentais e o fundamentalismo que acompanha estas urgências. O caminho que nos ajuda a observar a psicanálise como um outro espaço onde atuam estas questões prementes é iluminado pelo relato de Malise Ruthven sobre o que ele considera um “marco” no desenvolvimento dos fundamentalismos modernos. Existe, ele escreve,

a transição do tradicionalismo ao fundamentalismo, o ponto em que o tradicionalismo, com um certo embaraço, passa a ser reativo. Enquanto o tradicionalista autêntico não sabe que é um tradicionalista, o fundamentalista é forçado, pela lógica de seu desejo, a fazer escolhas estratégicas para defender a tradição. Anomalias textuais ou são negadas ou são subsumidas à hermenêutica da infalibilidade, em que o ônus da prova é desviado de Deus para a humanidade. Eles podem ser explicados como erros do entendimento humano e não como falhas do próprio texto (2004, pp. 65-66).

Assim como o tradicionalista autêntico ignora que é um tradicionalista, no relato freudiano a criança não sabe que é uma criança, e então algo acontece &– pode ser o crescimento, o complexo de Édipo, ou o nascimento de um irmão &–, e ele se torna, com algum embaraço, reativo. Ele irá defender os desejos infantis até a morte, geralmente através de sintomas. O fundamentalista é forçado, como escreve Ruthven, pela lógica de seu desejo a defender a tradição; o adulto freudiano é forçado pela lógica de seu desejo a defender seu ethos infantil. Quando um novo querer, uma nova forma de querer, é imposta ao indivíduo moderno, muitas vezes ocorre uma resistência violenta, uma recriação mais militante do passado. Em sua forma mais crua, ela é apenas uma imagem: alguma coisa do passado, sem a qual a vida é intolerável, corre o risco de ser destruída e substituída. Os dois lados deste conflito mortal julgam ser os guardiães (e profetas) do único futuro viável. Seria um contrasenso literal, ou uma maldade, transigir nesta matéria. Nossa relação com um passado seletivo é a característica que define os dois grupos; sem ela não existiria mais grupo algum.

Nosso vocabulário liberal começa a soar pobre quando tratamos as questões dessa maneira. Desancoradas de um solo comum para a divergência, palavras como acordo, negociação, discussão, persuasão ou progresso começam a parecer frágeis. A que tipo de acordo teríamos esperança em chegar com um pedófilo condenado? Como persuadir um palestino de que os israelenses têm boas intenções? O que haveria para se discutir com um homem-bomba? O que seria, de ambas as perspectivas, avançar na discussão sobre o significado da vida com um cristão redivivo? É como se o projeto de influência civil, coexistência, conciliação de argumentos contrários, fosse plausível somente quando os assuntos difíceis ficam de fora. Um “diálogo” entre, digamos, o fundamentalismo capitalista do Ocidente e o fundamentalismo islâmico, parece o tipo de coisa que só pode ser sonhada pelas pessoas nas universidades, ou por pessoas que assistem os noticiários e torcem para que tudo acabe bem. É como se fizéssemos uma imagem falsa do que são realmente as pessoas, do que elas realmente são no que toca às coisas que supõem serem fundamentais. Depois de observar a contenda entre pessoas, o conflito sem medida que elas podem incitar umas nas outras, substituímos essa percep ção por fantasias de harmonia. Quanto mais horrorizados ficamos, mais nos comprometemos com o sonho da unidade. As pessoas podem se entender, mas não por muito tempo; e vemos e ouvimos dizer, cada vez mais, que elas não se toleram. Não queremos matar quem mais odiamos, notou, certa vez, o psicanalista Ernest Jones, queremos matar quem desperta em nós o conflito mais intolerável. E nos dias de hoje cada vez mais pessoas levam vidas de conflitos intoleráveis.

O fundamentalismo nos evidencia &– ao menos como uma expressão &– a pergunta pelo que é fundamental para nós, e qual seria uma boa relação com estas coisas fundamentais; qual o tipo de vínculo que temos com as coisas que mais nos importam, consciente e inconscientemente. Freud contribuiu para esta discussão moderna ao afirmar que nossa sobrevivência física e psíquica é, em primeiro lugar, fundamental para nós, e que a coisa fundamental subseqüente é a gratificação dos instintos sob a égide do complexo de Édipo. Mas ele também nos mostrou &– o que é, ao seu modo, mais útil &– que resistimos mais a falar sobre as coisas que mais nos importam. E há uma ironia, uma reversão do senso comum que merece ser notada. Podemos pensar: sabemos o que é fundamental, o que é mais importante para nós e a única pergunta é se podemos honrar estas coisas submetendo-nos a elas, defendendo-as. Freud sugere, com a linguagem da psicanálise, que as coisas fundamentais são aquelas que estamos menos inclinados a apreender, reconhecer e articular. Pela perspectiva freudiana, a escritura sem descaminhos existe porque sempre nos descaminhamos acerca e ao redor de nossas principais preocupações. O problema começa, é claro, quando Freud passa a nos dizer quais são nossas preocupações reais, verdadeiras e profundas, inscrevendo assim uma outra escritura possível onde não seria necessário existir uma. Somos os animais que matarão e serão mortos por nossas crenças fundamentais &– pelas sentenças que mais importam para nós; a isso Freud acrescenta que somos os animais comprometidos a nunca saber quais são nossas crenças fundamentais, que onde há convicção sempre há deslocamento; e que onde está a convicção mais forte, ali está o objeto menos adequado. Isso chega a ser insólito por ser tão desconcertante quanto ao efeito que estas idéias podem causar ao serem trabalhadas. O fundamentalista sabe quem é; quando falamos com toda a nossa paixão a respeito do que mais nos importa como se, ao menos naquele momento, soubéssemos quem somos, ou como se fôssemos algo que importa ao menos para nós mesmos; quando somos mais plausíveis, persuasivos, convincentes e convencidos, acrescente Freud, talvez sejamos mais plenamente defensivos. Freud quer que acreditemos que não nos refugiamos de nossa ambivalência, que nos identificamos mais com aqueles que estigmatizamos, mas que estas serão as identificações que devemos manter inconscientes para nós mesmos.

Existem versões da identidade moderna, das identidades que encontramos, para quem discutir, negociar ou sequer falar é o problema e não a solução; para quem falar é sempre dizer muita coisa, arriscar familiaridade que conquistamos a duras penas conosco. É como se fôssemos também o animal para quem certas coisas &– que são, com uma freqüência surpreendente, as coisas fundamentais &– ou não podem ou não devem ser discutidas; para quem ou existem, num sentido quase literal, uma incapacidade (certas coisas são simplesmente inarticuláveis) ou então para quem falar tais coisas talvez trouxesse um tal sofrimento, uma tal perda que elas são, para quaisquer fins ou intenções, indizíveis. E a psicanálise, em seu grau elementar, tenta clarificar esta distinção para qualquer indivíduo. Mas não devemos supor que as coisas mais fundamentais para nós &– tenhamos ou não consciência delas &– necessariamente abram caminho para a harmonia conosco ou com outros. A bem da verdade talvez devamos reconhecer, por absurdo que pareça, que as coisas fundamentais para nós &– ou a defesa do que venha a ser fundamental para nós &– possam ser precisamente aquelas que nos destroem; que só merecemos viver por aquilo que merecemos morrer. Podemos, é claro, nos perguntar por que se deve morrer em nome de um valor, por que iríamos querer valores que nos impõem exigências dessa ordem.

Vêm surgindo diversas manifestações, democratas e otimistas (e muitas outras, psicanalíticas e discretas), que apresentam razões para se valorizar o conflito como algo estimulador, gerador, produtivo, inclusivo e assim por diante. E os fundamentalismos de todas as linhagens simulam valorizar o conflito, no melhor dos casos, e nos piores querem o abolir. O fundamentalista do capitalismo ocidental, a exemplo do fundamentalista religioso ostensivo de quem escutamos falar cada vez mais, crêem de fato que a única boa vida é aquela na qual o inimigo, os dissidentes, os dissuadidos já não participam mais da conversa: um mundo sem comunistas, judeus, incrédulos, seria o mundo como ele deve ser. Aqueles entre nós que não se sentem atraídos por aquilo que se denomina fundamentalismo, de modo impreciso ou não tão impreciso, aqueles que não querem ser fundamentalistas em uma guerra contra os fundamentalismos, têm um problema sério. De que serve, afinal, ter respeito por pessoas que não respeitam o respeito que temos por ela? Não sei qual seria a resposta à pergunta, mas não acho que nosso otimismo nos coloca em risco.

 

Referências

Armstrong, K. (2000). The battle for God. New York: Knopf.        [ Links ]

Boothby, R. (2005). Sex on the couch. London: Routledge.        [ Links ]

Freud, A. (1937). The ego and the mechanisms of defence (Cecil Baines, trans.). London: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1936).        [ Links ]

Freud, S. (1961). Civilization and its discontents. in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, Vol. XXI, (James Strachey, trans.). London: Hogarth Press (Trabalho original publicado em 1929).        [ Links ]

Fish, S. (1994). There is no such thing as free speech and it’s a good thing, too. Oxford/New York: Oxford University Press.

Gray, J. (2002). Two faces of liberalism. New York: New Press.        [ Links ]

Harris, S. (2004). The end of faith. New York: W.W. Norton & Company.        [ Links ]

May, L. (2005, 30 nov.). Discurso de despedida na Royal Society. The Guardian. Oxford English Dictionary (2005). Oxford/New York:Oxford University Press.        [ Links ]

Rorty, R. (1989). A post-philosophical politics? An interview by Daniel Postel. Philosophy & Social Criticism 1989, vol. 15, pp. 199-204.        [ Links ]

Rose, S. (2005). Lifelines. London: Vintage Books.        [ Links ]

Ruthven, M. (2004). Fundamentalism: The search for meaning: Oxford/New York: Oxford University Press.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Adam Phillips
University of York, Heslington
Department of English and Related Literature
York, UK YO10 5DD
E-mail: engl8@york.ac.uk

Recebido: 30/05/2008
Aceito: 12/05/2008

 

 

Tradução: André Carone

* Conferência apresentada na Manor House Centre for Psychotherapy and Counselling, Londres, 6 de maio de 2008.
** Psicanalista residente em Londres, editor-geral da nova coleção das obras de Freud publicadas pela Editora Penguin, que conta até o momento com dezesseis volumes publicados. É professor visitante honorário da Universidade de York, onde apresenta três conferências anuais.