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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

A conduta indiferente

 

Indifferent behaviour

 

 

Franklin Leopoldo e Silva*

Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do texto é compreender certos traços de uma conduta que ganha generalidade na época contemporânea: a indiferença. Não se trata apenas de um comportamento, mas de um modo de ser, razão pela qual é preciso relacioná-la com a construção da subjetividade e com a experiência da alteridade. Para isso utilizamos como instrumentos de elucidação O ser e o nada, de Sartre e O homem sem qualidades, de Musil, procurando indicar que, na filosofia da existência a alteridade interna ao sujeito torna-se meio de constituição da subjetividade por via da liberdade, e no romance de Musil a ausência de unidade substancial redunda na dissolução da realidade subjetiva e na opacidade do mundo objetivo. A indiferença aparece então como uma conduta específica, embora contenha elementos da familiaridade e da estranheza.

Palavras-chave: Alteridade, Consciência, Existência, Fragmentação, Subjetividade.


ABSTRACT

This paper intends to understand some aspects of indifference as a general behaviour we can observe in our days. More than a simple behaviour, it is a way of life, that we must connect with two process of existence: self-construction of subjectivity and experience of the other. We experiment, in order of elucidate the questions, some ideas of Sartre’s Being an nothingless and Musil’s novel Man without qualities. We believe that it is possible to show that, in the context of Existencial Philosophy, the internal relation between self and other advances the process of free self-constitution, but in Musil’s context the missing character of substantial identity would carry to reality’s dissolution. Indifference appears as singular behaviour, although seemingly related to strangeness and familiarity.

Keywords: Other, Conscience, Existence, Dissolution, Subjectivity.


 

 

Muitas vezes, os exemplos que Sartre oferece em O Ser e o nada para esclarecer ou ilustrar as observações filosóficas assemelham-se a pequenos contos: a moça que esquece as mãos entre as do parceiro, como se fosse um objeto independente de sua vontade, coisa inerte, manifestando assim a má-fé de quem deseja ocultar o próprio desejo e fingir que desconhece o desejo do outro; o voyeur que se vê flagrado pelo olhar de um outro que o congela numa conduta eventual e lhe impõe a essência de voyeur; o garçon que se esmera em desempenhar o papel de garçon. Narrar as ambigüidades da conduta é um procedimento que vai ao encontro do perfil dramático das grandes questões contemporâneas porque, para o existencialista, a subjetividade individual é uma história. A recusa da essência e a prevalência do processo abrem o horizonte da história, isto é, de um sujeito que se conhece e é conhecido na medida em que se constitui e é constituído narrativamente.

Interessa-nos particularmente a descrição narrativa de uma outra cena: “Tenho encontro com Pedro às quatro. Chego com atraso de quinze minutos; Pedro é sempre pontual; terá esperado? Olho o salão, os clientes, e digo: ‘Não está’”. (Sartre, 2001, p. 50). Essa breve descrição de um episódio banal nos mostra primeiramente um absurdo: olhar o bar e ver que Pedro não está. No entanto, nada há de mais comum do que, numa situação de um encontro frustrado, dizer: “vi que ele não estava”. Como pode ser tão trivial perceber, pelo ato direto do olhar, a ausência de alguém? Será que temos aqui apenas um artifício de linguagem? Se assim for, trata-se de uma estratégia extraordinária, essa de produzir uma analogia entre o ser e o não-ser, referindo-se a uma ausência como se fosse uma presença, verificando a ausência de Pedro de modo tão conclusivo como se dissesse:“lá está ele!”.

Na verdade, trata-se de uma convicção, não somente de um modo de falar. A convicções desse tipo chamamos juízo. No juízo afirmativo determinamos algo que é, que constitui uma presença. No juízo negativo, constatamos o que não é, uma ausência. Mas essa distinção lógica parece falhar nesse caso, em que afirmamos que algo não é, que Pedro não está &– como se fizéssemos um juízo afirmativo acerca da negação da presença. E não se trata de um exercício intelectual, pois não suponho uma situação ideal, mas observo empiricamente que Pedro não se encontra no bar. É uma constatação direta que me leva a uma atitude prática, por exemplo, procurá-lo em outro lugar. Nesse caso, não duvidar da percepção significa a certeza de que não há objeto percebido: estou tão certo da ausência de Pedro quanto estaria de sua presença, caso o tivesse encontrado.

E ainda há mais: se alguém me perguntasse: “o que havia nesse bar em que Pedro não estava?”, teria grande dificuldade em responder. Minha atenção focalizava tão estritamente Pedro que a percepção de sua ausência fez desaparecer do meu campo de visão tudo mais que poderia ter visto. “Cada elemento do lugar, pessoa, mesa cadeira, tenta isolar-se, destacar-se sobre o fundo constituído pela totalidade dos outros objetos, e recai na indiferenciação desse fundo, diluindo-se nele” (Sartre, 2001, p. 50). Cada elemento, e a totalidade formada por eles, tornam-se massa amorfa, fundo indistinto e indiferenciado no quadro em que Pedro não aparece. A figura que se destaca sobre o fundo é justamente aquela que não está lá. De tal forma que, à pergunta acerca do que realmente percebi de tudo que lá estava, só posso responder: nada.

Mas esse nada possui uma característica bastante singular: ele foi produzido por mim, pela minha consciência perceptiva, pela intencionalidade que governava a minha relação com o lugar. Tanto é assim que, no dia seguinte, alguém que lá estivera poderia me relatar toda uma série de coisas e pessoas que lá estavam e que eu poderia ter observado tanto quanto ele. Isso não aconteceu porque minha percepção estava inteiramente tomada pelo único objeto que, no entanto, lá não estava: Pedro, cuja invisibilidade teve o poder de anular todas as coisas visíveis, fazendo com que a realidade se desvanecesse.

Sartre tem uma explicação para isso:

Mas, precisamente, eu esperava ver Pedro, e minha espera fez chegar a ausência de Pedro como acontecimento real alusivo a este bar; agora, é fato objetivo que descobri tal ausência, que se mostra como relação sintética entre Pedro e o salão onde o procuro; Pedro ausente infesta este bar e é condição de sua organização nadificadora como fundo (Sartre, 2001, p. 51).

Ou seja, para a consciência que tenho da realidade, alimentada pela expectativa de ver Pedro, nada é mais presente do que a sua ausência. Em outros termos, o nada é presente e o ser é ausente. Se é Pedro que desejo ver, o nada de sua presença é mais forte do que tudo que se faz presente. Minha consciência nadificou a presença e presentificou a ausência. Porque trazia comigo a presença de Pedro, tinha de perder todas as presenças que não eram essa. Nossa consciência tem esse poder: intuir a ausência e perder a presença; determinar a negação e indeterminar a afirmação; visar o nada e abstrair o ser. Ver apenas o que está fora da presença visível e ignorar o que está dentro de seus limites. Estranha dialética: de um lado, estamos muito próximo do que não é, convivemos com isso como se fosse o mais familiar; mas, por outro lado, não significa que trocamos o ser pelo nada, através de uma inversão que valoriza a ausência. Na verdade, convivemos com a ausência porque dela temos consciência e seu caráter negativo não torna menos intensa a relação. Isso significa que o nada não deriva do ser, mas usurpa, de alguma maneira, a sua plenitude. “O não, brusca descoberta intuitiva, aparece como consciência (de ser) consciência do não” (Sartre, 2001, p. 52). Não há propriamente inversão, mas talvez interversão: a expectativa de Pedro, que não é a sua presença, real, no entanto a precede; e a negação dessa presença não a desfaz, antes desfaz o contexto em que essa presença não se dá, rompendo os laços com o imediato e mantendo a força daquilo que, ontologicamente, deveria ser. Assim se explica porque a constatação do negativo é a consciência do negativo como forma de visar o seu ser.

Essa força do negativo mostra-se primeiramente na indagação e na expectativa: Pedro está? “Terá esperado”? Mas, prolonga-se também na resposta e na confirmação da ausência: “não está”; “vi que não está”. A negação interrompe a continuidade do que deveria ser familiar e imediatamente presente, mas também, como vimos, usurpa e toma o lugar do imediatamente dado. Todas aquelas coisas e pessoas que lá estão não deveriam estar; Pedro é que deveria estar. Por isso eu as faço recuar para a ausência e o nada, para que Pedro se mostre na intensidade de sua ausência.

O que supera a aparente banalidade desse episódio é que aí se manifesta a situação do luto. Com efeito, o luto consiste em olhar o mundo e ver que alguém não está; e que todas as presenças não valem essa única ausência. Nesse sentido, é impossível dizer que a ausência é simplesmente o contrário da presença ou que o nada é o contrário do ser &– na modalidade da relação lógica que Sartre acredita estar no primeiro movimento da lógica hegeliana, em que o ser “passa ao” nada pela intermediação de sua própria generalidade vazia (Sartre, 2001, p. 54). Parmênides, afinal, tinha razão: o ser é, o não-ser não é. Para que se possa falar de nãoser há que se pensar o ser. O nada não se opõe ao ser por si mesmo simplesmente porque o nada não é, ele não pode se opor. O nada se introduz no ser pelo movimento de negatividade e, portanto, ele é posterior. Daí a pertinência dessa estranha palavra: nadificação. Ela indica que o nada é fruto de um ato porque a contraposição do nada ao ser é a ação de negar. É a dependência do nada em relação ao ser que produz a intuição da ausência. Posso ver aquele que não está porque nego tudo que está, tudo que poderia ver de direito. Por isso o nada é menos o oposto do ser do que aquilo que é gerado no seu próprio centro. “O nada não pode nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser..., no bojo do ser, em seu coração, como um verme” (Sartre, 2001, p. 64).

Esse ato de distanciamento radical é bem singular: como se pode conceber uma ação nadificadora senão a partir de uma instância que pode produzir o nada porque já o traz em si? Mas como se pode compreender justamente essas duas expressões: “produzir o nada” e “trazê-lo em si”? O célebre “trabalho do negativo” de Hegel explica apenas em parte essa etapa fenomenológica. O negativo, o verme no coração do ser, corrói; mas essa corrosão engendra a realidade negativa e negadora que é responsável pelo nada: um parasita que se constitui junto ao ser-em-si e a partir dele. Nesse sentido, constitui menos o ser-em-si como objeto do que a si mesmo como sujeito ou para-si. Extraordinária metamorfose do cartesianismo: o sum do cogito ergo sum é vazio, é projeto de ser. É preciso abandonar o projeto da Segunda Meditação, que seria passar da intuição da existência à definição da existência como posição da essência (o que sou?). Mas é somente abandonando o itinerário cartesiano que se pode descortinar a existência como processo indeterminado de auto-constituição. Não é possível definir no interior do cogito as propriedades de um Eu substancial, susceptível de ser absolutamente conhecido na sua interioridade essencial. Não se pode mais contar com a ligação tradicional entre atributo essencial e atributos acidentais, formando uma totalidade constituída. Os modos-de-ser se constituirão no processo da existência. Todo existente é, primeiramente,“sem qualidades”.

***

Entretanto, esse sujeito sem qualidades tem pela frente a subjetivação como tarefa: será o que fizer de si, terá os atributos que lograr atribuir a si mesmo. Estará sempre, de alguma maneira, longe de si, mas em busca de si, porque o desejo fundamental, para Sartre, é o desejo de ser. E como ser significa tornar-se o que se projeta ser, o sujeito é um nada que é tudo: somente de sua nulidade pode extrair o seu ser, isto é, determinar-se por liberdade. Por isso a liberdade é característica ontológica e não propriedade da substância- sujeito. É a liberdade que move o desejo de ser si mesmo, de atingir o si do para-si. Daí a ambigüidade envolvida em não ser o que é e ser o que ainda não é, que é a marca do sujeito sartriano.

Podemos dizer, a partir daí, que essa noção de subjetividade se localiza no centro da crise moderna do sujeito, isto é, entre o sujeito substancial ou formal (cartesiano ou kantiano) e o desaparecimento do sujeito como tema do pensamento estrutural e “pós-moderno”. Não é por outra razão que Sartre diz que só podemos seguir Descartes abandonando-o tão logo incorporemos sua descoberta fundamental. O cogito só é verdadeiro ponto de partida se o deixamos assim que o descobrimos. Essa atitude filosófica constitui o núcleo da concepção existencial de sujeito. A evidência do cogito é inquestionável no plano do eu sou e impossível na esfera do que sou. Portanto, à intuição fulgurante de que sou segue-se a obscuridade inevitável do que sou. De certa forma, a intuição de si é também uma intuição da ausência, porque é o conhecimento de uma presença não revelada.

Podemos encontrar essa afirmação da negação em O homem sem qualidades de Robert Musil. A ausência de qualidades é a falta de um conjunto de atributos organicamente interligados que deveriam formar uma subjetividade substancial. Se houver no mundo algum núcleo de substancialidade, não será certamente o que se tem designado como sujeito. Implicitamente, é a própria ontologia substancialista que está sendo posta em dúvida. Já não podemos conservar a certeza de que seria possível abordar as coisas a partir de um esquema categorial revelador de realidades essenciais. Conseqüentemente, a realidade se dissolve no próprio feixe de percepções pelo qual julgamos fixá-la. Seriam elementos que desaparecem antes de que se realize a convergência do percebido num núcleo unificador. A organização do mundo foi um pressuposto que acabou por se revelar uma ilusão, e essa constatação é a própria experiência histórica. De tal modo que a presença de atributos constituintes da realidade já não é mais a forma “de se orientar no pensamento”. Vista a partir de sua história tardia, a modernidade ser caracteriza então pela erosão e não pela sedimentação. A aposta cultural do humanismo foi perdida e as convicções iluministas se evaporaram juntamente com os princípios formais que sustentavam a ordem racionalista.

Isso se refere tanto a fatos quanto a valores. Ernst Mach, o filósofo sobre quem Musil escreveu uma tese, era partidário de um “monismo psico-físico” que consistia numa dissolução da realidade, inclusive subjetiva, num complexo sensorial de elementos, o que tornava impossível conceber qualquer substância ou identidade. Nada pode ser integralmente representado. Não há qualquer fundamento que possa conferir realidade a algum Eu unitário considerado como suporte psicológico ou instância valorativa. Os elementos que porventura componham a realidade (“exterior” ou “interior”) não possuem qualquer densidade qualitativa a partir da qual pudessem ser vistos como constituintes de uma totalidade de direito apreensível. Nesse sentido, o indivíduo não é portador de possibilidades subjetivas de organização representativa da realidade. Temos aqui algo mais do que a crítica do essencialismo a partir da exacerbação de aspectos da ontologia do empirismo britânico e da lógica neo-positivista. Não se trata apenas de uma refutação da atitude metafísica em prol da relevância de uma epistemologia. Pois a realidade, vista no limite como processo de dissolução, impede inclusive que a observação empírica possa reter qualquer aspecto. É como se o único fenômeno observável fosse o do desaparecimento.

Nem mesmo se pode dizer que restaria a funcionalidade de elementos, pois sua eventual agregação não poderia ser vista nem a partir de uma causa formal ou eficiente nem com respeito a qualquer finalidade imanente. É nesse contexto que aparece o homem sem qualidades. “Não é difícil descrever esse homem chamado Ulrich, de trinta e dois anos, em seus traços fundamentais, embora ele próprio saiba apenas que está a um tempo longe e perto de todas as qualidades, e que todas, suas ou não, lhe são estranhamente indiferentes” (Musil, 1989, p. 110). A construção da personagem por via de análise psicológica faz prevalecer a decomposição, em dois sentidos. Em primeiro lugar, a análise é dissolvente, isto é, não visa mostrar como os elementos se compõem na constituição da personagem Ulrich, mas sim como a análise de uma “personalidade” pode resultar na impessoalidade. Dito de outro modo, a análise da subjetividade visa mostrar, por decomposição, a ausência de subjetividade, como se a construção ficcional do sujeito obedecesse ao critério da destituição de sua subjetividade: uma busca cujo sentido está justamente em nada encontrar.

Em segundo lugar, a descrição do sujeito visa mostrar a sua decomposição humana &– ou ética. Não no sentido de uma deterioração do caráter, mas como demonstração de uma ausência de caráter, um vazio que, antes de ser moral, o que seria uma qualificação, é ontológico, espécie de falta de impulso e de persistência no ser. O trabalho analítico visa, assim a impersonalização, como se o objetivo fosse o de descrever uma neutralidade factual e axiológica mais profunda do que a própria indeterminação existencial.

“Todas as qualidades..., suas ou não, lhe são estranhamente indiferentes”. Em outras palavras, “um homem sem qualidades consiste em qualidades sem homem” (Hanke, 2004, p. 132). Não se trata apenas de afirmar que qualidades existiriam objetivamente sem serem incorporadas por um sujeito; visar indiferentemente as qualidades (como num processo de intencionalidade sem consciência) resulta em despojá-las até mesmo da dimensão objetiva, como numa modalidade de consciência da inexistência. Note-se que nesse caso o vazio subjetivo se projeta “objetivamente” como esvaziamento do mundo, ao modo de uma absorção da realidade pelo próprio vazio.

Sabemos que, fenomenologicamente, a consciência não é nada além de um movimento na direção das coisas &– visar a realidade. Ora, esse vazio da consciência, ao mesmo tempo em que a torna nada (em termos substanciais ou formais) também a redefine como movimento que vai ao encontro das coisas. A consciência não é interioridade receptiva justamente porque consiste em sair (de si) para encontrar o mundo lá onde ele está. Mas o que pode significar visar o mundo pela indiferença, senão projetar o vazio da subjetividade numa completa anulação de qualquer compromisso com as coisas, ou com as “qualidades” do mundo, inclusive intersubjetivo? Tudo indica que um mundo analisado até o limite de sua dissolução não pode oferecer qualquer resistência ao movimento da consciência, supondo que esse movimento ocorresse. Mas como o Eu também foi reduzido à sua própria dissolução, nem mesmo há movimento que pudesse encontrar eventual resistência. Assim, tudo se passa como se houvesse uma relação tácita entre a ausência de consciência de si e ausência de consciência das coisas. A auto-consciência como relação puramente negativa do Eu consigo próprio encontra o mundo desabitado, isto é, as “qualidades sem homem”.

Entretanto, o mundo de Ulrich prima pela exatidão. É como se a falta de ser (e não apenas a falta de significado) devesse ser vivida com absoluta precisão. Talvez se possa dizer que aqui se define a posição de Musil no contexto da modernidade, isto é, na experiência de seu esgotamento. Pois o que se trata de descrever exatamente é o mundo vazio como cenário de uma experiência sem referências. O anonimato integral como irrealização da subjetividade e da intersubjetividade pode ser visto também como conseqüência da análise levada até a dissolução. Daí a ausência de referenciais narrativos: Musil recusa a atitude do narrador que julga poder dizer “quando”, “antes”, “depois”, ou seja, estabelecer uma ordem para ocultar as “multiplicidades desordenadas da vida” (Hanke, 2004, p. 135). A indiferença deve ser minuciosamente narrada para que a Falta se sobreponha ao episódio e para que se veja como as coordenadas do Eu naufragam na fragmentação da experiência. O próprio romance é um imenso fragmento “uma obra de arte ... que necessariamente tinha que ficar inacabada” (Raddatz citado por Hanke, 2004, p. 136). Com efeito, a “estrutura interna” do fragmento é necessária para que a desordem pluridimensional, paradoxalmente arquitetada segundo rigorosos critérios de precisão, venha a superar a narrativa unidimensional, procedimento anacrônico no contexto da descrição dissolvente do mundo, da sociedade e do sujeito. Musil“narra” na época da impossibilidade das narrativas.

A perda das referências &– transcendentes ou imanentes &– produz o fenômeno da individualidade abstrata. Pode-se dizer que no início da modernidade o projeto de rearticulação do mundo e do homem ocorre em duas vertentes paralelas: a instauração cartesiana do sujeito metafísico e concepção política do indivíduo em Locke. A posição do sujeito como centro ordenador das representações implica, como se sabe, uma crítica severa da tradição, notadamente no que diz respeito ao saber e às crenças fundadas em critérios extrínsecos à subjetividade. A autonomia do sujeito passa a ser sua única referência, mesmo quando a busca se refere ao que estaria além da subjetividade. Ao mesmo tempo, o indivíduo é concebido como elemento originário de toda a organização política, e, é, em torno dele, que se constrói a organização social cuja função principal é proporcionar meios de defesa dos direitos individuais considerados naturais. Nesse sentido, o indivíduo refere- se politicamente a si mesmo e a comunidade política refere-se ao indivíduo. O sujeito, nos níveis metafísico e transcendental, e o indivíduo, no plano histórico, político e social, são os fundamentos da liberdade de pensar e de agir. Nesse caso, portanto, as referências subjetivas e individuais só podem ser elaboradas pela razão autônoma porque só ela pode medir o alcance de seu próprio poder.

Ao mesmo tempo, a subjetividade como grande referencial, para ser dotado de universalidade, precisa ser afirmado objetivamente. Isso significa que o sujeito deve se objetivar na sua experiência: para saber algo acerca de si, deve compreender-se na dimensão objetiva porque a razão moderna, embora fundada na esfera da subjetividade, tem como vocação expandir-se na exterioridade por via do conhecimento e da técnica vistos como instrumentos de dominação da realidade. A relação entre saber e poder, característica da modernidade, implica o desdobramento objetivo da razão, o que faz com que a marca da racionalidade moderna seja a instrumentalidade. Na perspectiva do humanismo fundador da era moderna, essa expansão objetiva da razão ocorreria sempre a partir da subjetividade, o que deveria assegurar que o processo de objetivação nunca poderia contrariar os critérios de emancipação progressiva, vistos como a própria raiz do desenvolvimento da racionalidade.

A experiência histórica, como sabemos, não foi fiel a esse desideratum. As contradições do processo levaram o sujeito a perder-se na experiência da objetivação de si. As conseqüências, como já exaustivamente mostrado por várias vertentes críticas contemporâneas, foi o esvaziamento da subjetividade nos seus aspectos éticos e metafísicos, bem como o desaparecimento das condições para a afirmação das singularidades individuais. O sujeito perdeu a densidade ontológica que o fazia exercer o papel de fundamento, e o indivíduo perdeu o lastro éticopolítico que o fazia o centro do processo social. Em outras palavras, teria ocorrido na história da modernidade uma separação paradoxal entre o sujeito e os atributos próprios da subjetividade, de modo que o sujeito contemporâneo, destituído de realidade, seria pouco mais do que uma forma abstrata que se manifestaria em condutas marcadas pela alienação. Se o considerarmos como indivíduo, também constataremos que se tornou uma referência residual e abstrata de direitos formais. Essa abstração deriva, em grande parte, de que a recusa, pelo homem moderno, das referências transcendentes &– recusa necessária para a afirmação da subjetividade &– foi seguida pela perda das referências imanentes de caráter psicológico, histórico, social e político. A comunidade dos sujeitos não constitui referência para cada sujeito, assim como a sociedade de indivíduos não se apresenta como referência para cada indivíduo.

O anonimato de processos sociais sem sujeitos é a versão social de um ‘mundo de qualidades sem homem’, ‘de vivências sem aquele que as vive’. Nas instituições e ações sociais... uma objetividade abstrata e ordenada apoderou-se da experiência primária dos sujeitos (Rentsch citado por Hanke, 2004, p. 136).

Essa seria a dimensão social do romance de Musil: a inserção do indivíduo no contexto histórico deixa de ser a dialética entre o subjetivo e o objetivo para ser uma relação entre duas dimensões destituídas de realidade. Isso nos leva a supor algo além da negatividade, se por isso entendermos a ação subjetiva de negar exercida sobre a realidade e a sociedade. Tal ação não poderia ser remetida a um sujeito que se demitiu de sua subjetividade. O niilismo, se entendermos o termo como resultado de um processo de niilização (regressão da realidade ao nada) talvez possa apresentar uma sugestão semântica que nos aproxime da compreensão do processo. Com efeito, do ponto de vista dialético, “processos sociais sem sujeitos” não são de fato processos sociais, assim como sujeitos sem processo de subjetivação histórica não são realmente sujeitos. Essa é a questão de fundo na narração que mostra a inserção do “homem sem qualidades” num “mundo de qualidades sem homem” ou numa “sociedade sem qualidades”. A subjetividade é abstrata porque o sujeito não pode viver a sua própria experiência; e a experiência, do ponto de vista objetivo, também é abstrata porque constituída de “vivências sem aquele que as vive”.

***

Esse cenário em que predomina a ausência torna abstratas até mesmo as possibilidades. Vimos que, para Sartre, o sujeito está fora de si ou adiante de si porque o processo existencial é, sobretudo, constituído pelo futuro, pelas possibilidades de escolha no percurso de subjetivação. Aquilo que o sujeito pode se tornar ou vir-a-ser é referência importante porque não há determinações essenciais que atuem anteriormente ao efetivo processo de subjetivação. O futuro é o tempo forte porque é o tempo da liberdade e as possibilidades são os meios de realização desse futuro. Serei o que fizer de mim por via da minha liberdade: por isso se pode dizer que a realidade humana consiste em ser o que ainda não é. “Eu é um outro”, mas esse outro significa um projeto de ser si-mesmo através das escolhas. Em Musil há também uma pluralidade indefinida de possibilidades, mas como o sujeito perdeu a capacidade de atribuir significação ao futuro, essa abertura assume a feição de um deserto, isto é, nega-se a si mesma enquanto via para a livre determinação de uma possibilidade de ser. As transformações são alternâncias do mundo e do sujeito e não incluem a assunção de opções no itinerário de subjetivação. A experiência é constituída de vivências alternadas das quais está ausente a ação de auto-constituir-se. Tampouco o sujeito pode identificar aquilo que o constituiria porque a dimensão objetiva das determinações reais permanece oculta. “Eu é um outro” só pode significar, nesse caso, vivências alternadas de sucessivas despersonalizações&– processo de fragmentação.

O processo de subjetivação inclui uma espécie de alteridade interna ou alteração do Eu. O que sou implica o que já fui e o que ainda não sou e esses três aspectos constituem a tentativa de totalização da experiência na temporalidade. A alteração como ação de alterar a mim mesmo pela via das opções acontece, em Sartre, porque a liberdade é uma fatalidade e o seu exercício é inevitável. Sempre res pondo às solicitações do mundo, inclusive quando deixo de fazê-lo. A subjetivação ocorre em sucessivas situações nas quais a consciência se defronta com tudo aquilo a que ela deve atribuir significação. Tudo aquilo que me espera ao longo de minha história, significará algo para mim, pelo simples fato de que será representado: o mundo é humano e, quando ele é estranho, é porque o homem o fez estranho tornando- se estranho a ele. Dizer que mundo é desumano significa dizer que nós o tornamos assim. Toda impossibilidade de reconhecimento é engendrada pelas escolhas entre as possibilidades humanas. Quando o homem não mais se reconhece na história, no trabalho, nos outros homens, isso acontece porque ele se fez estranho ao que produz e às realidades com que convive. Produzir a desumanidade é algo que se situa entre as escolhas humanas.

Ora, o que encontramos em Musil, ao que tudo indica, é que o reconhecimento não pode ser considerado uma opção abandonada. Não há propriamente uma gênese psicológica ou histórica da impossibilidade do reconhecimento, e não se pode dizer que o sujeito tenha sido responsável pela situação de estranhamento. Como não se pode falar de alteração, mas sim de alternância, não há como pensar num sujeito histórico que tenha produzido uma situação em que ele não mais se reconheça e nem reconheça os outros. Como vimos, não se trata de um sujeito que negue a si, aos outros, à realidade; trata-se de um sujeito que vive a nulidade de si, dos outros e da realidade. Ele não se fez nem foi feito estranho a si e ao mundo: essa separação (abstração) de si, dos outros e do mundo é, por assim dizer, constitutiva de uma vivência aquém da experiência efetiva, como um olhar que não vê. Ele não é aquele outro que o esperaria em algum ponto de sua própria história, porque ele não é uma história. A dialética entre a ignorância de si e o reconhecimento de si supõe a relação entre a história pessoal e a história objetiva que só acontece como tensão entre realidades, na qual estão as possibilidades de o sujeito se perder e se encontrar. Afinal, o sujeito se perde: “Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo tempo, constituir o Em-si que escape à contingência sendo fundamento de si mesmo, o ens causa sui que as religiões chamam de Deus” (Sartre, 2001, p. 750). Mas, esse fracasso é a própria existência finita, atravessada pela falta que a constitui. Cada um encontra, enfim, a sua própria perda, na medida em que se constitui singularmente como“paixão inútil”. Há que se notar, no entanto, que a persistência do “desejo fundamental de ser” (em-si) significa que todos os possíveis se descortinam nesse horizonte de impossibilidade, como se ele fosse a referência última da força do negativo que impulsiona o processo existencial fadado à incompletude.

Ora, ao “homem sem qualidades” não pode ser referido qualquer processo constituinte &– e assim não se pode dizer nem mesmo que sua existência fracasse na busca vã pela totalidade impossível. Sendo assim, que singularidade se pode atribuir a ele, senão aquela do fato, isto é, do elemento que compõe a série de uma realidade também destituída de “qualidades”? Um mundo que consiste em elementos e funções não é estranho nem familiar: está além da atribuição de significações. Um sujeito que vive sua fragmentação de modo tão próximo que o dilaceramento se confunde com a espontaneidade não pode ser nem estranho nem familiar a si mesmo. Assim, o “homem sem qualidades” é indiferente a si e ao mundo. Desse modo, percebemos que a proximidade não institui nem preserva o caráter familiar daquilo que está próximo; pelo contrário, a estranheza pode surgir da proximidade, “pode-se ver o estranho despontando exatamente de onde não se esperava, ou seja, da mais absoluta proximidade. Veremos também que o estrangeiro será tão mais espantoso quanto mais próximo emergir e que, em decorrência, as formas mais típicas de lidar com essa situação serão ou bem negar essa proximidade, mantendo o estranho tão longe quanto possível, ou bem ignorar sua estranheza” (Figueiredo, 1998, p. 62).

Ora, numa interpretação livre da segunda hipótese, talvez se possa dizer que a proximidade absoluta enquanto ausência de qualquer mediação implica também a ausência do sujeito, isto é, daquele que poderia enunciar diante do mundo e dos outros: “não sou eu”, não sou esse outro. No contexto sartriano, por ex., essa negação faria parte do processo de subjetivação como negação do Em-si pelo Para-si. Quando ela não pode ocorrer, esse processo fica prejudicado, não necessariamente porque o sujeito não faz diferença entre ele e o outro, mas porque ele permanece indiferente a essa distinção. Nesse caso, a proximidade não geraria estranheza, no sentido habitual do termo, em que estranhar seria uma forma de objetivar o outro. Por razões análogas, tampouco geraria familiaridade. Em termos sartrianos poderíamos dizer que, como a estrutura do ser para-si inclui o ser para-outro, aquele que não é para-si não é para-outro, nem no modo da estranheza, nem no modo da familiaridade. O seu ser é negativamente preenchido pela indiferença. Cremos ser o caso de Ulrich, no romance de Musil, esse moderno protagonista de um mundo vazio e de uma subjetividade sem história.

 

Referências

Figueiredo, L.C. (1998). A questão da alteridade nos processos de subjetivação e o tema do estrangeiro. In C. Koltai (Org.), O estrangeiro (pp. 61-75). São Paulo: Escuta.        [ Links ]

Hanke, M. A (2004). Qualidade de O homem sem qualidades de Robert Musil. Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política,PUC-RJ, 4(8), 128-140.        [ Links ]

Musil, R. (1989). O homem sem qualidades (L. L. Luft, & C. Abbenseth, Trads.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.        [ Links ]

Sartre, J.-P. (2001). O ser e o nada (P. Perdigão, Trad.). Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Franklin Leopoldo e Silva
Rua Martim Francisco 334/1106 &– Santa Cecília
01226-000 &– São Paulo &– SP
E-mail: franklin@usp.br

Recebido: 30/05/2008
Aceito: 10/06/2008

 

 

* Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH da USP.