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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

A metapsicologia no horizonte estético: assombro e estranhamento*

 

Cultural roots of freudian metapsychology

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura estabelecer algumas raízes essenciais na caracterização da metapsicologia como um recurso psíquico econômico, dedicado a representar as experiências emocionais através de “artimanhas estéticas”. A primeira influência apresentada é o estado de mente de “estranheza” descrito no artigo Das unheimliche de Freud, o par de adjetivos heimliche/unheimliche sendo considerado o termo metapsicológico por excelência. A segunda influência é a contribuição da “Escola Britânica de Estética Psicanalítica”, com destaque para os conceitos de “conflito estético” e “reciprocidade estética” de Meltzer e Meg Harris Williams, ilustrados através de uma análise crítica do poema “The tiger” de William Blake; a formação de ideogramas proposta por Bion é exemplificada clinicamente para ressaltar suas implicações econômicas e estéticas. Finalmente, é apresentado um exemplo de “unheimliche cultural”, um embate imaginário entre um cavaleiro medieval, Sir Lancelot, e o nosso Lampião, rei do cangaço.

Palavras-chave: Conflito estético, Ideogramaticização, Metapsicologia, Reciprocidade estética, Unheinliche.


ABSTRACT

This article intends to set some essential roots to outline metapsychology as an economic psychical resource involved in the representation of emotional experiences through “aesthetic tricks”. The first influence introduced is the state of mind of “uncanniness” described in Freud’s paper Das unheimliche, the pair of adjectives heimliche/unheimliche being considered the metapsychological word in its very best. The second influence is the contribution of the so called “British School of Psychoanalytical Aesthetics”, stressing the concepts of “aesthetical conflict” and “aesthetical reciprocity” of Meltzer and Meg H. Williams, illustrated by a critical analysis of W. Blake’s poem The tiger; the making of ideograms, as proposed by Bion, is exemplified clinically to enhance its economical and aesthetics implications. Finally, an example of “cultural unheimliche” is presented, an imaginary squabble between a medieval knight, Sir Lancelot, and Lampião, a popular Brazilian bandoleer.

Keywords: Aesthetic conflict, Ideogramaticization, Metapsychology, Aesthetic reciprocity, Unheimliche.


 

 

1. No início de minha formação psicanalítica, no primeiro artigo que publiquei sobre psicanálise (Junqueira Fº., 1975), teci despretensiosas “Considerações sobre a metapsicologia de Freud”, colocando em destaque a importância que Freud atribuiu aos fatores econômicos na caracterização dos processos mentais metapsicológicos, no início de seu artigo“Mais além do princípio do prazer”.

Naquela época eu já me surpreendera com a sinceridade de Freud na famosa passagem da “Análise terminável e interminável” quando, ao se defrontar com a difícil questão da “subjugação” de uma pulsão, ele cita o Fausto de Goethe: “Devemos nos dizer, só há um meio então, é recorrer à feiticeira! Entendamos, a feiticeira metapsicologia. Sem especular nem teorizar &– mais um pouco eu teria dito fantasiar &– metapsicologicamente, não avançaremos nem um passo aqui” (Freud, 1937/1964, p. 225).

Fascinou-me constatar que a expressão “metapsicologia” expressava a tensão entre um ideal de completude epistemológica e o real de uma fermentação original de onde não podemos excluir a estranheza, o inesperado e o misterioso, como nos assinala com propriedade Pierre Kaufmann (1993).

Pareceu-me então útil terminar meu artigo expressando quatro considerações críticas a respeito das concepções metapsicológicas de Freud:

a) No intuito de enquadrar suas concepções metapsicológicas dentro de uma “psicologia científica”, Freud utilizou-se do referencial da física mecanicista, mas desenvolveu suas idéias num tal grau de especulação que acabou se aproximando mais de uma “psicologia paracientífica”.

b) Contribuiu para isto sem dúvida, de um modo quase que paradoxal, sua sólida formação neurológica, sua vasta cultura biológica e geral, além de uma capacidade incomum de argumentação.

c) Em contraste com os conceitos extraídos da interpretação dos sonhos, da psicopatologia da vida cotidiana, e dos estados neuróticos em geral, os conceitos metapsicológicos por sua própria complexidade dificultam sua “comprovação operacional” na prática da psicanálise. Na impossibilidade de promover esta reversão vertical à situação (experiência) analítica, fica-se com a impressão de que Freud optou por um desenvolvimento teórico horizontal.

d) Acredito que o momento histórico vivido por Freud na elaboração da Teoria Psicanalítica ”saturou-o” de tal modo a não lhe permitir uma captação de elementos de psicanálise correspondentes aos fenômenos psicoemocionais vivenciados na situação analítica. Bion, vivendo um outro momento histórico, e utilizando-se das observações de Freud e Melanie Klein, conseguiu a captação de tais elementos, revestindo-os de um alto grau de operabilidade funcional na medida em que sejam utilizados através de sua “grade”.

2. O prefixo grego metá expressa mudança, posterioridade, transcendência e “reflexão crítica sobre”. Numa carta a Fliess de 17-12-1896, Freud escreveu: “Escondida bem no fundo disso está minha cria idealizada e acabrunhada (schmerzenskind = filha da dor) &– a metapsicologia” (Freud, 1986, p. 217). Em 10-3-1898, ele diz: “Parece-me que a teoria da realização de desejos trouxe apenas a solução psicológica, e não biológica &– ou melhor, metapsíquica (A propósito, vou perguntar-lhe a sério se posso usar o nome de metapsicologia para minha psicologia que se estende além da consciência)” (p. 302).

De fato, como vimos, o prefixo “meta” sugere uma psicologia que ultrapasse o limiar da consciência, uma “superpsicologia”, ou mesmo um “ponto zero” a partir do qual pudesse brotar a psicologia.

3. Durante um bom tempo o “enigma da metapsicologia” ficou latejando em mim, talvez, agora me ocorre, à espera de um instrumental que me permitisse levá-lo adiante. É curioso lembrarmos que algo semelhante ocorreu com Freud: após sua ruptura com Fliess ele se desinteressou do termo “metapsicologia”, o qual só sofreu um revival no início da Primeira Guerra, quando anunciou a escrita de doze textos metapsicológicos, reduzidos, como sabemos, misteriosamente a cinco.

Hoje após 33 anos de experiência psicanalítica, cheguei a formular para uso pessoal a idéia de que a metapsicologia vem a ser o conjunto de operações econômicas que o psiquismo utiliza visando representar as vivências emocionais através de “artimanhas estéticas” (2008).

4. Fazendo um esforço retrospectivo para rastrear a construção desta definição, percebi que seu ponto de partida situava-se claramente no artigo de Freud Das unheimliche, publicado em 1919. De fato, Freud inicia o artigo com uma frase que pode ser tomada como uma declaração de princípios: “É só raramente que um psicanalista sente-se impelido a investigar a questão da estética, mesmo quando a estética seja compreendida como significando não meramente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades das emoções” (Freud, 1919/1955, p. 219).

Assinala, a seguir, que o território do unheimliche central às experiências estéticas é freqüentemente negligenciado na literatura específica, cabendo ao psicanalista suprir esta lacuna. Freud ocupa-se então de tentar apreender o núcleo desta experiência emocional tão complexa, ligada ao terror que se possa vivenciar em relação a situações outrora familiares que, misteriosamente, tornam-se estranhas e assustadoras. Ao final do artigo, ao comentar as diferenças entre as vivências de estranheza inquietante da vida real e aquelas arquitetadas ficcionalmente pelos poetas e escritores, Freud nos alerta que: “... o contador de estórias possui sobre nós um poder peculiarmente diretivo: através dos humores que podem nos inocular, ele habilita-se a direcionar a corrente de nossas emoções, de represá-la numa direção e fazê-la fluir em outra, obtendo uma grande variedade de efeitos com o mesmo material. Tudo isto não é novo, e há muito tempo tem sido plenamente considerado pelos estudantes de estética” (Freud, 1919/1955, p. 251).

Neste trecho, Freud articula diretamente as questões estéticas e econômicas, já que é destas últimas que está falando ao mencionar a capacidade do artista, que é eco naturalmente da vivência genérica dos seres humanos, de poder administrar as emoções visando obter “uma grande variedade de efeitos com o mesmo material”.

5. Mas, vejamos agora a escolha a dedo que Freud fez da expressão das unheimliche a partir de uma leitura cuidadosa da tradução de Strachey (The uncanny) e das contribuições inestimáveis de Luiz A. Hanns no seu Dicionário comentado do alemão de Freud, e de Bráulio Tavares na sua antologia Freud e o estranho: Contos fantásticos do inconsciente.

Freud abre o artigo com uma detalhada discussão semântica a respeito do adjetivo unheimliche associado com sensações de estranheza, esquisitice, inquietação, estrangeirice, desconforto, ameaça, temeridade e sinistrose. Ressalta sua gênese em oposição ao adjetivo heimliche, com suas conotações de familiaridade, aconchego, proteção, domesticação, intimidade, secretude e ocultamento. Prossegue sua investigação do significado de heimliche e do substantivo heimlichkeit, assinalando que heim significa “lar” ou “casa” e que o termo sofreu uma curiosa migração de significado para o seu oposto, passando da idéia de “familiar e conhecido” para representar também o“inquietante e estranho”.

Tavares nos oferece uma interessante imagem visual para entendermos esta aparente transmutação de sentido sofrida pelo termo heimliche. Ele nos convida a visualizarmos três círculos concêntricos. Exteriormente estaria situado o “lá fora”, o círculo do espaço público, da interação social aberta a todos. Cercado por esse, encontramos o círculo do “doméstico”, do espaço caseiro simbolizado pela sala de visitas. Finalmente, existiria um espaço mais isolado dos aposentos privados ou mesmo secretos que, no entanto, não é exatamente uma oposição do primeiro sentido, mas antes, a sua radicalização. De qualquer modo, deixo aqui registrada a enorme importância desta “maleabilidade semântica” na constituição de uma palavra que, desde já, eu proponho ser, em toda a obra de Freud, a palavra metapsicológica por excelência.

Não satisfeito com estas peculiaridades lingüísticas, Freud envereda pelos campos da coloquialidade, da sabedoria popular, das passagens bíblicas, da literatura e inclusive de suas experiências pessoais, além das psicanalíticas, para esquadrinhar a expressividade psicoemocional do par heimliche / unheimliche. É assim que ficamos sabendo que a Mágica é uma “arte heimliche”, que o termo se aplica a ”travessuras secretas” e a “conspirações secretas”, que podemos olhar com um prazer heimliche para a desgraça alheia.1 Já em relação à forma composta unheimliche, são ressaltadas as conotações de algo lúgubre, soturno, excêntrico, misterioso e suspeito, ou então, na formulação de Schelling, “tudo aquilo que deveria ter permanecido secreto, mas que acaba vindo à luz” (Freud, 1919/1955, p. 224). Freud cita uma passagem de Gutzkow a respeito da família Zeck considerada em seu conjunto como heimliche: “Heimliche?... O que é que você entende por isto?”. “Bem, eles são como uma fonte enterrada ou um açude seco. Não se pode caminhar sobre eles sem se ter sempre a impressão que a água vai brotar ali novamente”. “Ah! É que nós chamamos de unheimliche aquilo que vocês chamam de heimliche” (p. 224).

A respeito dessa espécie de “permeabilidade seletiva” do chão em que pisamos passível de nos causar o terror “sinistro” de afundarmos de repente e a ameaça “estranha” da ruptura inesperada de nossa base de apoio, Tavares (2007, p. 12) nos lembra uma passagem magnífica do Grande sertão:Veredas,

Arre, os tremedais; já viu algum? O chão deles consiste duro enxuto, normal que engana; quem não sabe o resto, vem, pisa vai avançando, tropa com cavalos, cavalama. Seja sem espera, quando já estão meio no meio, aquilo sucrepa: pega a se abalar, ronca, treme escapulindo, feito gema de ovo na frigideira.
Ei! Porque, debaixo da crosta seca, rebole ocultado um semi-fundo, de brejão engulidor...

E aqui, finalmente, podemos enunciar a suspeita que vinha se avolumando enquanto íamos acompanhando a formação da nuvem de ambivalência formada sobre o par heimliche / unheimliche, a saber, que o sentido de obscuridade, daquilo que é escondido e perigoso, encaixa-se à perfeição com nossa experiência psicanalítica do inconsciente.

Na imagem proposta por Guimarães Rosa, sentimos o contraste “entre a couraça sólida do Eu e a fluidez do Inconsciente que tudo absorve e dilui, tudo assimila e transforma em si mesmo [...] tudo engole e tudo recebe, nele tudo cabe, por ser um poço sem fim” (Tavares, p. 13).

6. Freud, na seqüência do artigo, passa a concentrar seu esforço para descobrir qual seria o “núcleo comum (...) que nos permite distinguir como “estranhas” (unheimliches) determinadas coisas que estão dentro do campo do queé amedrontador (ängstlichen)” (Hanns, 1996, p. 235).

Após descartar como simplista a teoria de Jentsch que associava os fenômenos do sinistro “à incerteza intelectual quanto ao animismo ou inanimismo dos objetos”, Freud acaba por concluir que o mecanismo principal responsável por estes fenômenos seria o retorno de afetos previamente recalcados. Entende-se assim melhor porque o uso lingüístico aproximou o familiar com o estranho, já que este “estranho” (fremdes = forasteiro, externo, estrangeiro) é em realidade algo familiar à mente que somente se alienou (entfremdet) dela através do processo de recalcamento. Como sub-produto dessa situação, Freud nos alerta que sempre que há um borramento na distinção entre realidade psíquica (imaginação) e realidade material, cria-se um terreno fértil para a instalação de uma atmosfera de “estranheza”, recurso, aliás, utilizado com freqüência nas tramas literárias que buscam este efeito. Após mapear mais alguns cenários psicopatológicos da criança e do homem primitivo, Freud sente-se em condições de enumerar o animismo, a mágica e a feitiçaria, a onipotência dos pensamentos, a atitude do homem em relação à morte, a compulsão à repetição, e o complexo de castração, como os fatores que transformam algo assustador numa experiência de estranheza.

7. Freud presta tributo aos efeitos estéticos e econômicos da criação literária trazendo como exemplo o conto “O homem de areia”, de E.T.A. Hoffmann, publicado em 1816, em que sugere que as ameaças de perda dos olhos vividas pelo personagem principal Nathaniel representavam de fato suas angústias de castração em relação ao pai, cindido na história em dois aspectos por sua ambivalência: de um lado o pai primitivo que desejava cegá-lo e de outro o pai protetor que procurava preservar sua visão.

O importante, de qualquer modo, é reafirmarmos aqui a presença do fator econômico responsável não só pelo “retorno do recalcado”, mas também pelo “retorno ao recalcado”, no caso fantasias de ameaça de castração paternas, que acabam configurando um processo que poderia ser denominado de “reversão de causa e efeito” (Tavares, p. 16). De fato, na conceituação corrente de unheimliche (algo que era para ser mantido em segredo, mas emergiu e tornou-se visível), o recalcado é um mero efeito (processo passivo) que de repente torna-se causa (um princípio ativo), pois ao escapar do recalque, passa a infernizar a mente consciente, exigindo, por assim dizer, de vir a ser elaborado através do pensar2.

8. Chegamos assim, a uma segunda influência importante à minha definição de metapsicologia que vem a ser a teoria da função - , ou seja, a teoria do pensar de Bion. Em trabalho anterior (Junqueira Fº., 2004), estudando o processo de ideogramaticização implícito na produção de elementos, conclui que esta era uma operação estético-econômica, pois, como proposto por Bion (1992, p. 353), os ideogramas funcionam como “incisões visuais” na personalidade muito mais propensas a desencadear associações livres do que as letras do alfabeto. Naquela ocasião, apresentei um exemplo clínico da formação, no interior de um sonho, de um ideograma representando um “bebê não-nascido”: a paciente percebeu-se grávida ao constatar a imagem de um bebê gravada em alto-relevo em sua barriga, ou seja, o objeto passou a existir através do seu negativo.

Um exemplo atual ocorreu recentemente na China onde, face à explosiva industrialização, o país mergulhou numa violenta poluição. A imprensa noticiou com destaque que, necessitados de um ideograma para representar este estado caótico, criaram um novo ideograma a partir da junção dos ideogramas de “nuvem” e “tigre”: em resumo, o caos ambiental seria conseqüência de uma força animal descontrolada.

Meu interesse pela obra de Bion colocou-me em contato com um artigo de Meg Harris Williams (1985) denominado The tiger and “O”, ou seja, O tigre e a realidade última onde ela nos mostra, a partir de um episódio da infância dele na Índia, o quanto ele acreditava que o método artístico estava melhor aparelhado para a exploração mental do que o método científico. O episódio em questão descrito em sua autobiografia (Bion, 1982, pp. 16-17) nos relata uma caçada onde um tigre foi morto, levando sua fêmea a rodear o acampamento dos caçadores com rugidos assustadores que penetraram no garoto Bion como uma força selvagem, prestes a engoli-lo. Ao escolher como título de seu artigo uma imagem articulada com uma abstração metafísica, Meg Harris procurou ressaltar a relação entre arte e realidade que o próprio Bion formulou no Livro 1 (O sonho) de sua trilogia, Uma memória do futuro, quando disse: “A própria Psicanálise não passa de uma listra na pele do tigre. Pode ser que eventualmente ela consiga atingir o próprio Tigre &– A coisa-em-si &– “O”” (Williams, 1975, p. 122). Bion utiliza repetidamente a metáfora de uma caçada selvagem para ilustrar o périplo humano para abraçar o conhecimento ou para fugir dele em pânico. Ele descreve, nesse sentido, uma espécie de “zoológico psicanalítico” que alberga criaturas “lindas e feias”, como, por exemplo, o animal feroz “Verdade Absoluta”, que “só pode ser caçado em nossos pesadelos noturnos”, em contraste com as pálidas incursões diurnas que fazemos usando armas ilusórias como “respostas”, “dogmas” e “fatos científicos”.

O fato é que neste episódio da infância, o garoto Bion acabou participando da experiência eletrizante de matar um tigre, pois, acuado no interior da tenda de seus pais ilusoriamente protegida do furor da fêmea enviuvada por um halo de fogueiras, ele sentiu na pele as emoções contrastantes de fascínio e pavor (ou se quisermos, do familiar e do estranho) ao ouvir o urro selvagem ecoando como um réquiem vingativo.

Uma vez apresentado a Meg Harris Willians fui então gradualmente descobrindo aquilo que Nicola Gloves, numa tese recentemente defendida, denominou de “Escola Britânica de Estética Psicanalítica” e que, no meu entender, representa a contribuição mais fértil da psicanálise atual para expandirmos de modo clarificador a metapsicologia freudiana. As limitações de espaço impedem qualquer detalhamento do conjunto das contribuições feitas por psicanalistas clínicos como Melanie Klein, Hannah Segal, Wilfred Bion, Donald Meltzer, Donald Winnicott e Marion Milner, e por “psicanalistas” teóricos como Adrian Stokes, Anton Ehrenzweig, Peter Fuller, Richard Wolheim e Meg H. Willians. Limitar-me-ei, então, a dar uma idéia dos conceitos de “conflito estético” e “reciprocidade estética” desenvolvidos conjuntamente por Meltzer e Meg Harris.

9. Segundo Meltzer, o conflito estético por excelência pode ser ilustrado pela vivência do bebê que, ao mamar, sofre uma experiência ambígua na medida em que o seio/mãe ao mesmo tempo em que retira de seu interior as cólicas de fome, preenche-o com um jorro explosivo que ele terá que acomodar sozinho. Tudo se passa como se ocorresse um impacto estético entre a mãe externa “linda” acessível à sua captação sensorial, e o interior enigmático dela que precisa ser construído através da imaginação criativa3. Esta condição humana acaba tendo uma importância crucial no desenvolvimento e na psicopatologia pessoais, pois, afinal de contas, “que homem conhece tão bem o coração de seus bem-amados quanto o coração de seus inimigos?”. Para ele, o resultado da experiência de ser compreendido, modificado e desenvolvido depende da qualidade da “reciprocidade estética” entre o self e o objeto, ou seja, da habilidade da mente de conter as complexas identificações projetivas e introjetivas que aqueles processos desencadeiam.

Meg Harris Willians é uma escritora e artista plástica que estudou literatura inglesa em Oxford e Cambridge e arte em Florença, e que tem produzido uma extensa obra sobre a relação da experiência estética com a psicanálise, campo pelo qual se interessou em função de seu longo convívio familiar com Donald Meltzer de quem foi enteada. Interessa-nos aqui em particular seus livros The apprehension of beauty (em colaboração com Meltzer), The chamber of maiden thought (em colaboração com Margot Waddell), The vale of soul making e de The aesthetic development (no prelo), em que são discutidas as origens literárias do modelo psicanalítico da mente.

Para ilustrar o conceito de “reciprocidade estética” 4, apresentarei um sumário de sua discussão a respeito de William Blake (1757-1827), poeta, pintor e visionário inglês, precursor de muitas idéias desenvolvidas por Bion. Na abertura do capítulo Blake: O Olho da mente (Williams & Waddell, 1991, p. 70), ela nos apresenta uma magnífica estrofe do poema“Augúrio de inocência”:

Vislumbrar um Mundo num Grão de Areia
E um Céu numa Flor Selvagem
Coloca o Infinito na palma de sua mão
E encerra a Eternidade numa hora. (Tradução livre do autor).

No seu famoso poema O Casamento do céu com o inferno (1793), ele descreve o enclausuramento do homem numa caverna cujas paredes são um aglomerado de impressões sensoriais sem significado, e de onde só consegue ver parte do mundo através de umas fendas (temos nesta imagem, a pré-figuração do Inferno); para escapar desta armadilha, o homem é encorajado a “desanuviar os portais de sua percepção” para poder olhar para as coisas reconhecendo sua infinitude, ou seja, a sua totalidade (imagem, que pré-figuraria o Céu)5. Este desanuviamento, só seria possível mediante a geração de uma tensão emocional fruto de um “casamento de contrários” (inspirado no “odioso assédio dos contrários” proposto por Satã no Paraíso perdido, de Milton), o choque entre o Céu e o Inferno: é este contraste que expande a visão tornando-a translúcida e imaginativa, resgatando-a da Caverna/Inferno.

Para ele, a guerra espiritual é necessária à saúde mental, pois “Sem Contrários, não há progresso. A Atração e a Repulsão, a Razão e a Energia, o A mor e o Ódio são necessários à Existência Humana”. Por outro lado, ele nos alerta que “Negações não são Contrários; os Contrários existem em mutualidade, mas as Negações sequer existem” (Citado por Williams & Waddell, 1991, p. 74): só a tensão emocional positiva entre contrários liberaria a mente do impasse do estado de negatividade.

Por outro lado, Blake descreve uma outra guerra mais sutil, mas nem por isso menos encarniçada, entre a visão sensorial externa que ele chama de “visão negativa monocular” e a visão interiorizada que induz as impressões sensoriais a serem irradiadas com significância.

Em 1790, Blake declarou ter tido uma visão memorável na qual ele cruzava errante o Inferno, decidindo- se a recolher dali uma série de Provérbios por estar convencido que continham a Sabedoria dos Vértices Abissais. Por serem verdadeiros haicais metapsicológicos, transcrevo aqui alguns deles:

Aquele que deseja e não age engendra a peste.
O tolo não vê a mesma árvore que o sábio.
Um morto não revida injúrias.
A cisterna contem, a fonte transborda.
Os tigres da ira sabem mais que os camelos da cultura.
O fraco em coragem é forte em astúcia. Aquele que não é luminoso nunca será iluminado.

Talvez o poema que melhor ilustra a tensão criativa entre contrários seja The tiger, escrito em 1794 e que, além de prenunciar a “artimanha estética” da metapsicologia freudiana, parece ecoar retrospectivamente a vivência assustadora que o garoto Bion teve na Índia:

Tiger, Tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare seize the fire?

Tigre, Tigre, reluzindo incandescente
Nas florestas anoitecidas.
Que mão ou olho imortal,
Poderia congelar tua terrível simetria?

Em que profundezas ou alturas distantes,
O fogo de teus olhos incandesceu?
Em que vôos ele ousa aspirar?
Qual a mão ousa segurar o fogo?

A questão central do poema é se o poeta consegue tolerar a conjunção apavorante entre as emoções contrárias de temor e beleza suscitadas por esta luz interior representada pelos olhos chamejantes do tigre: é aí que detectamos a “terrível simetria” que não pode ser congelada ou capturada pelo poeta o qual tal como Prometeu, é instado a “segurar o fogo”. Na segunda estrofe a luz da floresta se transforma em olhos incandescentes que queimam tanto nas profundezas quanto nas alturas, alusão direta ao casamento do céu com o inferno.

And what shoulder and what art
Could twist the sinews of thy heart?
And, when thy heart began to beat,
What dread hand and what dread feet?

What the hammer? What the chain,
In what furnace was thy brain?
What the anvil? What dread grasp,
Dare its deadly terrors clasp?

E que ombros, que engenhos,
Poderiam torcer os tendões de teu coração?
E quando teu coração começar a bater,
Que mão se apavorará? Que pé se apavorará?

Qual o martelo? Qual a cadeia,
Em qual fornalha teu cérebro morava?
Qual a bigorna? Qual o controle apavorante,
Seus temores mortíferos ousarão abraçar?

Temos agora um entrelaçamento entre Deus (representado pelo Sol com suas fornalhas), o tigre e o poeta, aproximando os vôos deste último em busca de conhecimento com o “controle apavorante” emanado do tigre. O poeta, assim, vê a sua própria identidade ser amarrada através da “temível simetria” representada pelo símbolo do tigre: mas é assim, sofridamente, que os portais de sua percepção são desanuviados, e que ele começa a chorar.

When the stars threw down their spears
And watered heaven with their tears,
Did he smile His work to see?
Did He who made the lamb make thee?

Tiger, Tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?

Quando as estrelas lançam suas lanças para baixo
E águam os céus com suas lágrimas:
Será que ele sorri com o trabalho que aparece?
Será que ele que gerou o Cordeiro, também gerou você?

Tigre, Tigre, reluzindo incandescente,
Nas florestas anoitecidas:
Que mão ou olho imortal,
Ousaria congelar tua terrível simetria?
(Tradução livre do autor)

A referência mitológica às “estrelas” estende-se às hostes angelicais, cuja rebelião pré-figurou a queda do homem. Ao “lançarem suas armas céu abaixo”, no lugar de abandoná-las, preserva-se o vigor dos raios perfurantes de luz: na medida em que estes raios se transfiguram em lágrimas, seu espírito original continua a reluzir nelas, preservando o vínculo com o “fogo” do olhar do tigre, mas também atenuando a sua ferocidade. Captamos assim no seu esplendor o significado simbólico do tigre: aquilo que o torna fascinante é a tensão emocional causada pela união dos contrários, tigre e cordeiro, ambos deidades intrínsecasà mente humana.

10. Para terminar, apresentarei um rápido registro de um unheimliche cultural, ou seja, de uma tensão criativa conseqüente a um choque de alteridades que eu denominei em trabalho anterior (Junqueira Fº, 2004) de “alteropoese”.

Fernando Villa, designer, artista plástico e ilustrador, produziu um livro belíssimo, valendo-se da gravura para imaginar um encontro inusitado entre um Cavaleiro Medieval, Sir Lancelot, e um Cangaceiro, o nosso Lampião.

O contraste entre os dois universos gerador de um unheimliche cultural foi obtido não só através do duelo verbal empreendido com armas próprias, a setilha para o cavaleiro, e a sextilha heptassilábica para o cangaceiro, mas também através do choque entre as técnicas gráficas empregadas: a iluminura para a ambientação medieval e a xilogravura consagrada como ilustração da literatura de cordel, para caracterizar o universo do cangaceiro. A particularização das imagens vale-se também da disputa entre dois elementos colorísticos, o cobre das balas, anéis, moedas e roupas de Lampião, e a prata que banhava a armadura, a espada e a lança de Lancelot.

O estranhamento suscitado pelo súbito encontro dos dois no ermo da caatinga é hilário, já que coloca à mostra o potencial de desmoralização e desprezo suscitado pela alteridade:

Lancelot sacudiu-se
Como que se preparando
Deu um pulo do cavalo
E a espada foi tirando
Mas no lugar de atacar
Com esperteza no olhar
Preferiu ir perguntando

“Que sujeito doido és tu
Com esse jeito de anão
Essa roupa toda em couro
É de vaca ou de bisão
E o ar caipira e tacanho
Mais este chapéu estranho
Que lembra Napoleão”

Lampião lhe respondeu
“Minha roupa é mais segura
Se me embrenho na caatinga
Espinho nenhum me fura
E se atiram eu me desvio
Das balas com formosura

Mas agora eu te pergunto
Sobre este monte de lata
Cobrindo todo teu corpo
Que armadura mais barata
Cem tiros e eu te transformo
Num ralador de batata”

 

Referências

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Endereço para correspondência
Luiz C. U. Junqueira Filho
Rua Helena 170/123 &– Vila Olímpia
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E-mail: mr.junqueira@uol.com.br

Recebido: 30/05/2008
Aceito: 13/06/2008

 

 

* Versão modificada do trabalho apresentado no ciclo “O lugar da cultura na clínica psicanalítica: Freud”, realizado na SBPSP, 28 maio 2008.
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Encontrei em Boris Schnaidermann, ao referir-se à obra de Dostoievski a descrição de um sentimento só definível pela palavra alemã schadenfreud, que corresponde exatamente a este prazer secreto com o qual podemos observar a desgraça alheia. Freud assinala que a estranheza que o leigo experimenta ao se defrontar com um ataque de epilepsia ou de loucura, é indício de que ele suspeita de estar sujeito a sucumbir a forças igualmente incontroláveis em si mesmo.
2 Em conversa recente com um executivo da área de marketing, deparei-me com um belo exemplo de uma “artimanha estética” causadora de uma reversão de causa e efeito. Esta pessoa me contou que um problema sério na elaboração da propaganda é apresentar uma ótima sacada que não esteja organicamente ligada ao produto veiculado. O efeito acaba saindo pela culatra: o cliente potencial acaba se lembrando da sacada sem ter retido a marca do produto propagandeado.
3 Meg Harris discute este conflito em sua análise da Ode a uma urna grega, de Keats, em que o vértice científico usado na avaliação sensorial do exterior da
urna é contrastado com os vértices estético e religioso utilizados na exploração não-sensorial de seu interior silencioso e eterno (The aesthetic development).
4 Este conceito lembra muito o de “eco estético”, proposto por Marcel Duchamp em 1949, ao dizer que as obras de arte não podiam ser entendidas pelo intelecto,
mas por uma emoção análoga à fé religiosa ou à atração sexual, que induz sua “vítima, a um clima de quase êxtase, tornando-a receptiva e humilde
(Cit. por Tomkins, 2005, p. 409).
5 Note-se o quanto esta formulação prenuncia as noções kleinianas de objeto parcial e objeto total.