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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

O olhar sobre o estrangeiro

 

The gaze on the foreigner

 

 

Fanny Blanck Cereijido*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A palavra estrangeiro contém a raiz grega xenos e exprime o desprezo e a estranheza suscitados pelo que se considera estranho, alheio, bárbaro e indesejável. O preconceito é a parte inconsciente da ideologia da sociedade que justifica a discriminação, a separação e a exploração de um grupo por outro. Racismo e ódio pelo estrangeiro implicam a impossibilidade de se desenvolver sem desvalorizar, excluir e odiar os que são diferentes. Atribuir traços indesejados ao outro provém da necessidade de proteger a coerência da própria imagem. O ódio racista dá lugar ao ódio pela cultura, costumes, tradições e religião do outro. Sem dúvida, há forças libidinais ligadas ao outro que permitem a integração dos estrangeiros nas sociedades. Simultaneamente ao desenvolvimento do racismo moderno, surge uma descoberta etnológica de grande importância que confirma o mito adâmico que propõe uma única origem para a humanidade.

Palavras-chave: Estrangeiro, Etnocentrismo, Outro, Prejuízo.


ABSTRACT

The notion of alien, foreigner and stranger express disdain and rejection for what is considered strange, barbaric and unwanted. Prejudice is the unconscious part of the society’s ideology that justify discrimination, separation and exploitation of a group by another. Racim and hate towards the foreigner mean the imposibility to develop without devaluing, excluding and hating those who are different. Placing certain features on the other comes from the need of protecting the coherence of the subject’s own image. The racist hate derived from the narcissistic imagination is followed by the hate for the culture, the customs, the traditions and the religion of the foreigner. All in all, there are libidinal forces attached to the other, which allow the integration of foreigners to societies. Together with the development of modern racism, there is a reversed discovery of great importance. The myth of Adam establishing a unique origin for all human kind, is supported by ethnology, the unity of the human race is thus exposed in its diversity.

Keywords: Foreigner, Ethnocentrism, Other, Prejudice.


 

 

Em seu libro El pájaro pintado, Jerzy Kozinski (1965) conta que nos dias em que a Segunda Guerra Mundial começou, ele era um menino que vivia em Varsóvia, com os pais. Eles o enviaram, então, a um povoado remoto supondo que lá estaria afastado de qualquer ação bélica. De certo modo estavam certos, mas Kozinski conta que, por seu judeu, ter a pele escura, cabelos pretos e nariz adunco, em um lugar onde todos eram católicos e loiros de olhos azuis, foi explorado em tarefas extenuantes e perigosas, espancado diante do menor erro cometido e torturado ferozmente cada vez que ocorriam desgraças com as quais nada tinha a ver, como acidentes com outros habitantes, problemas na colheita e doenças nos animais das granjas.

Em certo momento, o então menino Kozinski conheceu um caçador de passarinhos que usava uma armadilha para caçar as aves que depois vendia nos povoados da Polônia; foi ele que lhe mostrou o fenômeno que dá nome ao livro. Quando apanhava um pássaro, o resto do bando voava de um modo que, de certo modo, com certa dose de antropocentrismo, poderíamos chamar de “protesto” e “clamor para que se libertasse o companheiro preso”. Se o homem o libertava, o pássaro voltava a reunir-se com o resto do bando e fugia. Mas, se antes de fazê-lo, pintava-lhe o bico de azul ou uma asa de amarelo, ou a cabeça de verde, assim que o animal se juntava a seus semelhantes, estes lhe arrancavam os olhos, as penas e lhe despedaçavam o corpo, e ele morria em poucos instantes. Por isso, Kozinsky não atribui suas desgraças pessoais à falta de sorte de ter ido parar em um povoado de católicos poloneses, particularmente perversos, mas a uma característica fundamental que compartilhamos com, pelo menos, alguns animais: a agressão a quem, apesar de pertencer “à mesma espécie” é, todavia, diferente. Nem as pessoas nem os pássaros agridem uma raça desconhecida de cachorro, de boi, de ave; o “outro” que se ataca deve ser suficientemente semelhante. Os escravistas que martirizavam os negros e os soldados que punham fogo nos guetos não eram perversos com os animais.

 

Preconceito e xenofobia

O outro, o semelhante, é o primeiro objeto de satisfação, o primeiro hostil e a única força auxiliar. É o que afirma Freud (1950/1982) em Proyecto, assinalando que a única possibilidade de vida para o novo sujeito é a partir de um outro, anterior e externo a ele, que deve amá-lo e investir nele para que possa se tornar sujeito. Essa necessidade do outro, para a vida e para a constituição de cada sujeito, cria o amor e também o ódio. O amor, a partir da satisfação, e o ódio, a partir da frustração, da rivalidade e do desencontro.

Nessa trama complexa de vínculos, a aparição de um outro diferente, que vem de outro lugar e tem outros hábitos e crenças, provoca uma resposta particular. A palavra “estrangeiro” contém a raiz grega xenos e seu enunciado exprime o desprezo e o estranhamento que suscita aquilo que se considera estranho, alheio, bárbaro, indesejável, embora algumas vezes o estranho possa ser amado e admirado. Essa diferença desperta desconfiança e agressividade; ambas só são sobrepujadas pela civilização. Mas sabemos também que a diferença é o que permite amor e atração sexual e que as diferenças culturais permitem o enriquecimento dos grupos humanos e a ampliação de seus horizontes. Com todas as diferenças, devemos levar em conta que os humanos pertencem a uma mesma espécie, originada em um só ponto do planeta. Hoje, essa espécie recobre o planeta inteiro. Assim, onde quer que nos encontremos, chegamos todos a nossa residência atual como estrangeiros.

Dar por certo que nosso próprio olhar é o correto e que os valores da própria comunidade são os valores reais, objetivos e naturais, é um modo muito difuso de olhar o mundo, designado como postura etnocêntrica (Todorov, 1989). É válido discutir essas questões, porque a história se faz por fatores econômicos e sociais, mas as idéias também são atos decisivos, são acontecimento e motor do fato histórico.

Dissemos que quem está imerso em uma cultura tende a tomar seus princípios como lei. Esta situação levou Montesquieu (1721/1964) a escrever as “Cartas persas”,& no esforço de pensar na diversidade dos povos, a partir da unidade do gênero humano. Neste livro, narra-se a visita (fictícia) dos persas a Paris. Eles se mostram mais lúcidos em relação à realidade do que os próprios franceses. Graças a eles, o leitor descobre aquilo que, por ser-lhe familiar, não pode perceber, já que os costumes e as justificações da vida diária banalizam as circunstâncias cotidianas e as fazem escapar a um exame crítico. Montesquieu utilizou, em seu exame, sistematicamente, o método do distanciamento. Isso não equivale a dizer que os persas são lúcidos e os franceses cegos, e sim que ser o exota permite-lhes aquela observação. Assim, a condição do saber é não pertencer à sociedade descrita, já que não se pode viver em uma sociedade e, ao mesmo tempo, conhecê-la. Isso não garante a sabedoria do estrangeiro, mas torna-a possível.

Transpõe-se, assim, para as relações entre povos, aquilo que os psicanalistas, sabem em relação aos indivíduos: que somo cegos em relação a nós mesmos. Por isso, aquele que deseja ser analisado deve aceitar outro olhar sobre si. No plano social, o narcisismo é substituído pelos preconceitos, que são “aquilo que faz com que uma pessoa ignore a si mesma”, como grupo. Os que chegam de outros países sabem que o olhar dos outros questiona o ‘bairrismo’ e pode questionar situações que as pessoas do lugar dão por certas.

Estamos agora diante do problema do preconceito que é, como dissemos, a parte inconsciente da ideologia de uma sociedade, conjunto de sentimentos, juízos e atitudes que provocam e justificam medidas discriminatórias, separação, segregação e exploração de um grupo por outro (Bastide, 1969).

O preconceito racial é muito difuso. Hoje entendemos que o que determina a raça não é algo de caráter biológico ou antropológico, mas sociológico. A biologia contemporânea não ampara a noção de raça, já que, em primeiro lugar, embora os seres humanos difiram entre eles por suas características físicas, para que essas variações dessem origem a grupos claramente delimitados, deveriam coincidir entre elas, e não é isso que ocorre. Obteríamos um primeiro mapa das “raças”, medindo as características genéticas, um segundo, utilizando como critério a análise do sangue, um terceiro, o sistema ósseo, um quarto, a epiderme. Por outro lado, no próprio interior dos grupos assim constituídos, observa-se uma distância maior entre os indivíduos que os compõem do que a existente entre os grupos. Por essas razões, a biologia contemporânea, já não recorre à noção de raça, concebida hoje como um problema da psicologia social.

Outro preconceito muito difuso é o preconceito de classe, e os pobres são os primeiros discriminados em todas as sociedades. Existe também o preconceito cultural e o religioso: quando os homens do ocidente europeu entraram em contato com a América, África ou Ásia, consideraram seus povos bárbaros ou selvagens e, hoje, no século XXI, os diferentes fundamentalismos colocam o mundo em risco de extinção. Bastide (1969) acredita que a ignorância intervém no surgimento do preconceito e que fatores econômicos, políticos e sociológicos contribuem para a sua constituição. Vincula-se o preconceito também à personalidade autoritária, rígida, que não se pode adaptar à evolução das estruturas sociais. O sujeito com personalidade democrática, em compensação, seria mais flexível e tolerante.

O ódio ao estrangeiro é uma condição tão difusa que já o Velho Testamento nos informa que todos os povos que habitavam no perímetro da Terra Prometida foram mortos sem discriminação de sexo ou idade, os templos destruídos e os bosques arrasados, por ordem de Javé. Assim, o Velho Testamento é o primeiro documento que traz notícias escritas sobre o ódio aniquilador pelo outro (Êxodo 23, 33, Levítico 18, Josué 6). O racismo e o ódio pelo estrangeiro são traços universais das sociedades humanas: trata-se da impossibilidade de constituir-se sem excluir, desvalorizar e odiar o outro. O tema abrange o psiquismo individual e o imaginário social. Cada sociedade constitui-se com seus valores, seu conceito de justiça, de lógica e estética. Os outros serão considerados inferiores, de modo que a inferioridade do outro é o reverso da afirmação da própria verdade. Daqui até a afirmação de que os outros possuem uma essência malvada e perversa, a distância é breve (Castoriadis, 1985).

Para Todorov (1982), devem-se considerar pelo menos três eixos para situar a problemática da alteridade. O primeiro é axiológico, um juízo de valor: o outro é bom ou mau, amo-o ou odeio-o, é igual a mim ou inferior. O mesmo sustentava Freud (1925/1979a), em seu texto “A negação”, afirmando que o juízo de valor precede o de existência. Uma segunda dimensão é a praxeológica: eu assumo os valores do outro e me assimilo a ele; ou, imponho-lhe minha própria imagem eu o assimilo a mim; nesse caso, a tensão está em quem submete quem. Por último, só no final, a operação epistemológica: conhecer e reconhecer a alteridade, operação que é possível apenas superando os dois eixos anteriores (de amor-ódio e domínio ou submissão).

As três dimensões, amar-odiar, conquistar e conhecer são o tripé semiótico onde se processa a possibilidade do encontro com a alteridade (Gomez Mango, 1998).

Hanna Arendt (1973) considera intolerável que se odeie o outro por aquilo pelo qual não é responsável, como o fato de pertencer a certa raça; mas essa é a essência do preconceito racista, para o qual não há retratação possível. O racismo não deseja a retratação do outro, mas sim sua morte, sua extinção.

Antes da 2º Guerra Mundial, surgiu o estatuto de apátrida, de indivíduos desprovidos de nacionalidade, cujos representantes por excelência eram os judeus. Esses sujeitos careciam das garantias civis conferidas pelo Direito Internacional e converteram-se, assim, em uma minoria “supérflua”, dispensável. Daqui à sua eliminação, o passo era imediato, já que não havia nenhuma lei que os protegesse, não pertenciam mais a uma comunidade. Arendt afirma que o primeiro elemento do totalitarismo é eliminar a possibilidade de que o individuo diferente seja sujeito de direitos. O imperialismo exerce igual violência sobre os indivíduos dos países colonizados, justificando a discriminação com doutrinas racistas (Traverso, 2001). A eliminação dos direitos civis e jurídicos de uma pessoa é o primeiro passo para a sua dominação e possível extermínio.

O segundo elemento consiste no assassinato da sua pessoa moral. A eliminação de sua condição humana destrói a solidariedade da comunidade a que pertence, que deixa de reconhecê-la como semelhante. Finalmente as vítimas caem em um estado de anomia e não reconhecem a si mesmas como sujeitos de direito frente a seus perseguidores.

O terceiro elemento do ataque totalitário consiste no assassinato da individualidade, a conversão dos homens em cadáveres viventes, por meio da fome e de maus-tratos físicos extremos. Estes sujeitos passam a formar uma massa amorfa e atomizada, processo este que culmina no assassinato desses homens que “já se tornaram supérfluos”.

 

O outro no psiquismo individual

A contrapartida desta situação social e coletiva no psiquismo individual é a tendência a colocar no outro o próprio inaceitável. Na psicanálise existe uma abordagem, já clássica, da xenofobia e da discriminação, que se realiza a partir da teoria do imaginário. A segregação, o racismo e o ódio pelo outro partem da problemática do narcisismo e da especularidade. A convicção de que as pequenas diferenças que caracterizam cada um sejam importantes e nos indiquem como melhores diante dos outros, desempenha um papel importante. O primeiro desses outros é o irmão, que recebe os sentimentos de rivalidade, amor e ódio. Daqui parte o complexo do semelhante, o ódio, que a frase bíblica “ama o próximo como a ti mesmo”, tenta em vão eliminar.

No trabalho de Freud sobre O estranho (1919/1979b), aparecem elementos sobre como aquilo que é rechaçado no outro corresponde a algo próprio não admitido como tal, pelo sujeito. A palavra unheimlich é submetida a um atento exame. Os significados de heimlich (familiar, caseiro, secreto), aparecem misturados com o não-familiar e o prefixo un complica ainda mais as coisas. Assim o conhecido, o íntimo, (heimlich), transforma-se no desconhecido e no estranho. Nesta inquietante estranheza, o recalcado que retorna é familiar desde sempre, tornou-se estranho pelo processo de repressão. Embora seja raro que um estrangeiro provoque a angústia aterrorizadora que suscita a morte ou a visão do sexo feminino, a xenofobia tem relação com o medo da morte e com suas diferentes representações, fantasmas, aparições, medo de ser enterrado vivo, o feminino e a própria pulsão transbordada na loucura ou na epilepsia.

Benjamin (1974) identifica a representação interior do estrangeiro com uma figura deforme dos contos e versos infantis: o corcunda. Essa figura é um unheimlich, o bicho papão das crianças, o judeu interno de cada um, excrescência, resíduo perigoso da sociedade.

A criação do outro, ou a atribuição de certas características ao outro, provém da necessidade de proteger a coerência da própria imagem. Por exemplo, Roger Bartra (1992) afirma que a criação do mito do homem selvagem é um ingrediente fundamental da cultura européia, é a criação de um alter ego selvagem artificial que preserva a identidade do europeu como homem ocidental civilizado. O eu arcaico, narcisista, ainda não delimitado pelo exterior, projeta para fora de si aquilo que experimenta, em si mesmo, como perigoso, convertendo-o em um duplo estranho ou demoníaco. Este sentimento abominável repete-se compulsivamente como algo que se encontra mais além do princípio do prazer.

Diante do estrangeiro que se repele e com quem, não obstante a tentativa de expulsão, se mantém uma identificação, perdem-se os limites e a autonomia. Desestruturação do eu que pode perdurar como sintoma psicótico ou resultar em uma nova abertura. A experiência ameaçadora da inquietante estranheza seria o indicador da latência psicótica, da fragilidade da repressão e da inconsistência simbólica que estrutura o reprimido.

Cada um é estrangeiro para si mesmo, já que abriga dentro de si uma vasta zona de alteridade incognoscível e este outro desconhecido subsiste nas relações entre os indivíduos, as classes e os povos. Nem sequer em nosso próprio lugar de origem desaparece a estranheza de cada um. Ao descobrir a alteridade aterrorizadora que irrompe diante da aparição do próprio eu, no outro, nosso eu fica perturbado e cambaleia. Se o estrangeiro contém a alteridade ameaçadora, elimina-se o portador desta alteridade, antes de reconhecê-la como própria. Quando se consegue assumir a própria estranheza, o estrangeiro deixa de ser uma ameaça. É isso que faz com que Julia Kristeva diga (1988/1991): “Se sou estrangeira, não há estrangeiros”. A noção freudiana de inconsciente despoja o estranho de seu aspecto patológico e integra o humano em uma alteridade que se torna parte inerente de seu ser. O tenebroso, o estrangeiro está dentro de nós, somos nosso estrangeiro, ao estarmos irremediavelmente divididos.

O sentido do racismo está longe de ser evidente. Suas formas mais ferozes podem opor grupos com diferenças raciais nulas. Há povos europeus com diferenças raciais mínimas, do ponto de vista da origem, cor, compleição ou língua, que se odiaram e se mataram com selvageria. Interpretar o racismo exclusivamente como derivado da relação especular com o outro, deixa de lado o fato de que se trata de um fenômeno de grupo e não individual. O racismo, o segregacionismo ou o preconceito referem-se sempre a dois grupos.

O ideário xenófobo tenta resgatar um ideal identitário onipotente e arcaico, uma identidade compacta e imutável através do tempo e da história, que proclama um passado glorioso e imaculado, que o estrangeiro viria a perturbar. As ideologias racistas desenvolvem-se em quem padece de situações de pobreza, desocupação e desesperança, que evitam assim questionar sua própria dor e incertezas (Gomez Mango, 1998).

 

O ataque à cultura do outro

Ao ódio racista, que deriva do imaginário narcisista, agrega-se o ódio pela cultura, pelos costumes e pela religião daquele que chega. O grupo majoritário tende a aculturar o novo grupo, a obrigá-lo a renunciar a suas crenças e a sua religião. Por outro lado, a chegada de imigrantes com crenças fundamentalistas ou posturas anti-femininas extremas, colocam problemas insolúveis, já que não é possível aceitar “todas” as diferenças.

Em 10 de maio de 1933, Hitler toma o poder, festejando o evento com una fogueira de livros. Queimar livros, profanar túmulos e destruir obras de arte identificam o totalitarismo. O ódio ao livro, pulsão biblioclástica (Haddad, 1993), exprime o ódio aos símbolos da humanidade. O livro é a materialização do pai simbólico freudiano, devorado na identificação primária. Por meio desta incorporação, o sujeito passa a pertencer a uma família, a um povo, a uma genealogia. O livro é a Bíblia, o Evangelho, o Corão, ou a transmissão oral de mitos, histórias e costumes. Pela identificação com seu grupo, o indivíduo torna-se apto a converter-se em sujeito e em pai da criança que virá. Desse modo, o livro, representante do Pai Simbólico e da linha genealógica, transforma-se no filho que perpetua a cadeia geracional. Se o livro, ou seu equivalente, corresponde à articulação do indivíduo com seu grupo, entende-se que seja o objeto privilegiado da agressão racista.

Isso aparece nos ataques do nazismo, que nega a função paterna e pretende destruir a cadeia de filiação, com a anulação do nome e da condição de sujeito de suas vítimas. O racista nega a existência do livro do grupo odiado, sua condição humana e desqualifica sua cultura.

Borges relata o caso do imperador chinês Shi Huang Ti, que destruiu todos os livros do império e construiu a Grande Muralha. Escreve, em La muralla y los libros (1960/1989):

Li, dias atrás, que o homem que ordenou a edificação da quase infinita muralha chinesa foi aquele primeiro imperador, Shi Huang Ti, que também ordenou que se queimassem todos os livros anteriores a ele. Que as duas vastas operações - as quinhentas ou seiscentas léguas de pedra opostas aos bárbaros, a rigorosa abolição da historia, ou seja, do passado &– tenham sido empreendidas por uma pessoa e tenham sido, de algum modo, seus atributos, inexplicavelmente me satisfez e, ao mesmo tempo, me inquietou. Indagar as razões dessa emoção é a finalidade dessa nota.

Historicamente, não há mistério nas duas medidas. Contemporâneo das guerras de Anibal, Shi Huang Ti, rei de Tsin, reuniu os Seis Reinos sob seu poder e eliminou o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas eram defesa; queimou os livros, porque a oposição os invocava para louvar os antigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificações é uma tarefa comum dos príncipes; a única singularidade de Shi Huang Ti foi a escala em que operou. É o que deixam entender alguns sinólogos, mas sinto que os fatos que relatei são algo mais do que um exagero ou uma hipérbole de disposições triviais. Cercar um horto ou um jardim é comum; não, cercar um império. Tampouco é corriqueiro pretender que a mais tradicional das raças renuncie à memória de seu passado, mítico ou verdadeiro. Três mil anos de cronologia tinham os chineses (e nesses anos existiram o Imperador Amarelo, Chuang Tzu, Confúcio e Lao Tzu), quando Shi Huang Ti ordenou que a história começasse com ele (pp. 13-16).

Desgraçadamente, esses fatos não pertencem apenas ao passado. Embora a destruição dos livros chineses tenha acontecido no ano 213 a.C., em maio de 2003, em meio à guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, foram queimados um milhão de livros na Biblioteca Nacional de Bagdá e desapareceram duzentos mil objetos de arte do Museu Arqueológico da mesma cidade. “Memória reduzida a cinzas”, escreve Fernando Baez (2003) especialista no tema de bibliotecas destruídas e assessor da Unesco, que termina seu artigo dizendo: “seria possível imaginar um destino pior para o lugar onde começou nossa civilização?”.

Depois do ataque ao livro do outro, o racista atacará seu próprio livro, não o enriquecerá, nem tornará a elaborá- lo. Notará com espanto como o livro estrangeiro se infiltrou em seu próprio livro, que ficou, assim, estragado pela contaminação transmitida pela palavra estrangeira; achará que seu livro está barbarizado, judaizado, desnacionalizado e declarará que é urgente recuperar os valores nacionais. Mas sobrevém um destino trágico. O restabelecimento da pureza original do próprio livro leva ao estreitamento, à esterilidade, à pobreza da própria cultura purificada.

A cultura, as convicções, o livro e a relação particular com a lei que transmite desempenham um papel de grande importância na construção das certezas de cada um. Um livro diferente do próprio livro provoca uma fragilidade dessa escassa certeza. Aparece uma desconfiança que facilmente se transforma em ódio.

A situação de preconceito diante do outro e do seu pensamento é universal. A Argentina, por exemplo, tinha uma lei sobre a residência, proposta em 1902, por Miguel Cané, senador de Buenos Aires e famoso por seu livro Juvenilia. Tal lei permitia expulsar do país qualquer pessoa que o governo qualificasse como agitador estrangeiro, e os conservadores argentinos perseguiram a ideologia democratizadora para a qual contribuíam radicais, socialistas e anarquistas, em um contexto em que o termo estrangeiro adquiria a conotação de mais desigual do que diferente. Do mesmo modo, o artigo 33 da Constituição Mexicana estabelece a faculdade de expulsar “sem julgamento prévio todo o estrangeiro cuja permanência julgar inconveniente”.

Entretanto, há forças libidinais na relação com o outro que permitem a integração dos estrangeiros nas sociedades. Levinas (1987) define Deus como uma instância de resistência a unidades e estados que sacrificam a especificidade das diferentes pessoas em prol de um objetivo, em lugar do Deus tirânico que sanciona e mata. Ele postula uma exterioridade, algo mais além do horizonte do ser, na qual a relação com o outro é diferente daquela do conhecimento de algo já conhecido, já que se deseja a alteridade do outro. O outro é irredutível e sua alteridade deve ser conservada, e embora façamos uma ressalva a sua concepção teocrática, preservamos o sentido ético de sua postura.

Simultaneamente ao desenvolvimento do racismo moderno, surge uma descoberta inversa, de grande importância. O mito adâmico que propõe uma origem única para a humanidade, passa a contar com o apoio da etnologia, que descobre a universalidade de uma estrutura comum, como a lei centrada na proibição do incesto, a proibição do assassinato no interior do grupo, as proibições alimentares e as instâncias de arbitragem: toda sociedade existe se se respeita essas regras. Em seu Mitológicas, Lévi Strauss (1968) apóia a existência de um grupo fundamental de mitos fundadores de cada povo &– seu próprio livro, ainda que não esteja escrito. Propõe que esses diferentes livros possam, através de um jogo de transformações lógicas, remontar a um mito fundador. A unidade do gênero humano aparece assim exposta em sua diversidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fanny Blanck Cereijido
Francia 131/ 2 &– Col. Florida &– Deleg. Alvaro Obregón
01030 Mexico City &– DF &– Mexico
Tel.: 52 5-6628503
E-mail: cereijido@laneta.apc.org

Recebido: 20/02/2008
Aceito: 27/02/2008

 

 

Tradução: Sonia Scala Padalino.

* Psicanalista pela Associação Psicanalítica Mexicana e pela Associação Psicanalítica de Buenos Aires.