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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

Racismo: uma questão cada vez mais delicada

 

Racism: an increasingly delicate question

 

 

Caterina Koltai*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende discutir o racismo entendido como sintoma social, como forma de mal-estar na civilização. Aborda seu recrudescimento nos dias atuais e a forma que vem assumindo travestindo-se de anti-racismo, como é o caso das políticas de discriminação positiva.

Palavras-chave: Estrangeiro, Racismo, Ressentimento, Sintoma social, Vítima.


ABSTRACT

This paper aims to discuss the racism understood as a social symptom and as a manifestation of the civilization and its discontents. It grapples how racism is increasing today and its modern manifestation like “anti-racism”, as with the case of politics of positive discrimination.

Keywords: Stranger, Racism, Resentments, Social syntom, Victim.


 

 

Fui convidada pela revista ide para abordar o racismo, do ponto de vista psicanalítico, e agradeço, não só porque os fenômenos de segregação questionam o analista tanto por sua recorrência na história como pelas novas formas que vêm apresentando, como porque estou convencida de que o analista, ainda que não tenha nenhuma solução a propor, pode avançar na compreensão daquilo que podemos chamar de causas obscuras do racismo, definido como ódio do outro, visto como estrangeiro.

Posto isso, por onde começar este artigo para não transformá-lo em algo maçante? Talvez uma boa entrada seja o Estudo autobiográfico (1925/1976) de Freud, no qual ele nos aponta seis lugares de residência para seus antepassados, uma perseguição racial ou religiosa, duas migrações e rupturas e três experiências lingüísticas na infância. Com uma história dessas, não é de admirar que sua relação com a migração fosse, no mínimo, complexa, ora a encarando como uma vantagem, ora como a maior das ameaças.

Optei por começar pela “biografia” de Freud para chamar a atenção para o fato de que não me parece exagerado pensar que a teoria freudiana deve muito à condição de migrante de sua família e à solidão científica por ele vivenciada ao criar a teoria e a clínica psicanalíticas, uma vez que elas representam a elevação da condição de exílio a sua máxima potência criadora. Foi de certo modo a solidão vivida por Freud na contracorrente da maioria judaica que lhe permitiu inaugurar esse lugar solitário que é o do psicanalista e dar ouvidos à causa inconsciente do sofrimento humano. Ser migrante é o próprio estatuto do sujeito da psicanálise definido por seu lugar no Outro, assim como a psicanálise pode ser definida como uma disciplina essencialmente migrante, já que é na mudança de estatuto que reside a mola da análise: “... migração de uma representação para a outra, de um sujeito para outro, de um mundo interno para outro, de uma língua para outra, de uma cultura para outra, de um saber a outro”, lembra Pontalis (1990, p. 105).

A grande descoberta de Freud foi, justamente, a de que o homem é impelido por algo que lhe é estrangeiro, que ele não é integrado em si mesmo e que no interior de seu aparelho psíquico vive, com inquietação, o sofrimento daquilo que lhe é estrangeiro, significante que aparece ao longo de toda a obra freudiana &– tanto nos textos clínicos como nos culturais &–, a começar pelos Estudos sobre a histeria, que, de certa maneira, já anuncia toda a problemática freudiana do estrangeiro: a necessidade de assimilação e, diante de sua impossibilidade, de extração. É fato que esse significante aparece quase sempre de forma negativa, associado a algo assustador, lembrando ocasionalmente, como bem observa Radmila Zygouris (1983), o discurso de uma polícia xenófoba. Recordações de um percurso pessoal e familiar.

O estrangeiro provoca, sempre, movimentos de alma: amor, ódio, temor, “amódio”, e, em nossos dias, oscilamos entre o fascínio que ele exerce &– é o caso do exotismo &– e o horror que provoca em nós &– é o caso do racismo. Objeto identificatório e contra-identificatório, o sujeito nunca permanece indiferente perante o estrangeiro, como se tivesse de fazer existir fora de si algo que lhe é interior. E se o Outro fosse eu mesmo?

Para avançar rumo ao tema que me foi proposto abordar, é preciso ainda lembrar que Freud foi o primeiro a falar da civilização do ponto de vista do analista, a falar de um mal-estar, chamando a atenção para a relação, no mínimo complexa, que o humano mantém com seu semelhante, já que o fundamento de todo amor é narcísico e que não há amor entre irmãos sem a rejeição dos estrangeiros. É por isso que é sempre possível unir os homens entre si, sob a condição de deixar alguns outros de fora, para podermos dirigir nossa agressividade contra eles, uma vez que esta, longe de ser mera reação de defesa do indivíduo em perigo, está no âmago do desejo humano, instrumento e causa de seu prazer. É como forma de mal-estar na civilização que o analista pode abordar o destino do estrangeiro na polis &– o racismo &–, relacionando o inconsciente freudiano com as transformações sociais e históricas do mundo contemporâneo.

Desde que Freud chamou nossa atenção para o fato de que a segregação é anterior à fraternidade, a questão problemática do indivíduo com o grupo não perdeu sua atualidade &– muito pelo contrário &–, já que foi a partir da Segunda Guerra Mundial que o racismo se tornou um sintoma social, e o totalitarismo moderno nos mostrou até onde pode ir o humano quando se acirram as diferenças, a ponto de negar a própria condição de humano ao outro, reduzindo-o a um mero número tatuado no braço. Enquanto manifestação do mal-estar na civilização, o racismo tem a ver não apenas com um determinado dispositivo social como também com a estrutura do sujeito, razão pela qual pode ser abordado pela psicanálise como um sintoma social e histórico, significado pelo Grande Outro, algo capaz de mudar com o tempo, acompanhando as transformações do Grande Outro &– tanto no plano pessoal como no coletivo.

Lacan nos ajuda a entender tais transformações na medida em que, ao levar em conta a subversão introduzida pelos campos de extermínio organizados racional e tecnologicamente, indica um caminho. Isso permitiu a ele prever que o nazismo, longe de ser um acidente monstruoso, deveria ser visto como o precursor de um processo desencadeado pelo remanejamento dos grupos pela ciência, que faria com que “... nosso futuro de mercados comuns encontrasse seu equilíbrio na extensão, cada vez mais dura, dos processos de segregação” (Lacan, 1968, p. 29).

Ele não só previu a intensificação dos processos de segregação num momento em que a maioria dos pensadores apostava justamente no contrário, como insistiu no tema, sempre nos alertando a fim de que não esquecêssemos a lição freudiana de que a humanidade começa por um traço de exclusão inicial, razão por que, em vez de definir a humanidade por seus atributos, o fez segundo essa rejeição inicial cujo nome é segregação. Essa é a tradução lacaniana da afirmação freudiana de que o homem mantém com seu próximo a mesma relação de ódio que sustenta consigo próprio, ódio que constitui a própria lógica do racismo enquanto sintoma social. Aqui uma precisão se impõe: ao falar em sintoma social, não nos referimos a um sintoma que se oporia ao individual, definido por Freud como o substituto de uma satisfação pulsional frustrada e, portanto, aquilo que o sujeito teria de mais particular, mas sim ao social, por ser a maneira singular pela qual o sujeito enfrenta o discurso de seu tempo, impedindo-o de realizar aquilo que este lhe prescreve.

É importante não confundir xenofobia, etnocentrismo e racismo. Xenofobia é um termo que vem do grego e que quer dizer “medo do estrangeiro” &– a palavra xenos remetendo, em grego, tanto ao estrangeiro como ao hóspede, aquele que se acolhe e honra. A xenofobia, como medo do diferente, é de certo modo universal e tem a ver com a própria estrutura do sujeito &– é só observarmos o pequeno humano que de início sorri para todos, e que, aos poucos, ao reconhecer a própria imagem no espelho e se deixar cativar por ela, começa a manifestar suas primeiras reações de medo e recuo perante o rosto desconhecido, não familiar. É nelas que se enraíza a xenofobia infantil, mas, para que esta se transforme em racismo ativo, é preciso um discurso que nomeie o estrangeiro a ser odiado. Esse discurso é sempre social, pois o racismo demanda a existência de um discurso que autorize a pulsão agressiva, que nomeie o bode expiatório, tornando-o inapto a qualquer identificação.

O mesmo acontece com o etnocentrismo, definido por Lévi-Strauss (1952/1991) como uma atitude tipicamente selvagem, uma vez que todos os povos “primitivos” eram a seu ver etnocêntricos, na medida em que consideravam seu grupo étnico, sua nação ou nacionalidade socialmente mais importantes que os dos demais. No entanto, visto que um selvagem permanece adormecido no coração de todo homem “civilizado”, nada mais universal e difícil de ser eliminado que o etnocentrismo, pois cada um de nós continua persuadido de que a própria tribo é a única que vale.

O etnocentrismo não exige, porém, salvo exceções, que o outro seja eliminado, como o racismo moderno. O racismo é muito mais que mera agressividade, ele é ódio do outro, ódio não por algo que esse outro tenha feito, e sim pelo que é. Enquanto doutrina, o racismo nasceu associado ao discurso da ciência; Gobineau foi o primeiro a se servir desse termo em seu livro Essai sur l´inegalité des races humaines (1855). Fenômeno moderno, o racismo é contemporâneo ao surgimento dos Estados nacionais, momento em que a nação passou a ser definida por suas fronteiras e o estrangeiro se transformou numa categoria sociopolítica com tudo o que isso comporta. É a partir daí que o estrangeiro começa a designar todo aquele que pertence a outra nação, vive ou vem de outro lugar e que, ainda que em certas ocasiões possa ser bem-vindo, na maioria das vezes é passível de ser repatriado para seu país de origem. A verdade é que a categoria sociopolítica que o estrangeiro ocupa o fixa numa alteridade que implica exclusão. Assim se explica que o termo “racismo” seja freqüentemente usado somo sinônimo de um comportamento feito de ódio e desprezo pelo outro.

Hoje em dia a doutrina racista não se refere mais exatamente àquilo que constituía o racismo do século XIX. Seu sentido foi se deslocando paulatinamente de uma idéia de desigualdade biológica, como em Gobineau, para uma idéia de diferença cultural, e na atualidade vem cada vez mais assumindo a forma de seu contrário, apresentando-se como anti-racismo.

Quero retomar a afirmação de que sintoma é aquilo que impede o sujeito de responder às exigências de seu tempo e indagar o que é prescrito pelo discurso de nosso tempo. Diria que ele nos prescreve uma uniformização cada vez maior da vida cotidiana, que atinge não somente as formas de desejar como as de gozar. Utilizo o conceito de gozo no sentido lacaniano, que remete àquilo que Freud chamou de “um além do princípio do prazer”. Foi por meio desse conceito que Lacan deu conta da característica anfíbia do sintoma, unificando, através dele, libido e pulsão de morte, como se ambas estivessem unidas por um nó, a ponto de transformar aquilo que em Freud era uma oposição externa &– libido de um lado, pulsão de morte do outro &– numa antinomia interna, de modo que o conceito de gozo recobre tanto a satisfação como o mal-estar.

O discurso da ciência quer que o outro seja igual, quer o bem do outro a qualquer preço, ainda que este nada queira saber desse bem e se recuse a ser igual. E quanto mais se exige uma suposta igualdade, mais o outro insiste em se manifestar como nada igual, totalmente diferente do que dele se espera. Quanto mais o discurso científico se exercita no sentido da uniformização, mais o disforme tende a se manifestar, e o disforme é o gozo, aquilo que transforma o outro em alguém que só me resta odiar, uma vez que ele põe em cheque a forma de gozar que eu tanto idealizo. É por isso que Lacan nos faz um alerta: não temos como responder aos problemas que o gozo lança ao humano, a não ser pela intensificação dos processos de segregação.

Hoje em dia, com a globalização das economias e os movimentos migratórios que a acompanham, o estrangeiro vem sendo cada vez mais assimilado ao imigrante, deixando de ser aquele que morava num além da fronteira geográfica e que passou a morar ao lado, tornando-se êxtimo, termo que remete ao estrangeiro heterogêneo e interno ao mesmo tempo. Ao atravessar a fronteira e se aproximar demais, ele tornou-se insuportável, pois surgiu como um ladrão de gozo que, por gozar demais, faz com que outros gozem de menos. Tem razão Philippe Julien (1995) ao lembrar que o ódio social nasce da suposição de um saber sobre o gozo do outro, a partir do momento em que neste vemos um gozo que provoca nosso ódio, alguém que nos priva de algo, e não um semelhante com o qual podemos nos identificar.

A verdade é que o sujeito moderno não só está convencido de que o gozo existe, como acredita, também, que existe “outro suposto gozar” e que, se ele não goza, é porque o gozo foi monopolizado por outros, freqüentemente pelos estrangeiros vindos de países miseráveis, sempre dispostos a abusar da hospitalidade do primeiro mundo e invadir suas belas metrópoles. Vistos como intrusos, incomodam e causam mal-estar por causa da relação que mantêm com o trabalho, com o lazer e, sobretudo, com a sexualidade. No que diz respeito ao trabalho, “parece que não conhecem a justa medida, ou trabalham demais, verdadeiras bestas de trabalho, sempre prontos a roubar o emprego dos ‘filhos da casa’”, ou “trabalham de menos, verdadeiros bichos-preguiça que se divertem e descansam, enquanto outros trabalham por eles”. Quanto ao lazer, “ousam comemorar outros feriados que não aqueles que constam do calendário”, e ainda por cima “de maneira estranha e exuberante”. Sua sexualidade é sempre considerada excessiva e ameaçadora, “basta ver a quantidade de filhos que põem no mundo, onerando os cofres públicos”.

É justamente nessa proximidade que reside parte do problema, pois aquilo que ainda podia ser tolerado, e até apreciado, quando o estrangeiro vivia num longínquo além das fronteiras, tornou-se insuportável a partir do momento em que ele se aproximou demais, transformou-se em vizinho e começou a impor suas “excentricidades”. Como salienta Pontalis: “O fenômeno racista só surge quando o estrangeiro está na cidade... não há no racista oscilação entre atração e medo, essa fascinação confusa pelo estranho e estrangeiro... O racista separa, cliva, há nele um amor pelo seu ódio” (1991, pp. 39-40).

Em momentos de crise global das economias, como o que vivemos no presente, o racismo tende sempre a recrudescer, pois é quando os indivíduos se sentem inseguros que o discurso racista se transforma em projeto coletivo, camuflando o vazio de um projeto subjetivo. Basta acompanhar os recentes debates europeus sobre imigração, centrados em como tornar as fronteiras daquele continente mais seguras, em como exercer um controle mais eficaz sobre a imigração clandestina e em como distinguir, por meio de eventuais cotas, os migrantes provisoriamente aceitáveis daqueles que urge repatriar através de charters fretados. Nessa sina de criminalização dos imigrantes, ouvem-se ecos de um horror não tão distante, que nos obrigam a concordar com Marx quando este afirmava que a história não se repete a não ser como farsa.

Tentei nos parágrafos acima chamar a atenção para o fato de que não há como impor uma suposta igualdade ao outro e que, quanto mais a exigimos, mais o outro insiste em se manifestar como nada igual. Se assim é, é porque, embora a ciência tenha provado que as raças não existem, o racismo continua a existir, na medida em que, como afirma Jeanmart Bruno1 (1991, p. 103), “o gesto segregativo e a palavra ‘racista’, no fundo, só falam da impotência da linguagem em inscrever a relação sexual, em suportar a dimendimensão do Outro, do Outro sexo”. Não só sua existência perdura, como se apresenta com outras roupagens, muitas vezes travestida de anti-racismo, como é o caso das políticas de discriminação positiva de grupos humanos submetidos à injustiça. Como então construir uma sociedade de tolerância que valorize a diferença, sem cair no culto das pequenas diferenças e do politicamente correto?

Se lanço essa pergunta é porque concordo com Angenot (2000), que sustenta a tese de que, assim como a bolsa de valores, o mercado ideológico também tem suas oscilações, e de que as ideologias atualmente dominantes são as sectárias, integristas e comunitárias, fruto da crise dos valores universalistas e dos projetos emancipatórios. De fato, o sujeito contemporâneo parece ter se refugiado no ressentimento, na expressão freqüentemente passional, em que a constatação de uma falta se transforma em necessidade de uma justa e integral reparação. O individualismo moderno faz com que o indivíduo acredite que a coletividade tudo lhe deve, e que ele nada deve ao todo; é por isso que a sociedade vem se fragmentando em mil e uma comunidades que se sustentam em torno de desgraças presentes ou passadas, sem se responsabilizar por elas, pretendendo dispor de uma hipoteca infinita, engajando-se numa concorrência em que cada qual pretende ser mais vítima do que seu vizinho, como se essa posição fosse sinônimo de heroísmo.

Nossas sociedades parecem levar cada vez mais em conta as vítimas, tanto as de dramas pessoais como de coletivos, do presente ou do passado, a ponto de a vítima estar se transformando, segundo Cacciali (2001), na metáfora de nossa condição moderna. Não só concordo com ele, como acho isso preocupante na medida em que essa é uma posição de puro gozo, cada vez mais distante do que poderíamos chamar de um sujeito engajado na própria vida com todos os riscos decorrentes do exercício de seu desejo. A vítima está permanentemente no registro da demanda de reconhecimento, demanda de reparação pelas perdas e danos sofridos. E por mais justa que uma reivindicação dessas possa parecer, estamos perante um sujeito cujo principal interesse é mais o ressarcimento de seu trauma do que a luta por seus direitos sociais.

Tratar da questão da vitimização é problemático, pois vivemos num mundo marcado pela tradição judaico-cristã que sempre glorificou a vítima, o que em geral nos impediu de reconhecer tanto o ódio que ela é capaz de despertar quanto o curto caminho que transforma a vítima em algoz. Quero deixar claro, no entanto, que, ao me opor à vitimização generalizada, não estou negando a existência de vítimas de acontecimentos históricos trágicos e traumáticos. Pelo contrário, é justamente por reconhecer o tamanho e a violência de certos crimes, e por achar que não há como reescrever a História, que julgo importante afirmar que não há como ressarcir crimes como a escravidão, por exemplo.

Se me autorizo a tomar a escravidão como exemplo de crime que não pode ser ressarcido, o faço em função do debate atual sobre a política de cotas na universidade brasileira e porque, como tantos outros, temo que tal política possa desembocar no que poderíamos chamar de “discriminação reversa”. Uma discriminação, ainda que positiva, não deixa de ser uma discriminação, e não vejo como seria possível transformar uma cultura de discriminação e intolerância por meio de outra discriminação.

Para fundamentar meu ponto de vista, irei me utilizar do recurso de viajar um pouco pela História e trazer para o presente as palavras de um filósofo sobrevivente de Auschwitz, Yehuda Elkana, citado por Ginestet-Debreil, para quem a visão do genocídio que tenta fazer do povo judeu eterna vítima de um mundo hostil é uma velha crença que se constitui paradoxalmente na trágica vitória de Hitler. A partir daí o autor analisa a atitude israelense em relação aos palestinos, afirmando que:

Determinar a relação do presente e modelar o futuro exclusivamente em função das lições do passado constitui uma ameaça para o futuro de toda sociedade que deseja, assim como os outros países, viver em relativa segurança e serenidade... A própria existência da democracia é posta em perigo quando a lembrança do passado das vítimas desempenha um papel ativo no funcionamento do político. Os ideólogos dos regimes fascistas o compreenderam... A utilização do sofrimento passado como argumento político se resume em associar os mortos ao processo democrático dos vivos... (Ginestet-Debreil, 1997, p. 175).

Essa longa citação ilustra exatamente a posição que gostaria de sustentar, a de quão mortífera pode ser a posição de vítima que nos leva a viver num mundo cada vez mais à mercê de violências etnocêntricas, em que as minorias fechadas em suas diferenças de classe, raça, religião ou cultura proclamam que a vida, tal qual ela é, aqui e agora, é injusta demais, não obstante nada façam para torná-la mais justa, contentando-se em exigir reparação pelos danos sofridos.

Convém não esquecer que o pensamento freudiano chamou nossa atenção para o fato de que nossas diferenças singulares servem de pretexto para a agressividade que atinge tudo aquilo que é diferente, particularmente quando essas diferenças têm suas raízes em terreno cultural ou social A violência dos conflitos identitários de nossos dias incita a “tomar partido” pelo universal, lembrando que o pensamento freudiano, marcado pelo Iluminismo, sempre preservou a referência ao universal, indispensável para pensar a diferença e sustentar uma ética de abertura ao outro.

Voltando à questão específica da educação brasileira, penso que a melhor maneira de enfrentar este que é de fato um verdadeiro problema de nossa sociedade ainda está na aplicação de princípios constitucionais derivados da doutrina universalista dos direitos humanos, sem que seja necessário recorrer a princípios particularistas, visando à defesa de identidades específicas que, a meu ver, corroboram para transformá-las em vítimas.

Termino com o pensamento de Arendt, para quem a única maneira de sair do ressentimento é através da gratidão. O que ela evidencia é que não estamos sós no mundo e que apenas podemos nos reconciliar com o gênero humano e com as diferenças entre os homens se tomarmos consciência, como de uma graça extraordinária, do fato de que, não o homem, mas os homens habitam a Terra. E lembrar-se disso, em psicanálise, significa que a sobrevivência dos fundamentos éticos da humanidade depende da possibilidade de transmissão da palavra de uma geração a outra, dizendo respeito à humanidade como um todo, com a universalidade da civilização se impondo à diversidade cultural.

 

Referências

Angenot, M. (1998). Du ressentiment. Autrement (L’envie et le désir), Paris, 110-123.

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Zygouris, R. (1983). L’amour de l’étranger. Imparfait 1, 215-227.

 

 

Endereço para correspondência
Caterina Koltai
Rua Piauí 335/112 &– Higienópolis
01241-001 &– São Paulo &– SP
E-mail: caty@osite.com.br

Recebido: 27/05/2008
Aceito: 05/06/2008

 

 

* Psicanalista e socióloga, professora da graduação e pós-graduação da PUC-SP, autora do livro Política e psicanálise: O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000.
1 Bruno, J. (1991). L’insuportable etrangeté de l’autre. Le symptôme social. Paris.