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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

Quem é estrangeiro no mundo dos homens?

 

Who is a foreign in a men's world?

 

 

Eduardo C. B. Bittar*

Universidade de São Paulo
UniFIEO. Mestrado em Direitos Humanos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura problematizar o uso corrente do termo estrangeiro, trazendo à consciência a discussão a respeito das formas pelas quais se leva em consideração, do ponto de vista ético, a dimensão do outro. Direcionase, portanto, à compreensão dos dilemas da vida social contemporânea, e à crítica leitura da sociedade globalizada.

Palavras-chave: Direito, Estrangeiro, Ética, Globalização, Psicanálise.


ABSTRACT

This article touchs the problem of the common use of the term foreign, discussing the ethical forms of consideration of the other. His message is directed pointed to the dilemma of the actual social life, and to the real conditional of the human been in a globalized society.

Keywords: Right, Foreign, Ethics, Globalization, Psychanalysis.


 

 

Na língua francesa, l´étranger é, por excelência, a forma assumida da diferença e do estranhamento com relação ao outro. Isso porque, o estrangeiro (étranger) é estranho (étrange). Atrás desta idéia está toda a carga semântica do convívio do europeu com o não-europeu, do civilizado com o não-civilizado, construções que ocuparam o acervo de categorias da modernidade em formação, de uma modernidade que haverá de conviver com o estrangeiro como a face do que é exótico e impressionante. Nesse sentido, o olhar europeu aprofunda e acentua a diferença, para constituir no outro a categorização daquilo que é inominável do ponto de vista da cultura que avalia. O outro aparece, nesse sentido, seja no vocabulário, seja na vida, como a manifestação daquilo que não se enquadra e que, exatamente por isso, não cabe. É, de certa forma, deste modo que, historicamente, recebemos a idéia do que é ser estrangeiro, cuja significação nos remete à outra co-ligada idéia, do que é ser nacional.

Sempre que se avalia alguém como um estrangeiro se está partindo de uma idéia naturalizada de que existe um padrão para aferição e enquadramento do outro como estrangeiro. Como não poderia deixar de ser, são as culturas que definem as formas como interpretamos os outros como estrangeiros ou não, quer dizer, como pertencentes ou não-pertencentes. A lógica matemática poderia conferir a tudo isto uma mera explicação fundada no princípio da não-contradição, regra básica da lógica formal, e intitular as coisas segundo o seu pertencimento ou não a círculos que são definidos por pré-seleções, para o que sempre haverá um sinal de interdição e um de inclusão, assim como para positivo e para negativo existem os seus próprios sinais.

Do ponto de vista histórico, em períodos de exceção, os códigos se alteram, e aquilo que era considerado normal, torna-se, rapidamente, a-normal. Nestas condições, sempre definidas pelas formas políticas autoritárias, pode-se mesmo, para deixar o círculo dos pertencentes e dos não-pertencentes muito bem definidos do ponto de vista social, marcar a diferença do outro, sobre o próprio corpo, a exemplo do que sucede na preparação do ritual de encaminhamento de judeus a Auschwitz. Selecionar, separar, segregar, definir, qualificar, perseguir, e, por fim, exterminar. Para que se possa evitar que a ambigüidade do natural trânsito entre ego e alter se refaça em outros termos, a segregação pela marca no corpo evita ter de se aceitar que existem arbitrariedades em toda tese que tenta defender que é possível diferenciar, entre si, os seres humanos. Assim, ostensivamente, cada indivíduo se torna portador de um símbolo que define a qualidade de sua entrada na sociedade: não-pertencente. Neste sentido, o corpo se torna um lugar de definição das formas pelas quais atua o poder, inscrevendo, como se faz ao gado, seu peso, sua medida, sua arrouba, sua destinação, conferindo-se ao corpo o sentido da banalidade de tudo o que é instrumentalizável.

No caso do holocausto, a ausência de um território judaico, a dispersão dos judeus pela Europa, significou o aberto campo para a disponibilização de construções culturais e sociais que o nacional-socialismo soube explorar para a definição de um imaginário social refratário ao outro, quando se tornou possível a vivência do inimaginável. Isso nos permite retornar à questão de que o estrangeiro como expressão do que é exotérico daquilo que vem do externo, somente é possível na medida da própria fixação de fronteiras. Afinal, o que é interno e o que é externo? Quando estas categorias se afrouxam, ganham elasticidade, e nos abeiramos dos outros com maior facilidade e normalidade; os outros são consentidos a se aproximarem. Quando as categorias se fecham, perdem elasticidade, os outros se tornam estes vizinhos incômodos, esses estranhos permanentes, esses indivíduos nos quais não reconheço nenhum código de entrada; devem ser mantidos cativos de seus próprios destinos, cujas rotas não devem se cruzar com as nossas. Por isso, o “padrão de estranhamento” está sempre atrelado a algum tipo de “padrão de normalidade”, e, neste caso, a principal referência é a de que o outro-estrangeiro é, por definição, um não-cidadão, quando isto significa que a normalidade está construída sobre a idéia de nacionalidade. Se para Hannah Arendt (1989), a inexistência de definição territorial para os displaced persons torna possível a barbárie, e a luta pelo direito a ter direitos se torna uma política fundamental, especialmente para a afirmação dos direitos humanos, também é verdade que a prisão dos conceitos de humano e não-humano à dimensão do território se torna uma faca de dois gumes. Sem ele, nada somos; restritos a ele, ou tendo os direitos como decorrência dele, continuamos a nada significar por nós mesmos.

No mundo, aí lançados e aí dispostos, segundo nossas próprias contingências, algumas comuns, outras não tão comuns, habitantes que somos de uma mesma escala existencial, quem é estrangeiro? Ainda mais, num mundo globalizado, será que ainda podemos nos utilizar desta carga semântica do início da modernidade para definirmos a forma de entrada de cada um no mundo dos direitos, e, portanto, no mundo da vida administrada pelas instituições? Será que devemos continuar a depositar força e peso na idéia da “estrangeiridade”, fator que torna o indivíduo um neurótico de suas próprias posses culturais (minha língua, minhas tradições, meus hábitos, meu povo, minha cultura), sem capacidade de outrar-se? Será que a convivência, ou seja, a vivência-com-o-outro, não pede incentivos à superação da idéia de que um único horizonte cultural somente é possível onde exista uma antropologia auto-centrada?

Se o homem é a medida de todas as coisas, como para Protágoras, as coisas não podem ser medidas a partir da medida de único homem. Pode-se, ainda, acrescentar: nem de um único líder, nem de um único partido, nem de um único povo, nem de uma única cultura... A estupidificação tem a ver um pouco com isto, com a capacidade &– também humana &– de ignorar o seu entorno, e fazer do próprio umbigo o métron de tudo. Se o imaginário medieval cuida de recuperar das concepções pitagóricas antigas e da idéia vitruviana o caráter métrico com o qual se define a forma de pictoricamente descrever e desenhar o homem, nem por isso, todas as retas e curvas do universo passam pelo seu umbigo. Assim, entre os medievais, o próprio ideal da virtude, que desde Aristóteles está colada à idéia de mediedade, enquanto perfeição do caráter, se afirmará através da imagem do homem tetrágono, ou seja, daquele que se expressa pela capacidade de representar em si o equilíbrio em microcosmo da ordem do macrocosmo universal, a modernidade haverá de deslocar este eixo para a dimensão da razão, conferindo-lhe um sentido e um lugar que não pode ocupar: o lugar de centro do universo. Esta centralização do racional como o lugar da totalidade da existência, e como ponto de partida e apoio para tudo, torna todo o envoltório da razão condição meramente acidental para a afirmação e existência da própria corporeidade da vida. A razão se acomoda em um trono que não é dela.

Desde então, torna-se comum que toda forma de afirmação da existência do outro, da descrição do outro, parta de qualificações que são estritamente conceituais e racionais. Também, toda definição do que seja o humano, se torna um exercício estritamente filosófico, e, não por outro motivo, racional, de definição da existência humana por um artefato da própria razão: o conceito. Talvez o que a antropologia crítica possa nos trazer de interessante seja exatamente a noção de que as definições humanas são, todas elas, muito relativas, para serem levadas a “ferro e fogo”, e, exatamente por isso, possa ser capaz de nos induzir à idéia de que é impossível uma verdade absoluta, se não se quiser chegar, de fato, à recondução da vida social à barbárie, a partir, também, de um “padrão de verdade”. Aquilo que escapa à possibilidade de uma definição, torna-se, por isso mesmo, algo que não-pertence, quando, então, se entra no terreno da ambigüidade, com a qual, como investiga Zygmunt Bauman (1998), a modernidade lida de modo muito desconfortável.

Invariavelmente, “padrões de verdade” se associam a “padrões de beleza”, e, por conseqüência, a “padrões de feiúra”. A feiúra daquele que não é, é a expressão ou o indício de seu não-pertencimento e, portanto, de sua condição de não-ser. A feiúra se atrela não somente a padrões estéticos, ou a avaliações bio-físicas, mas a padrões de conveniência política, em que todo exotismo pode ser utilizado de modo caricato como forma de politização da diferença. Nesta condição, o outro se torna a expressão da danação, do medo, e, por isso, o responsável por todas as instabilidades (política, econômicas, sociais) das quais se deve culpar um ser humano, de cuja face compartilhamos apenas com indiferença ou ódio. As diversas visões da feiúra, ou da monstruosidade do outro, são versões históricas de como a cultura é capaz de “construir” os monstros de cada época. Já foram os não-helênicos, mas podem ser os bruxos, ou ainda os nipônicos, ou ainda, os comunistas, os sans-culottes; a diferença está no contexto. Ocasionalmente, agora, são os muçulmanos. A caricatura política deste estrangeirismo do outro é somente uma das técnicas extremamente potentes, especialmente em tempos de indefinição, assim como significativas, pela capacidade de fazer-se projetar sobre o outro a indeterminação dos medos inconscientes que assolam o próprio homem.

Se este nosso mundo é um mundo de paz, deve-se também lembrar que este é também um mundo de guerra. Ambas as questões, a da paz e a da guerra, são construídas culturalmente. A demonização do inimigo, em tempos de guerra, corresponde à necessidade de conferir, aos homens guerreiros, a força caricata e necessária para ocultarem de si mesmos, o ímpeto que se torna recalcado, de que guerrear com o outro-estrangeiro, de cujos hábitos e de cuja língua pouco conhecemos, é guerrear com uma parte de si mesmo. Se algo fala no interior de cada um “por que é mesmo que estou fazendo isto com esta gente?”, este sentimento deve ser logo abafado pelo fácil slogan de publicidade nacionalista, ou de partido, de que o outro é um inimigo e de que a voracidade grotesca do inimigo deve ser contida pela capacidade de resistência do herói de guerra. Tudo se resolve, sucintamente, na formulação que nos faz sempre estar do lado do “bem”, quando o outro se encontra no lado do “mal”.

Não se pode deixar de considerar, portanto, que, se existe um ímpeto humano para reconhecer uma certa proximidade do outro, com relação a mim, não se pode dizer que o ímpeto inverso, ou seja, o ímpeto de afastamento, também não exista. Pode-se chamar a isto de antipatia e de simpatia, para falar a linguagem dos humores e dissonâncias da alma, mas, de fato, do ponto de vista psicanalítico, o avizinhamento do outro é sempre algo revestido de muito cuidado. Se, como quer Emmanuel Lévinas (1993), em Humanismo do outro homem, o visage é a primeira coisa que surge na apreensão do outro, é fato que este visage pode, rapidamente, significar ameaça, e, por isso, ser motivo de expulsão, afastamento, porque a intromissão inconsciente do visage pode ser lida como perigosa. Esta é a visão egóica de mundo. Na linha da psicologia desenvolvimentista, se nos relacionamos num nível moral mais primitivo, é certo que o outro será sempre o outro-invasor, aquele que fere as fronteiras abstratas e incontornadas, mas delimitadas inconscientemente, dos territórios da intimidade, da privacidade e da sobrevivência físico-psíquica. Este outro-ameaça é um outro cuja abstenção de inclusão em nosso espaço existencial, inclusive psíquico, nos poupa o trabalho da compreensão e do uso de energias para a construção de interações. Se nos relacionamos num nível de desenvolvimento moral mais aguçado, o outro pode ser rapidamente integrado à dimensão de compreensão de ego e elevado à condição de parceiro, de cuja integração o saldo positivo pode ser uma menos custosa interação com o mundo, com a existência, e uma maior satisfação das necessidades e desejos primordiais. Não somente o custo psíquico é recompensando, como também, raciocinando por princípios, é possível, pelo exercício de compreensão do outro, acessar os caminhos para a compreensão do enigma de si, para cuja decifração sempre se requer a chave do outro. Ego e alter não se desprendem, tão facilmente assim, um do outro.

Sempre quando entramos em contato com o outro, este indecifrável, a nós se abre uma porta, a porta de um novo universo, a dimensão do mundo subjetivo, este que não deixa de ser uma constelação em miniatura. Cada “outro” é sempre uma constelação de fatores, históricos, psíquicos, sociais, econômicos, morais, religiosos, afetivos... e se torna uma potência indecifrável, cuja significação é parcamente acessível a nós. O dilema do outro se abre para mim como uma estranheza diante do desconhecido; de certa forma, o outro significa um abismo, o abismo da significação da existência. Mas, da mesma forma que encontramos este abismo no outro, este abismo nos pertence; então, o que queremos expulsar, quando rejeitamos o outro, por medo de nos defrontarmos com a vastidão das indeterminações carreadas pelo outro? Exatamente aquilo que desejamos manter inconscientizado, recalcado, calado: a qualidade do que é indeterminado em nós, ou seja, daquilo que não controlamos, daquilo que não possuímos, daquilo de que não podemos falar. Aquilo que a consciência identifica como inconsciente, é imediatamente lida como força primígena e ameaçadora. O esforço de superarmos, na face do outro, o medo de nos confrontarmos conosco mesmos, isto define a qualidade da forma moral de integração social que define a aproximação na diferença.

A exploração política do caráter oculto do medo do que está fora &– fora de nós, fora dos muros, fora das fronteiras, fora das categorias &– tem a ver com a movediça estrutura daquilo que nos abriga e daquilo que nos desabriga. Toda política xenofóbica, como, por exemplo, aquela que atualmente se passa a adotar na forma como se lida com os processos de imigração em fronteiras da União Européia, expressa um pouco isso, a capacidade de ser refratária a tudo aquilo que se encontra no limbo da indefinição. A pretexto de cumprir a lei, a qualidade daquele que é foreign, como conceito, é de fundamental importância para os serviços de imigração, que precisam de caricaturas, de timbres, de selos, de perfis, de conceitos, e, de acordo com estes, os indivíduos se tornam classificáveis e etiquetáveis, sendo, neste sentido, até mesmo possível que um indivíduo permaneça, sob o poder das autoridades, etiquetado como um visitante suspenso no tempo (18 meses) sob custódia das autoridades de imigração. Trata-se de uma espécie de produto, que não encaixado, nem na seção de armarinhos, nem na seção de produtos de limpeza, retorna à averiguação pelos procedimentos de “encaixe”.

Ademais, a sociedade pós-moderna, ou sociedade da informação, é a sociedade em que as coisas não são o que são, mas são aquilo que são tornadas. Trata-se da sociedade-espetáculo, à qual se refere Gilberto Dupas (2001). Há muita circulação de informação e baixa densidade reflexiva: a tecnologia domina o cenário da informação. Os jogos de imagens definem a essência e constituem as coisas. Por isso, na sociedade da informação, mais importante que o fenômeno é a sua aparência na mídia.

Diante da impossibilidade de se conhecer a outra cultura senão pelo écran dos televisores, acredita-se naquilo que se torna o relato-da-verdade. Este relato parcial se torna formativo, opinativo, e quando não muito, se torna também fonte oficial de informação para deliberações governamentais. Principalmente nas circunstâncias de conflitos, destacam-se três fontes de informação: mídia internacional (inglesa, americana, principalmente), informações do exército ou das forças armadas (o próprio ocupador fazendo o relato de sua atuação) e jornais locais (necessariamente, partidários e sectários). Qual a possibilidade de se reunir qualquer tipo de aproximação com a verdade?

Não por outro motivo, um estrangeiro se tornou estranho em todas as partes do mundo, desde os eventos de 11 de setembro, e a partir de construções da política e da mídia: o muçulmano. Quando se fala em cultura oriental, em muçulmanos, em árabes, em Oriente Médio, a consciência geral da opinião pública ocidental a respeito destes povos não é outra: são povos primitivos, atrasados, bárbaros, que carecem ser guiados pelo Ocidente em direção ao desenvolvimento. A eles, deve ser levada a democracia e os direitos humanos, ainda que ao custo e com o sacrifício de tudo o que lhes é caro. Não raro, quando se fala em árabe, se fala em extremista, em homem-bomba, em terrorista. As imagens caricatas são a face mais retórica a ser explorada dentro do contexto de insegurança global. Deve haver um culpado! Sempre há um culpado! Quem é o culpado? O muçulmano.

O revanchismo internacional passa a mobilizar esforços intensos para o controle das fronteiras, para o controle da imigração, para o estudo das árvores genealógicas de famílias de descendentes de árabes, para o controle da circulação de informações entre membros da comunidade árabe. Em primeiro lugar, nem todo árabe é muçulmano. Em segundo, nem todo muçulmano é extremista. Em terceiro, o terrorismo não tem origem árabe. Em quarto, há mais terroristas no mundo, que não somente árabes fanáticos. Ademais, o Islã é uma religião, e os usos políticos dessa religião devem ser diferenciados dela, pois não deve afetar a sua imagem, muito menos a do povo que a tem como instrumento de sua fé. Mas, a sociedade-espetáculo constrói os seus heróis, constrói os seus anti-heróis, e num mundo cada vez mais dependente da informação veiculada pela mídia, nem toda verdade aí está contida, de modo que toda manipulação se torna possível quando as imagens entram em circulação.

A mídia colabora, portanto, com este processo toda vez que age acentuadamente guiada por este agir-estratégico. A colonização do mundo oriental pelo ocidental se vê justificada. A guerra contra o terror se vê justificada. A luta contra o inimigo externo se encontra justificada. Abu Graib está justificada. Guantánamo está justificada. Os signos do poder agem com uma perfídia inolvidável, e é nesse sentido que a estrutura da comunidade internacional se vê inteiramente guiada pelas informações que se encontram à sua disposição. Se elas são todas orientadas em função da insegurança (unsicherheit, incertezza, précarité) não se justifica o incremento dos serviços secretos, das táticas de escuta, da desconfiança e da perseguição internacionais? Se continuarmos a globalizar a discriminação, no lugar de trabalharmos a conciliação, em cadeia, vamos colher reação.

Por isso, diante da etrangeté (strangness), a globalização deve reagir de modo a ser capaz de absorver o alto grau de insegurança, drenando-o para dentro de esforços coletivos de superação das diferenças e criação de canais de evasão dos mitos, muitas vezes criados, muitas vezes fundados, de que o outro é um inimigo natural. Para isso, temos de ser capazes de convencermo-nos de que civilização e barbárie só existem onde é possível criar as formas de determinação do que é ser civilizado e do que é ser bárbaro. Isso significa que precisamos superar a forma colonialista de definir o encontro intercultural e passarmos a prezar na diferença do outro esta alteridade que deve ser reconhecida como humana, e igualmente sujeita ao respeito, ao deferimento do esforço psíquico de sua compreensão. Aí está um exercício moralmente fundado de irrestrito respeito à diferença e prática de tolerância.

Isso significa assumir a complexidade do humano, ou seja, ser capaz de lidar com as diversas faces, reconhecendo na forma de ser do humano a multidiversidade de suas expressões. Se existem diferenças, elas são complementares, e não são incontornáveis à própria cultura na forma de se encontrarem modos de interação e integração. Não por outro motivo, a importância da psicanálise se dá exatamente para testemunhar, pelo estudo do inconsciente, a favor do onírico e do indeterminado, para descrever o homem mais do que como um ser de razão, e para nos fazer, a partir de Freud (1996a, 1996b), de cada um de nós menos senhor de si mesmo do que se imagina, também verificar, concretamente, que somos estranhos a nós mesmos, e, por isso, o sonho da onipotência juvenil se desvanece, para se transmutar em competência moral adquirida para conviver de modo tolerante com as diferenças.

Por isso, se o direito tem de seguir algum rumo, nos descaminhos da atual política vigente globalmente, o seu rumo é certamente o de tentar mudar o rumo das coisas. E isso porque, no mundo da humanidade, ninguém deveria ser estrangeiro.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Eduardo C. B. Bittar
Largo de São Francisco, 95/2º andar
Prédio Anexo &– Centro
01005-010 &– São Paulo &– SP
E-mail: edubittar@uol.com.br

Recebido: 30/05/2008
Aceito: 20/07/2008

 

 

* Livre-Docente e Doutor, Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, nos cursos de graduação e pós-graduação; Membro do Grupo de Conjuntura Internacional da USP; Professor do Instituto de Relações Internacionais da USP. Pesquisador-Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP/ NEV-USP). Coordenador do Grupo de Pesquisa “Democracia, justiça e direitos humanos: Estudos de Escola de Frankfurt” (CEPID VI), junto ao NEV-USP. Professor e pesquisador do Mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO. Autor do livro O direito na pós-modernidade, Editora Forense Universitária, 2005.