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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

O acontecimento e a temporalidade: o après-coup no tratamento*

 

Event and temporality: the après-coup in treatment

 

 

Jacques André**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O título deste artigo, “O acontecimento e a temporalidade”, indica os dois pólos considerados. Enquanto a primeira entrevista de uma análise dispõe das condições (quase) garantidas de um fenômeno de après-coup, sob o duplo registro do trauma e da abertura, seu acontecimento no desenrolar de um tratamento analítico é bem menos garantido. A conjunção fecunda de um momento traumático com uma reorganização psíquica conseqüente faz muitas vezes esperar, quando não cansa a própria espera. “Nada acontece nesta análise”. As referências privilegiadas à repetição do obsessivo ou à neutralização do processo, tal como se observa em algumas configurações borderlines, correspondem ao desejo de abordar a problemática do après-coup mais a partir de suas falhas, ausências ou formas estranhas que de suas realizações bem-sucedidas. O après-coup é uma questão de tempo. Não se pode isolá-lo de uma concepção psicanalítica mais ampla da temporalidade. Insere-se num conjunto do qual a afirmação freudiana da atemporalidade do inconsciente é a formulação mais original. Em sua generalidade filosófica, o tempo não é objeto da psicanálise. No entanto, as formas da inscrição psíquica do sujeito humano no tempo interpelam tanto a teoria analítica quanto sua prática. Qual é o lugar, o papel, do efeito de après-coup no processo de temporalização? Qual é o lugar do acontecimento na construção da temporalidade?

Palavras-chave: Après-coup, Recalque, Recalque originário, Temporalidade, Trauma.


ABSTRACT

The title of the article, “Event and temporality”, indicates two poles. Whereas the first interview of psychotherapy has the (almost) guaranteed conditions of an après-coup phenomenon, under the double register of trauma and openness, the event along the psychoanalytical treatment is less guaranteed. The fruitful conjunction of a traumatic moment and the resulting psychic reorganization often takes time, and it may even tire the wait itself. “Nothing happens in this psychoanalysis”. The privileged references to the repetition of the obsessive or to the neutralization of the process, such as it is seen in some borderline configurations, correspond to the desire to approach the après-coup issue from its failures, absences or odd forms rather than from its successful accomplishments. The après-coup is a matter of time. One may not isolate it from a broader psychoanalytical concept of temporality. It is built into a set of which Freud’s statement of the atemporality of the unconscious is the most original formulation. In its philosophical generality, time is not the subject matter of psychoanalysis. However, the human being’s forms of psychic inscription in time challenge both the psychoanalytical theory and practice. How does the après-coup impact the temporality process? What role does it play? Where does the event lie in the construction of temporality?

Keywords: Après-coup, Repression, Originating repression, Temporality, Trauma.


 

 

É uma questão embaraçosa saber se, sem alma, haveria tempo ou não.
Aristóteles
Sinto-me disperso nos tempos cujo ordenamento ignoro.
Agostinho
Ignoro o significado da palavra depois se eu não conhecer,
primeiro, o conceito de tempo.

Kant
O passado nunca morre, não é nem mesmo passado.
Kaulkner
Nunca foi provado que o tempo passa.
Palavras de sessão

Aurora

A ligação telefônica foi um primeiro alerta. Pelo tom da voz, pensei durante um instante em uma oferta comercial, mas era para marcar uma consulta. Nossa primeira entrevista confirmou a impressão inicial. Aurora ostentava um sorriso constante, daqueles que são ensinados nos cursos de comércio para opor ao humor variável e imprevisível do cliente uma indiferença amável que nada poderia ofuscar. O tom desenvolto rimava com o sorriso. No entanto, nada era leve na evocação dos motivos que a levaram a tomar essa iniciativa, a primeira do gênero. Foram dois abortos sucessivos que a fizeram tomar essa decisão. O primeiro, contra a sua vontade, diante da recusa do seu amante de encarar a futura paternidade. Ela já tinha escolhido um nome de menina para o futuro bebê. O segundo aborto, cena sombria e confusa, parecia ser o eco traumático do primeiro, embora a modalidade do relato de Aurora nada deixasse transparecer quanto à efração.

Propus uma segunda consulta para uma semana depois. O apagamento dos afetos, a neutralização da conversa e a defesa pela insignificância me deixavam, contudo, perplexo sobre a possibilidade de que um “tratamento psíquico” pudesse ser iniciado, muito menos uma análise.

Fiquei ainda mais espantado quando Aurora chegou dizendo que por pouco não deixou de vir, não desapareceu. O café onde se refugiou logo depois da entrevista se chamava L’ imprévu (O imprevisto). Colapso imperceptível detrás da fachada intacta do sorriso, o primeiro encontro a fez cair num abismo de angústia. Uma angústia sem nome, cheia de vazio, indo além do que a imagem pode ilustrar.

Não se discutia mais a questão da possibilidade do tratamento. A análise já havia começado sem que eu percebesse, já estava profundamente estabelecida. Paradoxo da força selvagem e desmedida da transferência, quando o que se encarna é uma figura do vazio, uma indiferença. Mais tarde, bem mais tarde, quando a análise tiver inventado um passado, Aurora poderá nomear, quase contar, o que a petrificou e angustiou nesse primeiro momento: meu silêncio, tão radicalmente oposto ao seu modo de ser de profissional da comunicação que não deixa nenhum espaço em branco numa conversa. A antipatia que lhe inspirei. E para seu espanto, tendo evitado vir toda vestida de preto como de costume, eu estava de preto, dos pés a cabeça. Momento especular de inquietante estranhamento, quando o inconsciente surge de fora e uma clivagem comum vacila um instante. À maneira do que acontece com Freud, quando vê entrar por engano em seu compartimento de trem um velho sujeito cansado, fantasma vindo diretamente da terra dos mortos, que não é ele-mesmo, mas um outro-ele-mesmo desconhecido, personificado durante um segundo no espelho1 (Freud, 1988). A primeira entrevista também foi para Aurora um mau encontro, daqueles que acontecem às vezes quando se nasce.

Essa seria uma primeira hipótese, que suporia que a entrevista inaugural de uma psicanálise &– ainda mais observável por se tratar da primeira entrevista de um primeiro tratamento e da expectativa ansiosa que muitas vezes a caracteriza &– repousa numa teoria implícita do efeito de après-coup, através do trauma e da abertura que este impõe simultaneamente à psique. O exemplo de Aurora, entre tantos outros, lembra que a instauração da dimensão analítica não espera que o exercício seja “enquadrado” (divã, número de sessões etc). Por si só, a assimetria das posições subjetivas respectivas &– um fala e o outro não, ou fala tão pouco ou mesmo tão estranhamente &– a preenche. É justamente a fecundidade do momento traumático que a “técnica” da primeira entrevista busca às cegas. Daí a importância da segunda entrevista (dita) preliminar, que permite muitas vezes avaliar o impacto da entrevista anterior, a abertura permitida pelo trauma: o paciente dizia nunca sonhar ou esquecer seus sonhos, mas traz o relato de um sonho que teve depois do primeiro encontro; não tinha lembranças da primeira infância, mas uma cena que ele pensava estar perdida voltou desde então; quando não abandona, nesse intervalo, o sonífero que lhe parecia indispensável. Podemos lamentar que sempre haja apenas uma entrevista por análise.

Também há o caso de quando a vacilação ultrapassa o que o eu do paciente é capaz de conter, quando o golpe é muito forte e a abertura é um abismo que o faz de saída interromper o exercício, ou sofrer para encontrar um profissional com quem seria possível realizar uma análise, porque o modo como esse age permite esperar que a análise justamente não se realize. O inconsciente não tem nenhuma razão para fazer uma análise, ele é contra; ela só pode ser decidida contra a vontade dele. Entre o começo e o aborto, a decisão de Aurora teria estado por um fio.

 

O esquecimento

A descoberta do après-coup é uma redescoberta. O tempo da teoria é como a própria noção, é o tempo de uma construção em dois episódios. É em 1953, cerca de 60 anos após as primeiras considerações freudianas, que Lacan exuma o que ficou enterrado, esquecido, perdido ou passou despercebido nesse intervalo.

Como interpretar um silêncio tão longo? Restam-nos conjeturas. Com o exílio de Freud em Londres, toda a psicanálise foi transportada para lá. A mudança de país e de língua redobra o deslocamento teórico. Ora, em inglês, não existe mais après-coup. Discutiu-se muito sobre a má tradução de Strachey, que geralmente usa o termo deffered action para nachtäglich, Nachträglichkeit. Relembremos simplesmente o sentido desse contra-senso. A idéia da ação diferida remete a um prazo, a uma latência: um acontecimento inscrito na infância que só exerce verdadeiramente sua ação mais tarde, às vezes muito mais tarde, de acordo com o modelo da bomba de retardamento &– esta imagem é de Jean Laplanche. Não duvidamos que tal desenvolvimento seja observável, mas será que precisamos da psicanálise para isso? Só que, ao falar de Nachträglichkeit, Freud fala de outra coisa, de uma coisa nova, tomando às avessas as representações convencionais da temporalidade. A deffered action de Strachey respeita o senso comum, a idéia de um tempo que escoa e cujo movimento segue o sentido da flecha, avançando do passado para o presente. Quando a Nachträglichkeit põe o tempo de cabeça para baixo, ela condensa em um paradoxo dois movimentos que a lógica exclui: a simultaneidade, a solidariedade, a confusão de um passado &– presente e de um presente &– passado. O efeito de après-coup ignora a contradição.

Na Inglaterra, não foi somente Strachey, mas também Melanie Klein e mais alguns outros. Klein inventa, por assim dizer, a psicanálise de crianças. Mais do que isso, ela considera que toda psicanálise, qualquer que seja a idade do paciente, é uma psicanálise de crianças. O arcaico é um presente que não passa, que não está por vir. O sistema kleiniano é fora do tempo, e as considerações feitas pela autora sobre as formas da temporalidade se reduzem estritamente ao mínimo. Porém, um exame preciso revelaria, sem dúvida, algumas nuanças, sobretudo pelo ritmo necessariamente temporal que conduz da destruição à reparação. É até mesmo possível que haja pelo menos um exemplo importante de après-coup em sua obra. Alguns meses depois de ter escrito Luto e melancolia, Freud insiste no caráter de enigma que, em sua opinião, o luto conserva: por que a libido que voltou a ser livre “graças à” morte-desaparecimento do objeto leva tanto tempo e causa tanta dor para dele se desprender? “Não compreendemos”2 isso. Melanie Klein tem a resposta. A perda de um ente querido, não importando a idade em que ela ocorra, sempre é um segundo tempo, um segundo trauma, a revivescência de uma experiência precoce. Sempre já se perdeu o objeto de amor, e isso marca a generalidade da posição depressiva (Klein, 1980)3. Todo luto, mesmo que seja a primeira vivência, não é somente a repetição, mas também a retomada, a transformação, de uma morte e de um sofrimento ignorados. O pior sempre é certo, já aconteceu.

A explicação “inglesa”, no entanto, não é suficiente para explicar o desaparecimento da noção de après-coup. Em alemão, as coisas também não estão mais avançadas. Enquanto Freud geralmente se preocupa em destacar tipograficamente a referência ao après-coup, com a clara intenção de evitar que a noção passe despercebida, o índice de Gesammelte Werke a deixa escapar. Nem nachträglich, nem Nachträglichkeit constam nesse índice. Além da questão editorial, é a língua alemã em seu próprio uso que nada retém da inovação freudiana. Nachträglich, adjetivo ou advérbio, está em todos os dicionários, mas a psicanálise nada tem a ver com isso. A palavra expressa fortemente a idéia de atraso. Receber algo nachträglich é recebê-lo com certo atraso como, por exemplo, um pagamento tardio: nachträgliche Einzahlung. Literalmente, nachträglich é aquilo que é “trazido depois”, nach-depois, tragen-trazer4. Quanto ao termo Nachträglichkeit, o substantivo totalmente forjado por Freud, além de não dizer nada para um alemão, para quem O homem dos Lobos não é livro de cabeceira &– portanto, para a maioria dos alemães &–, também não está registrado nos dicionários, nem mesmo no Grimm. A invenção freudiana não deixou rastro em sua própria língua, tornando todo après-coup teórico muito aleatório.

Todavia, é pouco provável que o esquecimento do après-coup seja apenas uma questão lingüística. Afinal, Freud não foi o primeiro a contribuir para esse esquecimento? Por certo, ele destaca mesmo as ocorrências da palavra e, criando o substantivo Nachträglichkeit, toma o caminho da conceitualização, mas nenhum de seus textos é especificamente dedicado ao tema. Além disso, vários comentadores assinalaram que a referência ao fenômeno do après-coup desaparece na segunda tópica. Esse desaparecimento, contudo, é relativo, como pode ser verificado no índice remissivo e no sumário das OCF5. É como se estivéssemos diante de dois conjuntos (muito) nitidamente distintos: de um lado, a primeira tópica, a sexualidade infantil, o recalque e o efeito après-coup; e do outro, a segunda tópica, o isolamento narcísico, as forças de destruição e a compulsão à repetição. “A rigor, &– escrevem Françoise Coblence e Jean-Luc Donnet &– a compulsão à pura repetição marcaria a negativação de qualquer remanejamento”.6 A distinção é simples: de um lado, o après-coup, que repete e transforma por um mesmo gesto, e do outro, a compulsão à repetição, que repete de forma idêntica a própria repetição, quando a psique passa a ser nada mais do que um disco arranhado, quando a realização do desejo cede àquela da (auto)-destruição.

Jean Laplanche considera as variações freudianas de um outro ponto de vista, de dentro mesmo da primeira tópica. Por surgir paralela e solidariamente à teoria da sedução (em 1895) &– principalmente no caso Emma &–, a noção de après-coup não podia deixar de sofrer as conseqüências do famoso abandono. Não a ponto de desaparecer com a água do banho, mas conservando do episódio uma dificuldade para ocupar plenamente seu lugar. A referência mantida ao après-coup, principalmente na discussão de O homem dos Lobos, pode assim ser interpretada como um ressurgimento, um fuero da dita teoria. Isso é facilmente confirmado pelo texto, não somente porque os fatos de sedução são abundantes na história do caso, mas porque o próprio Freud sublinha o retorno (après-coup?) da “velha teoria do trauma” e, para qualificar o tempo 1 do trauma, o sonho com os lobos, ele formula aquela frase notável: este age como “uma intervenção estranha, análoga à sedução7”. O sonho é uma sedução traumática e, ao mesmo tempo, a transformação do primeiro trauma, que metamorfoseia a percepção dos indícios da cena primitiva na imagem dos lobos sobre a árvore.

O esquecimento em que caiu o après-coup entre Freud e sua retomada por Lacan, cada um o interpreta ao seu modo, em função de suas escolhas metapsicológicas. A história da psicanálise, assim como a história individual, é um objeto de reinscrição. No trajeto obscuro que separa Freud de Lacan, há um momento que merece uma menção particular. Devemos a Ferenczi (secundariamente a Rank) um revigoramento do modelo traumático &– iniciado pelo próprio Freud já em 1920. O artigo “Confusão de línguas entre adultos e crianças” explica, inclusive, a articulação entre o trauma compulsivamente repetido pelos pacientes e o desvio precoce da ternura infantil pela paixão adulta. Como compreender a recepção desagradável e despreziva que Freud lhe reserva8? Cabe aqui novamente a cada um fazer suas observações, mas, da minha parte, destaco a contribuição que a noção de après-coup pode ter trazido. É muito interessante notar que, no entanto, o retorno de Ferenczi tanto ao trauma quanto à sedução deixa totalmente de lado o aporte do après-coup à teoria do trauma. O trauma ferencziano aproxima-se da deffered action, vem de fora, desfere um único golpe, que não pára mais de reverberar. Chegando até a arrastar o analista para essa repetição: “O método que utilizo com meus analisandos consiste em ‘mimá-los’... Procedese um pouco como uma mãe carinhosa, que não vai se deitar à noite sem ter conversado a fundo com seu filho e resolvido, no sentido de tranqüilizá-lo, todas as pequenas e grandes preocupações, os medos, as intenções hostis e os problemas de consciência que ficaram suspensos”9. É bem possível que muitos impasses clínicos vividos por Ferenczi &– uma mesma “recusa” da análise da transferência que faz se tomar pela mãe ou pelo amante &– se devam ao seu desconhecimento do après-coup e ao que este impõe: o primado traumático da realidade psíquica e do ataque interno. Desse ponto de vista, não é a Freud de 1895 que Ferenczi retorna, mas a uma concepção pré-psicanalítica do trauma.

 

As escolhas

Interrogar o silêncio relativo ao qual pode ter sido submetida a (re)descoberta feita por Lacan do après-coup seria fazer uma outra leitura “traumática”. Um exemplo entre outros: em 1980, realiza-se um congresso sobre o tema “O trauma e o après-coup no tratamento”, cujos anais foram publicados sob a coordenação de Jean Gullaumin10. O nome de Lacan mal é citado e a bibliografia o esquece. A contrapartida dessa discrição é a reivindicação por Lacan da sua anterioridade no assunto, repetida várias vezes em alto e bom som: “Antes de mim ninguém jamais percebeu o alcance do nachträglich, embora esteja em todas as páginas de Freud”11. É bastante curioso notar que um dos primeiros usos que Lacan faz da noção diz respeito justamente ao trauma da cisão de 1953, quando deseja que a dissensão adquira “après-coup seu sentido: nachträglich, como se expressa nosso mestre para destacar menos a deformação que a história, a própria gênese da lembrança”12. Era esquecer que a temporalidade do après-coup se assemelha às longas durações e que o golpe aplicado nem sempre conduz ao apaziguamento.

O après-coup demorou a reaparecer, mas, desde então, recuperou-se bem. Em 2006, com um intervalo de dois meses, duas obras são publicadas tendo como título o termo après-coup: o volume VI de Problématiques de Jean Laplanche (retomada de um curso de 1989-1990) e um número da Revue française (a partir do congresso de Deauville de 2005). Além disso, o artigo de Thomä e Cheschire, publicado na International Review em 1991 e intitulado “Freud’s concept of Nachträglichkeit and Strachey’s ‘deffered action’”, assinala que, embora necessário, esse tema não é mais apanágio da psicanálise de língua francesa13. Por outro lado, como o que é bom nunca é demais, cabe ao autor deste relatório fazer escolhas. De Lacan aos nossos dias, Emma e o Homem dos Lobos &– e de vez em quando o pequeno Hans &– foram foco de todas as atenções. Seria preciso sobrecarregá-los com um enésimo comentário? Escolhi então a análise em vez da síntese, organizando minha argumentação em torno do “après-coup no tratamento” &– questão não abordada diretamente por Freud, presente incidentalmente em Lacan através da escansão e, desde então, buscada por certo número de autores. Assim esboçado, o campo de investigação ainda é bem vasto. O título deste relatório &– O acontecimento e a temporalidade &– indica os dois pólos considerados. Se, por um lado, a primeira entrevista de uma análise dispõe das condições (quase) asseguradas de um fenômeno de après-coup, sob o duplo registro do trauma e da abertura, por outro, seu acontecimento no desenrolar de um tratamento é muito menos garantido. A conjunção fecunda de um momento traumático com uma reorganização psíquica resultante se faz muitas vezes esperar, quando não cansa a própria espera. “Nada acontece nessa análise”. Minhas referências privilegiadas à repetição do obsessivo ou à neutralização do processo, tal como se observa em certas configurações borderline, correspondem ao desejo de abordar a problemática do après-coup mais a partir de seus fracassos, de suas ausências ou de suas formas estranhas que de suas realizações efetivas.

O après-coup é uma questão ligada ao tempo. Esta é a segunda orientação deste relatório: o après-coup não pode ser isolado de uma concepção psicanalítica mais abrangente da temporalidade. Ele intervém num conjunto do qual a afirmação freudiana da atemporalidade do inconsciente é a formulação mais original. O tempo, em sua generalidade filosófica, não é objeto da psicanálise. Porém, as formas da inscrição psíquica do sujeito humano no tempo interrogam vigorosamente tanto a teoria analítica quanto sua prática. Que lugar, que papel cabe ao efeito de après-coup no processo de temporalização? Que lugar cabe ao acontecimento na construção (ou destruição) da temporalidade?

O après-coup confunde nossa representação comum do tempo. Trauma em dois tempos, ele desorganiza a cronologia, não se contentando em invertê-la. A aritmética tem dificuldade para acompanhar, pois seria preciso dobrar sobre ela mesma “a linha têmporo-causal”14. No entanto, escolhi designar por “tempo 1” aquele que se dá après-coup, o segundo na ordem “cronológica”, porque é a partir dele que se abre a temporalização e se conjuga no passado o primeiro golpe. O tempo 1 é o segundo golpe e o primeiro tempo.

Em 1967, em seu Vocabulário, Laplanche e Pontalis definem e esboçam a problemática do après-coup de um modo que permanece muito pertinente atualmente &– quando a riqueza das considerações de Lacan, fiel à sua maneira, se dispersa em notas esparsas. Acontece que, desde então, as abordagens se multiplicaram, inclusive as do próprio Jean Laplanche, e não podemos deixar de precisar do que estamos falando. Qual après-coup? Discutir seu surgimento ou sua falta no tratamento supõe que nos dotemos a minima de uma teoria provisória.

 

Qual après-coup?

O après-coup é uma noção em tensão, condensando duas dimensões que só querem afastar-se uma da outra. De um lado, a violência traumática, do outro, a sutileza de uma reinscrição, a complexidade de um significado remodelado. Isso pode ser ilustrado na leitura de um trecho de Freud dedicado a essa questão em Recordar, repetir e elaborar. Ele escreve: “Há um tipo especial de experiências da máxima importância, vividas na infância mais remota [à mesma época, ele redige a história do Homem dos Lobos], que não foram compreendidas na ocasião, mas que, après-coup, foram compreendidas e interpretadas, e das quais geralmente nenhuma lembrança pode ser recuperada”15. Se terminasse assim, a citação se limitaria a relacionar uma experiência marcante, traumática, da primeira infância, incompreensível para a criança pequena devido aos meios limitados de que dispõe, com sua interpretação mais tarde na maturidade; sua interpretação e sua construção, pois a rememoração de uma experiência tão precoce é falha. Um passado obscuro, posteriormente refigurado, reescrito, reconstruído são os ingredientes perfeitamente reconhecíveis de uma hermenêutica cujas palavras-chave são: interpretação, compreensão, construção. No entanto, há uma mudança radical de plano na frase que segue: “Obtém-se conhecimento delas através dos sonhos e se é obrigado a acreditar neles com base nas provas mais convincentes fornecidas pela estrutura da neurose”. É o momento do tempo 1 do après-coup. O fato de tomar a forma do sonho ou da neurose distingue suficientemente a “compreensão-interpretação” dita après-coup de um processo secundário. O après-coup mantém um pé no inconsciente, seu acontecimento traumático só se transforma em abertura &– e não simplesmente em recalque &– se encontrar alguém para ouvi-lo.

Alguém pode achar essa divisão arbitrária: o que pode “provar” a divisão em duas partes de uma citação? A não ser o fato de que representa o que se observa ora aqui ora ali. Tão logo redescoberto, o après-coup tende a se perder novamente. Enquanto a maioria dos textos psicanalíticos que tratam explicitamente do après-coup tenta juntar as duas coisas, traumas em dueto e remodelamento do sentido, a mesma coisa não acontece com aqueles, em maior número, que recorrem à noção apenas ocasionalmente: nestes, o après-coup é reduzido à retrospecção, à ressignificação do passado, à sua reinscrição. Todas essas coisas nada têm de especificamente psicanalítico e também dizem respeito tanto ao hermeneuta quanto ao historiador. Não é somente a dimensão traumática que desaparece numa versão refiguração/retrospecção do après-coup, mas também o fato de que a realidade que irrompe no tempo 1 é psíquica, o golpe desferido vem do interior.

A língua, além disso, é em parte falha. Nachträglichkeit pode não dizer nada para um alemão que não seja especialista em Freud, mas après-coup soa natural para qualquer francófono. Dessa maneira, o sentido usual se sobrepõe rapidamente ao sentido técnico e a língua fala por sua própria conta16. Com o termo Nachträglichkeit foi o inverso do que aconteceu com o termo Hilflosigkeit. Esta última palavra não é facilmente traduzível em francês: détresse elimina a referência essencial à ajuda (Hilfe); a expressão “incapaz de ajudar-se a si mesmo” tem a desvantagem das perífrases, e désaide, a desvantagem dos neologismos17. Conseqüência: essa noção na qual a língua esbarra despertou o interesse fecundo dos psicanalistas de língua francesa. Em contrapartida, Nachträglichkeit é satisfatoriamente traduzido por après-coup. Resultado: o termo passa despercebido ou prevalece o sentido comum em detrimento do sentido psicanalítico específico.

Apesar disso, penso que Jean Laplanche tem toda a razão de considerar boa ou até mesmo enriquecedora a tradução de nachträglich, Nachträglichkeit por après-coup18. O termo francês acrescenta a palavra coup [golpe], que o termo alemão certamente não traz, embora a noção não deixe de estar no centro da idéia freudiana: a idéia de um golpe, de um trauma sofrido depois. Quer se trate de Emma, do jovem russo ou do pequeno Hans, o golpe posterior, provocado por uma cena da vida cotidiana ou por um sonho &– mas quais são os restos diurnos desse sonho? &–, longe de ser a simples reinscrição de uma cena, marca a entrada na neurose, adolescente ou infantil. O après-coup é um trauma, e se não é uma simples repetição é porque contém elementos de significação que dão acesso, desde que encontrem uma escuta e uma interpretação, a uma transformação do passado.

Desde que encontrem... um outro. O après-coup é um acontecimento traumático tardio em busca de sentido e de intérprete, cristaliza uma situação inter-humana19. A abertura intersubjetiva que o tempo 1 permite é um eco do tempo 2. Na primeira infância (o tempo 2), quando se inscreve um “sem sentido” que levará um tempo longo para encontrar (ou não) sua retranscrição, sempre há um quitandeiro perverso, pais que fazem amor como animais quando deveriam estar repousando, uma mãe que multiplica os gestos de sedução &– trazendo seu filho para a sua cama, levando-o ao banheiro com ela etc. &– dizendo ao mesmo tempo ao menino excitado por ela e que manipula o pênis: “Não mexe, é sujo”. Escolher abordar “o après-coup no tratamento” não é, portanto, um simples acessório, já que a situação transferencial, por ser in ter-psíquica e analítica, oferece a dupla potencialidade do trauma in praesentia e de sua possível significação. Essa ligação entre a psicanálise e o après-coup levanta primeiramente uma questão simples: o que acontece com o après-coup no tratamento? Mas também traz uma questão complexa: se après-coup e psicanálise têm entre si uma relação essencial, como a segunda poderia prescindir do primeiro, do seu acontecimento? O après-coup é analisável, mas também poderia ser um analisando da situação analítica e de seus impasses.

 

“Mais uma coisa...”

Essas palavras são pronunciadas por Lea imediatamente após as minhas que lhe anunciam o fim da sessão. A “coisa a mais” prolonga a sessão, às vezes, em alguns minutos. Essa particularidade, freqüentemente repetida, estendeu-se mais tarde à interrupção das férias, que a faz protestar: “Preciso de você”. Ela bem que gostaria de acrescentar algumas sessões, assim como acrescenta minutos.

Como a interpretação também está ameaçada pelo hábito, as palavras já estão ali, prontas mais uma vez para serem reutilizadas. Isso começa pelo “controle da separação” e prossegue com a angústia, em duas grandes direções possíveis. A primeira segue a pista edipiana da rivalidade: roubar alguns minutos ou algumas sessões do tempo que o analista compartilha com outra pessoa. A segunda toma o caminho mais arcaico do abandono: não me rejeite! Só comecei a entender as palavras de Lea, mais além dessas vias muito rapidamente facilitadas, quando parei de isolar o momento da separação, o instante final, do resto da sessão. Diferentemente daqueles que se deitam no divã sem sequer tocar nele, Lea se sente à vontade. Enquanto fala, mergulha num estado quase hipnóide que a leva à beira da alucinação. Todos conhecem a experiência daquelas análises cujo clima “vital” faz com que se retenha o fôlego, que se abafe até o ruído da própria respiração, para não quebrar a frágil tranqüilidade do bebê que o divã acolhe. Para Lea, qualquer perturbação também é vivida como insuportável: basta uma mudança de posição na poltrona ou uma tossidela para que ela proteste. Não é que isso a impeça de viver, mas interrompe a continuidade auto-hipnótica na qual é conduzida por sua palavra estendida. Falar também é uma atividade auto-erótica.

Lea fica mais que à vontade, “confessando” com um constrangimento que no fim das contas é retórico, como uma precaução oratória, o modo como a excitação toma conta de vários pontos do corpo, tornando-se indispensável aliviá-la pelo prurido. “Aquele cujos lábios se calam fala com a ponta dos dedos”. Lea se sente bem ali, o que explica sua dificuldade de reencontrar na sessão a atmosfera muitas vezes negativa de sua vida. O fim de semana pode ter sido sombrio, mas a primeira sessão da semana não é. Ao contrário, a sessão a desvencilha de sua “carapaça”. “Mais uma coisa”, tais palavras, que retardam o fim da sessão, se opõem à separação e à sua angústia menos do que dizem: “Mais, mais um pouco, um pouco de sessão, um pouco de prazer. Mais uma volta20”. O dispositivo do tratamento permite que o desejo se realize, oferecendo a Lea o que a infância lhe recusou: a realização de uma atividade auto-erótica na presença de um adulto atencioso.

Na instauração da situação analítica, tudo convida à regressão. Nesse convite, deitar-se no divã é o gesto mais manifesto que, de fato, aproxima o analisando daquele que dorme e sonha. A teoria pode perfeitamente dividir a regressão em três &– formal, tópica e temporal &–, mas a realidade (psíquica) o ignora. Os três tipos de regressão, na verdade, são uma única e mesma coisa, “pois o que é mais antigo no tempo é aquilo que é formalmente primitivo e, ao mesmo tempo, na tópica psíquica, o que está mais próximo da percepção”21. No entanto, será que a psicanálise e sua técnica têm a mesma indulgência em relação a essas três figuras? Conhecemos pelo menos dois enunciados freudianos da regra fundamental, sendo que o primeiro evoca a regressão formal: “Diga tudo o que lhe passa pela mente”, abandone as restrições da conversação comum, perca o fio, solte a língua! Esse enunciado deseja a derrota do logos na linguagem, tudo o que pretende é facilitar que os processos primários cheguem à superfície da palavra. Que as palavras sejam tratadas como coisas!

O segundo enunciado da regra solicita a regressão tópica: “Faça como um viajante sentado junto à janela de um vagão de trem, que descreve para alguém que está sentado ao seu lado a paisagem que se modifica sob seu olhar”22. A posição deitada impede o acesso à motricidade, favorece o retorno ao sonhar, se não ao sonho, pelo menos o retorno à imagem. O que fica implícito em Freud será explicitamente defendido mais tarde por Bertram Lewin, ao sublinhar a proximidade buscada entre o estado intrapsíquico daquele que sonha e o estado intrapsíquico do analisando23. Ou até mesmo o do analista: escutar um paciente como se escuta um sonho, “escutar e ouvir, na psicanálise, é de certa forma fazer do sonho o “prisma” das palavras que recolhe sua visualidade e difrata suas imagens”24.

Além da formal e da tópica, falta uma e, com ela, um enunciado da regra que fixaria o programa da regressão temporal e teria mais ou menos a seguinte formulação: “Faça-se de criança!”. Nas palavras de Freud, a injunção tenderia mais a seguir a inclinação inversa: rememore em vez de repetir! Seus conselhos técnicos ao analista vão no mesmo sentido: evite os “mimos”25, ou seja, tudo o que poderia transformar o analisando em uma criança satisfeita, portanto, incorrigível. Sim, mas quando o “mimo” é a análise ela mesma?

Protegido por suas “renúncias” (Versagung)26, principalmente a da gratificação, mantendo sob tutela um “coração transbordante que o dispõe a ajudar”, o analista, contudo, corre o risco de estar muito pouco atento àquilo que procura satisfazer-se pelo simples fato da situação regressiva criada pela abertura da análise. As vias da regressão não são aquelas da abstinência ou da frustração, são, ao contrário, as das “satisfações substitutivas”27. A lógica da primeira tópica, que torna indissociáveis o inconsciente e a sexualidade infantil e a partir da qual foi inventado o dispositivo da análise, leva a pensar que o movimento da regressão é inseparável das exigências do princípio de prazer, das vias regressivas que ele toma quando as saídas mais diretas são inacessíveis. Prolongando esse raciocínio, percebe-se logo a ameaça que recai sobre curso da análise: fazendo um convite à regressão, o que faz a psicanálise além de propor satisfações substitutivas? A primeira das “satisfações substitutivas” não seria a transferência enquanto tal, as repetições que a constituem? Se a regra de abstinência e a prescrição de Versagung 28 podem ajudar a limitar as satisfações laterais e precipitadas, como poderiam concernir ao próprio núcleo da experiência analítica? Não há exterior da transferência, embora Freud possa ter sonhado durante um tempo com uma psicanálise que fosse apenas “rememoração”.

A neurose obsessiva tem o dom irritante de levar essa dificuldade prática ao extremo. Freud questiona-se sobre as “chances de futuro da terapia analítica”: “modificações da técnica, que ainda não me parecem suficientemente amadurecidas para serem avaliadas, serão necessárias no tratamento das neuroses obsessivas”29. Qual parte de satisfação o tratamento analítico deve conceder às pulsões combatidas? Freud faz essas perguntas, que ficarão sem respostas, em 1910! Isto é, depois de mais de vinte anos de prática e de muitas análises de obsessivos no seu ativo, sobretudo a do Homem dos Ratos, terminada em 1908. Será que hoje estamos muito mais avançados do que ele em sua época? A soma das cumplicidades em forma de impasses que reúne psicanálise e neurose obsessiva deu bastante o que falar para tornar-se necessário refazer minuciosamente seu inventário. No primeiro banco dos réus está o ritual, quando este, idêntico ao quadro da fantasia-sintoma, antecipa-se a um desejo que não busca senão sua realização, chegando até a repetição (ressassement), denominação obsessiva do auto-erotismo. Pode-se dizer que o fato de que a satisfação seja muito marcada pelo masoquismo não muda nada. Como se as coisas já não fossem difíceis o bastante, o analista tem que acrescentar mais um “mimo”: o pagamento em dinheiro líquido. Ou até mesmo dois “mimos”, quando, além de tudo, recusa-se a tocar no dinheiro. Se fosse preciso resumir em uma dificuldade o embaraço da empreitada, a sexualização do pensamento seria premiada. “Diga tudo...”, o obsessivo faz um recorte bem pessoal de uma regra que cai na sua própria armadilha.

Baseado nessa conivência inconsciente, de onde pode surgir o golpe, o golpe posterior, o que permitiria à psique sair dos trilhos, à história reabrir-se e à análise tornar-se transformadora? Extenuado por tanta repetição dentro, o analista observa o que se passa fora, com a esperança de que, pelo menos ali, alguma coisa aconteça: um amante, uma amante, um filho, a morte do pai... Quem pensaria então em se queixar da transferência lateral?

Lea não tem nenhuma razão para acabar com isso. A regressão temporal não é temporal, ela ignora o tempo. “Mais um” é uma das variantes da análise interminável.

 

O golpe, a escansão

A análise interminável... é quando Freud se preocupa com essa dificuldade que a referência ao après-coup retorna em seus escritos30. Como “precipitar” o término de uma análise quando esta ameaça esticar-se infinitamente? Rank descobriu a solução- milagre, teórica e prática ao mesmo tempo. No fundo, todas as angústias e suas manifestações patológicas associadas têm uma mesma fonte: o trauma do nascimento. Nunca nos recompomos de termos perdido o paraíso, não aquele dos amores infantis, mas o da vida intra-uterina. A experiência analítica só precisa concentrar-se nesse trauma originário, buscar sua “liquidação après-coup”; é uma questão de alguns meses, nove meses no máximo.

Rank se vale menos do efeito après-coup propriamente dito que do antigo modelo catártico da ab-reação. Distinguir as duas “lógicas” não é tarefa tão fácil &– não há nenhuma razão para não consentir ao fenômeno do après-coup um benefício purgativo &–, embora seja necessária. Noção original, o après-coup não é simplesmente uma nova roupagem retórica da teoria da ab-reação. O primeiro conjuga de maneira complexa o triplo ponto de vista econômico-tópico-dinâmico, quando a segunda quase só considera o ponto de vista da quantidade. A ab-reação dá destaque à descarga (do afeto), seu movimento segue uma temporalidade simples, em conformidade com a linha do tempo e, principalmente, repousa numa concepção elementar ou até mesmo simplista da causalidade &– a que assume uma forma caricatural em Rank. O après-coup abala tanto nossa representação comum da temporalidade quanto o causalismo rudimentar (do passado sobre o presente) do qual sofrem muitas abordagens psicanalíticas.

Conhecemos a ironia mordaz com a qual Freud ataca a inovação do seu discípulo, bombeiro ingênuo que espera apagar o fogo retirando o lampião a querosene derrubado que provocou o incêndio. Mesmo derrubando com uma bofetada essa solução infeliz, Freud não deixa de considerar a questão. Que golpe poderia mesmo pôr fim no tratamento quando o paciente (o Homem dos Lobos), certo das primeiras satisfações trazidas pela análise, instala-se nela confortavelmente, por uma astúcia da regressão que faz a análise cair no seu próprio jogo? A resposta de Freud, se não é desesperada, não deixa de marcar uma derrota admitida. Restam apenas as “medidas de extorsão”, os “meios técnicos violentos”. Se o golpe, o acontecimento, não vem de dentro, engendrado pela dinâmica analítica, o analista deve resolver-se a desferi-lo ele mesmo: “Declarei ao paciente que o próximo ano seria o último, o que quer conseguisse fazer durante o tempo que lhe era concedido”. O que vem a seguir tem dois tempos. Os efeitos do golpe aplicado não tardaram a ser percebidos: resistências vencidas, lembranças resgatadas, neurose controlada, a ponto de gerar no analista a ilusão de uma cura profunda e duradoura quando chega o fim programado. Mas a ilusão acabou. “Restos de transferência” e “incidentes mórbidos” trouxeram de volta o paciente para o seu terapeuta. E o que foi constatado pela consorte (Ruth Mack Brunswick), a quem coube a tarefa de retomar a análise, foi mais um agravamento do estado psíquico, que avançava para formas paranóides.

É no mesmo texto do relatório de Roma que Lacan reconhece pela primeira vez a Nachträglichkeit e dá uma ilustração clínica de sua concepção da escansão. Um dos últimos textos de Freud sobre o assunto, Análise terminável e interminável, e o primeiro de Lacan aproximam os mesmos termos &– efeito de après-coup e precipitação &– do fim do tratamento num caso e da sessão no outro, quando a análise ameaça cair no jogo da regressão- repetição induzido por ela mesma.

Não encontraremos nos textos de Lacan uma relação explícita entre après-coup e escansão. Ainda mais que a ligação entre os dois aspectos do fenômeno, o trauma e a reintegração do passado, mesmo não tendo sido eliminada, quase não chama a sua atenção. Um sinal disso: ainda que seja o homem do significante, Lacan nunca se detém em coup, preferindo manter geralmente o termo alemão nachträglich no texto. Falou-se da fragilidade intrínseca de uma noção que pode distender-se entre seus dois pólos. Quando um deles chega a desaparecer, é sempre o lado “traumático” que paga o custo da operação em benefício do “jogo retroativo” unicamente. O trecho dos Escritos em que o après-coup ressurge, depois de uma ausência tão longa, não se limita a voltar a Freud, trazendo também a marca filosófica facilmente observável, entre ressubjetivação e temporalização, da fenomenologia, aquela que, de Husserl a Merleau-Ponty, passando por Heidegger &– tendo sua fonte nas Confissões de Agostinho &–, conjuga em um mesmo movimento os três êxtases do tempo e a construção do sentido, o advento da verdade. A “anamnese psicanalítica”, escreve Lacan, não é uma questão “de realidade e, sim, de verdade, porque o efeito de uma palavra plena é reordenar as contingências passadas, dando-lhes o sentido das necessidades futuras, tal como constituídas pela pouca liberdade através da qual o sujeito as torna presentes.”31 Por certo, com o Homem dos Lobos, Freud procura datar exatamente a observação da cena primitiva &– eis a “realidade”, mas uma realidade que Freud denomina “verdade histórica” &–, “mas ele supõe apenas todas as ressubjetivações do acontecimento que lhe parecem necessárias para explicar seus efeitos em cada reviravolta em que o sujeito se reestrutura, isto é, em tantas reestruturações do acontecimento que se efetuam, como ele o expressa: nachträglich, après-coup. Bem mais que isso, com uma ousadia que se aproxima da desenvoltura, ele declara considerar legítimo elidir na análise dos processos os intervalos de tempo em que o acontecimento permanece latente no sujeito. Em outras palavras, ele anula os tempos para compreender em proveito dos momentos de concluir, que precipitam a meditação do sujeito no sentido de resolver o acontecimento original”32. Essa é a “verdade” de Lacan, coerente com o advento da palavra.

O desequilíbrio interno à noção de après-coup, que a ameaça a cada instante de inclinar-se somente para o lado da reinterpretação do passado, ocultando a necessidade do trauma, não é simplesmente o resultado de uma insipidez progressiva, pois já está presente no momento em que a questão volta à tona nas palavras de Lacan. “Reintegração do passado”, “primeira integração simbólica”, “reintegrar numa cadeia o núcleo enigmático do momento vivido”... a ênfase hermenêutica está presente cada vez que Lacan evoca a Nachträglichkeit. É, sem dúvida, quando Lacan refere “o fundamento do novo método”, o que “Freud denomina psicanálise”, à “assunção pelo sujeito de sua própria história”33 que ele leva ao extremo a confusão entre psicanálise e hermenêutica. Chega até mesmo a defender, se não a identidade das abordagens, pelo menos sua comunidade: o termo après-coup “não é apenas freudiano, Heidegger o emprega &– na verdade, com uma finalidade diferente &– quando precisa interrogar as relações do ser com a Rede (o discurso)”34.

No entanto, a referência ao golpe, ao trauma, não está ausente. Está implicitamente presente quando Lacan evoca a escansão sem nomeá-la: “o momento de concluir que precipita o sentido do acontecimento”. É explícita no seminário sobre o Homem dos Lobos, contemporâneo do relatório de Roma: a reintegração do passado, sua historicização nachträglich, assume uma “forma particularmente abaladora para o sujeito”, “adquire, no plano imaginário, seu valor de trauma, no sentido de que o trauma tem uma ação recalcante”. “Naquele momento &– o momento do sonho com os lobos aos três anos e meio de idade, desencadeador da neurose infantil &– alguma coisa se separa do sujeito no próprio mundo simbólico que ele está integrando e se torna algo que deixa de pertencer ao sujeito, algo de que o sujeito não fala mais, não integra mais, mas que permanece em algum lugar, algo que permanecerá falado, se assim podemos dizer, por algo que o sujeito não integra nem domina mais e que será o primeiro núcleo daquilo que posteriormente será denominado sintoma”35. A simbolização que efetua o après-coup confunde-se aqui com aquela do recalque, o qual faz passar do silêncio opaco ao “falar-se” &– um “falar-se” que adota principalmente a linguagem do sintoma.

O après-coup reúne assim a integração simbólica e o imaginário do trauma. Não é necessário ir buscar além as razões da “escolha” de Lacan: sua “hierarquia” dos dois registros o leva claramente a destacar a primeira dimensão, a reintegração simbólica do passado, e a negligenciar relativamente a segunda, o impacto traumático do imaginário, fantasia ou sonho.

Mais que conjugar, o après-coup condensa a colocação no passado, a historicização, e o presente, o atual do trauma. Esse par aplica-se facilmente àquele que age no tratamento: rememoração e repetição (transferência). Do mesmo modo que privilegia a vertente simbólica à custa do aspecto traumático, Lacan valoriza o ponto de vista da rememoração em detrimento da transferência, sendo fiel a Freud nesse aspecto; uma rememoração, explica ele, que não é simplesmente memória, mas história, “emergência da verdade no real”36.

Todas essas considerações têm um valor histórico &– é Lacan quem redescobre o après-coup &– e ao mesmo tempo teórico: simbólico/ traumático (imaginário), passado/ presente, rememoração/ transferência. A descondensação das observações de Lacan leva a um enriquecimento indiscutível da noção de après-coup, cujo significado crucial, no sentido literal do adjetivo, observa-se melhor ainda. O alcance prático das considerações de Lacan é menos evidente, mas não deixa de ser fecundo, bem além daquilo que o próprio autor sustenta, ou até mesmo à sua custa. O relatório de Roma mistura desenvolvimentos teóricos e práticos com o pano de fundo das relações ambíguas da psicanálise com a neurose obsessiva. Freud já designava a dita neurose como “o objeto mais interessante e mais gratificante para a investigação psicanalítica”, preocupando-se ao mesmo tempo com o fato de que ela ameaça a análise de uma “duração de tratamento infinita”. Elaborando uma metapsicologia que privilegia o ponto de vista do significante lingüístico, Lacan não podia deixar de reconhecer uma figura psicopatológica que sexualiza o pensamento. O texto mais “lacaniano” de Freud é certamente o Homem dos Ratos, que vê o animal, Ratte, atravessar as pontes verbais, apropriar-se da matéria da língua, chegando a contaminá-la totalmente: Hofrat, erraten, Raten, Spielratte… Em psicanálise, não há teoria que não esteja comprometida com um ponto de vista específico sobre a psique, aquele em que ela encontra sua fonte. A metáfora romana de Freud em O mal-estar na civilização apresenta fortemente essa impossibilidade de enfocar o conjunto de um único ponto de vista. Não existe promontório que permita ao discurso teórico manter-se livre do contágio pelo seu próprio objeto. Acreditar que se possa “isolar” o corpo da teoria daquilo a que se refere é também um pensamento obsessivo. Assim, toda teoria sofre a ameaça de descobrir-se um dia como “teoria sexual”. A teoria de Roma está em Roma, embora não possamos criticá-lo por fazer de tudo para esquecer isso, visando a maior generalidade. O que acontece com Lacan não poupa ninguém. Poderíamos então listar o que devem algumas das teorias contemporâneas a uma determinada figura psíquica: Winnicott, à problemática borderline; Laplanche, ao paradigma da histeria; Green, às formas do narcisismo negativo; De M’Uzan, ao funcionamento psicossomático; Fedida, à melancolia...

Em relação a Lacan, portanto, o relatório de Roma é também uma crítica da razão prática, aquela que se prende a uma “técnica enfadonha”, escrupulosamente observadora de um padrão e que “qualquer arejamento parece assustar”; uma técnica que faz da suspensão da sessão “uma interrupção puramente cronométrica, indiferente à trama do discurso”37. Levando o formalismo ao cerimonial, nada mais então a distingue da Zwangsneurose, até mesmo a obsessão da técnica que, “sob a denominação de análise das defesas”, praticamente não é senão uma “contraperseguição obsessiva”. É claro que tais trabalhos forçados só podem agradar um paciente que organiza, segundo essa mesma modalidade, seu próprio lazer! Já enunciado por Freud, o perigo de “trazer muita coisa à tona e nada mudar”38 é então mais que evidente. Quando o working through do sujeito, sem parar de especular sobre a estética de Shakespeare (ou de Dostoïewski), passa a ser utilizado apenas para “a sedução do analista”, a conivência inconsciente fez seu trabalho, reduzindo o tratamento a uma rotina cúmplice. “Quando é que você se aposenta?” &– Lea me perguntou um dia39. Chegando a esse ponto, o não-agir do analista &– a espera passiva, como dizia Freud &– atinge seu limite. Como reencontrar o “sentido do acontecimento”? Que “abalo” conseguiria guiar novamente “o discurso do sujeito para a sua verdade”? Como diz Lacan, convém “quebrar o discurso para dar à luz a palavra”. Se não é explícito, o recurso ao après-coup, sob o duplo registro do golpe desferido e da palavra liberada, só se faz mais intensamente presente, menos pensado que agido.

Lacan passa ao ato, abrevia. Freud se questionava: quais modificações técnicas seriam necessárias para o tratamento da neurose obsessiva? Lacan tem a resposta: a escansão, pontuação dialética, “pontuação feliz” que dá seu sentido ao discurso do sujeito.

A crítica é necessária, mas não deve ignorar que esse “método ativo” surge em um ponto de dificuldade tão antigo quanto persistente, destacado por Freud em termos finalmente muito parecidos. Este esboçou o que lhe parecia ser a resposta certa nos seguintes termos: “Julgo existirem poucas dúvidas de que a técnica correta, aqui, só pode consistir em esperar até que o tratamento em si se torne uma compulsão para, então, com essa contracompulsão, suprimir forçosamente a compulsão da doença.”40 É difícil expressar de maneira mais “compulsiva” o modo como a prática se fecha no círculo traçado por ela mesma. Essa observação data de 1918, vindo pouco tempo depois da psicanálise do Homem dos Lobos e de seu término fixado. A principal diferença entre Freud e Lacan talvez esteja no fato de que o primeiro admite sua derrota em meias palavras e o segundo canta a vitória. No entanto, será que há motivo para festejar? Um analista irritado pela regressão do ato ao pensamento põe a regressão no seu lugar: do pensamento ao ato. Essa resposta direta ao sintoma, escansão contra repetição, transforma obviamente o método. A sessão com escansão faz da psicanálise uma psicoterapia da neurose obsessiva.

Deixemos de lado a crítica técnica para nos concentrarmos apenas naquilo que esse momento assinala: uma solidariedade essencial entre o fenômeno do après-coup e a dinâmica do tratamento. Enquanto a teoria de Lacan quase não desenvolve senão a vertente ressubjetivação do après-coup, sua prática restabelece nos fatos a coalescência dessa reorganização psíquica com o trauma. Que efeito segue o ato, o golpe aplicado pelo analista41? A resistência desconcertada, a linha Maginot tomada pela retaguarda, “conseguimos fazer vir à tona num sujeito do sexo masculino fantasias de gravidez anal com o sonho de sua resolução por cesariana, num prazo em que, se fosse de outra forma, ainda estaríamos ouvindo suas especulações sobre a arte de Dostoïewski”42.

A seqüência escansão&–fantasia de gravidez constitui um completo efeito de après-coup de um “montante” mínimo, palavra com a qual Freud indica o espaço que separa o tempo 2 do tempo 1 &– aqui de uma sessão à outra. O momento é indiscutivelmente fecundo, fazendo dar à luz a palavra de uma fantasia de geração.

Infelizmente, Lacan pára por aí, como se, por ter agido, o après-coup o privasse de poder interpretá-lo. Porém, não é difícil identificar os traços deixados pelo golpe nas imagens da fantasia: sodomia e estripação. Mas tal constatação traz graves conseqüências, tanto quanto ricos ensinamentos para a teoria do après-coup. Essa fantasia de gravidez anal pertence a quem? Ao paciente certamente, mas desde que não esqueçamos que não faz senão traduzir por sodomizado-engravidado-estripado a mensagem brutal que a escansão lhe transmite. Seja qual for o grau de pertinência da tradução, o essencial é marcar o entremeio psíquico que preside o efeito de après-coup43. O golpe desferido pelo analista (escansão-sodomia-expulsão) retorna sob uma forma invertida: engravidado(a) analmente. Como pano de fundo, é a cena analítica da transferência que se desenrola como uma cena primitiva entre um analista a tergo (que dá à luz) e um paciente que ocupa a posição feminina.

Lacan deixa a seqüência in-interpretada, mais do que isso, recusa os meios para interpretá-la. Primeiramente porque descarta “a suposta comunicação de inconsciente a inconsciente”44 &– “suposta” por Freud. Em segundo lugar, e principalmente, porque se desvencilha com desprezo da contratransferência, rebaixada à categoria das “fanfarronices”. Lacan não só desconsidera a contribuição do inconsciente do analista, mas toma abertamente o caminho inverso, o do “senhor da verdade”45. A “escansão suspensiva” não é a falha, fecunda après-coup, de um analista cansado de ouvir um analisando repetir sempre o mesmo refrão ou confundir falar e dissertar, palavra plena e palavra vazia. É o gesto de uma verdade, aquela do momento de concluir, que avança “sozinha para o ato que gera sua certeza”46. O fato de se aproximar mais da verdade oracular da Grécia arcaica47 ou da verdade evangélica mais tardia &– “Em verdade vos digo” / “A verdade, eu falo”48 &– que da figura da exatidão, de dizer mais respeito ao sagrado que à ciência, não torna essa verdade psicanaliticamente mais admissível. Sabemos o que vem a seguir: a assimilação da inércia ao erro e a transformação de um agir contratransferencial em saber técnico. Não podemos nos satisfazer com tal resposta, que deixa em aberto a questão de Freud do improvável surgimento do acontecimento psíquico quando a psicanálise, presa em sua própria armadilha, caiu na repetição dela mesma.

 

O imprevisto

Já havia decorrido um longo tempo de tratamento quando Aurora surpreendeu-se: ao sair da última sessão, no pátio do prédio, cruzou com uma mulher jovem que esperava. Ela teve a certeza de que era a paciente seguinte. Isso a surpreendeu muito, pois nunca teria pensado que alguém pudesse esperar assim.

Idealmente, é dentro das fronteiras traçadas por ela mesma que a psicanálise espera o acontecimento. Para isso, dota-se de uma regra que, paradoxalmente, se vale do desregramento, do incidente. Dizer tudo o que passa pela cabeça... na espera, no suspense do Einfall, a idéia que vem intempestivamente. “O acontecimento chega como ponto de interrogação antes de chegar como interrogação”49. Basta uma palavra para que o inconsciente desestruture a linguagem e para que o analista, aproveitando esse momento oportuno, desfira o único golpe que o método lhe permite: a interpretação.

Ela (Mona) evoca o que deixa fora do “dizer tudo”:

- “Tem o que não lhe diz respeito e o que é muito idiota50.”

- “É a mesma coisa?”

É porque o inconsciente trata as palavras como coisas que sempre nos aproxima da origem do mundo; o inquietante é o mais secretamente familiar. A interpretação é “o ato de manifestação do estranho no coração do íntimo”51, que descobre por um ângulo insuspeito aquilo que sempre esteve diante dos olhos. Enquanto o tratamento faz esse teatro privado, o inconsciente surge como um acontecimento real na cena da transferência. Da simples falha de memória ao incêndio que põe fim à representação, a gama dos acontecimentos percorre um amplo espectro. O leque das emoções segue o mesmo movimento: da discreta perturbação ao profundo desamparo. Como no teatro, a peça pode continuar mesmo quando já se deixou a sala: “quando saí da última sessão, pensei em ligar para minha mãe e lhe dizer ‘acabou!’”. O fato de que a análise se desenrole dentro de um espaço delimitado por uma fronteira não significa que se saiba por onde passa.

Também pode acontecer de nada acontecer ou de não mais acontecer. Não somente porque um obsessivo martela sempre a mesma coisa, pois há muitas maneiras de fazer fracassar o método. Por mais fundamental que seja, a regra tem uma história, seu enunciado é um resultado. Foi a experiência do redecalcado, e o modo como faz para retornar, que impôs a Freud as palavras da regra: diga tudo o que passa... para deixar entrar sem que você perceba o desconhecido que bate insistentemente à porta. “Não sei o que eu poderia lhe dizer hoje” &– é muitas vezes um início de sessão promissor. Mona recebeu perfeitamente a mensagem da regra, o adversário é “aquele que não diz respeito a ninguém”, nem ao analista nem ao ego do paciente. Paradoxo de uma regra que espera fundar a generalidade de uma prática a partir da singularidade de uma figura psicopatológica, a histeria, e da defesa que esta privilegia, o recalque. Paradoxo também de um dispositivo prático que se instala na repetição (horários, durações, anos) e que espera muito, senão tudo, do incidente, do inesperado, porque “a penetração do inesperado é mais rápida que a do esperado” (Valéry).

Tudo isso merece ser nuançado, pois nenhuma análise deve sua dinâmica unicamente ao (après) coup do acontecimento. A seqüência idéia incidente &– interpretação &– transformação psíquica é uma seqüência de sonho. A energética da transferência permite ocasionalmente que ela se cumpra, mas isso não acontece todos os dias. Os “trabalhos e os dias” do psicanalista nomeiam-se perlaboração, termo que se compreende melhor em alemão, durch arbeiten, ou em inglês, working through, isto é, trabalhar através. É porque algo resiste que falta muito para que o enunciado de uma interpretação seja seguido de uma mudança. “Uma obra tem de ser trabalhada mil vezes”. Perlaboração e après-coup não são simples opostos, mas nem por isso deixam de apresentar duas figuras distintas da temporalidade: continuidade - descontinuidade. Continuidade não é linearidade, o working through frequentemente passa através, perde seu caminho, se perde, dá meia-volta, afunda-se nas areias... para, de vez em quando, chegar a um porto seguro. Perlaboração é uma palavra laboriosa, mas seu processo nem sempre o é, tomando também a forma de uma marcha silenciosa e subterrânea, fugindo da atenção dos dois atores da cena analítica52, até o dia em que o hóspede do lago Ness decide emergir.

Como sabemos, também podemos esperar muito tempo, quando a análise não consegue mais sair de uma terra conhecida onde acomodadamente se instalou. Uma análise permanentemente instalada, que não consegue mais submeter-se à “prova do estranho”. O exemplo da neurose obsessiva faz lembrar que a dificuldade não começa nos confins das organizações não neuróticas apenas, embora estas façam o obstáculo “subir” um degrau53. Existem pacientes para os quais a psicanálise foi inventada e aqueles para os quais ela tem de se reinventar.

Entre Aurora e o desconhecido encontra-se não exatamente uma porta que ela tenta manter fechada para impedir que o intruso irrompa, mas antes um vidro espesso e invisível sobre o qual ela se atira de cabeça sem tomar cuidado. A análise, sua regra e seu método sabem muito bem deslizar um pé pela fresta da porta para permitir que esta se entreabra. Mas, para o encontro intempestivo com o vidro, ela não dispõe de manual de instruções. Isso acontece, e não é raro que o vidro tome a forma de um agir contratransferencial, em que o analista diz “até logo” no momento de dizer “bom dia”. A menos que um imprevisto, uma desconhecida que espera no pátio de um prédio, venha trazer aquilo que o movimento comum do tratamento não consegue produzir. O que Aurora vê no espelho inesperadamente oferecido a ela senão um rosto de si mesma que ela não conhece? O setting, como palavras de ângulos retos, é particularmente inapto para dizer o que são as fronteiras da análise, por onde estas passam, sua incerteza. O espaço analítico, aquele desenhado pela realidade psíquica, pode alcançar as áreas comuns.

Do imprevisto, a psicanálise não poderia fazer técnica. No entanto, há um texto de Freud, Das Unheimliche, “O estranho”, que se aproxima muito disso. Essa espécie de inventário dos menores fatos psicóticos da vida cotidiana descreve o caminho desviado do inconsciente quando este decide surgir de fora, no pátio. No pátio, nas janelas de uma cidadezinha italiana54 ou ainda na “loja” visitada por Emma. No momento traumático do golpe posterior, a fronteira entre fora e dentro se baralha. Se perguntarmos à criança neurótica “com o que ela vê”, sua resposta será: “com os olhos”. “Com o sol”, dirá a criança psicótica. “Com o que você ouve?” “Com os ouvidos”, dirá a primeira. “Com a música”, responderá a segunda &– tomo essa parábola emprestada de Christiane Guillemet55. Será que podemos ser analistas sem, de vez em quando, num tempo de loucura, ver com o sol, ouvir com a música?

 

Passagem

Chegando ao meio do nosso percurso, o momento é propício para retomarmos algumas interrogações que foram brevemente mencionadas, figuras que foram apenas traçadas, sem contar as questões deixadas pelo caminho ou deixadas de fora. É o caso, por exemplo, da relação entre o après-coup e o tempo da puberdade.

Sobre a puberdade. O caso Emma, principalmente, faz com que sejam muitas vezes confundidos, decalcados, os dois momentos do après-coup e o “desenvolvimento em dois tempos (zweizeit) da função sexual”, destacado por Freud como sendo uma particularidade da espécie humana e a condição de aparecimento das neuroses56. Essa confusão traz como conseqüência paradoxal o fato de restringir o fenômeno de après-coup à temporalidade linear e unidirecional do desenvolvimento, ao passo que ele constitui, ao contrário, um embaralhamento, no sentido de que condensa o duplo movimento de um presente®passado e de um passado®presente. Isso não diminui em nada o custo traumático da puberdade, que tem nas anorexias suas figuras emblemáticas, e as reformulações psíquicas das quais ela é o tempo e o lugar. Elsa encontra assim tons telúricos para descrever transformações que ela acaba de sofrer: “os seios e os pelos crescem, a menstruação, as espinhas; não se reconhece mais a pele do rosto; quando se pensa que terminou, ainda falta o alargamento dos quadris”. Mais do que qualquer outro momento, a puberdade faz com que inconsciente e corpo se encontrem, quando mais nada distingue este último do “corpo estranho interno” (e externo). A multiplicação dos efeitos de après-coup, com impactos psíquicos que vão desde o recalque até a despersonalização, bem além do mecanismo histérico unicamente, é uma constatação clínica diversas vezes confirmada.

O próprio Freud se encarregará de emancipar a noção de après-coup do tempo da puberdade, principalmente em relação ao Homem dos Lobos, porém a idéia de uma “instauração em dois tempos do desenvolvimento sexual” é mantida até os últimos textos. Essa representação pode conservar seu valor descritivo, mas não deixa de trazer dificuldade para uma concepção psicanalítica da temporalidade. Michel Fain destacou a insuficiência dessa representação, observando que a oralidade, a analidade e, com elas, todas as sexualidades parciais, fugiam desse modelo bifásico57. Esse modelo “em dois tempos” tem o inconveniente de confundir a infância e o infantil e de alinhar o sexual a uma temporalidade homogênea, organizada sob o primado do genital. É quase uma curiosidade observar que foi só em 1924, “ajudado” pelo enigma do masoquismo, que Freud percebeu que tensão e prazer, longe de serem opostos, tendem a conjugar-se. A sexualidade preliminar, o desejo enquanto tal, que define a particularidade da sexualidade humana, distingue as metas pulsionais da simples e monótona descarga. Alguma coisa da pulsão é contra a plena satisfação &– a favor da satisfação, mas contra seu esgotamento. A separação da sexualidade infantil e da genitalidade ficou inacabada na obra de Freud. Se a primeira se mistura com a segunda é menos para submeterse a esta que para atrapalhar sua organização, mas certamente também para tirar proveito das circunstâncias. A puberdade não realiza o programa da sexualidade infantil, sendo, portanto, um erro qualificá-la como pré-genital58; não é um esboço que teria na vida sexual adulta sua realização completa, o desenvolvimento não é seu ponto de vista. “O infantil &– escreve JB. Pontalis &– é o sexual indiferenciado, em que podem coexistir ternura e sensualidade, masculino e feminino, ativo e passivo. Não subordinado a uma função, não ligado a órgãos específicos, o infantil ignora totalmente o princípio de realidade e talvez seja até insubmisso ao princípio de prazer, que implica uma finalidade. Um sexual sem princípios. Esse infantil não tem idade. Não corresponde a nenhum lugar, a nenhum tempo atribuível. Não está atrás de nós. É uma fonte no presente, viva, nunca esgotada”59. Digamos ainda que a fantasia seja seu elemento, uma fantasia que toma corpo, impressa na carne, capaz de produzir, por sua simples evocação, a excitação até o ponto do orgasmo, quando sustentada pela força do sonho.

A temporalização do après-coup se desenvolve com base na atemporalidade do infantil e não como simples conseqüência do desenvolvimento. Não há nenhum inconveniente em concebê-lo pelo fato de que este, a maturação psicológica que ele permite, traz sua contribuição. O essencial é manter a originalidade de uma noção, o après-coup, da qual o inconsciente, e não o imaturo, é o primeiro referente. A maturação é um tempo escalonado, ao passo que o intervalo entre os tempos 1 e 2 do après-coup varia de algumas horas a algumas décadas. Nas análises do pequeno Hans e do Homem dos Lobos, Freud apresenta efeitos de après-coup dentro do tempo da infância. Também não se deve excluir a possibilidade de esse fenômeno do trauma em dois tempos se produzir na vida adulta ou até mesmo durante o tratamento analítico. Não há idade para receber golpes que excedam as capacidades de um aparelho psíquico no momento em que são desferidos. Assim como também não tem idade para o infantil em cada um de nós.

Sobre o recalque. Emma, Hans, o Homem dos Lobos, é surpreendente como essas três ilustrações clínicas que Freud dá do après-coup fazem coincidir este último com o momento do recalque60. O primeiro mérito dessa coincidência é dissociar o fenômeno de après-coup da imagem de um fenômeno secundário, simplesmente positiva, da qual tem tanta dificuldade de se desvencilhar, ou seja, a imagem de uma significação ou de uma compreensão tardia e retrospectiva. Nos três casos citados, o après-coup é também o desencadeamento da doença, da neurose adolescente ou infantil. A equação entre o après-coup e o recalque realça a face traumática do fenômeno, além de modificar nossa representação elementar da “compreensão”. Quando Hans, entre os cavalos de Gmunden e a nudez de Hanna, finalmente vê o que lhe saltava aos olhos, sua “incredulidade” se vê abalada; ele “compreende” muito bem, e o que compreende é inaceitável, inconciliável. O après-coup é um “momento de verdade” do qual não é fácil se recompor. Se, com isso, o seu lado traumático for acentuado, a concepção do recalque, inversamente, se vê deslocada. A associação do recalque com o efeito de après-coup propõe uma representação do primeiro menos como fechamento que como transformação, podendo chegar à metamorfose: deformação, condensação, deslocamento, figuração; no encontro com o recalcado, as representações ganham em plasticidade, por mais que esta invente formas que sempre variam no mesmo sentido, ou seja, o da desmedida. Uma plasticidade do recalcado que cria a possibilidade da análise.

A análise acontece depois do recalque e também depois do après-coup. Lacan, que assimila o recalque ao retorno do recalcado61, pode ter como acessória a distância entre o après-coup propriamente dito e suas repetições posteriores, e felicitar Freud por sua “desenvoltura”, aquela que lhe permite “esquecer a distância” que separa, no Homem dos Lobos, o après-coup do sonho traumático do seu retorno no tratamento duas décadas mais tarde62. A coincidência do après-coup com o recalque leva a uma série de réplicas &– no sentido sismográfico63 do termo. O número do après-coup é antes 2+ n que 264. Os golpes e o retorno do recalcado só cessam quando a elaboração, a cicatrização se livrou do último fio65. O condensado sugerido por Freud, apoiado por Lacan, tem apenas um inconveniente, o de ter como adventício o presente da transferência na repetição dos golpes ulteriores.

A parte da transferência no fenômeno é uma primeira questão &– é só eliminando-a que Lacan pode sustentar sua tese da escansão. Outra questão importante é saber se o tratamento analítico nunca é mais que o lugar de “segundo caso de après-coup”, ou se também pode ser o teatro do après-coup propriamente dito. Supondo-se que possamos responder essa pergunta, isso certamente não seria simples, ainda que fosse só pelo fato de termos de distinguir os analisandos em quem o recalque prevalece e aqueles às voltas com outras defesas que, por sua vez, são inseparáveis de traumas primitivos. Com o neurótico, o golpe no tratamento tem todas as chances de ser uma réplica. Às vezes, talvez, exceto quando se soma ao acontecimento traumático da transferência a força da primeira entrevista. Jorge ainda é um rapaz muito jovem, mal saindo da adolescência. A riqueza das evocações, a sutileza do pensamento, uma sintomatologia fóbica típica, seja para amar ou trabalhar, tudo na primeira entrevista, até a angústia difusa sensível a cada instante, prometia a análise futura. Para mostrar-me generoso, nos nossos últimos diálogos, eu lhe pedi para evocar uma lembrança da primeira infância, a primeira que viesse... Silêncio angustiado, o modo estarrecido de me fixar quase não deixa dúvida: uma imagem acaba de surgir. Provavelmente, até então não passava de uma “boa” lembrança, daquelas que compartilhava com o pai, figura calorosa que uma espécie de instantaneidade transferencial tornou especialmente perceptível durante nosso encontro. Com 3 ou 4 anos de idade, Jorge atravessa o Pont Neuf de mãos dadas com o pai, quando, de repente, este o agarra, erguendo-o no ar, senta-o no parapeito e brinca de assustá-lo. Será que eu vou segurá-lo, pegá-lo no colo ou jogá-lo no rio Sena? Essa primeira entrevista foi a única, nunca mais voltei a vê-lo. Provavelmente, um outro analista terá sentido as réplicas mais tarde.

O après-coup, uma passagem. A palavra tenta expressar um segundo estado da teoria, mais diferenciado que o primeiro, mas também provisório. Só a força do trauma permite que as cartas voltem a ser embaralhadas, que a história seja reescrita. Ou até mais que isso, permite que aquilo que ainda era sem sentido tome um sentido. Não há après sem coup, o après-coup une o que somos inclinados a opor: a violência da efração traumática e a abertura do sentido. Se nos esquecermos de um dos dois aspectos, deixamos de ter um acontecimento psíquico observável. De um ao outro, do trauma ao significado, o fenômeno de après-coup é um operador, um transformador, o agente de passagem. Sua plasticidade faz dele, senão o oposto, ao menos o diferencial da compulsão à repetição.

TraumaÕsignificação, esse movimento interno, constitutivo do efeito de après-coup declina-se em vários títulos. O après-coup é passagem: da repetição à rememoração, do imaginário (o surgimento da representação inconsciente) ao simbólico (a reintegração do passado), do caos à história, do silêncio ao relato, da infantia à palavra. Ele ignora a contradição &– condensa, funde em um só dois movimentos que a lógica separa: passadoÕpresente, presenteÕpassado &– mas abre o tempo, o processo de temporalização. A primeira dessas qualidades o assemelha aos processos primários e a segunda, às operações secundárias.

O fato de estar nesse cruzamento de tensões confere ao après-coup uma função crítica, tanto em relação a um determinismo ingênuo quanto em relação à redução hermenêutica efetuada pelo construtivismo. O fenômeno de après-coup faz fracassar a confrontação binária: verdade histórica ou construção do passado? A “causa” situa-se no T1, no momento do trauma posterior, ou no T2, quando algo se imprime sem poder ser tratado psiquicamente? O après-coup não responde a essa pergunta, ele a invalida. O modelo simplista da causalidade (“Até o seu enésimo ano você se considerou o único e absoluto dono de sua mãe; foi quando um segundo filho chegou trazendo com ele uma forte decepção(...) e assim por diante”66) casa com uma concepção linear do tempo, conta que “era uma vez”. O mito individual proposto por ele é um objeto para a análise e não seu resultado.

Diante da crítica comum dirigida à psicanálise: “vocês defendem um ponto de vista radicalmente determinista segundo o qual cada ser humano, com suas alegrias e seus sofrimentos, suas escolhas e suas restrições, seria o depositário de sua mais tenra infância, mas, ao mesmo tempo, vocês são totalmente incapazes de fazer a menor previsão”, observemos de passagem que ela mesma repousa num credo causalista rudimentar: “vocês conhecem os segredos do passado, digam-nos então o que será do amanhã”. O après-coup afeta o bom senso, desordena a causa e o efeito, condensa o passado e o presente.

Segunda perspectiva crítica: contra o ponto de vista hermenêutico e retrospectivo da construção, o après-coup sustenta que a força do acontecimento, a força que a transferência atualiza, é indissociável da repetição. O après-coup permite que se abra a narrativa, mas antes não havia narrativa, nem mesmo “antes”, apenas uma impressão.

 

A primeira impressão

Se, por um lado, Lacan não se detém no significante e quase não considera o significado do “golpe” posterior, por outro, ele faz uma interessante descoberta sobre o “golpe” de antes, o primeiro golpe, embora isso não pareça ter recebido atenção especial67. Para designar o acontecimento traumático inaugural, o primeiro traço que “não foi integrado no sistema verbalizado do sujeito, nem mesmo ascendeu à verbalização e, pode-se dizer, sequer à significação68, Lacan propõe o termo Prägung. A tradução mais comum para esse termo é empreinte (marca impressa), mas Lacan insiste no sentido original da palavra, derivada do verbo prägen, cunhar a moeda. Aplicada ao nosso objeto, ou seja, o trauma-primeira-forma, a palavra frappe/frapper69, por sua força evocatória, pelo leque de suas possibilidades, da expressão “faute de frappe” (erro de impressão) à expressão frappe aérienne (ataque aéreo), é cheia de recursos.

Assim como no caso da Nachträglichkeit, diz-se que Lacan deve ter tirado essa pérola rara de algum canto do texto de Freud. Não é nada disso. A palavra aparece mesmo uma vez, num sentido muito próximo desse que nos interessa, dizendo respeito à “jovem homossexual”. Referindo-se à forte fixação à mãe, Freud completa supondo uma “impressão (Prägung) deixada por uma influência externa exercida precocemente”70. Mas Lacan não faz referência a isso e o próprio Freud não insiste. Prägung não faz parte das palavras da língua comum que ele declina em seu proveito. A referência aos pássaros no primeiro seminário, na verdade, não deixa dúvida que é junto à etologia e a Konrad Lorenz que Lacan se abastece. Para o homem alemão culto de hoje, Lorenz e Prägung tornaram-se indissociáveis. Comparar a impressão (empreinte) do etólogo com a impressão (frappe) do psicanalista não deixa de ser interessante. Como se sabe, a impressão (empreinte) é um processo de aprendizagem, uma aquisição, repousando numa pura associação, portanto, próxima do reflexo condicionado. Por sua precocidade, a impressão adquire um caráter irreversível, a ponto de poder depois desmentir a lógica programada do instinto e atravessar a barreira das espécies. Lorenz, homem cheio de fantasia, mas cuja “loucura” engenhosa não excedia (?) os limites da ciência, dá principalmente o exemplo de um casal de periquitos. Eram periquitos, exceto pelo comportamento sexual que um isolamento experimental permitiu tomar a “impressão”71 do homem. Acaba-se, no entanto, deixando-os viver suas vidas de voadores, reunidos numa gaiola. Com o passar do tempo, a natureza exigiu seus direitos, os periquitos acasalaram e avezinhas nasceram. Como afirma notavelmente Lorenz, os periquitos acabaram por “se tomar mutuamente como objeto de substituição”! Tudo ia bem dentro do viveiro, era o melhor dos mundos, até o dia em que o homem ressurgiu. Bastaram alguns minutos de contato para que a ave começasse a se exibir, antes de lutar, como se quisesse disputar o amor do homem tão esperado, deixando os filhotes morrer de fome. Lorenz tira uma lição dessa história sinistra: o traço deixado pela impressão não pode ser apagado por uma aprendizagem posterior; por mais que reate com a “natureza”, ele “ressurge tão logo a escolha seja oferecida, e o engrama impresso entra em conflito com a forma aprendida.”72 Resta certamente uma dúvida: tanta “loucura” animal não tem como condição a interferência do homem?

Numa homenagem inesperada, Lorenz faz de Freud o descobridor do fenômeno &– as primeiras formulações de Lorenz datam de 1935. O que eu denomino impressão (empreinte), diz ele, Freud chamou de fixação. Uma comparação minuciosa das duas noções certamente mostraria as diferenças: a fixação freudiana não tem sentido fora do sexual infantil, ao passo que a impressão pode dizer respeito a qualquer comportamento. Quanto a atravessar as espécies, apesar do menino lobo, não nos aventuramos nessa idéia. Resta a força analógica. É como fixação no trauma e recalcado originário ao mesmo tempo &– atraindo para si tudo o que acontece na proximidade &– que a idéia da fixação lembra mais claramente a impressão, quando a hipótese constitucional, por sua vez, nos afasta dela. A impressão é irreversível, mas será que a fixação é inalterável? A questão é justamente o après-coup e seu poder de reorganização. Até onde vai? Que retomada psíquica é possível daquilo que se fixa no momento dos traumas precoces? O perverso, no sentido da psicopatologia adulta, é provavelmente aquele que, por sua imobilidade, leva ao extremo o parentesco da impressão com a fixação (aqui sinônimo de uma identificação com o agressor). Enquanto a criança, “polimorfamente perversa”, dá alguma esperança à plasticidade73.

A primeira impressão (frappé) situa-se um pouco antes da fixação, uma sendo decorrente da outra. Entretanto, do ponto de vista tópico, as duas freqüentam o mesmo lugar: o recalcado originário. O après-coup, como vimos, traz sua contribuição para uma teoria do recalque propriamente dito, que sempre é um Nachdrängen, um pós-recalque. Mas sua contribuição para o enigmático recalque originário talvez seja ainda mais decisiva. É nesse estágio que se situa a Prägung de Lacan. Quando evoca aquilo que imprime sem ser integrado não só na verbalização, mas também na significação, Lacan descreve um topos do inconsciente que está longe de ser “estruturado como uma linguagem”. Dedicado ao Homem dos Lobos, Lacan aproveita as hesitações de Freud para supor que a observação da famosa cena (a impressão a tergo) data provavelmente dos 6 meses de idade e não dos 18 meses. A questão é clara: antes ou depois da primeira aprendizagem da fala.

O recalque originário é uma noção necessária tanto quanto impossível, que procura descrever os primeiros traços, aqueles que chegam como meteoritos, que atingem a psique antes mesmo dela ser realmente habitada e que, justamente, não são recalcados74. O recalque fica para mais tarde, no momento do après-coup. Esse recalcado não recalcado do originário, por definição, é inacessível antes de sua re-(a)presentação no après-coup. “Existe ‘antes’ aquilo que existe”, o ponto de interrogação precede o conteúdo da questão75. A primeira impressão só pode ser dita se for abolida, transformada. Quando nos aproximamos dela é porque já mudou de natureza, já não é mais o que era. Chega e fica ali, não tratada, intratável, subtraindo-se ao gênio polimorfo do infantil.

Esse inconsciente inacessível é a fortuna da teoria que, dos elementos beta de Bion ao significante enigmático de Laplanche, multiplicou as tentativas de abordagem. A referência a Bion não é por acaso, pois aqueles que concentraram seu interesse clínico nos elementos psicóticos se depararam mais que outros com esses objetos bizarros que a plasticidade pulsional não conseguiu transformar. O elemento beta tem em comum com a Prägung de Lacan o fato de estar isento do campo da significação, meaning free. Só que o modelo teórico do psicanalista inglês é mais físico, o elemento beta está mais próximo da partícula que do significante.

Em contrapartida, em Melanie Klein, nada é bizarro; talvez extravagante, mas não bizarro. Tudo pode ser dito, nomeado ou ao menos designado. De imediato existe um seio, bom ou mau, e o cenário de uma fantasia mínima. É também por não existir desconhecido que a interpretação não precisa ter tempo. Não há desconhecido, portanto, nenhuma necessidade de conceber um après-coup. Melanie Klein observa de modo negativo que a condição de possibilidade do après-coup é o pré-requisito de um sem sentido.

Jean Laplanche e J-B. Pontalis, em Fantasia originária, fantasias das origens, origens da fantasia, fazem uma observação fecunda tanto quanto surpreendente. Descrevendo os dois acontecimentos do après-coup, eles destacam o caráter “incompreendido e como que excluído no interior do sujeito” do primeiro acontecimento, e a dimensão elaborativa à qual o segundo dá acesso. “Existe uma semelhança evidente entre o esquema freudiano do après-coup e o mecanismo psicótico da forclusão observado por Lacan. O que não foi admitido no simbólico reaparece no real”76. Nas palavras de Freud, “o que foi suprimido no interior retorna do exterior”77. après-coup, forclusão... a questão segue por si mesma essa aproximação: “Lacan não considerou como sendo especificamente psicótico o que, na realidade, é um processo muito geral? Ou Freud não tomou a exceção pela regra baseando sua demonstração num caso comprovado de psicose” &– o caso do Homem dos Lobos? Assim colocada por Laplanche e Pontalis, a questão binária é simplista, quando a resposta talvez esteja numa via intermediária, aquela já mencionada dos fatos psicóticos da vida cotidiana. Em vez de ficar na alternativa entre a psicose e a forma geral, deve-se supor alguma coisa do inquietante estranhamento que se deve a essa parte psicótica comumente compartilhada. Quando bruscamente se vê com o sol e não com os olhos. Entre as considerações mais banais acerca do après-coup, existe aquela segundo a qual o fenômeno mostraria que a lembrança do trauma primeiro é mais traumática que o próprio acontecimento. Lembremo-nos de Emma, da confeitaria da infância à loja da adolescência. A fórmula não é satisfatória, é aproximativa demais. Dá ênfase a um aspecto essencial: o mais violento do ataque vem de dentro (a lembrança) e não de fora (a mão do dono da confeitaria). E, de fato, perde-se a originalidade do après-coup se for desconsiderada a contribuição desse “corpo estranho” que é a realidade psíquica. Mas a aproximação vem do fato de que esse “corpo interno”, justamente, não é lembrança. É o après-coup que permite a lembrança, a colocação no passado, é ele que a historiciza. Antes do après-coup, há uma impressão (frappé). Seu ressurgimento não é uma questão de rememoração, mas de coincidência, de colisão entre um fora e um dentro. O riso dos vendedores, cavalos numa estrebaria, uma desconhecida no pátio, um analista sobre o Pont-Neuf... Alguma coisa vem de fora que atinge alguma coisa de dentro. Entre dentro e fora, o après-coup, um ser de passagem, não se deixa facilmente localizar.

 

Traumas primitivos

Crítica da temporalidade, da causalidade, a noção de après-coup é primeiramente crítica da própria idéia de trauma. Esta perde aí sua simplicidade; o trauma acaba dividido, torna-se impossível reduzi-lo apenas à efração (quantitativa) de uma barreira externa que faz transbordar as capacidades integradoras da psique. Essa observação se faz ainda mais necessária porque nos aproximamos dos frühzeitige Schädigungen des Ichs, dos atentados precoces ao eu78; frühzeitig significa literalmente “cedo no tempo”. É evidente o risco de perder a originalidade do efeito de après-coup, rebaixando-o a uma cronologia do desenvolvimento: primeiro trauma no primeiro momento, trauma transformador uma vez a maturidade atingida. Enquanto a experiência analítica nos ensina pelo menos uma coisa: o infantil não tem idade, os golpes ruins também não.

Mesmo sendo em grande parte pós-freudiana &– embora esse “pós” tenha iniciado com Ferenczi &–, tal problemática não está ausente na obra fundadora, principalmente nos últimos anos. O retorno do modelo traumático, explicitamente a partir de 1920, traz com ele uma incerteza quanto à natureza daquilo que gera o trauma (impressões sexuais ou agressivas, as duas eventualmente misturadas) e, simultaneamente, quanto à possibilidade de superá-lo pelo tratamento psíquico. O primeiro tratamento é um autotratamento, que tem como exemplo o trabalho do sonho, graças à regressão que possibilita. Freud esboça uma dupla perspectiva. A primeira está estreitamente associada ao tratamento do Homem dos Lobos, em que o après-coup se confunde com o acontecimento de um sonho: “O que as crianças de dois anos vivenciaram sem compreender nunca será rememorado fora dos sonhos”79. O sonho dos lobos sobre a árvore pode perfeitamente agir ele mesmo como uma sedução traumática, mas nem por isso deixa de revelar um trabalho de deslocamento, de metaforização em relação aos indícios da primeira impressão [frappe], que promete a abertura do sentido, mesmo que o valor dinâmico desta, a fortiori positivo, nunca possa ser garantido. A idéia será retomada por Ferenczi como uma função traumatolítica do sonho80.

A segunda perspectiva traçada por Freud é mais sombria: o sonho é uma realização de desejo, ou mais exatamente, a tentativa dessa realização. O sonho pode conseguir cumprir seu objetivo apenas de maneira muito imperfeita, ou até mesmo ter de abandoná-lo totalmente. A fixação inconsciente em um trauma parece justamente estar entre os primeiros desses impedimentos, fazendo fracassar a plasticidade pulsional e as capacidades metamórficas do auto-erotismo. “A atividade do trabalho do sonho, que pretendia transformar os traços mnésicos do acontecimento traumático em realização de desejo, fracassa”.81 Uma primeira impressão (frappé) que nunca terá après-coup.

Dessas poucas indicações, detenho-me no que me servirá de fio condutor para a continuação e a conclusão deste relatório: o trauma com o qual a experiência psicanalítica é confrontada não é sempre sexual ou não o é somente. Mas seu tratamento, por outro lado, sempre é sexual; se o sexual (o infantil), seu polimorfismo, sua plasticidade libidinal não conseguir intervir, impor sua exigência de transformação, é o próprio tratamento psíquico que fica comprometido. Seja o tratamento pelo sonho, seja pela análise. Essa operação do/pelo sexual não se resume apenas ao fenômeno do après-coup, mas nem por isso este deixa de ser uma peça essencial que nunca falta.

A focalização no trauma precoce gera, indissociavelmente, um novo interesse pelo eu e sua psicogênese. O eu é o resultado de um desenvolvimento, de um processo de maturação e, por mais que seu início na vida se desenrole sem maior complicação, precisa de tempo para demarcar fronteiras suficientemente seguras, que lhe permitam ser uma instância diferenciada, capaz de repelir, de reprimir 82 o inimigo mantendo-o fora de seu território. Conhecemos as imagens freudianas que, da figura primitiva de um eu corporal até o ser de síntese e de razão, passando pela projeção de uma superfície (o eu-pele), traçam as etapas de uma construção que nunca está livre das intempéries. A fragilidade, a imaturidade precoce do eu, o expõe ao perigo do desamparo (Hilflosigkeit) psíquico.

O desenvolvimento da psicologia do apego, desde os trabalhos de Brazelton, acentuou e complicou ao mesmo tempo essa imagem. A fragilidade do ego do bebê, sua “debilidade”, diz Freud, não impede a extrema precocidade de suas competências. Hoje estamos muito longe da representação que prevaleceu durante muito tempo de um recém-nascido, mônada fechada, protegida por sua casca de ovo, na qual as teorias de um estado narcísico primário acreditaram poder apoiar-se. Um bebê de três dias sabe distinguir, preferir e, tudo indica que quando ainda era feto, já tinha meios de responder. Podemos imaginar que essa abertura para o mundo, combinada com a incapacidade do bebê de atender a si mesmo, deixando-o a mercê do meio ambiente humano, aumenta sensivelmente o perigo, o risco dos traumas primitivos e o desamparo associado a isso. De todas as instâncias psíquicas, o eu é a única a definir-se como organização, organização esta que se vê ameaçada desde seus primeiros passos pela desordem que o Nebenmensch, o ser próximo, nunca deixa de provocar a mínima com suas respostas inapropriadas.

Um raciocínio que se contenta em explicar a violência do impacto dos primeiros traumas pela fragilidade do eu precoce, por sua imaturidade, considera apenas um lado e esquece um dado essencial quanto à natureza dos traumas e seu eventual tratamento après-coup: o fato de que, sem exceção, é sempre um adulto que prematura uma criança. Não existe trauma primitivo que não seja a cristalização de uma situação interpessoal e que não conserve o traço desta. “O bebê não existe”, dirá Winnicott, destacando dessa maneira provocante a complexidade, o misto psíquico dos primórdios da vida. Isso leva à questão propriamente psicanalítica: o que se depositou, aprofundou, imprimiu na infantia pode ser reaberto e não simplesmente repetido por um outro encontro interpsíquico, o da transferência?

 

Os seios

Um seio que “engole” mais do que alimenta poderia ser a imagem excessiva e emblemática do trauma precoce, na versão de Freud83. Emma na confeitaria, o pequeno Hans na cama de sua mãe ou a criança russa seduzida por seus pais durante a sesta, é sempre pelo excesso sexual que o adulto comete uma efração no mundo freudiano da infância. A paixão de Ferenczi faz parte do mesmo elemento, assim como as mensagens comprometidas por seu inconsciente que o adulto, na versão de Laplanche, dirige ao infans. Tal qual uma infecção, o sexual contamina um corpo psíquico desprovido da resposta imunitária adequada.

Aquilo de que Jean Laplanche fez uma teoria geral encontra-se sob a pena de Freud, em algumas notas esparsas, presentes do início ao fim, desde os Três Ensaios (1905) até o Esboço (1938). Desses textos tão citados hoje em dia, desde que o ponto de vista interpsíquico passou a ser verdadeiramente levado em conta, menciono apenas um trecho dos Três Ensaios. O “comércio” 84 da mãe ( o adulto é ela na maioria das vezes no início da vida) com a criança mistura, nos cuidados dispensados, “sentimentos provenientes de sua própria vida sexual” &– este é o caminho empírico pelo qual a fantasia da cena primitiva passa. Se a criança encontra nessa troca “uma fonte inesgotável de excitação sexual” é porque a mãe, de sua parte, a acaricia, a beija e a embala “de maneira muito clara” como “substituto de um verdadeiro objeto sexual”85. A mamada no seio da mãe é o protótipo de toda relação amorosa somente porque esse seio “engolido” não se contenta em alimentar, tomando seu próprio prazer. A experiência de satisfação não é privilégio somente da criança. Winnicott propõe uma figura patológica dessa disposição traumática geral. Protegida por seu próprio recalque, a mãe freudiana só vê ternura ali onde se manifesta, sob o manto dos cuidados, sua sensualidade. Mas, uma vez rompido esse dique, a sedução e a destruição não conseguem mais se separar. A anorexia do bebê, diz Winnicott, é o sinal disso: recusando a alimentação, a criança tenta fugir “da sedução”, daquilo que se tornou uma “satisfação oral separada”, para tentar restabelecer de maneira paradoxal e, por assim dizer, absurda a ordem da necessidade; restaurar o vital e lutar contra sexual não se alimentando mais!86

Nesse terreno do sexual, o fenômeno de après-coup se sente em casa, é aí que tem seu melhor efeito. A primeira impressão (frappe) que ele reproduz e transforma é uma excitação que não pôde ser dominada nem metabolizada. Essa abordagem clássica, inspirada no modelo histérico, certamente precisa ser confrontada com os meandros das vidas singulares e com a variedade dos destinos psicopatológicos. É impossível montar uma equação sempre solúvel entre o sexual e a reorganização après-coup. Ao refletir sobre os traumas precoces, o próprio Freud dá o exemplo de uma jovem, objeto de uma sedução na primeira infância, que se mostra incapaz de organizar sua vida sexual ulterior sem provocar agressões do mesmo tipo87. Uma fixação tão irreversível quanto uma impressão (empreinte), compulsão à repetição... a plasticidade do sexual infantil nunca é garantida, sendo às vezes reduzida a um deslocamento mínimo, a uma inversão, quando há recurso ao mecanismo rudimentar da identificação com o agressor. Isso é exemplar na perversão, em que prevalece a imobilização do sexual (infantil) na sexualidade (adulta), e o aprisionamento desta no cenário-grilhão de uma fantasia na qual o objeto é menos variável do que indiferente. O perverso é um condenado.

A transferência prossegue, ora capaz de driblar a repetição monocórdia, deixando surgir o acontecimento, ora não conseguindo sair da rotina. A precocidade do trauma, a amplitude dos danos, a margem muito estreita deixada à criança para interpretar o que lhe acontece, a miséria que toma conta da vida... a lista dos obstáculos à transformação não acaba mais. Se a esperança psicanalítica se mantém, é porque, para um trauma, é preciso que haja dois, tanto na primeira impressão (frappe) como naquela après-coup da transferência e da contratransferência.

A dificuldade aumenta um pouco quando o sexual sai de cena, pelo menos manifestamente... Troca-se de mãe, e de seio também. A mãe freudiana amamenta como abraça, cobre de beijos e oferece um seio generoso. Ela pode chegar a exagerar, o amor materno pode chegar a se expandir em “carícias veementes”, a criança pode lhe servir de objeto transicional88. Se o seu nome for Catarina e o pequeno se chamar Leonardo, um perfeito artista polimorfo, isso pode nos consolar se pensarmos que existe destino pior. A outra mãe, aquela esboçada na obra de Winnicott, também amamenta. Seus braços podem segurar e carregar corretamente, como deve ser feito, mas sua psique, não! A criança volta os olhos para a mãe, olha para seu rosto, mas (não) vê nada. Principalmente, não se vê. O prazer da mãe, ausente ou inexistente, não reflete o da criança e, assim, dele a priva. Onde está essa mãe? Provavelmente no fundo de sua depressão, em algum lugar que também é um “lugar nenhum”89, a menos que esteja ocupada com a morte, com um morto. O seio que a criança suga é um seio glacial que destila o leite negro da melancolia90. Esse seio frio é sempre um mau seio. O outro, o seio quente (demais), é bom e mau &– mas existe o “mau” seio e o seio “mau”: um tem gosto de cinzas, enquanto o outro é perigoso, como a paixão. O bebê imaginário de Freud que exclama: “Eu sou o seio” (logo existo), levado por seu triunfo maníaco, acaba de sugar o segundo. Em psicanálise, ser é uma abreviação de ser amado.

Uma criança é arrastada por uma “tempestade de afetos”, a outra mergulha num vazio profundo. Nem todas as primeiras impressões (frappe) têm a mesma natureza: ora excitação, ora branco, buraco, ausência, perda, destruição, raiva. A qualidade, não só a quantidade, as diferencia. Assim, não há razão alguma para que seus tratamentos psíquicos &– autotratamento e tratamento analítico &– tenham uma mesma dinâmica, tampouco para que o après-coup se cumpra nos dois casos91 nos mesmos termos. Enquanto a mãe freudiana é uma sedutora, “objeto do primeiro e do mais forte dos amores”92, a sedução, sua cena e sua fantasia não se constituem no segundo caso. No entanto... a surpresa clínica renova-se a cada encontro: nada prende, nada retém, nada imobiliza, nada captura mais que o não-investimento do qual se foi (paradoxalmente) objeto! A ponto de fixar as condutas, determinar as escolhas, sem mesmo falar da formação dos sintomas, sobretudo aqueles que tomam a forma dos funcionamentos adictos. Quando Ida vai ao canil para adotar um animal, ela escolhe o mais solitário, o mais feio, o mais abandonado, aquele que certamente ninguém nunca desejará. E quando ele se perde logo ou é atropelado, Ida volta ao canil para buscar seu duplo. Os homens de Ida, que ela mais “recolhe” do que encontra, também têm ares de cães errantes.

A impressão (frappe) deixada por nada não é menos indelével que aquela deixada pelo excesso. Aquilo que não existe produz uma falha na cadeia do sentido e, como observa André Green, é com essa falha que o sujeito se identifica93. Daí a “beber até falhar”94 é só um passo. Uma má tradução de Winnicott contribuiu muito, nesse sentido, para um desvio teórico (ou mesmo prático) discutível. É por sofrerem de carências que remontam às primeiras trocas de suas vidas que o desejo, nesses pacientes, ficaria reduzido à ordem da necessidade. Ora, Winnicott não escreve deficiency, mas failure. Não escreveu carência e sim falência, falha. A carência requer um complemento, de vitamina ou de amor. Por isso, responder à expectativa transferencial, ser a “mãe terna” que faltou, “fazer-se de mãe”, foi o que Ferenczi95 acreditou ser bom, para logo perceber que quanto mais se dá, mais falta &– pois “é comendo que se abre o apetite” &–, e constatar que um procedimento destinado a encurtar o exercício ameaçava tornar a análise interminável96. Fora as situações de penúria, o recém-nascido não tem carências. Falências, falhas do ambiente humano, sim, sem sombra de dúvida. A melhor das mães é apenas good enough &– a pior é “perfeita”. A falha do holding deixa sem resposta a questão relativa àquilo que penetra na brecha assim produzida. O autotratamento pelos funcionamentos adictos &– a começar pela primeira de todas as adições, a adição ao outro, à sua presença, que faz perguntar sem parar “você me ama?” e que exige a presença contínua do analista, ao mesmo tempo em que a vive como insuportável &– sugere uma primeira resposta: nada se parece mais com a adição que a compulsão à repetição, essa face sombria da experiência pulsional. Não é porque a adição assume as aparências da necessidade que participa de sua economia; ela é antes seu desvio. É próprio de uma necessidade, quando esta é vital, ser acalmada tão logo satisfeita. No retorno da caravana, o camelo pode beber durante horas, mas pára assim que suas corcovas estiverem reabastecidas. A garrafa do alcoólatra, o tubo digestivo da bulímica são, ao contrário, poços sem fundo. Ao par de opostos, convencional demais, formado pelo desejo e pela necessidade97, poderíamos talvez substituir o par formado pelo desejo e pela exigência. O primeiro sentido de exigir é fiscal, tão persecutório quanto o imposto: reclamar imperativamente aquilo que é devido. A exigência reclama muito, reclama mesmo demais, aumenta com a satisfação mais do que é acalmada. Impossível contentá-la, a exigência é insuportável, tirânica, faz com que os desejos se tornem ordens.

Que esperança de après-coup tal peso de repetição reserva? Esse tipo de trauma precoce é divisível por dois? O acontecimento pode romper a linha contínua desse retorno lancinante do mesmo? Pode-se passar do refrão repetitivo à história? Certamente não há resposta simples para essas questões que desorientam. Deve-se contentar em apoiar, conter, tratar, curar um pouco, acalmar as feridas... O trauma precoce requer uma reflexão original sobre a forma do eu. Os atentados cometidos contra o eu, quando este ainda não passa de um “ser de fronteiras” em vias de serem traçadas, são narzisstische Kränkungen, feridas narcísicas98. Para amar-se a si mesmo, como indica a forma reflexiva do verbo ou o poema de Ovídio, é preciso dois; ora, este número nunca é totalmente garantido. Antes de qualquer clivagem patológica, o narcisismo cliva o eu de modo comum. Podemos levantar dez vezes o braço direito diante do espelho que aquele que está na nossa frente sempre dá um jeito de ser desagradável e levantar o esquerdo. Se nos reconhecermos nele, já é alguma coisa! Mas quanto a amá-lo... O prazer, os prazeres dos dois protagonistas que permitem ao bebê ver-se, identificar-se, amar-se no espelho do rosto materno99. O narcisismo da ferida vem lembrar que a libido, longe de se ausentar de tais configurações, é, ao contrário, mobilizada continuamente até exaurir-se. A dificuldade prática não vem da ausência do sexual, mas de sua paralisia, quando este está totalmente ocupado em defender, reparar, investir fronteiras desrespeitadas, construir inutilmente barragens contra o Pacífico. O eu também é um objeto libidinal &– é o que narcisismo significa &–, mas não é um objeto como outro qualquer. Diferentemente do objeto da fantasia, do objeto externo, o eu não é substituível. Somente a morte nos livra dele, um pouco tarde.

A ênfase dada ao desenvolvimento, à maturação, pode ter feito pensar que a problemática do après-coup, a do golpe posterior, aquele que permite que as cartas sejam redistribuídas, estava faltando em Winnicott. Nada disso. A palavra não está ali, mas a coisa sim, que o londrino não deixa de designar como golpe (frappe) violento: breakdown, colapso100. Quando Winnicott constrói sua teoria geral, ele põe as coisas em ordem, em ordem cronológica. Descreve um bebê com seu ambiente e segue a progressão deste bebê, ou sua destruição, ao longo das etapas da vida. A essa altura da teoria, o après-coup, que põe o tempo de cabeça para baixo, não tem chance alguma de aparecer. Só que Winnicott nunca observou esse bebê, nunca o viu crescer. É bem verdade que Winnicott também foi pediatra e psicanalista de crianças, mas se preocupou em esclarecer que foi a experiência analítica com pacientes adultos borderline, nas regressões que nela se produz, que lhe ensinou aquilo que suas hipóteses teóricas apresentam101. O que é que o bebê vê enquanto mama no seio? “Para responder essa pergunta &– escreve Winnicott &– devemos apelar para nossa experiência com analisandos que regridem a fenômenos muito precoces, impossíveis de serem verbalizados sem atentar contra a delicadeza do que é pré-verbal”102. Só a atualização da transferência dá acesso às (de)formações primitivas. O artigo “O medo do colapso” contém um trecho que fala de forma notável do fenômeno de après-coup: o colapso pode ter ocorrido no início da vida, “o paciente deve lembrar-se, mas é impossível lembrar-se de alguma coisa que ainda não tenha acontecido, e essa coisa do passado ainda não aconteceu porque o paciente não estava lá para que isso tivesse acontecido nele. Nesse caso, o único modo de rememorar é fazendo com que o paciente experimente pela primeira vez, no presente, ou seja, na transferência, essa coisa passada. Essa coisa passada e por vir torna-se então uma questão do aqui e do agora, vivida pela primeira vez”.103 Os paradoxos desse texto &– lembrar-se do que não aconteceu, viver no presente pela primeira vez a coisa passada, repetir o que não aconteceu (que não encontrou seu lugar psíquico, como comenta com propriedade J-B. Pontalis) &– marcam a presença alógica do après-coup. Principalmente, trazem à clínica dos traumas precoces e das feridas narcísicas a esperança da historicização, a esperança de um tempo 1, breakdown que abre o tempo.

 

O mal de Aurora

Por que Aurora? Em primeiro lugar, porque a análise aconteceu, o que não é simples lapalissada. Essa forma conjugada no passado não está de forma alguma assegurada. Ida é o contra- exemplo. Se a análise de Ida não terminou não foi por ter passado tempo insuficiente no divã, foi por nunca ter começado. Um dia Ida foi embora, da maneira como chegou. Entre as imagens que exerceram nela a mais forte impressão, havia a de um velho lobo solitário, velho demais para acompanhar a matilha, errando no deserto gelado da montanha, último habitante do planeta. Era também a imagem da transferência, a de um encontro impossível, quando falta o mínimo necessário: dois seres com vida. Durante as freqüentes noites de insônia, ela ouvia a gravação do som das baleias vindo das profundezas do mar. Artista plástica talentosa, Ida soube fazer obra da morte. Nós não soubemos, não pudemos fazer o movimento de uma análise. Provavelmente chegamos o mais perto possível, o mais próximo possível do colapso e de seu après-coup, por ocasião de um sonho que transformava seu quarto de criança em um cemitério a perder de vista, onde os túmulos, inumeráveis, misturavam os homens e os animais preferidos. “Se for para chegar aí...”, diz ela derramando lágrimas. Da minha parte, a dificuldade não era menor, pois fui incapaz de dissociar o pensamento de “fazer alguma coisa” &– aplicar um golpe para que a análise não fosse “uma análise para nada” &– da imagem de uma falésia de onde eu a empurraria para ver o que ia acontecer.

Por que Aurora? Não somente porque a dinâmica de sua análise permite interrogar o agir transferencial dos traumas precoces, o seu après-coup, mas principalmente porque uma sensibilidade particular lhe permitiu apropriar-se in vivo do nascimento do tempo, dos tempos. Ela podia, assim, chegar a uma sessão e surpreender-se com o que ouvira dela mesma na sessão anterior: “Eu deveria ter... Eu nunca teria pensado em falar dessa maneira”. Tão estranho quanto o encontro intempestivo com uma desconhecida que espera no pátio. Evidentemente não é só a forma verbal que está em questão; ela é indissociável do afeto ao qual dá acesso. Neste caso, o arrependimento, que implica tanto a existência do passado quanto o sonho de sua refiguração. Mas não há arrependimento sem sua conjugação, os afetos se diferenciam como as categorias da língua; seu nascimento, sua gênese, é uma coalescência. A sintaxe, na língua, é o representante do eu. Antes de dizer tudo o que passa, dizer o que não sabe, Aurora está entre aqueles infans que procuram a análise para aprender a falar, aprender a palavra.

Assim como qualquer outra, a análise de Aurora também não pode ser contada. Après-coups e réplicas encarregam-se de atrapalhar qualquer pretensão cronológica, sem falar dos tempos “sem tempo”. Não se conta algo que seja nada, a não ser Beckett &– e olhe lá: “É impossível falar para nada dizer; acreditamos conseguir, mas sempre esquecemos de alguma coisa, um simples sim, um simples não, o suficiente para exterminar um regimento de dragões”. Porém, como a particularidade do après-coup é abrir ao menos a possibilidade da história, tempos da análise podem constituir-se em momentos.

Um desses momentos foi dos mais árduos, desempenhando provavelmente, tanto em relação ao movimento do tratamento quanto à inscrição no tempo, um papel de primeira importância. É porque “o tempo é medido pelo affectio104 que esse momento durou um tempo longo, muito longo. Dele, a única medida de que eu dispunha era minha inquietação e logo minha angústia. Aurora começou a faltar, mais que de costume, nunca uma semana inteira, nunca três sessões. Sempre comparecia, na maioria das vezes era um comparecimento mínimo, reduzido a meia sessão, quando não eram apenas alguns minutos. Numa ocasião, apareceu com o rosto lívido, a aparência desfeita, só no fim da sessão. “Se eu não vier uma semana inteira, não virei mais”. Tomados por esse momento, uma semana comum de férias (vacances) (vacance105 sem s seria mais exato) nos levou a beirar o nada. “Pensei em ir embora...” Ela sempre se ausentava sem avisar. “Avisar” é um ato temporal complexo que supõe a disponibilidade psíquica de uma antecipação, de um futuro, não existente neste caso. Minha espera trazia a marca disso, na incapacidade em que eu me encontrava de ocupar, de dispor de um tempo simplesmente livre. Eu a esperei.

Nos poucos minutos semanais passados no divã, Aurora dizia não poder, não saber dizer nada do que acontecia. Sonhava, mas eram sonhos como fragmentos obscuros onde não encontrava nada. Esses sonhos não deixavam de ser essenciais, tendo o mérito de manter o fio da análise durante a noite, durante a vida. “Se eu sonho, por que não vir?”

Esse momento durou semanas, meses? Eu não saberia fazer a conta, mas terminou junto com o primeiro sonho novamente rememorado. Uma extensão de água sem fronteiras e sem ondas, paisagem encoberta por uma bruma de calor, apenas perturbada pela passagem longínqua de uma embarcação. O acontecimento do sonho importava mais que seu comentário. Paramos sobre a imagem.

As coisas poderiam ter ficado assim, se não meaning free, pelo menos sem significação manifesta, sem que fosse possível “contar o que acontecera”. Nesse nível de regressão profunda, não é raro que a transferência transporte um pedaço de vida, sem as palavras para dizê-lo. Constata-se a mudança, o rosto não é mais o mesmo, nem a atitude talvez; os ingredientes do estilo distribuíram-se de outro modo, não se saberia dizer nem como nem por quê. Em análise, o que os dois protagonistas fazem não é só falar, eles vivem também. Não é impossível que os deslocamentos que tocam profundamente permaneçam histórias sem palavras ou até sem semiologia.

Aconteceu diferente, sem que eu pudesse saber se foi acaso ou necessidade. Aurora chegou à sessão, muito pálida. Acabava de tomar conhecimento da morte de um velho amigo da família, mas isso não era o pior. A morte era esperada, iminente, Aurora estava preparada. Havia telefonado para seus pais dois dias antes, que a tranqüilizaram: estado estacionário, nada mudou. A notícia não era verdadeira, o amigo estava morto, mas os pais queriam dessa maneira, deliberadamente, proteger a filha mais um dia, porque sabiam que um importante encontro profissional se aproximava. As palavras balbuciantes de Aurora não conseguiam se apropriar de um impensável, aquelas vinte e quatro horas, nem vida nem morte, aquele tempo em branco que ela tinha não-vivido, aquele momento de nãoexistência. A morte, escreve Heidegger, é “um possível que a vida nunca atualiza”. Mas um possível, não é o nada, o pensamento pode se apropriar dele, até mesmo destinar-lhe toda uma filosofia. As palavras falham, por outro lado, para dizer o que não é simplesmente uma negação, tampouco uma mentira, e sim algo suspenso acima do vazio, quando ainda acreditamos ter o chão debaixo dos pés. A arte talvez saiba melhor apropriar- se disso, especialmente a arte de Malevitch, que tenta pintar sua própria morte, “branco no branco”, ou então a de Beckett, que escreve uma vez em sua língua materna uma palavra que o francês não consegue distinguir: Lessness.

Por qual caminho? O caráter evanescente das representações não permite sua narrativa. Em vez de um encadeamento de associações, é como descer uma escada na qual se pulariam alguns degraus. Só que a seqüência anterior, depois de alguns meses, volta a evidenciar-se. O que fora apenas o tempo sem tempo de um desamparo sem sentido apareceu, ao contrário, tão preciso em sua duração &– dois meses &– quanto em suas datas de início e fim: a primeira data, a do nascimento de Aurora, e a segunda, aquela em que ela deveria ter nascido se não tivesse sido prematura. O que a imagem do sonho da água fazia supor encontrava uma confirmação: foi por um sonho de nascimento que terminou esse tempo “sem”.

Um primeiro momento tão traumático quanto sem sentido, uma outra cena, em branco também, mas uma cena de reforço, que desperta como uma picada e permite que o sentido advenha... a temporalidade reconhecível é aquela do fenômeno de après-coup, mesmo que, nesse caso, tudo se cumpra em diferido. Os dois meses à deriva não são a primeira impressão (frappé), mas sua “repetição”, sua invenção; as vinte e quatro horas em branco não são o tempo 1, mas sua representação.

As questões são múltiplas &– e gostaríamos de mantê-las &– , mas quando escrevemos, ameaçamos responder. Pierre Fedida falou da “força selvagem” da transferência, o que nunca é demais lembrar. Como chegar a pensar que a não-vivência desses dois meses que não existiram possa ser vivida, (re)produzida, encarnar seu desaparecimento na “relação de desconhecido” da transferência? Com certeza, não foi simplesmente essa experiência de “não-experiência” que se repetiu. Coisas foram ditas, um mito familiar esboçou-se. Somente o pai desejava um filho, a mãe não queria, tendo retomado suas atividades profissionais alguns dias após o nascimento. É sempre um adulto que “prematura” uma criança. Mas o enigma permanece, porque não são coisas ditas ao sabor de uma talking cure que caracterizam esse tempo de um outro planeta. Confrontada com os traumas precoces, a psicanálise vira obstetrícia (mais que maiêutica), como constataram vários autores106. Alguém só pode nascer verdadeiramente se for esperado. Isso não basta para “restabelecer-se”, nem ao analista para refazer-se. Como a realidade que a transferência atualiza sempre é, sem exceção, a realidade psíquica, como esta nunca é o simples decalque de “algo que aconteceu”, por mais rudimentares que sejam as deformações, a transferência é paradoxalmente repetição do que nunca aconteceu. Mas, neste caso, é verdadeiro duas vezes e não uma.

É difícil estabelecer uma correspondência entre a temporalidade teórica do après-coup e momentos do tratamento, é algo forçosamente aproximativo. Perguntei-me sobre o que havia provocado, mas também permitido, essa regressão tão perigosa quanto fecunda &– a regressão existe, é real... e emprego aqui, de modo intencional, palavras exatamente contrárias àquelas de Lacan107. Não tenho a resposta para esse questionamento, o que não impede a convicção, bem pelo contrário. O mito não é mais familiar, torna-se analítico, conta-se uma história cuja única aspiração é tornar-se “verdadeira”. Há algum tempo &– sempre a mesma incerteza quando se trata de ter a noção do tempo analítico que passa &– tive de interromper minha atividade durante uma semana, fora dos períodos normais de férias. Eu não ignorava o risco ao qual expunha Aurora, ou seja, o risco da descontinuidade, e pude propor-lhe a recuperação de duas das três sessões. Restava uma sessão, “anulada”, entregue ao nada... Ela me mostrou violentamente que eu não tinha esse direito... A encarnação ulterior da “vida não vivida”, os dois meses de desamparo transferencial, poderia ser a elaboração, a geração desse infeliz acontecimento? Podemos imaginar a hipótese subjacente: tempo 1, aquele que abre o tempo, a sessão suprimida, Aurora anulada, o ódio expresso e depois recalcado; tempo 2, aquele da primeira impressão (frappe), a duração elidida da gestação, a impaciência materna, impossível esperar, a expulsão precipitada, uma impressão [frappe] no vazio na aurora dos tempos. Depois, os dois meses in absentia e a morte em branco, como réplicas e metamorfoses de uma primeira matéria bruta.

Winnicott teve a intuição de que, no momento transferencial dos traumas precoces, as falhas, as failures, as fendas do analista eram investidas por uma função dinâmica bem particular. É geralmente o analista, com a “ajuda” da contratransferência, que intercala entre ele e seu paciente o vidro contra o qual este vem esbarrar brutalmente. Em terra tão profundamente desconhecida, anterior às palavras, que o analista percorre sem sua bússola, a coisa é quase inevitável. Isso não reduz o paradoxo: ninguém poderia fazer “técnica” daquilo que só é oferecido pela atuação do inconsciente; é o que contratransferência quer dizer. Não vamos anular sessões para ver... No entanto, talvez não seja necessário se preocupar muito, a falha acontece, ela é certa. Tanto para a criança quanto para o paciente, o pior risco não é esse, e sim seu contrário, a ameaça da “perfeição”, seja a da mãe ou a de um analista, sempre com a “Verdade”108. Fora esse caso, a falha não deixa de acontecer. Basta que o analista cumpra sua tarefa, interprete, para ter todas as chances de acertar fora... ou pior, acertar (ferir) no ponto certo.

 

Gêneses da temporalidade

“Desde a última sessão...”, “no início, quando eu vinha aqui...” &– é difícil descrever como estas palavras muito simples, para existirem simplesmente, supõem em alguns sujeitos um parto difícil, até mesmo improvável ou, em todo caso, nunca garantido. “Desde, depois, antes, quando...”, estes marcadores elementares do tempo apareceram dissimuladamente no decorrer da análise de Aurora. Quando percebi, já estavam instalados. Inexistiram durante um longo tempo, mas se tornarem insistentes. Não havia uma sessão em que a primeira palavra não fosse “antes” ou “depois”. Numa formulação anterior àquelas da Estética transcendental, Kant escreve: “Ignoro o sentido da palavra depois sem antes compreender o conceito de tempo”. O conceito serve, mas permanece uma forma vazia enquanto a psique não tiver deixado nele sua marca. Do bom senso de Agostinho à evidência em Husserl, as reflexões filosóficas sobre o tempo têm geralmente um mesmo ponto de partida: a idéia de que a “consciência íntima do tempo” pertence ao patrimônio comum, que o tempo informa a priori a sensibilidade e que para o homem nada é mais “familiar” que sua existência no tempo. “O que é então o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei...”. Aurora &– e muitos outros como ela, pacientes sem história &– não é Agostinho; ela não detém esse saber íntimo.

Para mim, isso é uma descoberta tão inesperada quanto privilegiada da experiência analítica, ou seja, perceber, indo de encontro a um kantismo ingênuo, que o tempo não é um dado imediato da subjetividade. A temporalidade, as temporalidades têm uma gênese psíquica mais ou menos cumprida, mais ou menos bem-sucedida, muitas vezes fracassada, esboçada, às vezes até mesmo não constituída. A inscrição psíquica no tempo, a temporalização, não é um dado, é quando muito um resultado. Afirmando a atemporalidade do inconsciente, Freud foi o primeiro a seguir essa pista, destacando que “o tempo não é uma forma necessária de nosso pensamento”109. Mas se, por um lado, Freud atribui ao sistema percepção-consciência a tarefa de constituir nossa representação do tempo, por outro, não chega a questionar a generalidade de uma “consciência íntima do tempo”110.

A temporalidade é uma forma empírica da vida psíquica, cuja variedade dos aspectos e, primeiramente, o advento são submetidos à experiência. Talvez seja prudente fazer aqui algumas distinções. Através dos ciclos circadianos, o homem-animal não ignora o tempo biológico, atrelado também ao tempo cósmico: ativa-se de dia e dorme à noite, planta em março111 e não fica sexualmente insensível ao aumento da seiva na primavera. Mas esse tempo só diz respeito à psicanálise quando o programa está desregulado, desadaptado, quando os ponteiros do relógio interno enlouquecem, a exemplo daquele que sofre de insônia e escreve sua obra inteira às três horas da manhã &– é a hora de Cioran e De l’inconvénient d’être né (O inconveniente de ter nascido), do depressivo que não sai mais de debaixo do cobertor ou do neurótico que se deprime com a chegada da primavera112. A não-inscrição psíquica no tempo também não significa uma incapacidade de submeter-se ao tempo social. Para isso, basta a agenda, verdadeiro eu auxiliar. Se Aurora sempre chega à sessão com um atraso mínimo não é por falta de ajuste &– embora tenha escolhido um relógio de pulso com um mostrador sem números &–, e sim para não correr o risco de uma chegada prematura, in-esperada.

Para os pacientes para os quais a psicanálise foi inventada, “o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une.”113 O presente da transferência leva, de um lado, à rememoração do infantil e, de outro, à expectativa, ao desejo da mudança. Aurora e os seus se movem numa outra dimensão. Dos três tempos, nenhum é completamente traçado. É evidente que Aurora não é totalmente desprovida de lembranças, mas independentemente de sua raridade, as lembranças da primeira infância na maioria das vezes são constituídas por aquilo que lhe foi relatado; para outros pacientes, as lembranças reduzem-se a algumas fotos. A ausência de lembranças da infância nunca é falta de memória, é sempre falta de história. Tal como o passado, o futuro não é construído. Prever as férias (vacances) (vacance=vazio) lança um véu branco (blank) sobre todo o pensamento. Do projeto, ela não tem nenhuma prática, nem mesmo a idéia propriamente falando. Até mesmo o futuro imediato é mal manejado. “Mais tarde”, depois da análise ter gerado o tempo, Aurora falará das sessões transferidas: “antes”, tinha de anotá-las na sua agenda assim que saia do consultório, senão não conseguia guardar a informação, mas “agora” não é mais necessário anotar, ao contrário, isso é registrado sem que ela consiga esquecer.

Dos três tempos, a ausência do presente é provavelmente a mais impressionante. Neste aspecto, Ida superou sensivelmente Aurora, conseguindo nunca estar lá, sem nunca ter faltado a uma sessão. Para Aurora, isso foi muito mais difícil. O presente, a presença, a ameaçou desde a primeira entrevista. Perder de vista o outro que ela veio ver, deitando-se no divã, permitiu-lhe, no entanto, restabelecer-se: falando continuamente desde o instante em que sua cabeça tocava a almofada, até o momento em que eu conseguia encaixar a minha frase “bom, está na hora...”, ela falava também para não dizer nada, para dizer nada. Sem ser reduzido a nada, o presente, apesar de tudo, se encontrava neutralizado.

Como é que nasce o tempo quando nasce tardiamente? A experiência de cada analista é inevitavelmente restrita. Aurora atualiza apenas uma figura dentre outras possíveis. Mas antes de ser a questão singular daqueles cuja vida tomou o rumo neurótico comum, a construção da temporalidade é uma questão geral. Um indício: os psicólogos de crianças, desde Gesell e Piaget, destacaram que os marcadores dêiticos e sintáticos do tempo são dominados tardiamente, quando o essencial da linguagem já está instalado. No caso da palavra “agora”, é bastante rápido &– “imediatamente” é até mesmo compreendido, exigido, antes da aquisição da linguagem &–, mas quanto à expressão “em breve”, é preciso esperar dois anos; três anos para os termos “amanhã” e “ontem”114. O termo “mais tarde” fica para muito mais tarde! Entende-se que o “não”, o inter-dito, a constituição do princípio de realidade são os vetores dessa gênese. É o eu, escreve Freud, que “instaura a organização temporal dos processos psíquicos”115. A atemporalidade dos processos primários, do sistema inconsciente, impõe a idéia de que o tempo só pode ser gerado contra o lugar psíquico onde reina o princípio de prazer. É ainda mais verdadeiro quando o inconsciente torna-se id.

A experiência de Aurora, no entanto, faz pensar que a produção da temporalidade está longe de se limitar à apropriação subjetiva do interdito, o que o “neurótico leal” quase não permite explorar. Fora a seqüência das primeiras entrevistas, o primeiro acontecimento no tratamento de Aurora não foi nem uma idéia incidente nem uma interpretação, mas o encontro inesperado com as fronteiras do dispositivo. Ela compreendeu, para sua grande surpresa, que não precisaria marcar hora na volta das férias de verão. A sessão seria na mesma hora do dia, no mesmo dia da semana. A divisão do tempo, passado-presente-futuro, tem como pré-requisito e condição psíquica a existência de um continuum. Nesse ponto, é decisiva a contribuição de Winnicott em relação à continuidade de ser (amado). Sem dispor do fundo que esta continuidade constitui, é impossível brincar com o carretel, brincar com a ausência, agir sobre ela. É impossível fazer o jogo de passado-futuro, de partiu-voltará116. A integração da alternância presença-ausência depende da íntima certeza de uma continuity of being. O contrário de “contínuo” não é “descontínuo”, mas imprevisível. “Meus casos mais desesperados, escreve Winnicott, tiveram mães que oscilavam entre ingerência e negligência.”117 Presença-ausência é uma diferença, a oposição das duas leva a uma dialética, uma simbolização. O “par” continuidade (de existência)&– imprevisibilidade é como o par matéria&–antimatéria, não pode senão levar à destruição de uma pela outra. É desnecessário lembrar que o episódio da sessão anulada marca tanto a violência destrutiva do imprevisto, repetida no agir contratransferencial, quanto o início de sua integração-transformação, sua fecundidade, com um fundo de confiança que se tornou suficientemente bom.

O nascimento do tempo é permitido pela permanência, aquela que o eu conquista ao longo das primeiras experiências, mas o eu só pode constituir-se, diferenciar-se se alguma coisa acontecer. É nesse ponto, no momento do acontecimento, que o golpe, o après-coup traz sua contribuição decisiva.

O presente não é somente o primeiro tempo, é aquele pelo qual o tempo é inaugurado, o tempo primeiro. O presente e o ausente, um não existe sem o outro. O tratamento de Aurora logo impôs um contraste: o vazio de sua presença, a intensidade de sua ausência. Ela diz nada ou, em todo caso, faz o melhor que pode para consegui-lo: palavras tomadas e retomadas, estendidas, esvaziadas. É impossível para mim “contar-me” a sessão après-coup. Ela não tem lembranças de infância, e eu não tenho lembranças de sessão. Ela está presente de uma outra forma quando não vem à sessão. Independentemente dos dois meses patéticos já mencionados, Aurora tirou o máximo proveito do que o “pagamento das sessões faltadas” permite. Faltadas? A palavra “pronta” não convém. “Ausentadas” seria mais correto. Onde quer que esteja na hora da sessão, Aurora tem um sentimento indefinível, algo inatual. Sem exceção, ela nunca avisa; minha espera depende disso. Mais tarde, quando esses atos “ascenderem à significação”, ela poderá comentar: “Se eu avisar, a sessão não acontece”. De ausência em ausência, Aurora explora sua aptidão para a sobrevivência, minha aptidão para a sua sobrevivência. Talvez seja na intranqüilidade do Nebenmensch que se abre a primeira brecha constitutiva do tempo &– como a continuidade de seu investimento funda a continuidade de ser do recém-nascido. O primeiro “eu” é um outro, o primeiro tempo também. To be or not to be, isso depende de ser ou não ser esperado. Ele (primeiro ela) me espera, logo existo.

Nesse jogo da psicanálise in absentia, claramente menos jubiloso que o do carretel, embora não sem relação com ele, o presente, por ser raro a esse ponto, acaba por se tornar vivo. A língua diz a verdade, pois tem apenas uma palavra para expressar “presente” e “presença”. Para o presente, é necessário haver dois, todo presente é interhumano, interpsíquico. O presente é uma coincidência, do ser com o tempo. Só a existência psíquica de um estar “em presença de” dá ao presente sua eventual consistência118. As condições de possibilidade psíquica do efeito de après-coup estão assim reunidas: o golpe, o trauma, o acontecimento é a vida do presente; o après-coup acrescenta aí a abertura para o passado.

Certo dia, mal acabara de deitar-se no divã, Aurora diz: “Eu poderia morrer aqui de boca aberta, você não faria nada” &– a agonia do tom nos deixava desta vez a mil léguas do “dizer nada”. Mais tarde, depois de anos de análise, volta a lembrança dessa irrupção e de seu desespero &– mas antes não havia “lembrança”, nem mesmo “antes”. Ela rememora então que certamente não teria suportado que eu “fizesse” alguma coisa. Interpretar, por exemplo. As palavras, no entanto, estavam disponíveis. Ao contrário da seqüência anterior insondável, desta vez, o sentido constituiu-se, e a repetição transferencial do trauma primeiro pôde ser exprimida. Fazia apenas alguns meses que Aurora tinha nascido quando a anorexia chegou a pôr em risco sua vida. Os pais estando excedidos pelas circunstâncias, foi um amigo da família que a salvou. O que é que permite, então, ao analista resistir à tentação das palavras, aquelas que se apressam em apreender, compreender... alimentar, opor sua competência àquela que, outrora, faltou? Nada, a não ser a intuição do instante, as “pequenas percepções” que a constituem: imaginar que a palavra visaria primeiramente a acalmar a angústia contratransferencial, pressentir a violência que existiria em remeter muito apressadamente a mulher de hoje ao bebê de ontem, perceber que a criação do acontecimento, de seu presente, importa mais que sua tradução, não provocar um curto-circuito no tempo que separa o golpe do seu depois. Viver antes de contar, ser antes de conjugar: “hoje, aqui como outrora, em outro lugar...”

Antes da questão das regressões profundas no tratamento terem mobilizado a reflexão teórica nos anos 50119, Freud, às voltas com as inovações de Rank e Ferenczi, já havia destacado a forma alucinatória que assume, de modo privilegiado, o retorno transferencial dos acontecimentos esquecidos dos primeiros anos, no momento em que a criança dispõe quando muito dos primeiros elementos da palavra120. O que está em jogo poderia resumir-se da seguinte maneira, correndo o risco de exagero: ou o movimento regressivo do tratamento permite alcançar o ponto em que a atuação do inconsciente tem a força que a alucinação lhe dá, ou “a análise é para nada”. O après-coup dos traumas precoces, sua “ascensão à significação”, sua colocação no passado, sua historicização, sua transformação, não está fora do alcance da experiência analítica, tem como condição o “presente absoluto” da alucinação. É impossível afirmar que essa condição seja por si só suficiente, mas é necessária. “A experiência inicial da primitive agony, escreve Winnicott, não pode pôr-se no passado sem que o eu tenha podido antes recolhê-la na experiência temporal de seu próprio presente” 121.

“Eu poderia morrer aqui, você não faria nada”... A tensão, a violência desse momento o situa o mais próximo possível de um presente vivo122. Entretanto, Aurora não grita: “estou morrendo, você não faz nada”. A percepção do futuro do pretérito, no momento trágico do enunciado, certamente ficou quando muito subliminal. Seja como for, o indício temporal já assinala o après mais que o coup em si 123. O futuro do pretérito é irmão do pretérito imperfeito, um tempo que marca mais que qualquer outro a existência do passado, seu movimento, sua vida, sua duração. E a existência do passado supõe que o presente, o encontro do ser com o tempo, já tenha acontecido; que, se não escapou aos dois protagonistas da situação, os “possuiu”.

A seqüência pertence ao playing da análise. O futuro do pretérito refaz a história, mais fortemente, a imagina, a cria, desvenda sua natureza paradoxal de ficção. A fantasia precede a lembrança e, sem dúvida, a permite. O desespero descobre que ele desespera do passado. É sempre este que deve ser mudado, ou melhor, inventado. O analista está acostumado a ver a história ser retraçada, quando uma lembrança muitas vezes evocada é, “de repente”, considerada de um outro ponto de vista, que permite ao templo de Júpiter Capitolino aparecer ao mesmo tempo em que se desloca um pouco o Palazzo Cafarelli. É por ser uma narrativa que a história pode ser reescrita. É certamente mais surpreendente quando é a história em si, categoria psíquica até então inexistente, que a análise vê nascer. “No início, quando eu vinha aqui...”, a primeira história, a história primeira é então a da transferência. Uma história às vezes capaz de rememorar sua pré-história, quando o tempo ainda não estava no tempo. Aurora: “você me disse três sessões, mas se você tivesse dito uma sessão ou todos os dias teria sido a mesma coisa”.

 

A psicanálise, uma outra cena de sedução

É ao mesmo tempo uma hipótese e uma convicção a idéia de uma profunda cumplicidade entre o fenômeno de après-coup e a dinâmica da transferência. O trauma in praesentia, “o acontecimento real”, diz Freud124, e o advento do sentido, tratase de uma conjunção tão característica do efeito de après-coup quanto do par transferência/ interpretação. Tal concepção envolve inevitavelmente a idéia de conjunto que se tem da psicanálise, na teoria e na prática, e apóia-se numa representação implícita do tratamento analítico. O exemplo de Aurora permite traçar as linhas dessa concepção. De que natureza é o trauma que a palavra “prematuração” condensa, já simboliza, e que a transferência atualiza? Não é muito arriscado supor que ele reúne quase todos os ingredientes: o vital, a destrutividade, a aspiração pelo vácuo, o sexual, sob o duplo registro do narcísico e do objetal. Só que no cerne dessa diversidade, é no sexual infantil que se apóia o tratamento (inter)psíquico para operar suas transformações. É dele que pode surgir o poder de metamorfose: tornar-se, no término desses dois meses de uma cena primitiva que não acaba, uma criança esperada, desejada. Nascer finalmente125! Falta ao vital, assim como à destrutividade, o que caracteriza as pulsões sexuais &– pelo menos, sob sua face libido- de objeto: “a extraordinária plasticidade”, uma plasticidade para a qual o efeito transformador de après-coup é um operador essencial. A tomada em conta dos traumas precoces, a ferida que estes produzem em Narciso, a confrontação com o recalcado originário, com as primeiras impressões (frappes) não tratadas, impõem uma reflexão prática acerca das modalidades da regressão e do trabalho da transferência. A meu ver, não mudam nada naquilo que faz a sexualidade infantil da psicanálise. A primeira vista, a segunda tópica mantém à distância o sexual infantil, ou mais fundamentalmente, torna mais complexo o seu sentido, o desloca: ele era objeto da investigação, da análise, mas se torna antes de tudo seu meio.

Falou-se da contribuição do fenômeno de après-coup para uma teoria do recalque. Recorrer a ele para retomar a questão enigmática do recalque originário é ainda mais premente.

O recalque originário. “A correção après-coup (die nachträgliche Korrektur) do processo do recalque originário seria, pois, a operação propriamente dita da terapia analítica”.126 Existem duas maneiras de interpretar esta frase tardia de Freud: considerá-la como a simples repetição daquilo que ele afirmou durante quarenta anos ou vê-la como uma verdadeira modificação da perspectiva prática, uma virada testamentária, podendo até exceder a intenção do autor. Eu escolho a segunda hipótese. Entre as duas interpretações, o que faz a diferença não é o termo après-coup e sim a palavra “originário”. O levantamento, a retirada après-coup do recalque, o recalque propriamente dito, que sempre é um “pós-recalque”, foi nesses termos que Freud definiu o objetivo prático. A frase de 1937, ao mesmo tempo em que desloca a questão para o originário, eleva um tanto a dificuldade, fala mais de “correção” que de “eliminação” e conjuga-se no hipotético futuro do pretérito127. A particularidade do “recalcado” originário é o fato de que não sofreu o recalque, permaneceu um traço, uma impressão (frappe) não tratada, não corrigida. É, portanto, atribuir ao tratamento analítico a tarefa de ter êxito onde o (pós) recalque fracassou! Não recalcar, é claro, mas transformar...

Não podemos separar as palavras de Freud de seu contexto: Análise terminável, análise interminável é ao mesmo tempo um debate com Ferenczi e uma homenagem póstuma ao amigo duplamente perdido, pela morte e pela divergência. O psicanalista húngaro escreve: “não podemos nos dar por satisfeitos com uma análise que não tenha obtido a reprodução real dos processos traumáticos do recalque originário”128. Entre real e après-coup, um mundo separa os dois pontos de vista. Mas antes da separação, há a aproximação. Freud segue Ferenciz em seu retorno aos traumas precoces. Ele mesmo destaca a solidariedade entre as formas alucinatórias da repetição e as experiências pré-verbais. Mas não é por ser a mãe &– o que a alucinação significa &– que o analista deve tomar-se por ela. Não se pode ao mesmo tempo agir a sedução e permitir sua análise, seu desligamento. O desconhecimento do efeito de après-coup coloca Ferenczi num trágico impasse.

Ter êxito onde o recalque fracassou... As provocações de Lacan nesse sentido não deixam de ser interessantes. No fundo, diz ele, a neurose infantil do Homem dos Lobos, consistindo na simbolização de uma primeira Prägung sem sentido, “é exatamente a mesma coisa que uma análise.”129 Ela faz a reintegração do passado, introduz no jogo dos símbolos a própria Prägung; nachträglich, num jogo retroativo. Entre o momento da análise e o momento da infância, que vai da impressão (frappe) (percepção, inscrição do coito) ao recalque (após o sonho), “não existe nenhuma diferença essencial.” Lacan, apesar disso, mantém uma distância: na infância, “ninguém está lá para fornecer a palavra.” Freud não é tão radical assim, mas dá os primeiros passos nessa direção: primeiramente, fazendo coincidir o momento do recalque, o pós-recalque, com o momento do après-coup, e em seguida, considerando “negligenciável” a distância (cerca de vinte anos) que separa o après-coup do sonho traumático do “segundo caso de après-coup” no tratamento analítico130. Será que são legítimas essas abreviações, que fazem a economia do trabalho do inconsciente no intervalo de tempo, assim como do acontecimento da transferência? A discussão é muito longa, por isso, detenho-me aqui somente na parte mais fecunda das considerações de Freud e Lacan. Como destaca Freud, “um recalque é algo diferente de uma recusa”131, pois transforma o que toca, faz da mais doce das mães uma puta e uma bruxa e do mais carinhoso dos pais um déspota oriental. A fantasia inconsciente é o elemento do recalcado. É um material transformado pelo auto-erotismo, já simbolizado, que o trabalho analítico procura trazer à tona, liberar daquilo que o entrava. As impressões (frappes) mudas do recalque originário marcam, ao contrário, o fracasso dessa metamorfose. O recalcado propriamente dito, secundário, é como a lava de um vulcão que busca uma saída; a impressão (frappé) do recalcado originário é como um grão de areia na agulha de um toca-discos ou um arranhão no disco que o faz repetir-se. Entre recalcado originário e pós-recalcado, o fenômeno de après-coup, auxiliar propriamente decisivo do auto-erotismo, faz a diferença.

Neurose infantil (da criança russa), neurose de transferência132 (de Aurora), nos dois casos, é um golpe, um après-coup que desencadeia o movimento de simbolização: o sonho dos lobos para Sergueï e a sessão cancelada para Aurora &– a menos que se considere a primeira entrevista preliminar. Sedução traumática do sonho no primeiro caso e sedução traumática do encontro analítico no segundo.

 

A sexualidade infantil da psicanálise

A tarefa prática clássica, a que visa o levantamento, a eliminação, dos recalques, já não é absolutamente garantida e o fracasso não lhe é poupado. Quem nem sempre consegue o mínimo, pode ainda assim conseguir o máximo? “O auto-erotismo da transferência”133 teria os meios para ter êxito onde o recalque fracassou, ou até mesmo fazer melhor, permitindo àquilo que, dos traumas precoces, ficou enquistado, sem sentido, “ascender à significação” e, no melhor dos casos, historicizar- se? A dificuldade da questão dispensa respostas simplistas, e, desta vez, os “êxitos” são mais ricos em ensinamentos que os “fracassos”; desde que, obviamente, não se “positive” essa idéia de êxito, a simbolização de um trauma precoce nunca faz economia de um ódio ou de um abandono, de um sentimento doloroso de destruição ou perda, quando não de uma depressão.

Se o tratamento analítico tem esse poder &– certamente eventual e parcial, mas poder mesmo assim &– de jogar de novo as primeiras cartas distribuídas, ao que deve isso? No testemunho que Margaret Little dá de sua análise com Winnicott, ela apresenta para esta pergunta uma resposta involuntária e contrária à sua intenção explícita. A sexualidade infantil, escreve Little, “não pode ter um propósito ou qualquer significação enquanto não houver a certeza de sua própria existência, sua sobrevivência e sua identidade.”134 Todo o seu texto mostra o inverso e, em primeiro lugar, o próprio gesto desse testemunho, sua transgressão, verdadeira declaração de amor de transferência (não liquidado). Somam-se a isso muitos detalhes, principalmente o vai-e-vem entre vida sexual e vida analítica e algumas ingenuidades: a “pequena Margaret” recebe, como sinal de maternagem, os docinhos que seu analista lhe oferece numa ocasião no fim da sessão. Como se nossas madeleines e seus cakes fossem para alimentar. Se a sexualidade infantil não se envolve nos assuntos de cozinha, nunca haverá doces, presentes. Não existe um doce que seja inocente! Margaret Little busca o tratamento com uma questão vital, existencial (o que sou “eu mesma”?), mas é o amor de transferência que faz o trabalho de resolução, de transformação135. O raciocínio é o mesmo seguido por Freud em relação ao sonho. Enquanto pôde acreditar que o sonho era sempre realização de desejo, o sexual infantil constituiu seu verdadeiro conteúdo. Até o dia em que &– na segunda tópica &– Freud percebeu que, em certas condições traumáticas, o sexual passava para o outro lado: não era mais conteúdo, mas operador, transformador, força de trabalho. O mesmo movimento permitido pela atuação do inconsciente na transferência aplica-se ao après-coup. Agente da reorganização psíquica, o efeito de après-coup apóia-se na plasticidade pulsional. Será que revela o caráter sexual do primeiro golpe? A primeira impressão [frappe] sempre é um sexual pré-sexual? Ou será que sexualiza um trauma que não era sexualizado? A abertura da questão é mais interessante que a resposta, a qual, com esse grau de desconhecimento, não poderia senão ser redutora.

Com ou sem doce, a psicanálise é uma cena de sedução, a que nasce do encontro entre o mais íntimo e o mais estranho e permite que o fenômeno de après-coup, descoberto com a teoria da sedução, se encontre em terra natal. O gesto sedutor nada mais é que o enunciado da regra fundamental: “diga tudo o que passa...”. O Homem dos Ratos é o primeiro a ouvi-la: conhecemos o que vem a seguir, a alucinação do suplício que o faz levantar precipitadamente do divã para fugir do analista cruel. Ao estabelecer o par associação livre/ escuta flutuante, a genialidade de Freud consistiu em ter submetido ao regime polimorfo e auto-erótico da sexualidade infantil tanto a palavra do paciente quanto a escuta do analista. As condições psíquicas de um dispositivo desse tipo estão longe de estar sempre reunidas, mas qual é a finalidade do Playing técnico de Winnicott senão estabelecê-las ou mesmo inventá-las.

A situação analítica repete em sua forma, como sustentou Jean Laplanche, a assimetria do infans e do Nebenmensch. Essa repetição não é um simples decalque; o “comércio” do analista com o analisando reúne dois adultos, a criança de antes do inconsciente nunca se apresenta à análise. Se a analogia tem fundamento é pela idéia de que a assimetria é originária, de que deixa para sempre na experiência humana sua marca e seu enigma, e de que seu acontecimento é muitas vezes reproduzido, principalmente logo que se instaura a situação analítica.

O amor é cego. É porque o amor de transferência (e de contratransferência) é um “verdadeiro amor” que ele não deixa de gerar sua parte de ilusões e, sobretudo, a ilusão de um acordo, uma conivência, uma partilha e até mesmo uma aliança (terapêutica)! Talvez até um divórcio por consentimento mútuo: “foi combinado com meu analista que minha análise terminaria”. Há tantas maneiras de ignorar a insuportável assimetria. Assim é a vida da análise... desde que esta não se prive de submeter ao seu trabalho de desligamento as ilusões geradas pelo amor. Mas o que pensar dessas teorias sexuais, ao mesmo tempo infantis e analíticas, insidiosamente fomentadas pelo movimento do tratamento, que se transformam apenas em teorias psicanalíticas? Fala-se de “compartilhamento de afeto” ou de “relação de transferência/contratransferência”. Por certo, estas últimas palavras tão bárbaras, sinceramente, não são palavras do amor, mas nem por isso deixam de tornar simétrico o que justamente não poderia sê-lo. Não há mais relação analítica que relação sexual. Uma análise nunca ocorrerá entre pessoas que se entendem. Nada é mais distante da idéia da psicanálise que a idéia da “mutualidade”. Um trauma, mesmo precoce, pode dar lugar à metamorfose, desde que o acontecimento real e après-coup da transferência lhe dêem oportunidade para isso, mas a assimetria psíquica que constitui sua fonte e seu pano de fundo, por outro lado, não pode ser de modo algum anulada; assim como também não pode ser eliminada a alteridade do inconsciente.

 

Últimas palavras

Um Maintenant tombe nez à nez avec son Jadis.
(Um agora fica cara a cara com seu passado).

Pascal Quignard, La nuit sexuelle.

O tempo do après-coup não é o tempo que passa, tampouco o “que não passa”; é o tempo que transforma, que às vezes metamorfoseia. Para isso, não há idade, pois para uma paciente, a “mulher de 30 anos” pode não ser mais que uma lembrança longínqua, mas seus sonhos não ganharam uma ruga sequer, nem seu amor de transferência. O número de anos não é um dado “objetivo”, nem a realidade traumática. Lembro- me daquela paciente que constatou que sua vida interior nunca fora tão intensa e remanejada quanto no momento de seu câncer. No “trabalho da morte”136, Michel de M’Uzan mostra como uma análise a dois passos da morte, uma análise em fase terminal, ainda pode fazer surgir o acontecimento, aquele que permite mudar o passado, renovar sua narrativa.

Exceto quando mais nada distingue o tempo da morte. Em psicanálise, existem apenas verdades provisórias, definitivamente provisórias. Isso se deve, em primeiro lugar, ao caráter incognoscível em primeira pessoa de seu objeto, o inconsciente, o id, mas também ao polimorfismo da psique e à nossa incapacidade de poder abarcá-la em um único golpe de vista, em uma única teoria &– a não ser que a psicanálise se dissolva na generalidade filosófica. A fórmula freudiana consagrada que afirma a atemporalidade do inconsciente não foge a esta crítica. Cada analista verifica pela experiência, primeiramente pela experiência da repetição transferencial, a pertinência da seguinte afirmação: “No inconsciente nada pode ser levado ao fim, nada é passado nem esquecido”. 137 De todas as memórias, ele é a mais viva. A humilhação sofrida na infância, desde que tenha estabelecido o contato com um motivo recalcado, age décadas mais tarde como se fosse recente. Um dos significados mais preciosos dessa atemporalidade é o de um regime alucinatório que age no cerne da vida psíquica, independentemente de qualquer referência à psicose. Do sonho à transferência, passando pela fantasia, suas manifestações são múltiplas. Quando nada separa o desejar e o fazer, quando dizer é fazer, quando o desejo é realizado. A atemporalidade tem, sem dúvida, outras facetas, principalmente aquela que carrega o traço da infantia, de um “tempo” anterior ao tempo, quando este ainda não estava psiquicamente constituído.

Se a fórmula freudiana é criticável não é simplesmente em constatar a seguinte evidência: o inconsciente não é um dado, ele tem uma gênese e, mesmo que apague o tempo dentro dele, não deixa de ser o resultado de uma evolução, de um processo... Esse é o ponto de vista de um metapsicólogo, quando a atemporalidade define uma posição da Psique. É de um outro lugar da Psique que surge a crítica, quando Narciso entra em cena. Se Narciso está fora do tempo, não é por ser atemporal, mas eterno. Ao inverso da atemporalidade, o tempo está no princípio da eternidade: a eternidade é contra o tempo, ela é mesmo somente isso, sua razão de ser é desmenti-lo. É eterno aquilo que não é temporal. Fantasia narcísica por excelência, a eternidade, a vida eterna, afirma um tempo fora do tempo, um presente contínuo sem começo nem fim, principalmente sem fim. Um tempo sem coup, sem après-coup. Não é necessário sair do registro do sexual &– na direção do vital ou da destrutividade &– para que seja entravada a dinâmica do après-coup; para isso, basta o narcisismo, que não odeia nada tanto quanto a mudança.

A morte e a eternidade são como frente e verso da mesma folha, o que as opõe é o que as reúne. Com o narcisismo, a morte, a morte própria, introduz-se na psicanálise e no inconsciente. Enquanto o ponto de vista sobre a psique for edípico, só há o assassinato na cena. O assassinato é a morte de um outro. A morte, aquela inventada pelo narcisismo, é sua própria morte &– aquela que o suicídio, perfeito gesto narcísico, tenta suprimir. Do mesmo modo que o tempo não é uma forma a priori da vida psíquica, a morte não é um dado. O homem não é um ser-para-a-morte, ele se torna &– sobretudo tardiamente, mas às vezes de imediato. É a infelicidade do filho de “substituição”, aquele que nasce da morte do anterior.

Do ponto de vista de Narciso, o tempo muda de natureza, torna-se o mais primário dos processos. A marcha do tempo é inexorável... É impossível para o psicanalista, a partir da polifonia de sua experiência, tomar para si essas generalidades perfeitamente compartilhadas. Isso só é verdadeiro para a psique quando Narciso, que se tornou o senhor em sua morada, impõe ao tempo a forma da compulsão, da destrutividade, da corrupção. O tempo causa injúria, torna-se o corpo mais estranho. Como Dorian Gray, o duplo de Oscar Wilde, minado pela angústia de ver cada instante afastá-lo definitivamente do ícone de sua própria perfeição que o retrato lhe remete, mais espelho ou “fonte límpida” que quadro. Tal qual Narciso de Ovídio, pode- se morrer “vítima de seus próprios olhos”. Consumido pelo amor, “ele perdeu aquela tez cuja brancura coloria-se de um brilho dourado, perdeu seu ar de saúde...” Moi-même, moi-m’aime (eu mesmo, eu me amo)... O tempo, revisto e odiado por Narciso, ultraja a identidade. Se esta nunca se tornou verdadeiramente uma noção psicanalítica foi porque a análise se preocupou, sobretudo, em desvendar a sua natureza de fantasia. Identitas, a qualidade do que permanece o mesmo, a identidade substancial, é um sonho de eternidade. Diferentemente do inconsciente, Narciso não ignora a negação, ele a recusa a ponto de aboli-la. “Podia passar tanto por uma criança quanto por um rapaz”, assim como era desejado tanto pelos rapazes quanto pelas moças138. A idade, como o sexo, não faz diferença.

Do ponto de vista da libido objetal, “o tempo é epônimo da falta”139. Visto da libido narcísica, é epônimo da morte. É Narciso que escreve o Tempo com maiúscula. O tempo objetal nasce da ausência e o Tempo narcísico, da impotência, de uma megalomania negativa. “É impossível tampar o buraco por onde escoa a água de nosso tempo” (Valéry). O tempo objetal é perdido, leva à nostalgia, a uma erótica da nostalgia140. O Tempo narcísico é inexorável, leva apenas à corrupção, eventualmente a uma estética da corrupção (Beckett, Lucian Freud...) ou à sua denegação (a vida religiosa). É muito difícil, então, para o après-coup, produzir ainda seu efeito, pôr “cara a cara” presente e passado. Narciso é contra todos os remanejamentos, a favor da imobilidade. “Morrer... você não pode me perguntar o que isso evoca em mim &– diz Jean &– quando se morre é para sempre”.

 

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Endereço para correspondência
Jacques André
18 rue Didot
75014 &– Paris &– France
Tel.: 33 1 454369
E-mail: andre.jac@wanadoo.fr

Recebido: 30/05/2008
Aceito: 10/07/2008

 

 

Tradução: Vanise Dresch
* Este texto refere-se ao primeiro relatório para o 67º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), cujo tema é L’après-coup, a ser realizado em abril 2009, em Paris. O CPLF, organizado pela Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e pela Associação Psicanalítica da França (APF), acontece anualmente e concentra a discussão de sua temática em torno de dois textos, considerados disparadores de reflexão, denominados “relatórios”, escritos por dois renomados psicanalistas de cada uma das instituições organizadoras. Esses relatórios são exaustivamente debatidos de antemão pelos grupos de estudos de diferentes países, entre eles o Brasil, ligados ao CPFL, os quais elaboram um texto-comentário, publicado previamente ao Congresso.
** Psicanalista pela Sociedade Psicanalítica de Paris (APF).
1 OCF (S. Freud, OEuvres complètes, PUF), t. XV, 183 n. 1. Freud, 1988 , vol. 15, p. 183.
2 S. Freud, Passagèreté (1916), OCF, XIII, 327. Freud, 1988, vol. 13, p. 327.
3 M. Klein, Le deuil et ses rapports avec les états maniaco-dépressifs (1940), in Essais de psychanalyse, Payot, 1980.
4 Aqui, como em outros momentos, quando faço referência à língua alemã, sou grato a Alexandrine Schniewind por suas considerações germanistas.
5 O que acontece com o termo après-coup também acontece com muitas outras noções freudianas, estando muito presentes em determinados momentos e ausentes em outros, mas geralmente é para ressurgirem com força um pouco mais adiante: o efeito de après-coup é citado principalmente em Análise terminável e interminável (1937) (cf. Guttman, & Parrish, 1995).
6 Revue française de psychanalyse, 2006, p. 645.
7 OCF XIII, 107 (et 93). Freud, 1988, vol. 13, p. 107.
8 Ele telegrafa suas impressões a Eitington: “Li conferência Ferenczi inofensivo tolo inabordável impressão desagradável” (Cf. Freud, S. & Ferenczi, S. Correspondance 1920-1933. Paris: Calman-Lévy, 2000, p. 503, n. 1.
9 Analyse d’enfants avec des adultes (1931), Psychanalyse IV, Payot, 1982, p. 1. Como dizia Granoff : « Devemos a Ferenczi por seus erros ».
10 Quinze études psychanalytiques sur le temps. Traumatisme et après-coup, Privat, 1982.
11 Mon enseignement, Seuil, 2005, p.63. O momento (1967) é de rancor (ser rancoroso, em alemão, se diz nachtragend), e é, justamente, aos autores do Vocabulaire que se dirigem essas palavras. No entanto, diferentemente da obra citada anteriormente, os autores do Vocabulaire destacam o principal mérito de Lacan.
12 La scission de 1953, Ornicar, 1976, n°7, p. 52-53.
13 O Boletim 61 (2007) da FEP que publica as apresentações da Conferência de Barcelona, “Temps, hors-temps”, demonstra por seus artigos e suas bibliografias o intenso recurso à noção de après-coup atualmente.
14 Segundo a fórmula de François Gantheret. Une forme de temps, Nouvelle Revue de Psychanalyse, 41, 1990, p. 164.
15 OCF, XII, p. 189.
16 Talvez por isso Lacan considerasse um pouco fraca essa tradução.
17 O termo “desamparo” (des-amparo) em português parece não apresentar a mesma dificuldade do francês. (N.T.).
18 L’après-coup, PUF, 2006, p. 72 sq. Convém observar que o termo après-coup é hoje mantido em francês por vários autores de língua inglesa (Cf. Dana Birksted-Breen, Time and the après-coup, International Journal of Psychoanalysis, 84, 2003). Em italiano também, no lugar da tradução corrente por posteriorità.
19 Esse ponto está no centro da interpretação do termo por Jean Laplanche.
20 Palavras ditas pelas crianças quando querem andar “mais uma volta de carrossel”.
21 Freud, L’interprétation du rêve (ajout de 1914), OCF IV, p. 602.
22 OCF XII, p. 176.
23 Dream psychology and the analytic situation, The Psychoanalytic Quarterly,19, 25, pp. 169-199.
24 Pierre Fédida, Le site de l’étranger, PUF, 1995, p. 57.
25 OCF XV, 104. «Faça-se de criança!», sem dúvida, é Ferenczi, «enfant terrible», que, em seus últimos textos, mais se aproxima dessa recomendação.
26 Refusement indicando com a escolha da palavra e sua colocação entre aspas a referência indireta à discussão ainda corrente sobre a tradução do termo Versagung, empregado por Freud e, por muitos anos, traduzido em várias línguas por frustração, tradução hoje contestada. Quem propôs a tradução por refusement foi Laplanche em seu Traduire Freud, Lacan propôs traduzir por renúncia em “Situação da psicanálise em 1956” (Escritos). Luiz Hanns, em seu Dicionário comentado do alemão de Freud, também discute a tradução desse termo, explicitando todo seu campo semântico e propondo como tradução “privação” ou “impedimento” (N.T.).
27 Freud, OCF XVIII, p. 69.
28 Freud : “ …a prescrição segundo a qual a análise deve ser conduzida “na frustração””, Análise terminável e interminável (1937), in Résultats, idées, problèmes II, PUF, 1985, p. 246. Antigamente traduzido por “frustration”, Versagung é hoje traduzido por refusement nas OCF.
29 OCF X, p. 68.
30 L’analyse avec fin et l’analyse sans fin , op.cit, pp. 231-234.
31 Numa fórmula igualmente condensada, Heidegger escreve: “O fenômeno unitário de um futuro que, tendo sido, torna presente, nós denominamos temporalidade”. Être et temps, § 65.
32 J. Lacan, Écrits, Seuil, 1966, pp. 256-57.
33 Op.cit. p. 257.
34 Seminário XV, “L’acte psychanalytique”, sessão de 22 de novembro de 1967 (inédito). É desnecessário dizer que não se encontrará em Heidegger nenhum sinal de um trauma em dois tempos. Entre Freud e Heidegger, “apenas” o inconsciente faz a diferença. Mas o que Lacan designa como “jogo retroativo” está obviamente muito presente no autor de Sein und Zeit, para quem hermenêutica e historicidade são indissociáveis: “Só o caminho que regride nos leva adiante”, in Acheminement de la parole, Gallimard, p. 97.
35 Le Séminaire, Livre I, Les écrits techniques de Freud, séance du 19 mai 1954, Seuil, 1975, p. 215.
36 Ecrits, op.cit., pp. 256-257.
37 Ibid., pp. 244-252.
38 OCF XV, p. 106.
39 Ao comentar Lacan, ele próprio leitor de Hegel, Patrick Guyomard escreve: “O obsessivo, escravo que se esquivou diante do risco da morte, espera a morte do senhor, adia sua própria vida para mais tarde”. (Le temps de l’acte , posfácio do livro de Maud Mannoni, Un savoir qui ne se sait pas, Denoël, 1984).
40 OCF XV, p. 106.
41 “O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé”. Essas primeiras palavras do primeiro seminário são uma espécie de epígrafe, op.cit., p. 7.
42 Ecrits, op.cit, p. 315.
43 Esse ponto, como se disse, constitui a última contribuição de Jean Laplanche à teoria do après-coup. Entretanto, prefere-se interpsíquico a intersubjetivo porque, neste caso, não há sujeito para se apropriar &– ou mesmo para se dar conta &– do que acontece.
44 Écrits, op.cit., pp. 253-54.
45 “A falsa consistência da noção de contratransferência, sua voga e as bobagens que ela envolve explica servir aqui de álibi: o analista a evita ao considerar a ação que lhe cabe na produção da verdade”. “Variantes de la cure-type, in Ecrits, op.cit. p. 332.
46 “Le temps logique” (esse artigo de 1945 já contém o essencial de uma teorização da escansão), Ecrits, op.cit., pp. 210-211.
47 Cf. Marcel Détienne, Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque, Maspero, 1967. Détienne escreve: “O poeta é capaz de ver a Alétheia, ele é um “senhor de Verdade” (p. 24). E Lacan: “(O analista) é acima de tudo o senhor da verdade da qual o discurso [do paciente] é o progresso. É ele, acima de tudo, que pontua sua dialética”. Écrits, p. 313.
48 Matthieu, 19 e Lacan, «La chose freudienne », Écrits, op.cit., p. 409.
49 Jean-François Lyotard, L’inhumain, Galilée, 1988, p. 102.
50 Con, no original, tem o sentido manifesto de “idiota”, mas também é uma gíria para designar o órgão sexual feminino.
51 Pierre Fédida, La verticale de l’étranger, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n° 40, 1989, p. 189.
52 Cf. Jean-Luc Donnet, Le silence de la perlaboration, in La situation analysante, PUF, 2005.
53 “Deslocar” seria provavelmente mais apropriado que “subir”. É impossível simplesmente alinhar a dificuldade do tratamento psíquico numa escala vertical: Não é raro que o tratamento de pacientes borderline apresente transformações, mudanças radicais que costumam estar ausentes nas análises de pacientes obsessivos.
54 Referência à história pessoal contada por Freud em Das Unheimliche.
55 Psicanalista, membro da APF, falecida.
56 1923, OCF XVI, p. 194.
57 Biphasisme et après-coup, in Quinze études psychanalytiques sur le temps (sous la dir. de J.Guillaumin), op.cit. p. 110.
58 Cf. Daniel Widlöcher, Amour primaire et sexualité infantile, in Sexualité infantile et attachement, Petite Bibliothèque de Psychanalyse, PUF, 2000.
59 Ce temps qui ne passe pas, Tracés, Gallimard, 1997, p. 32.
60 Essa coincidência do après-coup e do recalque foi destacada por Claude Le Guen, L’après-coup, in Revue Française de Psychanalyse, tome XLVI, 3, 1982.
61 Le séminaire, livre I, op. cit. p. 215.
62 OCF XIII, 42-43, n. 1.
63 Embora os dicionários mais importantes da Língua Portuguesa ainda não registrem essa acepção do termo, fala-se em réplica de um terremoto, conforme várias fontes encontradas na imprensa (N.T.).
64 Sobre o mesmo assunto, Jean-Luc Donnet tem uma outra idéia da aritmética: L’après-coup au carré, Revue française de psychanalyse, t. LXX, 3, 2006.
65 Referindo-se à segunda análise do Homem dos lobos com Ruth Mack Brunswick, Freud fala dos fragmentos da história infantil do paciente que não tinham se revelado com ele e esperaram desprender-se après-coup, como fios após uma operação”, in L’analyse avec fin et l’analyse sans fin, op.cit., p. 233.
66 É a história que Freud conta ao seu paciente (Constructions dans l’analyse (1937), in Résultats, idées problèmes II, op.cit., p. 273.
67 Vale destacar o artigo de Alain Vanier, « Ce qui ne cesse pas de ne pas commencer », Cliniques méditerranéennes, 66, 2002.
68 Le séminaire I, op. cit., p. 214.
69 Em francês, o verbo frapper tem múltiplas acepções: bater, atingir, atacar, cunhar, imprimir, impressionar. Para traduzir o termo frappe, empregado pelo autor deste artigo, optamos por “impressão”, considerando que este termo também tem um leque de acepções no mesmo sentido, designando tanto um vestígio, uma marca deixada, quanto o efeito de uma ação exterior sobre algo, um choque. Quando se forja um metal, fala-se em frappe em francês técnico, assim como em português, no jargão da atividade de forjamento, se fala em “impressão” (N. T.).
70 OCF XV, p. 260. GW XII, p. 299.
71 O autor usa empreinté (referindo-se à impressão) que se pronuncia do mesmo modo que emprunté (tomado emprestado) (N.T.).
72 Fondements de l’éthologie, Champs Flammarion, 1984, p. 338 sq.
73 Nada é menos polimorfo que a perversão do adulto. Na criança, “perverso” é adjetivo, enquanto no adulto, é substantivo. A criança não é um perverso polimorfo, ela é polimorfamente perversa. GW V, p. 91. (Cf. a nota b, in Trois essais sur la théorie sexuelle, Gallimard, 1987, p. 118).
74 O único mecanismo que possamos ter como hipótese em relação ao recalque originário, escreve Freud, é o contra-investimento (OCF XIII, p. 222).
75 Essas palavras são de Jean-François Lyotard, a quem devemos algumas belíssimas páginas sobre o après-coup, essa “temporalidade que nada tem a ver com aquela de uma fenomenologia da consciência”, in Heidegger et “les juifs”, Galilée, 1988, p. 33. A abordagem filosófica do fenômeno não deixa de encontrar seu limite: o limite da transferência (“que eu negligencio”, explica Lyotard, inevitavelmente; cf. Misère de la philosophie, Galilée, 2000, p. 103) e da diversidade psicopatológica (é somente a partir do texto de Freud, principalmente do caso Emma que o filósofo raciocina). J-F. Lyotard coloca o après-coup a serviço de sua crítica da representação e de sua promoção de uma quase ontologia do afeto. Essa generalidade não é mais aquela do psicanalista.
76 1964, Hachette, 1985, p. 41.
77 OCF X, p. 294.
78 Freud, L’homme Moïse (1939), Gallimard, 1986, p. 161. GW XVI, p. 179.
79 ibid. p. 229.
80 Psychanalyse IV, op.cit., p. 143. Com as conseqüências práticas que conhecemos: estimular a regressão profunda até que alcance o estado onírico, a “transe”.
81 OCF XIX, p. 111.
82 O verbo usado pelo autor é refouler, no sentido de repelir e reprimir a ação do inimigo, assim como “recalcar”.
83 «L’expérience vécue de satisfaction », in Sigmund Freud, Lettres à Wilhelm Fliess 1887-1904, PUF, 2006, p.626. Freud teria cometido um lapso ao escrever Nahrungseinfuhr (introdução, enfournement) em vez de Nahrungszufuhr (aporte). Como observa Jean Laplanche, isso é ainda mais “verdadeiro” com lapso do que sem (La révolution copernicienne inachevée, Aubier, 1992, p. XXVII, n. 52).
84 Em alemão: Verkehr (GW, V, p. 124), com a mesma conotação sexual que a palavra comércio tem em francês. (N.T.): Em francês, a expressão faire commerce pode significar prostituir-se. Em português, conforme o dicionário Houaiss, também encontramos para a palavra comércio a acepção pejorativa de relação sexual.
85 OCF VI, p. 161.
86 Lettre à Lilli Peller, 15 avril 1966, in Lettres vives, Gallimard, 1989, pp. 213-214.
87 L’homme Moïse, op.cit. p. 163.
88 OCF X, p. 143.
89 Winnicott, Jeu et réalité, Gallimard, 1975, p. 155.
90 O interesse privilegiado que Winnicott atribui à mãe que falha não significa absolutamente que ele ignora a outra, aquela que transborda, mas quando evoca a sedução desta é menos para sublinhar a desmedida do sexual, a paixão do adulto, que para dar ênfase à “violação” do eu do bebê: a mãe pode “satisfazer uma necessidade oral e, fazendo isso, violar a função do eu do bebê... Uma satisfação oral pode constituir uma sedução e um traumatismo se for oferecida a uma criança pequena sem a cobertura do funcionamento do eu”, in Processus de maturation chez l’enfant, Payot, 1974, p. 11.
91 Não seria necessário explicar que “dois” está aqui a serviço de uma “oposição” deliberadamente limitada e simplificada. O rosto do ser próximo oferece muitas outras possibilidades: a rigidez, a máscara do ódio, etc.
92 Abrégé de psychanalyse, 1938, PUF, 1949, p. 59.
93 La mère morte, in Narcissisme de vie, narcissisme de mort, Minuit, 1983, p. 235.
94 O autor faz um jogo com a palavra trou: uma falha ou buraco diz-se trou, e para quem bebe excessivamente, usa-se a expressão coloquial boire comme um trou. (N.T.).
95 A “nota de adeus” escrita por Freud por ocasião da morte de Ferenczi é terrível, associa o falecimento do psicanalista húngaro à sua marginalização progressiva, esta, à sua “necessidade superpotente de curar” e esta, por sua vez, ao “desejo jamais esgotado de um amor de criança”. Ferenczi “viciado” na cura... (OCF, XIX, pp. 313-314).
96 Psychanalyse IV, op.cit. pp. 107-108. Cf. o artigo de AdamPhillips, «Jouer les mères », in Nouvelle revue de Psychanalyse, 45, 1992. Enquanto o psicanalista húngaro (ou inglês, é Winnicott que visa a crítica de Phillips) se faz de mãe, o psicanalista francês (principalmente na esteira de Lacan) se faz de pai, até na teoria, quando defende a essência paterna da transferência. Esse ponto de vista que sempre consiste em responder de um lugar delimitado pela via transferencial também não pode ser defendido.
97 O próprio Winnicott não foge dessa parte da crítica. Talvez por ter negligenciado muito, no nível de sua teoria geral, senão exemplos clínicos, pelo menos a consideração do inconsciente materno.
98 GW XVI, 179. L’homme Moïse, op.cit., p. 161.
99 Seria uma formulação possível: a primeira identificação é aquela da qual se é o objeto, e a identificação primária, a reflexão, o movimento reflexivo dessa primeira identificação. A identificação primária é ela própria secundária.
100 A coisa é assinalada por Friedrich-Wilhelm Eickhoff, On Nachträglichkeit : The modernity of an old concept, International Journal of Psychoanalysis, 87, 2006.
101 La nature humaine, Gallimard, 1990, pp. 192-193.
102 Jeu et réalité, op.cit. p. 154.
103 La crainte de l’effondrement, Gallimard, 2000, pp. 211-212.
104 J-F. Lyotard, La confession d’Augustin, Galilée, 1998, p. 53.
105 Vacance designa um espaço vazio, livre. (N.T.).
106 Principalmente por Winnicott; cf. Les souvenirs de la naissance, le traumatisme de la naissance et l’angoisse (1949), in De la pédiatrie à la psychanalyse, Payot, 1969.
107 «La régression n’est pas réelle », Écrits, op.cit. p. 252 ; «La régression n’existe pas », Séminaire II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, Seuil, 1978, p. 128.
108 Winnicott escreve: “Muitas análises fracassaram no fim porque a análise não podia admitir uma ilusão de fracasso, devido a sua necessidade pessoal de provar a verdade da teoria psicanalítica pela cura de um paciente” (in La crainte de l’effondrement, op. cit., p. 87).
109 OCF XV, p. 299.
110 Só podemos lamentar que Freud, que foi aluno de Brentano, o mesmo que foi mestre de Husserl, não tenha discutido com este último a questão da temporalidade. Entre as afirmações de Husserl que teriam pelo menos merecido uma resposta, há principalmente uma que nos diz respeito de modo muito particular:«É um verdadeiro absurdo falar de um conteúdo ‘inconsciente’ que só se tornaria consciente après-coup.» (Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps (1928), PUF, 1964, p. 160).
111 No texto original, a expressão usada foi planter à la Sainte Catherine, que corresponde ao mês de novembro. Existe até mesmo um provérbio: “A la Sainte Catherine tout bois prend racine”. (N.T).
112 As desregulagens do relógio interno interessam à psicanálise. Será que a afirmação pode ser invertida: a psicanálise pode (re)acertar o dito relógio? Sarah é uma mulher jovem que vive à margem do tempo. Ela perceberá primeiramente que a alternância das três sessões semanais lhe deu um ritmo que não tinha. A constatação seguinte é muito mais surpreendente: a chegada mensal de sua menstruação acontece sistematicamente no dia da primeira sessão da semana...
113 Freud (1908), Le créateur littéraire et la fantaisie, in L’inquiétante étrangeté et autres essais, Gallimard, 1985, p. 39.
114 Cf. Jacob A. Arlow, La psychanalyse et le temps, in Psychanalyse à l’université, tome X, n° 38, 1985, pp. 190-191.
115 OCF XVI, p 298 (emprego “psíquicos” para traduzir seelischen , em vez de “anímicos”).
116 Em Le temps éclaté, André Green assinala o valor paradigmático do fort-da na constituição do conceito de tempo, Minuit, 2000, p. 79.
117 Lettres vives, op.cit. p. 187.
118 Não é necessário assinalar que entre ausência-presença e intersubjetividade esboçam-se os pontos do triângulo edipiano.
119 Conhece-se o papel histórico do artigo de Winnicott, “Les aspects métapsychologiques et cliniques de la régression au sein de la situation analytique” (1954) (in De la pédiatrie à la psychanalyse, op.cit.), no mesmo momento em que Lacan defende o ponto de vista adverso: “A regressão não existe”.
120 Constructions dans l’analyse, op.cit. pp. 278-79.
121 La crainte de l’effondrement, op.cit. p. 210.
122 Mais que um empréstimo é um desvio da expressão de Husserl.
123 Qual foi o golpe? Nenhuma idéia... meu silêncio na sessão anterior, uma palavra intempestiva ou qualquer outra coisa?
124 Remarques sur l’amour de transfert (1915), OCF XII. Et J-B. Pontalis, L’étrangeté du transfert in La force d’attraction, Seuil, 1990.
125 Aurora diz um dia: “Aqui foi a minha primeira casa”. Tal como o tempo, o espaço não é um dado imediato da subjetividade. É provável que a psicogênese da espacialidade tenha como condição a construção de um interior. Talvez a psique seja menos extensa do que ela se torna.
126 Analyse avec fin, analyse sans fin, in Résultats, idées, problèmes II, op.cit. p. 242. O grifo é meu.
127 O futuro do pretérito empregado por Freud (“a correção après-coup do processo de recalque originário seria (warë), pois, a operação propriamente dita da terapia analítica”) contrasta com o uso do presente nos enunciados anteriores, aqueles que atribuíam à análise a tarefa de suprimir o recalque, o pós-recalque (entre outros exemplos, cf. a XVIIème leçon d’introduction à la psychanalyse, OCF XIV).
128 (1931), Psychanalyse IV, op.cit., p. 102 ; o grifo é meu.
129 Séminaire I, op.cit., p. 215.
130 OCF XIII, 42-43, n. 1.
131 Op.cit., p. 77.
132 Mantenho aqui a expressão genérica, mesmo que a “neurose” de Aurora ultrapasse sensivelmente a problemática edipiana.
133 A expressão é de Pierre Fédida: La sexualité infantile et l’auto-érotisme du transfert, in Sexualité infantile et attachement, op.cit.
134 Quando Winnicott trabalha em zonas onde dominam as angústias psicóticas &– um relato pessoal, Transfert et états limites, (sous la dir. de J.André et C.Thompson) Petite Bibliothèque de Psychanalyse, PUF, 2002.
135 A crítica não poupa Winnicott e sua “regressão à dependência”, que ele espera manter livre da vida pulsional.
136 De l‘art à la mort, Gallimard, 1977. Également La chimère des inconscients, Petite Bibliothèque de Psychanalyse, PUF, 2008.
137 OCF IV, 633.
138 Ovide, Les métamorphoses, III.
139 J-F Lyotard, Misère de la philosophie, op.cit. p. 125.
140 Cf. J-B. Pontalis et al., Passé présent, Petite Bibliothèque de Psychanalyse, PUF, 2007.