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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

PUBLICAÇÕES

 

Musas pós-modernas

 

 

Lilian Quintão

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 

Fernandes, Maria Helena, Transtornos alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, 303 p.

Escrever a respeito do livro de Maria Helena Fernandes, Transtornos alimentares, não é tarefa fácil. Trata-se de um livro denso, embasado em amplo levantamento bibliográfico a respeito do assunto, bem como dos estudos epidemiológicos, de maneira rigorosa. Ao mesmo tempo, pelo modo com que encaminha a leitura, acaba por elaborar uma verdadeira “psicopatologia da alimentação cotidiana”.

Para tanto, toma como baliza cinco casos de sua clínica (p. 16). As pacientes em geral são mulheres, jovens em sua maioria, cujo corpo e sua respectiva imagem estão na pauta de seu interesse, na maior parte dos casos ocupando todo seu espaço mental, sua energia, sua libido. Corpos e imagens que vão sofrendo transformações e deformações de tamanhas proporções, que aos outros &– a elas aparentemente não &– se apresentam como objeto do olhar que perturba, que causa horror. Pior: essas sintomatologias acenam para a morte. Isso atinge diretamente as questões que a psicanálise coloca, tanto no nível da teoria como no de seu manejo, pois se trata do cerne das questões da própria vida: corpo e imagem, sofrimento e dor, os enigmas da feminilidade, sexualidade, desejo, vida e morte. Maria Helena focaliza a anorexia e a bulimia sem, no entanto, deixar de constatar os inúmeros casos de obesidade mórbida, que podem vir a se transformar em problema de caráter endêmico.

A pergunta que se coloca é: como se chegou a este ponto? E por que mulheres? Nas três ultimas décadas a questão vem se intensificando, até se banalizando e se tornando, na maior parte das vezes, um ideal a ser atingido.

Mal-estar contemporâneo? Não nos esqueçamos de que na cultura globalizada, como aponta a autora, a mídia exerce enorme apelo e influência sobre a questão da imagem do corpo, o que se poderia chamar de uma verdadeira “ditadura da beleza”. O sistema midiático convoca a esta qualidade de identificação por meio do consumo de bens e mercadorias, aí incluída a imagem corporal. Tempo da exterioridade, em que fazer-se para outro e através do olhar do outro é quase que sinônimo de ser... Tempo de alienação, em que a máscara, o semblante, corre risco de se aderir ao rosto, e o sujeito se esvai. Qual Narciso, fundem-se na imagem &– naquela, do outdoor.

Grassam os blogs que possibilitam a troca de experiências entre as anas e a mias (anoréxicas e bulímicas), em muitos casos incentivadores e, até mesmo, considerados como estilos de vida. (Basta acessar alguns deles para que se tenha uma idéia da extensão do problema.) As top models &– ideal máximo de beleza &–, por exemplo, têm um índice de massa corpórea muito abaixo do recomendável.

A esta preocupação excessiva com a imagem, chamará de “hipocondria do corpo”, meio de expressar o sentimento de mal-estar que, na impossibilidade de ser descrito como mal-estar psíquico, acaba sendo expresso por um relato sobre insatisfações do próprio corpo. Ao longo dos séculos, as mulheres têm sido porta-vozes das “mazelas subjetivas de seu tempo” (p. 20). Só que hoje, na contramão das histéricas da época de Freud &– tão sedutoras, tão fascinantes...

Enfrentar o desafio de dar conta do fenômeno do corpo recortado pela cultura em termos metapsicológicos, “para que não tentemos fazer da psicanálise uma mera sociologia do corpo” (p. 275), é sua proposta. O que possibilitará sua aplicabilidade na teoria e na clínica, construindo fronteiras epistemológicas da psicanálise para a compreensão da questão da participação e do lugar do corpo da mulher nas formas de apresentação do mal-estar contemporâneo.

Nos últimos trinta anos, os transtornos alimentares vêm comparecendo de forma cada vez mais eloqüente e preocupante. A autora lembra que Freud, em relação às suas histéricas, já considerava o sintoma como forma de se fazer “escutar”. No entanto, citando E. Bidaud, “se a histérica pode ser ‘teatral e encantadora’, a anoréxica, dando-se a ver descarnada, exalta um fascínio gelado. Provocando olhar, perturba” (p. 19). Essa seria talvez a versão contemporânea do recalque e da sexualidade.

Acompanhando a evolução da abordagem deste tema desde Freud, Maria Helena traça um amplo panorama do tratamento de tais questões até o dia de hoje.

Ela aponta que Freud tentou compreender a anorexia, bem como os sintomas da disfagia e vômitos, através da lógica da histeria, assinalando a importância da oralidade na organização da sexualidade e sua relação com a melancolia. Além de atribuir uma função defensiva de tipo histérico, também chamou atenção para a possibilidade, em alguns casos, da dimensão psicótica da recusa alimentar. Quanto à dimensão melancólica da histeria, a associou ao afeto do luto.

Freud pouco se referiu à bulimia, mas a abordou no registro da lógica das adições e no registro das psiconeuroses, por vezes identificando-a com a melancolia &– que coloca entre as neuroses narcísicas. Também contribuíram suas considerações a respeito dos processos de descarga de excitação pulsional e sua influência na constituição do trauma, cujos vestígios e marcas se inscrevem diretamente no corpo. Há que considerar a participação de mecanismos arcaicos do funcionamento libidinal, como o auto-erotismo.

A partir dos anos 1920, tendo em mãos o arsenal conceitual da metapsicologia, Freud vai abrindo a questão para outras direções, relacionando-a, por exemplo, à pulsão de morte e seus desdobramentos. Além disso, inclui os transtornos alimentares nas vertentes psicótica e perversa, da lógica compulsiva e aditiva, chamando atenção para a defusão pulsional, o papel do masoquismo erógeno, do fetichismo, a idéia de um ego corporal.

Após percorrer de forma minuciosa os escritos dos autores pós-freudianos, a autora conclui:

A diversidade dessas contribuições permite constatar que a compreensão da anorexia e bulimia transita nos escritos psicanalíticos privilegiando quatro dimensões: a dimensão neurótica, cujo modelo seria, por excelência, a histeria; a dimensão narcísica, que teria como paradigma a melancolia; a dimensão da neurose atual, representada pelo modelo da somatização, e a dimensão impulsiva, ilustrada pelo modelo das adições (p. 130).

Uma das contribuições relevantes deste livro é a de empreender uma leitura metapsicológica das vicissitudes das relações precoces e da constituição da sexualidade feminina. E o que a autora irá desenvolver daí em diante serão os caminhos e descaminhos da construção do corpo no processo de constituição do sujeito, em particular da mulher.

Para tanto, parte dos primórdios da relação do bebê e sua mãe, a fim de entender seus desdobramentos nas dificuldades ligadas à sexualidade feminina e a importância da mãe no gerenciamento pulsional. O outro maternal exerce uma função de pára-excitação, sem o qual o aparelho psíquico fica à mercê da força pulsional.

Aqui a ênfase é colocada na questão da construção do auto-erotismo e da defusão pulsional, da passagem do corpo fragmentado, auto-erótico, para um corpo unificado através do narcisismo. Corpo atravessado por um outro: é através do investimento libidinal da mãe no próprio corpo e no corpo do bebê que vai se instaurar o prazer com o próprio corpo. Marcado pelo olhar interditante do pai em sua função de desligamento da relação dual e indiferenciada da mãe e bebê, para que se estabeleçam os limites, as fronteiras, a instauração da lei.

O acesso à representação do corpo não pode se restringir somente à imagem. É a dor &– e a primeira delas é a ausência &– que nos acede a uma representação do corpo. E aí está colocada a dimensão masoquista na constituição do corpo.

O desdobramento das falhas nesse período poderá, no limite, ter conseqüências desastrosas: dificuldades de percepção das sensações internas e externas, distorções da imagem corporal de proporções por vezes delirantes, dificuldade em discriminar as fronteiras entre dentro e fora, entre eu e o outro, entre pensar e sentir, realidade e fantasia, representável e irrepresentável, negativação da dor... Verdadeira clivagem entre ego e corpo. Não por acaso, André Green sugere que se compreendam essas patologias como borderlines.

Mais adiante, avançando na compreensão metapsicológica de tais patologias, Maria Helena aborda a questão do desejo e sua negação, centrando-se em especial na perspectiva psicótica. E chama a atenção para a importante participação do mecanismo de recusa, que irá emprestar uma “coloração de perversão” na organização do funcionamento psíquico destas pacientes &– esse algo a mais, esse além da neurose. Além disso, seu querer se apóia sobre a recusa do objeto; e aqui se pode acrescentar a dimensão aditiva, presente no perverso. Na tentativa de se proteger do vazio interno e do risco de perda do objeto, “fabricam” faltas indefinidamente. Mas a insatisfação estará sempre presente, seu motor. Um ideal distante e absoluto. E é na impossibilidade de elaboração da angústia de castração que o mecanismo de recusa parece incidir sobre o próprio corpo do sujeito, que, elevado à categoria de fetiche, irá situar essas patologias na fronteira da psicose.

E, então, podemos observar o trabalho de ligação do arsenal conceitual da metapsicologia para dar conta da interface entre o sujeito contemporâneo e a cultura, colocando em evidência a recusa da alteridade, da morte e do tempo.

Corpo idealizado como forma de fetiche, negação da incompletude, do envelhecimento, da morte, da vulnerabilidade humana. A urgência e a intolerância com as exigências da realidade, a abolição da temporalidade, das contradições, interdições são figuras perfeitas do mecanismo de recusa da castração e clivagem, evitamento do pensamento reflexivo, do sofrimento e da dor. E seus correlatos, o triunfo da imagem sobre a percepção, o declínio da interioridade, da inflação do eu. Ao que Guy Débord chamou de “cultura do espetáculo” e, mais tarde, C. Lasch, de “cultura do narcisismo”. “Diante deste culto desmesurado do eu (...) parece que estamos diante de uma substituição das funções do ego pelo papel de ego ideal” (p. 269).

Maria Helena se pergunta: “comer ou não comer, eis a questão”. Como vimos, a questão está bem em outro lugar. Essa exaltação do ego ideal, escravizante, revela a impotência e o interior desértico em que vivem. Na ilusão de “se acharem”, se perdem e se desencontram em sua singularidade, na falência de serem sujeitos de seu desejo e de suas vidas.

Buracos e fendas obturados, engessados por manobras absurdas, suas condutas seriam um estilo de vida? Blindagem que abriga em seu avesso o intenso sofrimento do vazio da vida. Fome: de tudo, menos de comida...

Este livro é precioso não só pelo rigor e pela naturalidade com que a autora transita entre conceitos, teorias e autores, mas pelo impacto que provoca no leitor. Seu interesse genuíno na singularidade do sofrimento, seu encanto pela “irredutibilidade imprevisível do homem”, faz de seu trabalho um compromisso realmente encarnado, aposta, esperança. Uma clínica da delicadeza.

 

 

Endereço para correspondência
Lilian Quintão
Psicanalista. Membro do Departamento
de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Rua Delfina, 65 &– Pinheiros
05687-002 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3812-9165
E-mail: lilianquintao@terra.com.br

Recebido: 19/01/2008
Aceito: 29/01/2008