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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

Marcas escuras sobre o papel

 

Stain on the paper surface

 

 

Rosely Stier Azambuja*

Out Of The Box Estudos de Mercado, Marca e Consumidor

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando como ponto de partida as aplicações da tipografia na recente campanha de Barack Obama à Presidência dos Estados Unidos, o texto desenvolve uma comparação da trajetória da fonte Gotham – especialmente criada para Obama – com a trajetória histórica da Helvetica, e contempla a tipografia como um signo pluralista, utilitário, comercial e sociocultural, geralmente relegado a segundo plano pelos leitores. Conclui que é possível, a todos os “tipógrafos amadores”, desenvolver uma linguagem mais atenta ao elemento tipográfico, constituinte importante do“como dizer”.

Palavras-chave: Tipografia, Design, Comunicação, Linguagem.


ABSTRACT

Starting from the typografics used in the Barack Obama’s campaign, the text compares the typeface Gotham (especially created for Obama’s campaign) and the history of Helvetic typeface, and presents the typographics as a pluralist, commercial and socio cultural signs, usually neglected by the lectors. Concludes that it is possible to all “amateurs” typographs to develop a visual language that takes advantage of the typographic element as in important point of the “how to say”.

Keywords: Typography, Design, Communication, Language.


 

 

“Desde a primeira infância fui atraído pelo charme dos materiais envolvidos na minha arte, pelos lápis e papéis e, posteriormente, pela máquina de escrever e por todo o aparato da impressão. Condensar a partir das memórias, fantasias e pequenas descobertas de uma pessoa marcas escuras sobre o papel que se tornam convenientemente reprodutíveis por tantas e tantas vezes ainda me parece um gesto mágico, e um processo técnico delicioso. Distribuir-se de tal maneira, como uma espécie de chuva de confetes caindo sobre as cabeças e ombros da humanidade a partir das livrarias e das páginas das revistas, é certamente um grande privilégio e um desafio às leis habituais e terrenas através das quais os seres humanos se dão a conhecer uns aos outros.”

John Updike

Na recente campanha de Barack Obama à Presidência dos Estados Unidos, uma das ações mais visíveis – e mais comentadas e discutidas na internet, no rádio e na mídia impressa americana – foi a das escolhas tipográficas e dos typefaces utilizados. Iniciar uma discussão sobre fontes tipográficas pode parecer para muitos uma opção diletante e obscura, mas, para quem já teve a experiência de formatar a apresentação de um relatório, avaliar um layout ou criar um convite de casamento, a escolha do tipo gráfico, do tamanho e da colocação das letras parece tão importante quanto a escolha das palavras certas para o texto.

“Nós vemos o tipo gráfico como a roupa que as palavras vestem”, diz o tipógrafo Tobias Frere-Jones (2008), que desenhou o typeface Gotham, usado com consistência em grande parte do material de campanha de Obama. “Nós temos mais de uma roupa no closet porque a roupa que usamos para ir ao escritório não é a mesma que usamos para ir à praia.”

Na maior parte das vezes, porém, a ênfase na clareza, legibilidade e harmonia toma a frente da adequação ou conveniência da roupagem tipográfica. Para muitos especialistas o tipo trabalha para ser quase invisível, trabalha para não aparecer – para deixar o texto aparecer.

Beatrice Warde, em ensaio de 1932 que é referência básica ainda hoje – The crystal goblet: sixteen essays on typography –, usa como metáfora para a tipografia a clara taça de cristal que revela, ao invés de esconder, o vinho que contém. Atenta antes de tudo à dinâmica e à legibilidade, ela defende que o tipo gráfico seja um puro container para o texto; um veículo invisível; um servo não-intrusivo.

Contrastando com o approach da tipografia como mediação invisível entre o leitor e o texto, outra concepção defende a tipografia não só como ponte mas também como intérprete do conteúdo, de um modo semanticamente relevante. E aqui as intenções variam de David Carson, que pretende que o designer tipográfico seja um coautor do texto, a Richard Hendel, que apoia indicações sutis embora capazes de refletir o conteúdo do texto.

Para isso, a escolha do tipo gráfico realmente faz diferença – e não apenas no que diz respeito a critérios funcionais como o tamanho do texto (se é muito longo, um tipo mais condensado, como Minion, aproveita melhor o espaço); ou a consistência (adotando-se uma mesma tipologia se o volume faz parte de uma coleção, por exemplo); ou a reprodutibilidade (o uso de uma fonte mais estreita que pode alterar o número de páginas em uma comunicação eletrônica). “Pode apostar que sim, faz diferença”, diz Brian Collins, um expert em branding, em entrevista a Steven Heller (2008).

“Estilo, em tipografia, é igual a acuidade. Ponha a palavra Change em Comic Sans e a ideia de mudança passa a ser sentida como ‘leve demais’ e ‘bobinha’; coloque em Times Roman, e a ideia de mudança passa a ter um tom de importância. Em Gotham, ela parece absolutamente correta. Inspiradora, não ameaçadora. Tipografia faz uma diferença real quando comunica palavras e ideias que são relevantes para as pessoas. O que foi o caso na campanha de Obama.”

A força retórica do tipo foi reconhecida até por Beatrice Warde quando assinala que uma mesma página montada em Fournier, em Caslon e em Palatino assemelha-se a três pessoas diferentes fazendo o mesmo discurso.

Como um poderoso significante, a fonte gráfica pode contribuir com força e impacto, ou com sutileza, para comunicar um texto, um produto ou uma ideia. Não apenas por causa das diferenças, por exemplo, entre a tipografia de um livro e a de um texto de propaganda, mas pelas possibilidades de leitura latentes em cada livro ou peça de propaganda. Buscando caracterizar esses diferenciais, a Hammermill Paper Company publicou, em 1968, The trial of six designers – uma visão de O processo, de Kafka, através de seis designers (nenhum deles escolheu a mesma fonte ou a mesma paginação).

 

 

Nesse sentido, a tipologia dos logos dos candidatos às prévias nas eleições americanas, analisada por especialistas em design, apontava desde logo para significativas diferenças. O typeface usado no logo da campanha da senadora Hillary Clinton era o New Baskerville com serifa – extensões nas extremidades das letras –, comumente utilizado pelas firmas de advocacia e universidades. O logo do senador John McCain usava o sem-serifa Optima criado em 1958, high-profile, o mesmo tipo utilizado para gravar os nomes dos soldados homenageados no Vietnam Veterans Memorial Hall em Washington. Uma interessante coincidência, comentou Simon Daniels, líder do time tipográfico da Microsoft (2008), já que McCain tem o status de herói de guerra. Giuliani, abandonando o nome completo, usava Rudy, de fácil leitura, em bold – tipo cheio para acentuar o nome – com serifas bem marcadas e o R alargado, reforçando a lembrança do Partido Republicano. John Edwards usava um tipo sem-serifa, definido como amigável porém muito “utilitarista”.

A fonte usada no logo da campanha de Obama, por sua vez, tinha sido batizada com o sugestivo nome de Gotham, a mítica cidade de Batman. Inspirada pelos sinais do Bus Terminal de Nova York, parecia familiar, pela histórica bagagem visual capaz de evocar. De outro lado, como uma nova fonte, revelava afinidade com o futuro ao invés de com o passado. Na análise de Brian Collins:

“Gotham tem uma qualidade que é praticamente um oximoro. Tem uma simplicidade geométrica – que usualmente faz as palavras serem sentidas como frias e analíticas, como em Univers, mas passa também acolhimento. É substancial e amistosa. Tem um quê de up-to-date e, ao mesmo tempo, de familiar. Além de uma qualidade muito importante: parece realmente factual...”

Frere-Jones (2008) acrescenta:

“Queríamos uma fonte que parecesse muito ‘nova’, ao mesmo tempo que estabelecida; muito masculina e do-momento. Uma voz com credibilidade.”

Qual deles, indagavam os analistas, passava mais a ideia de “mudança”?

A tipologia de Obama:

“É contemporânea, fresca, muito bem polida e profissional... evoca um terno Armani bem passado... o look clean de Nike ou Sony... uma tipografia jovem e cool – não os velhos standards do passado. A paleta de Hillary pede por legitimidade e demanda respeito… projeta o establishment reciclado… um look dos jornais dos anos 80 ou de uma companhia de investimentos... McCain usa um tipo que é um compromisso perfeito entre o com e o sem-serifa... no meio, moderado... com a estrela militar bem centrada... tudo sugerindo que este é um homem do qual você pode comprar um carro...”

Estas observações foram feitas em janeiro de 2008 – e terminavam com a previsão (que se comprovou acertada): “If we were to predict the results based on typography and design, we would pick McCain and Obama”.

Na campanha de Obama, o uso da tipografia foi planejado, consistente e não casuístico, surpreendente, parte importante da primeira campanha verdadeiramente transcendia do século XXI, desenvolvida através de celulares, web sites, e-mails, laptops, outdoors, redes sociais, anúncios impressos e comerciais na TV.

“Não é surpresa que um homem como Obama, que tem o dom da eloquência, entenderia como é uma tipografia forte e como isso ajudaria a trazer suas palavras – e as mensagens de sua campanha – à vida.”

O “O” de Obama, desenhado pelo Mode, um estúdio de design de Chicago, passava as ideias de “um novo dia”, de esperança e mudança, e uma nova perspectiva em azul e vermelho: não estados vermelhos e azuis, mas um só país. No site da campanha, na seção People, as execuções, ilustrações e tipologias variavam para cada segmento de público, dentro do modelo básico original. Subdivididas em grupos conforme a etnicidade, o gênero e outros – “delgada” quando nomeava as mulheres, “como desenho infantil” quando nomeava as crianças, e assim por diante –, eram sutilmente unificadas pelo uso do Gotham typeface. Um exercício de flexibilidade habitual na arquitetura de marca de grandes corporações, e que exemplifica a importância do contexto na percepção e avaliação da fonte tipográfica. No caso, tanto com relação ao formato – tamanho, cores, espaços, ilustrações e demais elementos gráficos das peças – quanto com relação ao conteúdo, no contexto mais geral do discurso de um candidato atento ao multicultural e às demandas e expectativas da pluralidade social.

O typeface Gotham por si só não chegou a acrescentar algo a Obama que já não estivesse contido nele. “Penso que ele apenas amplificou a personalidade, as ideias que já estavam lá”, pontuou Collins. O que foi corroborado na sequência de seu texto pelos comentários de vários leitores de seu blog:

“A identidade visual de Barack Obama mereceria ganhar um grande prêmio de design. Foi um trabalho bem organizado, atrativo, sofisticado, acessível, amigável, inteligente e novo – exatamente como o senador.”

“Eu certamente desejo eleger um presidente que representa inteligência, planejamento e capacidade de pensar. Será interessante ver se o país está realmente pronto para um presidente que valoriza as qualidades representadas por seu logo.”

“Penso que há uma simbiose – o design da campanha como um todo combina incrivelmente com a imagem de Obama como um homem com um estilo próprio, articulado, preciso, claro, e com sua mensagem de mudança e esperança.”

Ou seja, na campanha de Obama a tipografia adotada funcionou para reafirmar e tornar vívida a promessa que já estava no ar. Mais importante: a voz estabelecida mudou, buscando abarcar todas as vozes, com grande diversidade. “Porque eu acredito que nosso novo presidente, como você e eu, acredita em todas as fontes, grandes e pequenas. Ele não advoga um retorno às normas visuais estabelecidas, ele, como nós, acredita na busca do futuro, em novas formas!”

Essa visibilidade que a campanha de Obama conferiu aos valores tipográficos sinaliza, por outro lado, uma atenção crescente à tipografia, em mais de uma latitude. Verifique: tome para comparação as referências tipográficas nos livros impressos no Brasil. À exceção do que fazem algumas editoras como Companhia das Letras e Cosac Naify, até recentemente não era habitual no mercado editorial brasileiro a indicação da fonte utilizada. Os planejadores tipográficos estão se orientando agora para esta tendência e identificando com mais frequência a fonte, juntamente com o papel, o fotolito, a gráfica, o lugar e a data de feitura da publicação.

O estilo fluente da tipografia na campanha de Obama casa-se bem com a definição de “estilo tipográfico” estabelecida por Robert Bringhurst (1992), em um livro que se tornou um clássico na categoria. Inspirado pela definição de estilo literário de Walter Benjamin, que fala “do poder de mover-se livremente pelo comprimento e pela largura do pensamento linguístico sem deslizar para a banalidade”, Bringhurst defende um estilo tipográfico em um sentido amplo e inteligente, com “o poder de mover-se livremente por todo o domínio da tipografia e de agir a cada passo de maneira graciosa e vital, sem ser banal”.

Sua definição da tipografia é essencialmente literária, e muito próxima, nesse sentido, da descrição feita por John Updike, remetendo a uma ligação natural e intensa entre a palavra e a representação da palavra. Para Updike, a metáfora da tipografia são “nuvens de confetes”; para Bringhurst, são vívidas raízes e árvores carregadas de galhos (que podemos entender como as “famílias” tipográficas), capazes de prover delícias e surpresas.

“A tipografia é o ofício que dá forma visível e durável – e portanto existência independente – à linguagem humana. Seu cerne é a caligrafia – a dança da mão viva e falante sobre um palco minúsculo – e suas raízes se encravam num solo repleto de vida, embora seus galhos sejam carregados de novas máquinas ano após ano. Enquanto a raiz viver, a tipografia continuará a ser uma fonte de verdadeiras delícias, conhecimentos e surpresas.”

Gotham, de Obama, vem na esteira de outro fenômeno tipográfico, o Helvetica – que, diversamente, como pontuou Frere- Jones em entrevista à Business Week, “não foi desenhado com um propósito específico em mente; foi desenhado para ser um ‘curinga’ de todas as correntes”.

O 50º aniversário do Helvetica foi comemorado em 2007 com o lançamento, no MoMA, do filme Helvetica, de Gary Hustwit. Criado em 1957 por Max Miedenger e Eduardo Hoffman no tipo Haas, na Suíça, o typeface foi originalmente batizado de Akzidenz Grotesque, e mais tarde redesenhado e chamado Neue Haas Grotesk.

A denominação Grotesk fazia alusão à origem das fontes sem-serifa na Inglaterra, no início do século XIX. Finas e magras, eram reservadas para a propaganda e para títulos, e o termo Grotesk refletia a percepção de que eram inadequadas e não atrativas. Seu nome foi mudado em 1960 para Helvetica, transcendendo a afirmação direta com o uso comercial e em associação direta com a imagem de uma Suíça neutra e democrática, para elevar o typeface a uma audiência internacional mais ampla. Não foi um sucesso imediato quando lançada, mas em 1970 já era a fonte que dominava os logos das grandes corporações, a publicidade, a sinalização do metrô de Nova York, os caminhões do Alto-Comissariado para os Refugiados da ONU...

Tornou-se parte indelével da paisagem e da história do design, a fonte sem-serifa mais amplamente utilizada e respeitada no planeta, com influência massiva na cultura visual de nossa época. Foi adotada, entre outras marcas, por Marlboro, American Airlines, Sears, Coca-Cola, 3M, KLM, Exxon, Fendi, GAP... Ávidas por se integrarem ao mercado internacional, empresas japonesas como Toyota e Panasonic adotaram também a fonte Helvetica em seus logos. Em 1984, foi incluída no Apple Macintosh, o que a estabeleceu em uma nova geração de designers.

Helvetica faz parte da cultura pop. Praticamente todos nós já vimos Helvetica impressa nos ônibus espaciais da NASA, ou na abertura de Star wars. Atualmente, é possível ver um revival da Helvetica em marcas hip/estilosas como a loja japonesa Muji – famosa entre os fãs do design – e a etiqueta francesa Comme des Garçons, de Gaultier.

Por ter sido pensada inicialmente como uma fonte “democrática”, de uso extensivo a tudo e a todos, a Helvetica hoje é também encontrada em marcas como American Apparel e Current TV, que tentam se ligar a ideais socialistas. A questão é: pode uma fonte – que já foi usada por corporações como American Airlines e Coca-Cola – ser tão neutra como quando foi criada?

Christian Larsen (2008), curador da exposição do MoMA, elogia a Helvetica sem reservas, pelo fato de que “transmite a mensagem rapidamente e de forma eficaz sem se impor”; “quase não se notam as formas das letras, apenas os significados”. Ao privilegiar a inteligibilidade da mensagem como mais importante que a novidade estética das formas, no cotidiano da comunicação, a Helvetica conseguiu um entendimento amplo para as mensagens em que era utilizada.

As raízes da Helvetica remontam à Bauhaus de meados de 1920, o mais importante movimento de design do século XX, que tinha sido precedido pelo Art Nouveau – que propusera uma nova técnica de comunicação visual, a litografia – e pela virada modernista que teve seu auge nas duas primeiras décadas do século XX, por intermédio dos futuristas, cubistas, dadaístas, surrealistas e outros.

A filosofia da Bauhaus, no ambiente arrefecido pós-Primeira Guerra Mundial, propunha uma abordagem menos intuitiva e mais racional, mais “científica” e mais de acordo com os limitados recursos econômicos e comerciais da época. Com relação aos estilos de fontes tipográficas, móveis, design gráfico e arquitetura, a Bauhaus defendia a comunicação de uma organização clara de ideias, sem floreios ou decorações; a tipografia devia ser universal, apta para todas as aplicações, todos os fins, todos os idiomas e todas as culturas. A aplicação dessa funcionalidade tornou-se um blueprint, um modelo para o mundo moderno.

Perseguida na Alemanha hitlerista, a Bauhaus encerrou suas atividades em 1933: era a ascensão do “nacional” (da suástica, uma “não-letra”, um ideograma) versus o “global” proposto pela Bauhaus. Esta foi sucedida pela Escola Suíça de designers gráficos, que criaram a partir dos anos 1950 o movimento do International Style e um novo padrão visual, baseado em diagramas e formas minimalistas, seguindo o lema do less is more, que tinha sido cunhado por Mies Van der Rohe.

Esse movimento de depuração acompanhava o espírito do tempo, o zeitgeist, mais ou menos próximo do que hoje se poderia chamar de “busca de transparência”. Em uma coluna recente na revista piauí (2008), encontramos:

“Junto com a Guerra Fria, a arquitetura americana ganhou campo: foi o período de expansão de embaixadas ianques pelo globo. Os prédios serviam de peças de propaganda do modelo americano: abertas ao público, boa parte deles tinha estruturas de aço e vidro. Transpiravam liberdade. Para isso foram convocados os melhores arquitetos em atuação no país: Walter Gropius criou a embaixada de Atenas; Eero Saarinen, a de Londres.”

No caso das embaixadas, as finas construções começaram a ser abandonadas a partir do primeiro atentado a uma representação americana, em Saigon, em 1965. No caso da Helvetica, o estilo modernista começou a ser contestado a partir da metade dos anos 1960, por alguns jovens designers suíços, atitude que se espalhou aos poucos pelas escolas norte-americanas.

Contra esse típico design gráfico modernista com ênfase na melhor comunicação possível de conteúdos, através do uso de sinais – os signos convencionais, ou símbolos da semiótica de Pierce – quase “invisíveis”, levantou-se o design gráfico pósmoderno, sob influência do experimentalismo e da teoria desconstrucionista de Jacques Derrida, que defendia a pluralidade de conceitos. O aspiracional da forma de arte gráfico-visual passou a ser a inovação, a valorização da invenção, da imprevisibilidade, da complexidade artística das formas. E teve início um novo conceito para o design.

A partir daí, o typeface Helvetica foi também acusado muitas vezes de redundância, previsibilidade, monotonia. Alguns comentários na internet à época do lançamento do filme de Hustwit ilustram a coexistência de correntes opostas.

“Para quem escolhe o Helvetica, ele transmite segurança e confiabilidade, identifica roupas que não saem de moda, chocolates que mantêm o sabor; para quem não o usa, é banal, cansa, não tem brilho.”

“A Helvetica é discreta e básica como uma camiseta branca da Hering.”

“A Helvetica é tão legível e bem-feita quanto é sem graça; admiro todas as suas proporções impecáveis, mas, convenhamos, já foi a época de se deixar tudo organizadinho e bem limpinho.”

“Com a distribuição de conteúdo muito mais aberta, é fácil encontrar e conhecer tipografias diferentes...”

“Hoje, cada um quer criar sua fonte, estabelecer um diferencial para os olhares...”

Em um momento histórico ambíguo, a globalização convive hoje com a forte retomada de movimentos nacionalistas e com a extremada afirmação das individualidades – lembrando a afirmação de Wim Wenders, no seu filme Asas do desejo, de que cada cidadão alemão é um Estado. É uma reedição do conflito entre o global (o Helvetica) e o “nacional” (as escolhas e criações pessoais, diferenciadas, individuais... como Gotham, feito para Obama)?

Estabelece-se o confronto. De um lado, a fonte Helvetica com uma baixa taxa de novidade e maior taxa de informação (porque esta pode ser mais facilmente assimilada). De outro, fontes pós-modernas com alta taxa de novidade e menor taxa de informação (porque o “novo” cobra o custo de ser digerido). No entanto, coexistem e são interdependentes, porque as linguagens às quais elas servem, sendo o que são, interagem e influenciam umas às outras, em mutação.

Cauduro, da PUC-RS (2006), ilustra esta questão quando diz:

“A contribuição das soluções pós-modernas para o design gráfico de comunicação é o de mostrar que é possível e até necessário haver uma pluralidade de atitudes e estilos de design para os complexos problemas de comunicação de nossa era. Assim como não seria razoável implementar um design desconstrutivista para a sinalização visual das rodovias, também não seria adequado implementar um design modernista e ascético para a programação visual de shows de rock direcionadas a adolescentes cosmopolitas e às tribos urbanas.”

Nos Estados Unidos, no auge da campanha de Obama e das repercussões ao lançamento do filme de Hustwit sobre Helvetica – que lotava as sessões onde era exibido –, as pessoas pareciam estar desenvolvendo uma entusiasmada obsessão com relação a fontes. Knowledge of Fonts chegou a ser um quiz show na TV americana no primeiro semestre de 2008. Curiosamente, pelas peculiaridades da língua inglesa, os americanos são também obcecados pelos tradicionais e populares concursos de spelling bee, nos quais ganha o contendor que soletrar melhor as palavras.

Entre nós, parece haver certo estranhamento com relação a esse tema. Estamos sempre curiosos por saber, nas entrevistas com escritores, sobre seu processo de criação. Mas não temos um interesse manifesto em investigar como terá sido o processo de criação tipográfica. Do mesmo modo, em frente a um computador ou pensando na reprodução de um texto, nem sempre gastamos algum tempo para ver o que acontece, “que gosto” tem o texto quando as palavras são compostas em tipos variados. Muitas vezes, trata-se de uma escolha quase automática – Arial ou Times New Roman, por exemplo, no PC. Temos uma desculpa: a facilidade de leitura do documento pelos outros PCs. Temos uma segunda desculpa: como disse Richard Hendel, “frequentemente o design das coisas cotidianas é invisível para nós” (1999).

No entanto, assim como o psicanalista experimenta diferentes interfaces de comunicação, não só com pacientes diferentes mas com o mesmo paciente, é interessante pensar quantas “modulações” se poderiam encontrar para um mesmo texto. Bringhurst, por exemplo, sugere a fonte gráfica Lucida ao se escrever sobre mulheres, ou quando for uma mulher a escrever, porque essa família de tipos (mais “aberta” que a Helvetica, por exemplo) é uma das poucas que foram criadas por uma mulher.

Como a escolha do tipo de letra com que vamos formatar um documento faz de todos nós, que usamos computador, tipógrafos amadores, tudo parece afinal ter a ver com a observação, a capacidade de observar a proximidade e a sinergia entre “o que” e “o como” dizer (aí incluído o tipo gráfico). E, a partir daí, a capacidade de usar e ousar, de rever e misturar, de se relacionar com essas pequenas “marcas escuras” que, letais ou inocentes, de repente ganham visibilidade, nome, voz, identidade...

 

Referências

Updike, J. Citado por Michiko Kakutani, em “Personagens que mostram a saga da vida comum”, OESP, 01/02/2008, pg. D2.

Frere-Jones, T. Citado em Gotham – Barack Obama´s typography choice. www.cartelagency.com. 03/04/2008.

Collins, B. “To the Letter Born” – campaignstops.blogs.nytimes.com/2008/04/02.

Daniels, S. Citado em “Gotham – Barack Obama´s tupography choice”. www.cartelagency.com. 03/04/2008.

Frere-Jones, T. Citado por Gary Ustwit, em “A font we ban believe it” – www.helveticafilm.com/newblog/2008/02/19.

The Hardest Working Presidential Candidate Logo. www.underconsideration.com/speakup/archives/004262.html        [ Links ]

Bringhurst, R. Elementos do Estilo Tipográfico. Cosac-Naify, 2ª reimpressão/2008, pags. 17 e 25.        [ Links ]

Tobias Frere-Jones, em www.businessweek.com/innovate/content/2007/ id20070504_46.        [ Links ]

Christian Larsen, curador da exposição “50 years from Helvetica”, no MoMA, em www.businessbeek.com/innovat/content/2007/id20070504_46.

Bunker King, revista Piauí, nº 29 – fevereiro 2009, pg. 7.

Cauduro, F.V. Comunicação Gráfica & Pós Modernidade– E-Compós, vol. V, 2006.

Hendel, R. O Design do Livro . Ateliê Editorial, 2ª edição, 2006, pg. 9.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rosely Stier Azambuja
Rua Gregório Paes de Almeida, 336
05450-000 São Paulo - SP
E-mail: roseli.azambuja@uol.com.br

Recebido: 25/03/2009
Aceito: 10/04/2009

 

 

* Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, especialista em Comunicação e Branding, é sócia da Out Of The Box Estudos de Mercado, Marca e Consumidor.