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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

O pensamento de Freud e a Psicanálise: o atrito do papel*

 

Freud’s thought and psychoanalysis: the paper attrition

 

 

Fabio Herrmann**; Leda Herrmann***

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor explora, na obra freudiana, sua teoria do análogo, através de uma metáfora – o atrito do papel. Ela tem a força de transformar o pensamento por escrito de um autor, psicanalista ou não, em produto objetivado. Elege Moisés e o monoteísmo (1939) para mostrar que a forma freudiana de pensar e construir teorias fica escondida na teoria que foi passada para o papel e que o leitor transforma em doutrina. A doutrina freudiana é o que se transmite na formação e no movimento psicanalítico, impedindo a identificação da máquina de pensar de Freud.

Palavras-chave: Teoria dos Campos, Reino análogo, Atrito do papel, Fabio Herrmann.


ABSTRACT

The author investigates his theory of the analogue in Freud’s written work by using a metaphor - the paper attrition. This metaphor has the strength of transforming an author’s written thought into an objectified product, whether the author be a psychoanalyst or not. In this article, Moses and Monotheism (1939) is selected to indicate that the Freudian way of thinking and constructing theories remains hidden in the theory that was passed on paper, which the reader transforms into doctrine. It is the Freudian doctrine that is transmitted in psychoanalytic training and in psychoanalytic movement, impeding the identification and acknowledgement of the Freud’s thinking machine.

Keywords: Multiple Fields Theory, Analogous realm, Paper attrition, Fabio Herrmann.


 

 

Este título parece sugerir um tema muito frequentado pelos debates psicanalíticos, a saber: a relação entre a psicanálise freudiana e a das escolas. A tendência dos scholars é identificar Psicanálise e doutrina freudiana, a dos analistas praticantes, distingui-las, às vezes excessivamente, ocasiões em que somente se substitui sua doutrina por outra. Na minha opinião, seria preferível manter viva uma certa tensão: as muitas psicanálises, atendimentos, intervenções sociais, investigações da cultura, teorias especiais e sistemas gerais, as psicanálises que se vão criando devem reconhecer sua diferença, sem adaptar a si a obra freudiana. Com isso, poderão reconhecer também os graus diferentes de dependência que têm com certos setores da doutrina original, mais que com outros, com a primeira, não com a segunda tópica, ou viceversa, com a psicopatologia ou com a técnica, com o Freud das conjeturas ou com o das fases do desenvolvimento. Destacar-se, para pôr em destaque a tensão elástica que as vincula à origem.

Esse não é, porém, o tema que desejo explorar na presente aula. O que me interessa é algo que, tanto quanto sei, simplesmente não se costuma discutir: a relação entre o pensamento de Freud e a Psicanálise, a ciência que inventou. Não será difícil admitir que a Psicanálise é mais que o pensamento freudiano, como estamos vendo, mas a recíproca pode ser verdadeira: talvez o pensamento de Freud seja mais que a Psicanálise. Dito de outra maneira, a psicanálise que nos transmitiu é parte da Psicanálise, do universo de aplicação do método por ele próprio criado; todavia, nem tudo que Freud pensou é psicanálise e sua obra escrita, mesmo tendo sido um típico pensador por escrito, tampouco há de coincidir completamente com seu pensamento1.

Acredito que todos vocês já tenham tido a experiência de olhar uma página escrita e concluir: não era bem isso que eu queria dizer. Aquilo que exatamente eu queria dizer era… Ora, se pudesse pôr em palavras claras, você o teria escrito. Quem escreve quase todos os dias, como eu, sabe que a questão não é simplesmente da incompletude, inevitável no escrever e no falar, nem sequer de qualidade. Acontece às vezes de se escrever – principalmente, mas em certas ocasiões até de falar – algo melhor e mais completo do que se havia pensado. Porém, não o mesmo. Empregando uma expressão mais apropriada a outros tempos mais substanciais, digamos que há um atrito do papel a modificar o pensamento. Em certas ocasiões, a composição de forças entre o pensamento quase puro e o atrito do papel produz um resultado inesperadamente claro, mais conciso, mais elegante, talvez mais preciso e até mais completo que nossa intenção íntima. É parecido com o esqui: a qualidade da neve e a inclinação da pendente podem obrigar-nos a apurar o traçado de nossas voltas, transformando-nos, numa baixada, em esquiadores melhores do que realmente somos. E como há um atrito do papel, onde um tanto se perde, mas com a prática, algo também se ganha, existe um atrito da palavra, que é mais geral, estende-se à fala, até ao gesto que a acompanha. O esquiador bem-dotado e tecnicamente capaz tenta reter, tanto quanto possível, a sensação muscular da volta melhor que a sua própria, que acabou de realizar, para utilizá-la em condições diversas de pista; o escritor procura aprender de seu escrito, para convertê-lo em escrita, em estilo.

Quando já se escreveu muito e se teve a felicidade de encontrar leitores, a esse fenômeno vem juntar-se um outro, menos evidente. É que as ideias que se propõem nos escritos moldam-se em formas mais ou menos estáveis, independentemente da intenção do autor. Dois fatores contribuem para isso. De um lado, o menos importante, porém o mais fácil de compreender, como as ideias transmitidas oferecem dificuldade desigual à leitura, seja por sua intrínseca complexidade, seja por se harmonizarem umas mais que outras ao gosto da época, a interpretação que faz a comunidade de leitores de uma obra é como um traçado que ligasse os pontos mais bem-aceitos, desrespeitando a intenção do autor. Falando psicanaliticamente, as zonas de resistência aparecem decalcadas ao revés na leitura estabelecida de uma obra, ficando o pensamento essencial como exato traçado lacunar. O segundo fator, de mais difícil intuição, consiste em ser o pensamento aquilo que faz pensar, que transmite, heideggerianamente, o dom de pensar, sendo, por conseguinte, o que há de grave numa obra. Ora, isto que transmitimos ao escrever, o pensamento com o qual capacitamos nosso leitor, não é, senão muito aproximadamente, o instrumento de que nos valemos nós mesmos ao pensar. É e não é. Todo autor luta a vida inteira contra a incompreensão dos leitores – na realidade, contra sua compreensão, eivada de resistências –, mas luta também contra a própria obra, tentando transmitir sua capacidade de pensar. Não a magnitude, grande ou pequena, mas sua máquina, seu processo, sua forma ativa.

E perde. Inexoravelmente. O atrito com a palavra, com o papel, com as resistências e com a tendência de as ferramentas de comunicação tomarem o lugar da máquina de pensar e se organizarem espontaneamente como um sistema de pensamento, acabam invariavelmente por criar um autor-personagem, não intencional – um pensador, como se diria um narrador, caso se tratasse de romance –, que é mais propriedade da obra e de sua leitura que do homem que escreveu. Bem avisados disso, os pensadores psicanalíticos, Freud à frente de todos, cônscios ademais dos efeitos de transferência de sua figura e de sua obra, procuram antecipar-se ao inevitável, criando eles próprios a personagem mais apropriada à transmissão de seu pensamento e variantes internas da própria obra capazes de transmitir um aparelho suficiente de pensar que, mesmo não sendo com precisão aquele de que se valem, é o bastante, no mínimo, para impedir que seu pensamento seja radicalmente deturpado, e, na melhor das hipóteses, para garantir o que se poderia chamar de uma continuidade heurística.

Então, começa a luta do leitor com a obra e contra a obra. Que deseja o leitor? Entender. Mas, o que significa entender? Depende do gênero de obra e do espírito do tempo. A intelecção de um poema é só a condição primeira para seu desfrute estético, por isso a palavra intelecção, embora justificável, soa algo forçada aqui. Já a intelecção de uma teoria científica, de um teorema da geometria, de um texto de história ou de filosofia, sendo também o umbral do gozo estético, é, e quase sempre o foi, condição de uso. Acrescento algo a mim, aproprio-me. Este segundo sentido, a posse e o poder de utilizar, sempre esteve presente na leitura. A leitura e interpretação dos livros sagrados, por exemplo, outorgou sempre a condição de assenhorear-se de algum poder sobre o outro, trazendo em resposta a tentativa de leitura pessoal, revoltosa, associada regularmente a uma loucura, interpretação demasiado particular do mundo. Nalgum momento do século XIX, o imperativo da utilização do conhecimento começou a suplantar as demais funções. Hoje, talvez nos pareça um pouco ridículo imaginar que noutros tempos o conhecimento fosse outra coisa, se não uma utilidade, mas já foi assim e, creio, não estamos muito distantes de nova virada, quando o conhecimento pessoal deixará talvez de ser utilizável. Para que se dê a apropriação e utilização do conhecimento, porém, é preciso primeiro objetivá-lo: é isto que significa tal texto, agora sou dono dele, posso combiná-lo com este outro a meu gosto, sou seu senhor, sendo seu escravo, por consequência. E aí está o começo da guerra com a obra: entender é objetivar2.

Este mandato de devoração das obras, a propósito, pode haver sido uma das alavancas consideradas por Joyce. Ele escreveu livros impossíveis de objetivar e incorporar como propriedade, de usar e recombinar com alguma garantia. Ulisses parece desafiar- nos com o desafio da Esfinge – decifra-me ou devoro-te –, mas, de onde vem seu poder de nos devorar, uma vez que decifrá- lo é mesmo impossível? Simples, de nosso mandato interior. É duvidoso, aliás, que a Esfinge fosse mesmo capaz de devorar alguém, não se citam muitos casos em que isso ocorresse, pelo menos. Em todo caso, o Ulisses não tem como comer ninguém, mas o despeito de não o conseguir objetivar sim. Devora-me, ou morda-se de raiva seria mais apropriado ao caso. Numa época de utilização, em que o crítico literário e o scholar universitário têm de objetivar rapidamente tudo o que lhes cai na mão, e em que o leitor já recebe previamente a lista do que ler e o sentido a encontrar, um livro não-objetivável pode ser um dos poucos estímulos eficazes, algo assim como um instante de silêncio numa discoteca. Lacan, leitor de Joyce, talvez tenha aprendido algo com ele a respeito do poder de atração do inabarcável…

Freud é um pouco anterior à “Declaração Universal dos Direitos da Guerra”; mesmo quando seu primeiro ensaio se realizou, na Grande Guerra, já beirava os sessenta anos de idade. Sua obra, no entanto, já mostra indícios fortes de que desconfiava das intenções dos leitores. Como grande escritor, não desconhecia o atrativo do enigma, embora não sentisse necessidade de utilizá-lo como instrumento fundamental. Reconhecia e respeitava o torturante atrito do papel e não ignorava que seus leitores, que devia transformar em seguidores do caminho aberto por ele, para garantir alguma continuidade heurística, desejariam antes de tudo objetivá-lo e apropriar-se dos despojos. Assim, sua obra, sem ser inabarcável, envolve diferentes graus de dificuldade e, sobretudo, circunscreve variantes teóricas e constelações parciais de conceitos, de forma a propiciar atos progressivos de intelecção, cada qual levando a uma apropriação gradual por parte do leitor e o tentando a nova empreitada. Destarte, a luta contra a obra pode converter-se, pela intensidade gradual da resistência que acompanha cada tentativa de apropriação, numa luta com a obra, junto com a obra, que produz adesão, mas não sacia completamente o desejo de posse. É a fórmula aproximada de qualquer adição, do tabaco à cocaína, do xadrez à literatura, da teoria à clínica.

Comecemos pelo mais simples e evidente. Encontram-se grupos de disposições na obra freudiana. A mais óbvia é de que é preciso aceitar tais ou quais teorias para ser analista: a sexualidade infantil, o inconsciente, a transferência, num exemplo, descarado por excelência. Ou, que não é forçoso aceitar o instinto de morte, o que faz saltar aos olhos que tudo o mais tem de ser aceito. Ou que o analista deve abster-se de relações amorosas com seus pacientes. Ou que se deve submeter à análise. Quase se pode escutar o leitor de Freud replicando, com toda a justiça: quem é você para ordenar o que posso e o que não posso fazer? Quem diz que eu quero ser analista, essa profissão ainda inexistente, para fins práticos, estatísticos e pecuniários? Porém, se me proíbe, vou ser assim mesmo, e desobedecendo-o, se quer saber. Esta pode haver sido a primeira batalha da resistência e a vitória, por nocaute, foi de Freud, evidentemente. Uma profissão imaginária ganhou um adepto rebelde. A rebeldia virá a ser domesticada a seu tempo, coisa de somenos, mas a adição já se estabeleceu. Funciona até hoje, quando a profissão já existe. As pessoas chegam à prática analítica, na maioria dos casos, por algum caminho lateral, que combina adesão com rebeldia, uma terapia mais flexível, uma formação menos exigente. Num grau maior de complexidade, a invenção do complicadíssimo e verdadeiramente inacreditável movimento psicanalítico entra também na categoria de disposições da obra de Freud. Parte dessa rocambolesca ficção, com mais peripécias que enredo, e mais ritos que razões, foi inventada depois, ou à margem da obra freudiana, mas, é bom frisar, sob sua inspiração. Freud, ele mesmo, como diria Fernando Pessoa, não parecia disposto a criar Institutos de Formação, pelo menos de início. Mas deve ter percebido que certo espírito ritualístico de sua ficção fora melhor compreendida pelos berlinenses que por ele próprio.

No que tange à prática, à formação, a certos pontos da técnica e até à criação do movimento psicanalítico, Freud empregou o recurso nada sutil da disposição. Na disposição, diz-se diretamente o que se quer que os outros façam. A questão é ser obedecido, lógico. Há dois tipos de disposição que se acata. A disposição testamentária e a disposição legal. Neste ponto exato, começa nossa inquirição sobre o Freud fora da Psicanálise. Ele criou duas ficções exemplares e altamente convincentes de seu direito a dispor. A primeira é a do pai da horda primitiva. O pai morto tem todo o direito de exigir obediência a seus últimos desejos. Quando se aduz que os filhos o mataram e devoraram, a obrigação transforma-se em imperativo. E, se o acordo entre os irmãos é o início da cultura, então as disposições que legou, em parte arbitrárias, e sua regulamentação posterior, inteiramente arbitrária, confundem-se com a condição essencial do humano. Esse conto sobre a origem da cultura estava tão fundamente entranhado na vida do autor que ele sempre deu mostras de estar morrendo, mesmo antes de os médicos o desenganarem por engano; a premonição de uma idade fatal, certo tom de testamento em diversos escritos, uma espécie de solenidade de que se parecia cercar. O pai da horda, este foi uma papel bem integrado na vida de Freud, como em sua obra. No entanto, se o grande pai legou a lei, não chegou a legislar. O outro, o de legislador, fica evidente na obra sobre que esteve sempre a meditar, sem ânimo de publicação, como é inteiramente compreensível num homem que está a inventar uma ciência e não a quer ver confundida com ficção: Moisés e o monoteísmo. Freud encarna Moisés, reclamando para si o direito de mando, de outorga de leis. A figura do profeta irado com os desvios de seu povo, que ama, mas deve proteger contra o pecado da idolatria com regras estritas, reforça a do pai morto, sacrificado. Suas disposições, a legislação da prática analítica, da formação, da organização do movimento, mercê desse peculiar circuito de Freud pelo análogo, ganham foros de fundamento antropológico e de revelação profética, ao mesmo tempo. E, além do mais, um poderoso efeito de sugestão emocional, que, para alguns, chega a confundir-se com transferência.

É preciso agora refletir um instante sobre a matéria, objeto das disposições. Não se trata aqui de apontar os absurdos do movimento psicanalítico, a transformação de certos hábitos em rituais, do ritual em setting (moldura) e do setting em parâmetros e standards. A conjunção das duas ficções, a que outras se poderiam juntar, institui uma fonte de asseguração e garantia para o bom, como para o mau, para o arbitrário, como para o justificado, e não nos interessa no momento desviar nossa atenção para tal gênero de juízo de valor. O legado, disposto e assegurado, é a psicanálise que existe e praticamos, no modo da formação, no do movimento e no da clínica. Não resta dúvida de que Freud queria passar adiante alguma coisa, que foi tomando a forma atual. A questão é: praticava Freud exatamente isto? Não parece, pelo que se sabe, mas também não se sabe com certeza. Seus historiais clínicos não têm a forma de relatórios, mas de relatos bem urdidos, em que a descrição de sessões cumpre o papel de decifrar para o leitor o sentido dos sintomas; é difícil dizer se Freud, mesmo quando diz estar falando com o paciente, não está escrevendo para nós, antes de mais nada. Este é um recurso literário extremamente usual, a narrativa indireta por meio de diálogos, e o reverso, a narrativa que subsume e sugere uma interlocução. Como instrumento de comunicação clínica, não surgiu depois nada melhor. A impressão que tenho, mas que não passa de impressão, é que o atendimento dos casos não deveria estar muito distante de uma longa anamnese associativa, combinada com tentativas graduais de construção teórica hipotético- sugestiva. O trânsito pelo análogo, através de tais construções – que correspondiam com certeza à criação das próprias teorias originais –, deveria ser muito mais frequente que o é hoje e a procura de sinais de confirmação ou refutação, mais ativa. Pode ser, pode não ser, mas não se consegue reconhecer uma diferença essencial com aquela transmitida. O indiscutível, porém, é que a clínica de Freud constituía, em essência, a própria descoberta da psicanálise. Freud nunca integrou, aliás, o movimento psicanalítico, senão como fundador, nunca fez formação, não foi analisado. Há um detalhe comum às duas ficções, a da Horda primitiva e a de Moisés, que não lhes deve haver passado despercebido: o Grande Pai não fazia parte da horda fraterna e Moisés era egípcio. Se, por definição, psicanalista é quem pratica a psicanálise, Freud nunca foi psicanalista, ele era a invenção da psicanálise. Freud era a Psicanálise.

A psicanálise é o produto objetivado do pensamento freudiano. Tal produto, para empregar um termo bem em moda, constitui a interface de dois processos de objetivação. O pensador por escrito esforça-se por transmitir seu pensamento, sua máquina criativa. Para tanto, necessita invariavelmente objetivá-lo em exemplos, conceitos, estruturas gerais. Não há como passar adiante uma forma sem conteúdos circunstanciais. Decorre dessa injunção que chamemos pensamento, por simplicidade, não à máquina produtora, mas ao conjunto de seus produtos. O leitor, no afã de o entender, objetiva-o por seu lado. Seleciona os produtos que lhe parecem mais significativos e deles deduz certas formas gerais, tentando abstrair o secundário e reter o essencial. O leitor de Freud, porém, é uma comunidade em trabalho de formação. Certos precipitados consagram-se e já não podemos deles escapar. Defensivamente, como já frisei, o autor apresenta constelações parciais de conceitos, no interior da obra, para não dar margem a uma compreensão totalmente arbitrária. Numa palavra, ele escolhe certas formas que privilegia e as dispõe, segundo graus diferentes de complexidade, umas dentro das outras. A tradição opta por algumas delas e relega as demais. O autor objetiva, a leitura objetiva, desse duplo atrito do papel – que ler é mais ou menos como escrever sob este aspecto – cria-se um simulacro, o mais nobre dos simulacros, o mais terrível dos simulacros: a doutrina.

A doutrina freudiana é a psicanálise (mas não a Psicanálise). Reúne certas constelações que, claramente, foram escolhidas por Freud, e exclui outras que também foram escolhidas. A psicanálise inclui a prática psicanalítica padrão, mas exclui, por exemplo, a psicanálise do pequeno Hans e a de Schreber. Inclui o movimento psicanalítico e a formação analítica, mas exclui a autoanálise e as ficções freudianas. Inclui a Traumdeutung, mas exclui a interpretação dos sonhos: qual foi a última vez que vocês viram algum analista publicar uma série de sonhos próprios, interpretados pelo procedimento associativo freudiano, para corroborar ou infirmar a existência dos processos oníricos, ou para sugerir um procedimento interpretativo melhor? Freud, o intérprete dos sonhos, está à margem da psicanálise estabelecida, onde só ficou o produto objetivado. Na realidade, praticamente todo o ato freudiano foi excluído da psicanálise, que guardou avaramente apenas o produto objetivado do ato. Se Freud é a Psicanálise, a psicanálise, de certo modo, é o contrário da Psicanálise. Por outro lado, é tudo o que temos, o mais nobre, o mais terrível dos simulacros.

Para prosseguir nossa investigação sobre a operação do análogo em Freud, constatada sua exclusão da psicanálise – exclusão da qual as superexclusões de Freud, peculiares a certas escolas, Sociedades ou grupos, não constituem senão desdobramentos episódicos –, pode ser útil voltar nossa atenção ao Moisés e o monoteísmo. A hesitação em publicá-lo e a dificuldade para o escrever não solicitam uma interpretação selvagem do inconsciente de Freud. Parte da luta do leitor psicanalítico contra a obra freudiana consiste precisamente em lhe atribuir inconsciente. Não falo apenas da interpretação caricatural, caso do biografismo inconsciente a partir da obra e de seu anedotário, o que suponho já tenha caído em desuso, mas também das tentativas, às vezes pueris, às vezes argutas, de nela encontrar um sentido desconhecido pelo autor. Como escritor, sei muito bem que as obras têm dezenas de camadas superpostas, e mesmo a dedução mais sutil de um sentido inconsciente, seja um motivo inconsciente, verbo horrendo, seja um plano de sentido desconhecido, na maioria das vezes só desemboca numa das estruturas arquitetônicas mais ou menos disfarçadas pelo autor. É relativamente fácil descobrir o inconsciente de uma história em quadrinhos ou daquela pobre Gradiva, mas impossível encontrá-lo em Dostoievski, em Joyce, ou em Freud.

A questão suscitada pelo Moisés nada tem de inconsciente, mas de prudência. Freud deixa claro que temia mostrar-se um ficcionista, vale dizer, de ser excluído do reino científico, é claro, mas, sobretudo, de expor em demasia seu processo de criação. (Aí sim está um conflito de todo pensador, porém raramente inconsciente, ele quer que seu processo de criação seja incorporado, mas detestaria vê-lo objetivado de mau jeito: isso, que é o mais íntimo de si.) E como é este processo? Ele propõe uma sugestão criativa, uma hipótese que não pode ser decidida, logo, uma pseudo-hipótese. Argumenta com habilidade a seu favor, levanta objeções e as contesta, parecendo estar entrando a sério no terreno da ciência em questão – no caso, a história. Não consegue provar sua proposta, é lógico, porém, no vai-e-vem do processo argumentativo – que, este é um de seus méritos, é levado adiante com o máximo rigor –, fica aparente que sua sugestão é tão plausível como a que se consagrou, a de ser Moisés um judeu, abalando o edifício inteiro da crença. Deus já não é um, mas uma combinação de Deus com um deus vulcânico, nem é um o povo eleito – eleito por quem? Descaradamente, se me permitem aplicar tão baixa expressão a tão elevado autor, Freud vincula a raiz do judaísmo a um dos poucos períodos da história egípcia que são de domínio público, o reinado de Akenaton, mais famoso talvez pela descoberta da incompleta, porém rica tumba de seu sucessor, Tutankamon. Esta é uma oferenda interpretativa, uma representação oferecida tentativamente, tentadoramente, como uma tentação: se vocês perdem a herança divina, ganham a herança do mais sábio dos faraós e a da mais bela das rainhas, Nefertiti. Balança a crença de seu povo, balança até a noção vulgar de história, como conjunto de fatos, pois esta hipótese, que não é uma hipótese, mas uma interpretação, reinstaura, diabolicamente, a possibilidade, onde havia certeza gratuita. O Moisés egípcio, como interpretante, tem de ser tão possível quanto o Moisés do campo da religião e tem de ser sustentado com o mesmo vigor com o qual se sustentaria qualquer outra fala interpretativa. Sua verdade, porém, consiste no efeito produzido, não nos fatos; este, o parentesco com a ficção. Costumo chamar a este processo de ruptura de campo, como sabem.

Seria igualmente possível, para Freud, escrever um artigo mostrando a falta de fundamento histórico da lenda de Moisés. Poderia lembrar que Moisés, como a maior parte das figuras bíblicas, pode ou não ter existido, que os egípcios, dada a exiguidade da terra, jamais submetiam povo algum ao cativeiro, mas costumavam apenas tomar como reféns alguns herdeiros de alta estirpe, a fim de garantir o bom comportamento dos adversários, poderia até argumentar que os prodígios que acompanham a lenda de Moisés, ainda que reduzidos a proporções mais modestas, não deixariam de constar dos detalhadíssimos registros egípcios já traduzidos e disponíveis, no seu tempo. O efeito de tal argumentação seria irrelevante, como podem avaliar, comparável ao que teria sobre um neurótico a discussão sensata de seus sintomas.

Freud criou vários tipos de ficção como essa, vários exemplos objetivados de sua forma de pensar. Os graus de veracidade são variáveis, naturalmente; mas o efeito geral parece, em essência, semelhante. Sua hipótese sobre a sexualidade infantil transtorna um tanto a ideia que se tinha da infância; porém, põe de pernas para o ar a noção que se tinha de sexualidade. Este foi o campo rompido, o verdadeiro alvo da interpretação. A teoria das neuroses serviu ao tratamento, certo, mas seu efeito devastador, em nossa cultura, foi a de estilhaçar a distinção cortante entre normalidade e neurose. A teoria geral de aparelho psíquico, a metapsicologia, propôs um modelo das funções mentais bem superior aos demais, de que foi tão fértil sua época, verdade; seu efeito interpretativo, contudo, fez-se sentir sobre a crença sedimentada na unidade e transparência do sujeito. O complexo de Édipo, mais que postular o antagonismo ambivalente de filhos e pais, serviu para romper o isolamento teórico entre indivíduo e cultura. Decerto, a noção de transferência serve muito bem à cura analítica, mas, acima de tudo, rompe o campo tradicional do sentido da palavra.

Para que funcione como interpretante, cada uma dessas teorias deve ser plausível, ter coerência interna, apoiar-se nalguns fatos e ser sustentada a sério. Para que funcione como interpretante, cada qual exige do psicanalista – da pessoa, do movimento, da escrita psicanalítica – a mesma sublime ambiguidade heurística que se usa com o paciente, ao propor uma interpretação. Nossa fala é apenas uma sugestão – cujo poder sugestivo jamais deve ser desconsiderado, aliás –, que não se converte em interpretação ao ser aceita ou rejeitada, senão por seu efeito sobre as associações. Sempre que se procura provar que uma sugestão interpretativa é verdadeira, não ocorre a interpretação. Qualquer tentativa de provar, fora do estrito âmbito interpretativo, essas hipóteses, que tampouco são exatamente hipóteses, leva a contradições insustentáveis, que se podem facilmente observar no contorcionismo dialético praticado por alguns dos sucessores de Freud, quando tentam explicar que, se o sentido explícito de uma de suas teorias não é verificável, isso decorre da estreiteza do leitor, que não soube reconhecer sua amplitude metafórica. Afinal, na Psicanálise ou fora dela, egípcio é simplesmente alguém que nasceu no Egito…

Como foi que as ficções freudianas perderam a gravidade heideggeriana, o grave que dá que pensar, e se tornaram meramente sérias? Pela repetição. Napoleão teria dito que a única figura de retórica séria é a repetição, e estava certo, mais certo do que podia então imaginar. Não só é séria a repetição, como repetitiva, a seriedade. Se cada vez que dissesse Édipo ou Metapsicologia o analista tivesse de pagar royalties, o fundo de pensão dos pensadores anônimos estaria garantido, sem reforma da Previdência. O complexo de Édipo pode ser entendido como um gracioso convite interpretativo a que se usem os milhares de personagens, das centenas de mitologias, para reinventar o homem, esse ser que se objetiva e reifica a cada volta do parafuso teórico – o novo esmagador de polegares. A metapsicologia comporta uma pilhéria deliciosa com a Metafísica de Aristóteles, assim conhecida por vir depois do livro da Física, mas que já é evidentemente ciência do espírito; ou seja, metafísica = psicologia. Em consequência, o título metapsicologia poderia ser traduzido como meta-metafísica, enquanto seu conteúdo, por dupla negação, aproxima-se ao de uma física da psique: quantidades, forças, estruturas, movimento: um aparelho. A Metapsicologia é, portanto, um jogo de armar, que permite todas as recombinações internas imagináveis, além de ser um convite a que se criem outros jogos semelhantes. Essa é uma atividade perfeitamente legítima, desde que se reconheça que seu objeto é imaginário, a máquina da alma. E que, por favor, se evite chamar também às montagens próprias de metapsicologias, o que, convenhamos, seria de um mau gosto atroz. Convertidas as teorias em moda, prestam-se ao pedantismo denunciado por Mallarmé em Poesia para todos, onde qualquer um pode dizer: para mim, o importante é o après-coup, para mim, toda interpretação é edipiana, ou metapsicológica, ou transferencial, para mim…

Desde pelo menos As nuvens, de Aristófanes, desde o Satiricon, de Petrônio, o espírito humano nunca deixou de apor o carimbo de seu risinho irônico sobre a seriedade descabida com que as novidades do pensamento se esparramam, como um selo de garantia da possibilidade de pensar – só um sorriso separa o joio da moda, do trigo com que se fabrica o pão do conhecimento. Molière ainda nos faz rir da solenidade médica, que só um honesto hipocondríaco consegue apreciar. Flaubert tentou arrolar num dicionário as idées reçues de seu tempo, que idolatrava qualquer coisa que tivesse aparência científica. As trapalhadas de Buvard e Pécuchet, os modernos enciclopedistas, impregnados até o tutano de crença no método científico, retratam o ideal da clareza positiva ao alcance de todos. Joyce, numa época em que as interpretações já começavam a suplantar em popularidade as teorias científicas, fez a tradição irônica escalar a montanha da vida quotidiana até o topo. Falta à psicanálise, porventura, o que não faltava ao pensamento freudiano, um Mulligan, o daimon irônico de Stephen Dedalus, ou melhor, seu therapon, a insuflar as contradições entre sentimentos e intelecto e a levar ao ridículo a pretensiosa certeza das referências teóricas. Hoje, talvez não seja ainda demasiado tarde para transformar a ironia em método entre nós analistas, a meia-voz, enquanto a oficialidade séria se distrai a brincar de Titanic na banheira.

Concluindo. Esta dimensão da máquina de pensar de Freud, a ironia em método – modelo de objeto imaginário que aqui só se mostrou fugazmente, quando interpretamos suas constelações teóricas usando o Moisés como interpretante –, integra-se perfeitamente à Psicanálise, mas fica quase sempre de fora das psicanálises, mesmo daquela que nos legou.

 

 

Endereço para correspondência
Leda Herrmann
Rua Girassol, 34/102 - Vila Madalena
05433-000 São Paulo - SP
Tel.: 11 3088-8123
E-mail: herrmannfl@globo.com

Recebido: 12/02/2009
Aceito: 01/03/2009

 

 

* O texto que aqui aparece em forma de artigo faz parte do extenso curso Da Clínica Extensa à Alta Teoria. Meditações Clínicas, ministrado pelo autor de 2002 a 2006, no Instituto de Psicanálise da SBPSP e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. Trata-se do item 3 de “O análogo”, a segunda meditação do curso. Escreveu todas as aulas, pois sua intenção era publicá-lo em livro. Em forma mais reduzida, e com o título “O atrito do papel”, foi publicado na revista Língua Portuguesa, edição especial “Psicanálise & Linguagem”, 2008. É preciso esclarecer as diferentes grafias estabelecidas por Fabio para psicanálise. Com P maiúsculo quando se refere à ciência psicanalítica e com p minúsculo para seus usos adjetivados.
** Fabio Herrmann (1944-2006) era médico e psicanalista. Foi membro da SBPSP, presidindo-a no biênio 1986-1988, e professor da Pós-Graduação da PUC-SP. Autor da Teoria dos Campos, com extensa produção escrita, fundou o CETEC (Centro de Estudos da Teoria dos Campos), que presidiu até sua morte.
*** Membro da SBPSP. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Presidente do CETEC. Neste texto são de sua autoria as notas explicativas, os resumos e as palavras-chave.
1 Os dois parágrafos iniciais do texto remetem à pergunta formulada por Fabio no início do primeiro item desta segunda meditação, intitulado “O tédio epistemológico”: “Existe a teoria psicanalítica?”. Pergunta desafiadora, que tem o propósito de discutir o estatuto da construção de teorias em Psicanálise, bem como “o lugar e a forma de seu processamento”. Demonstra na resposta que o analista, para teorizar a clínica – sua empiria –, retira-se a um lugar não indiferente a ela, mas reservado, e que trata por um lugar análogo. Lugar esse condizente à estranheza da construção de nosso saber, a ficção teórica, estranheza que na pena de nossos críticos positivistas transforma-se em acusação. Fabio considera as teorias psicanalíticas quase ficções literárias que descobrem/inventam representações do mundo, empiricamente quase tão falsas como as peripécias de um romance. Mas que, assumindo a categoria de interpretantes, possuem, como em um romance,“o dom de pôr à mostra a verdade oculta do mundo”. Para Fabio a ficção é o reino análogo da Psicanálise, da mesma forma que a matemática é o reino análogo da física – em suas palavras, “se a metáfora poética da física dá-se em suas equações, nossa metáfora poética realiza-se na ruptura interpretante da teoria”.
2 A distinção que Fabio faz entre o pensamento que produz um texto e a forma escrita que ele toma é o tema do artigo. Discute-a da perspectiva das resistências do autor, inerentes ao escrever, e a da recepção do leitor, como os dois lados de uma moeda. Encontra para o desenvolvimento de seus argumentos uma metáfora – o atrito do papel. Assim, é o atrito do papel que exerce no autor/escritor maior peso na objetivação da ideia exposta que na transmissão de sua máquina de pensar. Do lado do leitor, ele, o atrito do papel, instiga o exercício quase voraz de sua necessidade de entender o texto que tem em mãos. O mundo em que vivemos não mais se dá a conhecer por si, somente a informação nos permite penetrá-lo. O conhecimento passa, então, a valer principalmente pela sua utilização, e não pelo seu valor de descoberta. É dessa forma que, para Fabio, se estabelece no leitor a guerra com a obra, e, nessa guerra, “entender é objetivar”.