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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

Da palavra do corpo ao corpo da palavra: a letra aprisionada

 

From the word of the body to the body of the word: the imprisioned letter

 

 

Mariângela Mendes de Almeida*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Universidade Federal de São Paulo
Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de considerações evocadas pelo trabalho com dois pacientes que apresentam níveis diferentes de funcionamento mental, a autora descreve uma situação em que a manifestação da “escrita” se dá como “extensão do corpo”, e outra em que a inscrição concreta da letra “no corpo” ocorre, em contexto de anestesia quanto à vivência de dor psíquica. Para que o trabalho analítico possa fortalecer a consistência das expressões e das várias manifestações psíquicas de forma abrangente, enfatiza-se a atenção e a escuta, tanto a aspectos elaborados e “mentalizados”, quanto a aspectos primitivos, expressos ainda em um registro sensorial, a serem acolhidos e processados na relação paciente-analista.

Palavras-chave: Estados primitivos da mente, Dor psíquica e anestesia, Comunicação paciente-analista.


ABSTRACT

Considering the work with two patients in different levels of mental functioning, the author describes a situation in which “writing” happens as “an extension of the body”, and another in which there is a concrete “inscription of letters on the body”, in a context of difficulty in experiencing psychic pain. The attention and containment regarding not only “mentalized” but also primitive aspects, still expressed in a sensorial level, are emphasized, so that psychic experience including its varied manifestations, can be enlarged and processed within the analyst and patient relationship.

Keywords: Primitive states of mind, Difficulty in experiencing psychic pain, Analyst and patient relationship.


 

 

Primeiro ato: Em estado gasoso Hélio, escrevendo no ar: a letra como extensão não articulada do corpo

Hélio, do alto de seus 15 anos, no meio da sala de análise, escreve no ar. Seus dedos se movem rápida e agilmente em pequenas parábolas e elipses mirabolantes, em agitação ordenadamente caótica. Com os braços esticados à sua frente, o corpo duro, em pernas juntas, salta e volta ao chão. O olhar extasiado atravessa sua pauta virtual, enquanto escreve e escreve... Sua tela volátil, encontrando um registro em mim, sua analista por contínuos sete anos, sugere letras, códigos, sinais, em progressão horizontal, inscritas em um plano etéreo construído entre a parede e a sombra de seu corpo “inscritor”.

Estará ali algo que tenta dar forma a excitações motoras e sensoriais que se acumulam, circulando por seu corpo e redes neurais, em rápido trânsito por seus pés saltitantes, braços tensos, até a ponta de seus dedos-lápis, contato-saída para o circuito externo? Curioso é que algo se produz, há contido no gesto de Hélio uma sutil incipiente observação, mesmo que ainda rudimentar, do que os outros humanos fazem à sua volta. Imitação, diríamos, mas talvez germe de percepção de criação que pode ser desenvolvido, expandido e corporificado em construção.

Parece estar presente alguma noção de que aqueles “registros”, mesmo que originalmente só manifestações motoras, são importantes, de que aquelas letras-signos, que se dissipam no ar, podem vir a ter algum registro em alguma mente, como de fato tem, em nossa mente-analista.

Por vezes, o olhar de Hélio se dirige para a sombra que seu corpo todo faz na parede branca, e outra inscrição do corpo se procede, corpo que se desenha em contraste, produzindo contornos, e que move o corpo saltitante de Hélio a “escrever” mais e mais. Para que destinatários? O que pode ser “lido” de sua invocação? Por que “escreve”, se o circuito é aparentemente só sensorial e bidimensional, não parecendo haver necessidade de um receptor, de um “leitor”? Arrisco “diálogos” com seus gestos, tento interações com a sombra, acompanho seus “vai-e-vens”; às vezes obtenho de volta um olhar furtivo, um reconhecimento da intervenção na composição.

Sustento que o investimento do “analista-leitor” como interessado na incipiente manifestação de interesse de Hélio pelo mundo dos comunicantes cria a caracterização da “escrita-no-ar” como possível rudimento de contato, pressupondo um sujeito que pode então vir a ser além da sombra.

Ao longo de anos de trabalho com crianças como Hélio, que fazem parte do chamado espectro autístico, tenho desenvolvido a impressão de que tais cenas não seriam as mesmas se não estivéssemos ali para registrá-las em nossa “pauta” interior. Por outro lado, consideramos com frequência: pouca diferença faz um outro estar presente ou não, a criança não incorpora o outro na brincadeira ou na relação, não há vínculo, a atmosfera é de não existência e de vazio. Entretanto, seja ao nível dos tropismos (Bion, 2000; Korbivcher, 2007), seja ao nível do contato sensorial, não-verbal (Spessoto, 2009), algo é “atirado”, “lançado” ao campo, e amplificado, tomado como impactante pelo analista em um contexto vincular que inicialmente experienciamos em nossa própria mente sonhante para compartilharmos então com nosso suposto interlocutor em construção. Como em Hélio, algo parte do extremo de seus dedos-lápis para o ar, e, como gás que se expande a partir de partículas invisíveis, pode se tornar combustível para dirigíveis em circulação, em uma suposta exploração de possível parceria em atmosfera incipientemente relacional.

A partir do momento em que as parábolas de Hélio são expressas ao campo, ocorre uma sequência de registros na qual a mente do analista, com suas redes conectivas e capacidade sonhante, constitui o primeiro suporte. De forma originária, retrospectivamente, considerando-se o desenvolvimento do recém- nascido, a mente sonhante da mãe conecta e imprime a registros rudimentares a contextualização em uma rede pensante em circuito aberto. Quando, como analista, lhe ofereço um suporte- papel, surge a possibilidade de um registro compartilhável pelos dois olhares. Surge, pelas mãos de Hélio, agora segurando um instrumento-lápis-funcional, o desenho de um “escuro”, acompanhado pela fala assustada aludindo a uma situação de medo. Mesmo que ainda em terreno primitivo, o contato dos elementos sensoriais em Hélio (“em estado gasoso”) com o suporte- mente do analista permite a passagem a um outro estado de consistência mental, que viabiliza a representação nomeada no papel e a alusão a estados emocionais. Desenhando um garoto junto ao escuro, trago para nossa tela-papel a figura de Hélio na escuridão da noite. Nosso diálogo “Como ele está?” “Está brincando”, dá continuidade à área da palavra como representação ganhando corpo, como alternativa à letra silenciosa e frenética como extensão não articulada do corpo.

Em outra sessão, também iniciada com a escrita de Hélio no ar, trago, junto com o papel, dois lápis de cores contrastantes, um para ele, outro para mim, buscando um possível diálogo à la jogo de rabiscos informal.

Surgem então, pelo lápis de Hélio, blocos inicialmente monolíticos e angulosos, que ele nomeia como casa, prédio e elevador. Em uma oposição intuitiva de que vou me dando conta, trago traços ondulantes, curvos, esféricos e uma expressão que se configura em um rosto. Hélio a identifica: “Uma cara”. Faz em seguida “a luz de quatro”, uma figura vestígio-sobrevivente que habita seu mundo imaginativo de forma relativamente estereotipada desde que começou a falar e a se movimentar pelos túneis e viadutos para ser levado por seus pais a seu tratamento analítico intensivo e consultas médicas.

Surgem também, pelos traços de Hélio, repetidas letras E. Tais letras me sugerem a palavra “Eu”, que escrevo, dispondo minha associação para o plano compartilhado. Hélio rapidamente recobre os “Es” com traços fortes que os descaracterizam. Em uma folha separada, faz nova tentativa de E, mas, em rotação, a recobre com mais traços, de forma que o E, agora deitado, adquire para mim o aspecto de uma malha que parece ir se fechando. Hélio diz que é uma prisão. Desenho então uma mãozinha procurando uma brecha, saindo da grade. Hélio sorri.

Abre-se uma brecha no contato, a partir da “mãozinha” da reclamação (conceito de Alvarez, 1994) que circunscreve a convocação invocante, o chamar para a relação, do investimento desejante (Mendes de Almeida, 2008), da aposta pulsional do analista (Marucco, 2007), da recepção aos tropismos (Bion, 2000; Korbivcher, 2007), do sonho-alfa do analista e do contato com os aspectos não-verbais como ponte para o desenvolvimento da experiência emocional (Spessoto, 2009).

No próximo desenho de Hélio, surge, frágil e incipiente, uma figura humana, um rosto, com feições, embora sobrepostas, já merecedoras de menções discriminadas, a serem ainda mais trabalhadas, mas já receptoras de um traço. E surge novamente o E, agora mais limpo, denominado por Hélio de “uma letra”. Uma letra ainda não encadeada em cadeia significante, mas, apesar das tentativas de encobrimento e rasuras, sobrevivente à prisão.

 

Segundo ato: Em estado sólido Marco, escrevendo no corpo: a presença da letra na anestesia da palavra

Marco, 15 anos, chega ao consultório trazido por sua mãe, charmosamente tatuada no braço, após ter assustado todos com a inscrição das letras do nome da namorada em seu peito com uma gilete. Tal relato contrasta com a figura de Marco, garoto de bermuda e boné, estilo skatista moleque, aparentemente pouco preocupado com o acontecido.

Ao segundo encontro, Marco vem sozinho, cabelos soltos em estilo “emo”, roupas escuras e acessórios de metal. Bem rente ao pescoço, aparece uma grossa corrente com uma gilete alegórica de metal maciço e um cadeado cuja chave, relata orgulhoso, foi jogada fora por um colega de seu grupo adolescente.

No decorrer de seu atendimento, fica claro seu esforço em discriminar o espanto de todos, inclusive da própria namorada, de sua própria reação à sua atitude – segundo ele, “superficial”, como a profundidade de suas “letras-cortes” inscritas no peito.

Segundo Marco, ele só queria mostrar que seu sentimento era único, especial. A namorada estaria sendo desejada por outro garoto, que, como ele, também era muito parecido e se aparatava como um ídolo musical admirado pelo grupo. Marco quis chegar ao extremo da “declaração”, em uma versão contemporânea do romântico pacto de sangue. Entretanto, o êxtase se desfez quando Marco soube que seu “gêmeo-pretendente” também fizera o mesmo. Mais ainda, o ápice perdeu muito de seu sentido quando Marco “realizou”, ou pôde conectar aspectos pré-conscientes, inconscientes e conscientes, de que seu ídolo, com o qual tanto quisera se identificar, também já havia feito o mesmo para se declarar à amada.

Conta-me isso como um segredo “recém-descoberto”, que paradoxalmente o envergonha, por macular sua atitude como cópia e não mais original, ou conferidora da subjetividade única tão almejada. A marca-marco de sua subjetividade fora diluída no modelo idolatrado de identificação-mor.

Aprisionado em seu conflito, legítima subjetivação × identificação com uma subjetivação conferida pela estampa coletiva, Marco ostenta a “coleira” com o pingente inscritor, da qual se orgulha não ter mais a chave. Como marcas registradas de seu pertencimento para se sentir existindo, tais quais as marcas que se imprime, a gilete e o cadeado sem perspectiva de abertura apresentam a assinatura de seu ato e “garantem” uma aparente subjetividade temporária em seu percurso para uma individualidade legítima.

Garoto moleque de boné, “dark” radical, ou marco de si-próprio, o que o faz precisar marcar o corpo com o corte concreto das marcas de sua tribo?

Por enquanto, Marco ainda se encontra aprisionado em coleira- corrente, com lâmina cortante e cadeado sem chave para a abertura da prisão, como as letras em seu peito, que infligiram imolação, mas que perderam a força de comunicação ao se verificarem não originais. Aprisionado no próprio conflito, Marco faz uso do próprio corpo como suporte anestesiado e autocicatrizante, escudo protetor em relação ao sentir a dor dos conflitos psíquicos.

As letras no peito de Marco, a um só tempo aprisionadas e aprisionantes, são por ele descartadas, cicatrizadas pela superficialidade, se não transferidas de palavra-no-corpo para um nível de representação com conteúdo psíquico. É possível resgatar-se a chave?

 

Terceiro ato: Em estado líquido Para além do corpo sólido anestesiado ou da dispersão das partículas gasosas: A alquimia analista- paciente

Nos contatos analíticos com pacientes como Hélio e Marco, nos percebemos analista-leitor-produtor, coconstrutor e coescritor, em um suporte outro que não a extensão automática do corpo, nem o corpo mutilado indolor da anestesia.

Oferecemos nossa tela-mente como registro sensível articulador de representações a serem pouco a pouco tecidas com matéria compartilhada de vários tipos de fios, dos mais rudimentares e rústicos aos mais especiais e sofisticados, dos materiais sensoriais primitivos aos materiais mais trabalhados e elaborados por nossa capacidade simbólica.

Acredito ser esta trama abrangente a fonte de onde extraímos nossas produções mais significativas, nossas palavras, conceitos e teorias mais encorpadas. Da palavra “do” corpo, passando pela palavra “no” corpo, ao corpo da palavra, como linguagem e entidade viva e consistente, entre dispersões e aprisionamentos, transitamos, como líquido, por entre diversos registros (não só alfa-béticos, mas também protoelementares), flexibilizando barreiras, em contínuas transformações.

 

Referências

Alvarez, A. (1994). Companhia viva – Psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, carentes e maltratadas. Porto Alegre: Artmed.

Barros, I. G. (2008). Explorações em autismo, trinta anos depois. Trabalho apresentado no Encontro Internacional O Pensamento Vivo de Donald Meltzer, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, agosto de 2008.        [ Links ]

Bion, W. R. (2000). Cogitações. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Korbivcher, C. F. (2007). Os fenômenos autísticos e o referencial de Bion: novas perspectivas. Psicanálise, 9(2), 407-435. Publicação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.        [ Links ]

Marucco, N. C. (2007). Entre a recordação e o destino: A repetição. Conferência na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, março de 2007.        [ Links ]

Mendes de Almeida, M. (2008). O investimento desejante do analista frente a movimentos de afastamento e aproximação no trabalho com os transtornos autísticos: impasses e nuances. Revista Latino Americana de Psicoanálisis, 8, 169-184. Federação Psicanalítica da América Latina.        [ Links ]

Silva, L. A. O. & Mendes de Almeida, M. (2007). Estados primitivos da mente – Poema e polêmica. IDE, 30(45), 52-55.

Spessoto, L. B. (2009). O sonho-alfa do analista como recurso para sustentação e desenvolvimento do continente e do conteúdo durante turbulência emocional. Trabalho apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, abril de 2009.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Mariângela Mendes de Almeida
Rua Escobar Ortiz, 628 – Vila Nova Conceição
04512-051 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3842-8839
E-mail: mamendesa@hotmail.com

Recebido: 20/04/2009
Aceito: 30/04/2009

 

 

* Membro filiado ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Psicóloga com Mestrado pela Tavistock Clinic e University of East London. Desenvolve atividades clínicas e didáticas no Setor de Saúde Mental, Pediatria, na UNIFESP, e é Professora convidada no Instituto Sedes Sapientiae.