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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

A forma: sua importância semiótica e psicanalítica

 

The form: its semiotic and psychoanalytic relevance

 

 

José Antonio Pavan*, I, II ; Lauro Frederico Barbosa da Silveira**, II, III

I Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
II Núcleo de Psicanálise de Marília e Região
III Universidade Federal de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No diálogo entre a Semiótica como proposta por C. S. Peirce e a Psicanálise, pode ser pensada a importância das formas mítico-metafóricas de apresentação e representação do psíquico para determinar interpretantes adequados para que a nossa conduta leve ao possível encontro com o objeto desejado.

Palavras-chave: Forma, Metáfora, Psicanálise, Representação, Semiótica.


ABSTRACT

Through the dialogue between Semiotics as it is proposed by C. S. Peirce and Psychoanalysis, it can be considered the relevance of the mythic – metaphorical forms of presentation and representation of the Psychic in order to determine adequate interpretants for our conduct aiming its possible meeting with the desired Object.

Keywords: Form, Metaphor, Psychoanalysis, Representation, Semiotics.


 

 

Charles S. Peirce e Sigmund Freud foram contemporâneos um do outro, tendo Peirce nascido em 1839 e falecido em 1914, e Freud nascido em 1856 e vindo a falecer em 1939. Não tiveram, certamente, oportunidade de se conhecer, tendo realizado carreiras profissionais bastante diversas. Ao relacionamento em comum que tiveram na pessoa de William James, com o qual Peirce se correspondeu intensamente e Freud se encontrou quando de sua visita aos Estados Unidos em 1909, não cabe atribuir qualquer aproximação entre ambos. Contudo, passados os anos, e a partir do nosso atual ponto de vista, há muitos aspectos que aproximam o pensamento destes dois grandes homens e muito proveito decorre de colocarmos em mútuo diálogo o que propuseram, Peirce de um ponto de vista mais filosófico e Freud sob um viés psicanalítico ou metapsicológico.

Antes de encetarmos esta tentativa de diálogo, uma avaliação prévia da postura por ambos assumida poderia ser aqui lançada: tanto Peirce quanto Freud foram pensadores em plena atividade no final do século XIX. Peirce, vindo a produzir até o final da primeira década do século XX, e Freud, prolongando seu trabalho até o final da terceira década, promoveram, a duras penas, mudanças significativas e, quiçá, definitivas na concepção de homem e de seu psiquismo.

Desde os séculos XVI e XVII, o relógio mecânico e a habilidade de relojoeiro vieram a servir de modelos para se compreender o funcionamento e a constituição dos seres, inclusive os seres vivos. Conhecer um mecanismo, como produzi-lo e como consertá- lo passou a ser o próprio modelo de ciência. Conhecer seria dominar a natureza, analisá-la em suas partes constitutivas e ser capaz de denominá-las, classificá-las e, a partir delas, sempre que possível, reconstruir o conjunto e pô-lo novamente a funcionar. Do mesmo modo, fazer com o pensamento: encontrar suas partes mínimas e suas regras de formação, tanto pela lógica, quanto pela gramática. Diante do desconhecido, procurar analisá- lo, no sentido de decompô-lo, descobrir sua lógica interna e dominá-lo a ponto de subsumi-lo a leis gerais que permitam prever seu estado em algum momento do tempo. As ciências que servem de modelo a partir de então são a lógica, a gramática, a matemática e a mecânica racional. Subsidiariamente, vem a história natural e sua arte classificatória e, já no final do século XVIII, a química, como química analítica. A medicina encontrará na anatomofisiologia sua base científica, o tratamento das doenças sendo somente complementado pela arte de curar ou de cuidar do doente.

A Alma, ou na linguagem que nos é mais familiar, o psiquismo, somente seria redutível ao estudo científico se pudesse se identificar com os fenômenos físicos e ser compreendida mecanicamente. Caso contrário, dela só caberiam os ditames da religião e da moral ou as formas simbólicas da poesia.

Tanto Peirce quanto Freud foram, pois, formados nesta concepção de conhecimento e de ciência, e jamais desprezando as exigências da busca racional da verdade e do rigor da conduta diante do fenômeno – sendo, assim, plenamente, mentes científicas –, foram capazes, devido a este próprio rigor e honestidade, de remodelar em profundidade o próprio conceito de ciência.

Coincidentemente, no ano de 1896 ambos os pensadores propuseram o elemento básico para revolucionar a concepção de ciência e a própria constituição da realidade. Peirce conclui, a partir de seus estudos sobre a representação matemática do contínuo, que o possível era um modo afirmativo de ser, ao lado do existente e do geral, e não simplesmente aquilo que se aceita porque não se sabe ser impossível. Um verdadeiro contínuo não é composto por infinitas partes discretas, mas por entidades meramente possíveis, mesmo assim perfeitamente reais. Freud, por sua vez, propõe o inconsciente, sendo neste ano de 1896 a primeira vez que o termo psicanálise foi utilizado, como uma realidade afirmativa no âmbito psíquico e não tão-somente como o que, pela tradição, corresponderia ao não-consciente.

Com a nova conceituação de potencialidade, considerando-a como um modo de ser sui generis, Peirce irá construir definitivamente um quadro de categorias que possa organizar tudo que aparece ou possa aparecer a uma mente independentemente de ser real ou imaginário, decorra de vigília ou do sono, sem que lhe seja atribuída verdade ou falsidade. Três traços irredutíveis uns aos outros caracterizariam todas as aparências, e a eles Peirce denominará respectivamente Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.

A Primeiridade caracterizaria tudo que se manifesta como liberdade, qualidades de sentimento, espontaneidade e potencialidade afirmativa; a Secundidade caracterizaria tudo que se manifesta como esforço, como ação e reação, fato acabado e existência; a Terceiridade, finalmente, caracterizaria tudo que é lei, mediação, regularidade, contínuo e a própria representação como mediação.

Dispondo, então, desse quadro categorial, aplicável a tudo que apareça ou possa aparecer a uma mente, Peirce poderá prosseguir em seu trabalho de natureza filosófica e, por exemplo, definir o pensamento como signo e, da definição e em conformidade com as categorias, descrever todas as formas legítimas de representação da realidade e de determinação da conduta futura.

Uma das enunciações mais simples do signo na dinâmica do pensamento cremos poder ser a seguinte:

Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen. “Ideia” deve aqui ser entendida num certo sentido platônico, muito comum no falar cotidiano; refiro-me àquele sentido em que dizemos que um homem pegou as ideias de um outro homem; em que, quando um homem relembra o que estava pensando anteriormente, relembra a mesma ideia, e em que, quando o homem continua a pensar a mesma coisa, digamos por um décimo de segundo, na medida em que o pensamento continua conforme consigo mesmo durante esse tempo, isto é, a ter um conteúdo similar, é a mesma ideia e não, em cada instante desse intervalo, uma nova ideia. (CP 2.228)1 (Hartshorne & Weiss, 1931/1976)

A definição de signo aqui exposta supõe que o signo em sua função de representamen seja dotado de uma potencialidade tal que lhe permita identificar-se ao menos parcialmente com o objeto e que, por outro lado, dê lugar a um outro signo que comungue daquela mesma qualidade e que possa esclarecer para a mente o modo pelo qual possa, através daquele signo, vir no futuro a encontrar efetivamente o objeto. A ideia produzida é a atualização da mente, em forma de um hábito de conduta com referência ao objeto no qual a conduta irá encontrar sua finalidade.

Em inúmeras vezes Peirce retomará sua concepção de signo, explicitando em cada ocasião aspectos diferentes nela contidos. Para o nosso presente propósito, vamos considerar somente uma delas:

Há duas coisas de fundamental importância de que se assegurar e para se lembrar. A primeira é que uma pessoa não é absolutamente um ser individual. Seus pensamentos é o que ela está “dizendo para si mesma” 2, isto é, dizendo àquele outro seu (self) naquele momento vindo para a vida no fluxo do tempo. Quando alguém raciocina, é a este eu crítico que está tentando persuadir; e todo pensamento, seja lá qual for, é um signo, e é predominantemente da natureza da linguagem. A segunda coisa a lembrar é que o círculo social do homem (embora esta frase possa ser entendida num sentido mais estreito ou mais amplo) é uma espécie de pessoa frouxamente compacta, em alguns aspectos de um nível mais alto do que a pessoa de um organismo individual. (EP 2: 238)3 (PEP, 1998)

Neste texto, o que mais nos parece chamar a atenção é o caráter intrinsecamente dialogante do pensamento para Peirce. Seja no âmbito interior da subjetividade, seja nas relações sociais o pensamento não muda seu caráter de um diálogo cujo fim é a determinação da conduta com relação a um objeto que, representado no signo, avalia-se que seja o bem a ser alcançado no futuro mediante o trabalho de pensar. Por esta razão, Peirce é levado a reiterar que o sujeito é uma pessoa e não, primordialmente, um indivíduo. A noção de indivíduo implica separação de tudo que não for ele e, quando se atribui o pensamento ao indivíduo, tende-se a reduzir o pensamento a ideias cujo acesso se dá por via imediata e não mediante signos.

A pessoa pensa mediante signos e estes trazem em si o legado das gerações passadas. Pensa-se mediante os signos os quais, como acima se viu, referem-se a objetos e determinam condutas motivadas por estes objetos.

A importância da forma do signo encontra na semiótica de Peirce uma profunda fundamentação filosófica. Não há signos cuja grafia seja indiferente à conduta. Esta grafia motiva sensivelmente a atenção e o desejo de se conformar à conduta para a busca do objeto.

Diante deste signo, o eu surge no fluxo do tempo; o eu, pois, em seu momento presente é persuadido a investir seu desejo em um objeto que pela tradição lhe é oferecido como realizador de sua personalidade.

Encontra-se o eu que surge, em um instante crucial de decisão. Do passado recebe uma mensagem carregada de investimento afetivo, seja na forma de sucesso, seja, até, na forma de fracasso. A persuasão que sobre o eu é exercida supõe, contudo, que este se deixe convencer sobre a validade do que lhe é oferecido. Cabe-lhe no presente atualizar seu caráter crítico, avaliativo e, em última instância, poético. A esse eu também cabe, ao interpretar o signo que recebe tão carregado de poder de persuasão, construir um signo interpretante, que direcione por sua própria conta a conduta rumo ao objeto designado por aquele signo. Sua capacidade de criar um signo que lhe seja próprio é a atualização daquele potencial afirmativo característico da Primeiridade, descoberto por Peirce no ano de 1896 e integrado em sua fenomenologia. Exercer tal ato de liberdade é livrar-se de uma submissão que a persuasão sobre ele exercida por todo um passado poderia induzir. A rejeição pura e simples da herança passada não significaria libertação diante do que lhe é legado, pois tal rejeição plena interromperia o diálogo que confere ao sujeito sua dimensão plena de pessoa.

Somente a produção de um signo novo, resultado de uma função não somente crítica, mas eminentemente poética, é que permite que o fluxo do pensamento, predicado essencial do espírito, se desenvolva e se amplifique para além dos indivíduos e constitua a almejada comunidade dos que buscam a verdade, cuja dimensão para Peirce nem sequer se limita aos humanos, mas confere forma ao próprio universo.

Este constante e delicado diálogo irá se manter vivo unindo as pessoas em um só pensamento, caso conte com a colaboração poética e crítica de todas elas. Pensar sob suas mais diversas formas é se inserir em um fluxo temporal de dimensões ilimitadas que cresce em intensidade e em insistência quanto mais próximo do instante presente da produção de um novo signo estiver.

O passado mais imediato, portador da tradição e da linguagem a ela pertinente, quanto mais próximo estiver, com maior intensidade tenderá a persuadir o eu que surge a reproduzi-lo. Também a determinação da conduta que o signo produzido no presente tende a efetivar será tão mais insistente quanto mais próxima estiver da produção presente do signo. Não fora isto, o contínuo do pensamento se romperia e, por exemplo, a leitura de um texto ou o acompanhamento de uma conversa se tornaria impossível, pois iria se apresentar de modo totalmente desordenado.

Se este ápice do pensamento no instante presente apresentase como ponto de convergência potencial do passado recebido e do futuro a ser determinado, guardando maior insistência o passado e o futuro mais próximos deste ápice, não impede que por afinidade também os signos e, com eles, as ideias se aproximem e se atraiam mutuamente, dando lugar preferencial a signos potencialmente afins quanto às suas formas e suas cargas afetivas. As livres associações certamente se fariam dadas tais afinidades, assim também como a recordação de fatos passados ou a aproximação de ideias que de outro modo dificilmente viriam à consciência.

No texto de Peirce, este acesso por afinidade das ideias faz-se por uma dinâmica que em muito se assemelha àquela que configura a Psique em seus aspectos consciente/inconsciente para Freud. Comparando as relações mentais a um profundo lago, Peirce irá dizer:

A consciência se assemelha a um lago sem fundo no qual se encontram suspensas as ideias, em diferentes níveis. Somente os perceptos são descobertos pelo meio. O significado desta metáfora é que aquelas ideias que estão em maior profundidade são discerníveis somente por um maior esforço, e controladas somente por um esforço ainda maior. Estas ideias suspensas no meio da consciência, elas mesmas sendo partes do fluido, são atraídas umas às outras por hábitos e disposições associativos – os hábitos por associação de contiguidade, as disposições por associação de semelhança. Uma ideia próxima da superfície atrairá uma ideia que está muito profunda, de modo tão tênue que a ação deve continuar por algum tempo antes que esta última ideia seja trazida a um nível de fácil discernimento. Enquanto isto a primeira ideia está mergulhando numa consciência mais obscura. Este parece ser um fator semelhante ao momento4, de tal modo que a ideia originalmente mais obscura torna-se mais vívida do que aquela que a trouxe para cima. A isto se acrescente que a mente tem somente uma área finita em cada nível; de tal modo que trazer para cima uma massa de ideias inevitavelmente envolve carregar outras ideias para baixo. Ainda, um outro fator parece ser um certo grau de flutuação ou associação com qualquer ideia que possa ser vívida, fator este que pertence àquelas ideias que denominamos propósitos; por virtude do qual as ideias estão particularmente aptas a serem alçadas e mantidas próximas da superfície pelos perceptos que fluem para o interior do lago e que deste modo possam sustentar quaisquer ideias com as quais possam se associar. O controle que exercemos sobre nossos pensamentos ao raciocinarmos consiste em nosso propósito de sustentar certos pensamentos onde possam eles ser investigados. Os níveis de ideias facilmente controláveis são aqueles que estão tão próximos da superfície a ponto de serem fortemente afetados pelos presentes propósitos. A capacidade evocativa desta metáfora é muito grande. (CP 7.554) (Burks, 1958)

Certo é que pensar é um amplo processo que nos envolve todos e que, se a sucessão temporal linearmente convergente para o presente incontestavelmente muito significa, em nada impede que outras associações igualmente tenham lugar. O pensamento é igualmente um estado em expansão e, só aparentemente, somos levados a atribuir o pensamento como um predicado do sujeito que pensa. Para Peirce, é mais razoável reconhecer que estamos nós em pensamento, e nisto comungamos com todas as demais pessoas, do que, sermos nós, como indivíduos, seus produtores. Uma simples frase de Peirce resumiria esta profunda realidade:

Do mesmo modo como dizemos que um corpo está em movimento e não que o movimento está num corpo, devemos dizer que estamos em pensamento e não que pensamentos estão em nós. (CP 5.189, n. 1) (Hartshorne & Weiss, 1931/1976)

Dado o caráter generalizante da Semiótica como proposta por Peirce dentro de uma Ciência Geral, podemos neste momento nos ater ao que pode nos fornecer a Psicanálise, em seu caráter de Ciência Especial, com relação ao tema abordado.

Primeiramente, cremos que a própria origem da Psicanálise encontra na interseção das vivências psíquicas com a palavra a procura por uma forma de representação do que estaria além dos processos ditos conscientes, os quais a partir de Freud não mais se confundiriam com a própria razão. Esta visão descentralizadora do simplesmente racional e consciente foi apresentada por Freud quando via na Psicanálise em sua concepção do inconsciente dinâmico, determinante, o terceiro grande golpe ao orgulho humano, depois do heliocentrismo que derrubou o geocentrismo, e do darwinismo que nos colocou na diversidade do reino animal como produto da evolução e da diversificação das espécies.

As concepções psicanalíticas também nos fizeram defrontar com a distinção do que seriam as realidades materiais e as psíquicas. A Psicanálise mostrou que o psíquico pode ser tão objetivo quanto qualquer realidade material na determinação de nossa conduta, tanto a normal quanto a dita patológica.

Deve ser lembrado que, inicialmente, o paradigma da representação do psíquico inconsciente sintomaticamente falando foi a histeria, na qual se corporificam os conflitos psíquicos. Assim, podemos dizer que o corpo fala, ou isto quer dizer que a histeria é a representação corporificada de pensamentos inconscientes conflitivos. O que Freud nos ofereceu com seu método foi a possibilidade de esses fenômenos serem compreendidos dentro de uma cadeia contínua de processos psíquicos e, derivado desta compreensão, serem interpretados para restabelecer para o paciente a continuidade de sua vida psíquica aparentemente desfeita pela repressão, na qual o analisando volta a se reencontrar com suas partes cindidas. Desse modo, o corpo fala, sendo a forma de sua manifestação um aspecto muito importante. Mais importante ainda a ser considerado é que podemos pensar no que o corpo quer dizer com suas manifestações. Os sintomas nos dizem algo do outro, ou melhor, o outro diz algo para nós, mesmo que isso não se dê por meio de signos verbais.

Não pode ser desconsiderada nesse contexto a ideia de Freud de que o consciente se torna inconsciente retirando de suas representações a palavra, ou a representação-palavra. Do mesmo modo, a representação-coisa no inconsciente pode vir a se tornar consciente quando se liga às representações-palavras. Essa concepção em forma diagramática foi expressa no seu artigo “O inconsciente” (Freud, 1915/1974), mais claramente em seu Apêndice C, que apresenta sua concepção das representações mentais, concebidas desde seus primeiros escritos.

Após essas considerações iniciais, adentremos então mais um pouco no tema, considerando a forma como o pensamento de Freud pode evoluir em suas concepções das possibilidades de representar o psíquico real, aquele que era observado tanto nas pessoas normais quanto naquelas que padeciam de distúrbios psíquicos. Freud considerou que o estudo dos fenômenos psíquicos nas neuroses e nos sonhos permitia, pelo contraste com o habitual, que visualizássemos o que haveria de comum em todos nós quanto ao entendimento do funcionamento mental, após concluir que não seria razoável supor que houvesse duas mentes, uma normal e outra patológica, sendo as diferenças de ordem mais quantitativas que qualitativas.

Com o evoluir de suas observações pôde ver que havia algo comum dentre os fenômenos que observava na clínica e que tinha alguma relação com a sexualidade. Inicialmente, considerava que suas deduções levavam a acontecimentos ocorridos factualmente na infância, fazendo, com seu amigo Fliess, conjeturas sobre as épocas em que, se dando determinada vivência traumática, levariam a distúrbios mais específicos na vida futura da criança. É do conhecimento de todos que não tardou para se ver que o que se entendia como sexual, no sentido comum, não correspondia ao que a Psicanálise veio a desenvolver como entendimento do que seria a psicossexualidade e sua importância estruturante do psíquico dos seres humanos.

Correspondendo a essa visão mais concreta e direta da observação dos fenômenos psíquicos, as teorizações iniciais de Freud procuravam representar o funcionamento mental nesse viés mecanicista mencionado no início desse artigo. Isso ficou muito explícito na sua tentativa de representar o psíquico no seu “Projeto para uma psicologia científica”, de 1895 (Freud, 1950/1977). Esse trabalho de profunda elaboração, fazendo parte de sua correspondência com Fliess, só veio à tona em meados do século passado. Não sabemos o que levou Freud a nunca mencionálo explícita e diretamente, mas seu conteúdo está presente em quase todos os seus trabalhos posteriores. Mas quando Freud, alguns anos depois do “Projeto”, publica a sua famosa obra A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1972), deixa claro no capítulo VII, o qual trata dos aspectos metapsicológicos do funcionamento mental, que a partir daquele momento afastava a possibilidade de qualquer intenção de representação do psíquico correlacionado com a anatomia e a fisiologia, dizendo que a sua apresentação diagramática do aparelho psíquico correspondia a um modelo metafórico.

Freud encontra no mito de Édipo a metáfora que com toda razoabilidade permite ser representado o desenvolvimento psíquico, sua relação com a sexualidade (pulsões) tanto na pessoa, quanto nas relações sociais e também na transgeracionalidade, com a possibilidade de contemplar as vicissitudes pelas quais o ser humano passa no seu desenvolvimento como pessoa e como espécie. Inferiu que o passado vivenciado concretamente, no qual na horda primitiva haveria o assassinato dos pais (geração anterior) para a tomada de posse das mulheres pelos mais jovens, se incorporou no desenvolvimento, agora assumindo um papel estruturante do psíquico em um aspecto simbólico e não mais concretamente.

Sua experiência analítica com seus pacientes e em sua autoanálise determinaram em sua mente que o mito de Édipo se apresentasse como a grande síntese do desenvolvimento psicossexual dos seres humanos. A partir dessa configuração se torna possível analisar (decompor) em seus vários aspectos as relações das vicissitudes pelas quais passamos em nosso desenvolvimento.

O mito de Édipo pertencendo à tradição, não tem, assim, nenhum autor específico. Este pode ser considerado um indício da forma que o pensamento adquiriu nos primórdios da civilização tal como a concebemos no Ocidente. Por sua vez, na cultura grega, Sófocles, em sua tragédia Édipo Rei, nos legou em forma de uma peça teatral esse mito, a qual foi representada por várias gerações, sempre contando com grande número de espectadores, certamente pelas verdades intrínsecas que contém, como afirmou Freud.

Na peça teatral podemos ver a forma como Édipo interpreta os oráculos do templo de Delfos que falavam de seu destino. Por ser tomado no seu sentido literal, o oráculo acaba se realizando, vindo Édipo a matar seu próprio pai e a casar-se com sua mãe, cumprindo assim os vaticínios do oráculo.

Tais consequências se deram pela interpretação não metafórica dos conteúdos do mito. Todos nós compartilhamos do Complexo de Édipo e temos, portanto, que nos haver com o que ele nos diz a respeito das vicissitudes do nosso desenvolvimento. Para que atinja seus objetivos que levam à maturidade do ser humano, não pode ser tomado no seu sentido concreto, mas metaforicamente. A interpretação no seu sentido literal, manifesto e concreto levou Édipo ao seu destino, como também pode levar à interpretação psicótica da realidade. Esse modo de vivenciar concretamente o que deveria se dar no sentido metafórico transforma o que seria seu destino em uma sina. A sina5, com efeito, na conceituação de Peirce, é:

... aquela necessidade pela qual um certo resultado irá com certeza se dar de acordo com o curso natural dos acontecimentos, não importa que possamos variar as circunstâncias particulares que precedem o acontecimento. (CP 7.334) (Burks, 1958)

Édipo, incapaz de interpretar metaforicamente o que lhe fora revelado, procura, com sua fuga de Corinto, determinar seu destino e livrar-se do oráculo; contudo, foi em vão sua iniciativa, pois sua sina, na sua ordem mítica, estava desde sempre inexoravelmente determinada.

De algum modo, mesma sorte coube a Breuer, o qual não ouviu no sentido metafórico, isto é, o que queria dizer sua paciente Anna O. quando lhe revela que estava grávida dele, abandonando o tratamento que lhe ministrava.

Freud, em ocasião que lhe sucede algo semelhante, quando uma sua paciente o abraça, não se restringiu ao conteúdo manifesto, mas procurou compreender o que a paciente queria dizer com aquele gesto, e assim não jogou fora a chave da Psicanálise como fizera Breuer, possibilitando a descoberta da transferência sexual da paciente e seu complexo edípico.

Nesse sentido metafórico, quando a linguagem descreve os fenômenos, tanto quanto na poesia, recuperando seu poder de potencialidade explicativa e sintética, é que podemos entender os mitos e seu poder para agir como estruturante para o entendimento e interpretação do psíquico.

Pretendemos com nossa exposição verificar a importância assumida pela forma na construção das representações dos conceitos psicanalíticos, utilizando para tanto o que nos diz a semiótica peirciana sobre as representações em seu caráter sígnico. Nos propomos nesse momento a nos aproximar um pouco mais no diálogo entre as ciências propostas por Peirce e Freud naquilo relacionado ao presente tema.

Com relação à forma como vemos e interpretamos a realidade, nos mostra que os fenômenos se apresentam à mente por meio de signos, desde as aparências mais discretas até as formas mais complexas que se representam sinteticamente nos símbolos.

Uma visão comum levou Freud à conceituação do inconsciente psicanaliticamente concebido e Peirce à noção de Primeiridade, por observarem os fenômenos na essência do que as aparências apresentam. Assim, levando em consideração os indícios, Freud viu nos sintomas, atos falhos e sonhos o poder de representarem o psíquico em sua continuidade desde o inconsciente até a consciência.

O pensamento de ambos também permitiu a revolução do pensar científico que não mais poderia ficar restrito a um racionalismo nominalista, mas que visse na experiência a base para com ela aprender, como ocorre com toda mente científica. Tal princípio foi posteriormente bem desenvolvido e aprofundado por Bion em seu escrito O aprender com a experiência (Bion, 1991). Do mesmo modo se conduziu Melanie Klein (1991/1996) no desenvolvimento de suas ideias, observando as crianças e seus pacientes adultos em suas relações com o meio nos processos evolutivos, implicando vivências de externalização e internalização e relações objetais com as quais a experiência e o aprender com elas promovem o desenvolvimento com suas vicissitudes.

Outro aspecto importante em comum foi a ideia trazida por Peirce de não ser razoável propor uma teoria mecanicista causalista para explicar todos os fenômenos. Freud por sua vez foi muito claro ao afirmar que em Psicanálise o trabalho é analítico e não sintetizador. A síntese, diz Freud, se faz sem nossa intervenção (Freud, 1919/1976). Portanto, não nos propomos a sintetizar uma pessoa, o que estaria mais de acordo com ações impositivas do tipo sugestivo e hipnótico, e mais discretamente, mas não menos diretivo, nas chamadas terapias cognitivo-comportamentais.

A forma de representar o psíquico inconsciente também tem para Freud de ser tomada em um sentido mítico-metafórico devido ao objeto ao qual se refere, sem com isso comprometer sua capacidade representativa da realidade. Para usarmos os termos de Peirce, o representamen desse objeto (o inconsciente) seriam os signos relacionados com as analogias e modelos que, pelo seu alto grau de poder explicativo generalizado, trazem para os indícios revelados nos processos narrativos e sintomáticos as representações tomadas em um sentido metafórico. Como dito anteriormente, a isso se prestam perfeitamente os mitos. E agora seria apropriado nos lembrarmos da feliz contribuição de Bion ao propor em sua “grade” que a matriz do pensamento em evolução, após os fatos brutos sofrerem a ação da função alfa, se localiza na linha “C” desta grade, onde se encontram os mitos, pensamentos oníricos e os sonhos (Bion, 2004).

A visão que Peirce e Freud têm de um eu pensante em relação com o outro mostra-nos o entendimento em comum sobre o qual pesam as experiências e o desenvolvimento que disso resulta. Portanto, o eu para ambos cresce e para Freud isso se dá à custa da inclusão em si do que resulta do confronto das pulsões do Id com a mediação do Ego em relação com o meio externo.

O entendimento semiótico do pensamento de Freud também é revelado quando este vê nas neuroses um excessivo peso do passado na determinação da conduta. Na verdade, um passado que não passou, se apresentando sempre como atual, se manifestando sintomaticamente como compulsão à repetição. Do mesmo modo, pode ser entendida a transferência na qual na relação do analisando com o analista se presentificam suas pautas habituais de relação objetal. Somente o trabalho analítico bem conduzido coopera para a desconstrução desses hábitos arraigados, podendo fazer recuperar a potencialidade da Primeiridade que, na sua determinação poiética, pode gerar signos novos que podem enriquecer com a originalidade as mudanças geradas pelas renovadas representações que o sujeito tem de si mesmo e da realidade.

Vimos como a descrição que faz Peirce do que seria a consciência e o inconsciente na sua alegoria ao lago pode ser imaginada como um diálogo sobre o tema envolvendo três personagens – Freud, Breuer e Peirce –, tanto são os pontos em comum em suas ideias, mesmo sem nunca terem se relacionado diretamente. Isso seria suficiente para a comprovação da ideia de Peirce de que estamos em pensamento e que o potencial para sua atualização, em qualquer mente, independe de tempo e espaço.

Esperamos que nossa contribuição possa colaborar para a compreensão do quanto o que toma corpo depende para sua determinação de nossa conduta da forma que apresenta. Assim, a forma de ver, isto é, a apresentação, é o componente estético de nossa apreensão. A forma de ser, correspondendo à ação, está relacionada com o aspecto ético de nossa conduta. E a forma de pensar se dá por nossas representações lógicas (semióticas) da realidade.

Nas palavras, tanto em sua representação gráfica quanto na forma com que são escritas, são mediadoras para um fim que é o encontro com o objeto desejado. A interpretação mental do que aquilo quer dizer a nós é que vai nos conduzir para determinada meta a ser alcançada. No exemplo motivador do tema deste volume, o uso da forma helvética de escrita em sua grafia sem-serifa, tornando-a clara e pontual, é usada, pois, como indicador, e é o mais preciso para mostrar algo específico. Escrito de outra forma, o itinerário mostrado no ônibus indicando seu destino causaria interpretações desnecessárias, pois o que importa ao passageiro é um indicador preciso de aonde quer chegar e não qualquer outra informação.

Diferentemente, ocorre em nosso caso que as palavras, tanto as escritas como as ideias que contêm, veiculam pensamentos complexos, em uma relação com objetos que só se alcançam por mediações que exigem interpretantes simbólicos e metafóricos para que, utilizando os indícios de relações afetivas profundas, possamos compartilhar nossos pensamentos tanto em nosso trabalho na clínica, quanto para a transmissão e troca de nossas experiências.

 

Referências

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José Antonio Pavan
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Recebido: 26/03/2009
Aceito: 01/04/2009

 

 

* Membro efetivo e analista didata da SBPSP. Membro efetivo do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região
** Doutor em Filosofia (PUC-SP); Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP, campus de Marília; Membro honorário do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região. Autor do livro Curso de semiótica geral (São Paulo: Quartier Latin, 2007).
1 A referência faz-se aos Collected Papers of Charles S. Peirce (Vols. 1-6). No caso presente: Vol. 2, § 228.
2 Cabe notar que nos Collected Papers (4.421), em vez de “dizendo [saying] a si mesmo”, o texto registra “assegurando [saving] a si mesmo”. A adoção da versão encontrada no The Essential Peirce decorreu do fato de esta edição ter sido realizada posteriormente, e em condições excepcionalmente melhores do que aquela primeira edição.
3 A referência se faz ao The Essential Peirce: Vol. 2, p. 238.
4 Momento, como força aplicada a um corpo em movimento.
5 A sina parece traduzir melhor o fatum latino, o fate em inglês, do que destino. O destino, embora frequentemente possa ser empregado no mesmo sentido de sina, carrega consigo, contudo, um sentido de vocação futura, de meta a ser alcançada, e, portanto, solicitando a colaboração crítica de quem lhe for sujeito.