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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

Entre o design da letra e o corpo invisível da palavra

 

Between the letter´s design and the invisible voice and body of word

 

 

Daniel Delouya*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A relação entre a letra, a palavra e a constituição psíquica é tratada através do drama exposto no filme O leitor, sob a direção de Stephen Daldry (2008), que adaptou o livro de Bernhard Schlink com o mesmo nome (1995) para o cinema. O trabalho tenta articular a dialética entre a condição originária do narcisismo e do amor primário e as vias de ascensão para a alteridade.

Palavras-chave: Movimento, Representação, Letra, Ternura, Alteridade.


ABSTRACT

The relation between the letter, the word and the psychical constitution is treated through examining the drama in Bernhard Schlink’s novel The reader (1995) as represented in the recent film by Stephen Daldry (2008). We try to articulate the dialectics between the original condition of the human being, its primary love and narcissism and its ascension into a differentiated self.

Keywords: Movement, Representation, Letter, Tenderness, Differentiation.


 

 

As letras inscrevem-se com dificuldade, lenta e hesitantemente, no centro da página, destacando o seu espaço vazio, branco; são puxadas como se ao longo de um fio de mínima espessura, gerando um design irregular e uma tipografia que se exaspera em nascer, sobreviver e obter um direito de reconhecimento. São letras que compõem cartas de uma só linha que apela, suplica, grita, pede socorro. Linha exasperada jogada no meio do nada, sobre um imenso fundo neutro de silêncio.

Refiro-me às cartas enviadas pela prisioneira de crimes de guerra Hanna Schmitz ao seu ex-amante, Michael Berg, personagens centrais do livro O leitor (1995), de autoria do professor de direito e o juiz em exercício, o alemão Bernhard Schlink. Aventureiro até então na escrita de policiais, Schlink se volta, desta vez em gênero romanceado, à relação da geração pós-guerra de alemães com seu recente passado nazista. Como conciliar uma condenação sincera ao horror do passado com o esforço, que se faz necessário, de compreender os seus conterrâneos envolvidos na execução nazista? Conciliação que traria, quem sabe, um novo ar de esperança ou uma nova era em que haja um gozo de direito de espaço; a abertura de uma nova e limpa página que possa hospedar outras letras, livres das sombras de outrora e comportando, à semelhança das letras da Helvetica – legíveis, leves e neutras –, o frescor da promessa democrática do nosso tempo por igualdade e liberdade.

Stephen Daldry adaptou o romance ao cinema, lançando o filme no final de 2008. Foi o design gráfico das letras de Hanna, encarnada pela talentosa atriz Kate Winslet, que nos evocou e nos enlaçou ao tema desse número da ide. Um design que se situa em uma oposição completa, em um extremo contraste com o espírito e as mensagens veiculadas pela grafia das letras Helvetica (desespero versus esperança; opressão versus igualdade democrática; incerteza versus estabilidade; angústia versus ampla abertura; agonia versus leveza etc.). E, no entanto, as letras de Hanna pertencem a uma linguagem; são, além de letras, mensagens (cartas) e expressão do ser, conforme os respectivos significados possíveis da palavra falada letra em francês (Lettre, Lettre e L’être). Surge então a questão: como ligar a letra, que se situa em âmbito compartilhado, público, com a mensagem, oriunda de um ser e existência singulares que almejam alcançar o outro?

Para tratar dessa questão exponho abaixo a trama e o enredo do filme: este se inicia com um presente esperançoso, entre dois tempos do passado e do futuro de Hanna. 1958 é o ano do primeiro encontro entre Hanna, de 36 anos, cobradora do bonde municipal, e o jovem Michael, de 15 anos. Ela o vê passando mal na sacada de seu prédio, o socorre e depois o acompanha até sua casa. Ao se recuperar, ele a procura para agradecer, quando ela flagra em seu olhar uma paixão ascendente que o assusta. Ele passa a visitá-la toda tarde, acrescentando ao script do primeiro ato de amor, do despir e do banho, a leitura em voz alta de obras clássicas de literatura que o deleitavam. Essa recitação introduz uma diferença significativa no trato dela para com ele, mas que ela tenta mascarar: no começo, o “ensino” sexual do menino é prussiano, rígido, bruto e ríspido, beirando o abuso; nem sequer cede em revelar-lhe o próprio nome. Michael não compreende esta conduta, pois sua paixão e sua dependência crescem, apesar do seu embaraço com a rejeição que ela manifesta, e que se agrava por repentes explosivos de mau humor. Não obstante, suspeita de uma recíproca amorosa... “Será que nada significo para ti?”, pergunta-lhe incrédulo. Ansiando por sinais de atenção de Hanna, é somente a reação dela à sua recitação em voz alta que o certifica de estar em posse de um instrumento eficaz, um radar capaz de registrar as ondas invisíveis do envolvimento afetivo de sua amada.

Entretanto, um impasse se anuncia, não escapado à intuição do espectador, embora não seja fácil expressá-lo em palavras. Michael não sustenta a sedução das jovens em sua escola, já que contrasta com a busca do amor terno junto a Hanna, que se encobre por detrás de uma intensa prática de iniciação sexual. Ternura que mostra seus liames com o que se desenvolve e satisfaz em surdina sua própria mãe, pois sob a cortina do regime correto e seco de seu pai. Já ao lado de Hanna, é a explicitação de um amor primitivo, infantil e terno, insistente em exigir seus direitos de outrora, e mascarado por detrás de contundentes gestos próprios à instrutora da sexualidade, que a ameaça, porque preste a arrastar consigo as sombras de sua história recente de cujo conteúdo ninguém suspeita. A ruptura consuma-se: Hanna some sem deixar pistas sobre seu paradeiro, embora marcasse de forma indelével a alma e a vida amorosa de Michael. Eis então o prenúncio das nuvens sobre o tempo I, que parecia promissor e animador.

Oito anos se passam e Michael, estudante de direto, assiste, em meio às obrigações de uma de suas disciplinas, ao processo de crimes de guerra. Para seu pavor, Hanna está sendo julgada, por participar, na Segunda Guerra Mundial, junto a outras alemãs, no assassinato de mulheres e de meninas em Auschwitz, famoso campo nazista de extermínio. Interrogam-na com o auxílio de testemunhas. Nesta parte, versando sobre o tempo II da vida de Hanna, aparecem no filme algumas cenas mais duras, porém das mais belas: “Foi o emprego disponível no momento”, defende-se ela. Se ela fechou as vias de fuga para as vítimas, não as salvando da fogueira, é porque “não havia lugar para tanta gente”, ou seja, era uma simples questão de espaço! Hanna espanta-se, na mais ingênua sinceridade, com o interrogatório, como se seu interlocutor ignorasse o óbvio, e como se ela quisesse exclamar: “Haveria, naquelas circunstâncias, outro modo de proceder?!”, para logo deixar o promotor, o juiz, e nós, espectadores, impactados, sem resposta, ao retrucar: “E o senhor, o que faria se estivesse no meu lugar?”.

O que faríamos se estivéssemos no lugar dela? Um depoimento agrava sua situação no julgamento: Hanna costumava se recolher com presas mais fracas e doentes para que elas lessem para ela histórias, antes de enviá-las para as câmaras de gás. Testemunho que incentiva as outras rés a jogar toda a culpa nela, de ter comandado as guardas e de ter redigido o relatório sobre o episódio em que elas fecharam as vias de fuga da igreja incendiada para queimar as presas em vida. Inicialmente Hanna desmente, mas, quando o oficial pede para ela escrever algo com o intuito de comparar sua letra com as do relatório, ela se recusa a fazê-lo, admitindo a culpa. Por isso, ela pega a pena maior, a prisão perpétua. Somente Michael sabe do segredo: Hanna é iletrada. Não saber ler e escrever lhe é insuportável, vergonhoso, fazendo-a assumir uma pena maior da que merecia. Michael se revolta e pensa em tomar medidas para inocentá-la das acusações de comando do grupo e da escrita do relatório, mas recua de sua intenção.

A alienação do mundo letrado, illiteracy (substantivo, ausente na língua portuguesa), constitui uma metáfora central para a relação do povo alemão com o holocausto que cometeu. O autor foi alvo de severas críticas, como se através desse recurso quisesse inocentar a geração alemã envolvida no Holocausto. Polêmica no plano social, cujo interesse, para o psicanalista, reside na relação entre o tornar-se letrado e o saber de si, na assunção subjetiva dos próprios atos. Já no filme, a inocência quanto à intencionalidade dos atos constitui um fio persistente do enredo. E, no entanto, isso não se traduz na ação, pois ninguém, nem mesmo Michael (apesar de seu conflito), poupa Hanna da condenação e tampouco pensa em recorrer da sentença. Fica, no entanto, algo no ar: a inocência no depoimento de Hanna nos toca fundo, misturando sua condenação com uma pena, semelhante à que sentimos ao punir a criança pela crueldade da qual ela parecia não ter consciência. Bion resgatou nesse ato de arrependimento, atonement, a identificação, o estar uníssono com o outro (at-one-ment). Identificação inerente ao apelo da inocência, da inconsciência na criança quanto à própria crueldade e à existência do outro prejudicado. Winnicott, na linhagem Ferenczi- Balint, nos remete ao estágio de pré-remorso e de pré-concernimento, ou seja, aqueles anteriores ao reconhecimento do outro como um ser semelhante. O que nos interessa, porém, é a coincidência da aquisição da letra com a consciência da própria maldade, do desejo. No filme, Hanna adquire esse conhecimento concomitante nos longos anos da prisão, familiarizando-se, a duras penas, com as letras, e com um conhecimento sobre o plano e os feitos nazistas. Saberes aos quais não resiste!

No esquema do livro de Freud (1891), A concepção das afasias, que persiste em toda a sua obra, as imagens de leitura são associadas, em uma extremidade, às imagens da escrita e, de outro lado, às imagens acústicas, vinculadas, por sua vez, na outra ponta da linha, às imagens de movimento da fala. As imagens acústicas da palavra criam uma ponte de acesso à infinita rede de representações-coisa via as representações visuais do objeto. Como isto se cria? São as vozes e os gestos do adulto que dotam o grito e a agonia do bebê, de designs, de imagens de movimento, oferecendo-lhe com isso “notícias de si” (Freud, 1895). Como se o vínculo no adulto, entre a sua ação da fala, os fonemas e suas representações de si próprio e do mundo, orientasse, no intervalo entre ele e o bebê, o crescimento (no bebê) do elo embrionário grito-dor (oriundo da pulsação em meio à ausência), em direção a uma complexa e infinita construção do universo das representações, entre as de palavras e as de coisas. O design, a imagem e a representação formam-se, subsequentemente ao contato (de dor), implícito à exigência corporal perante a ausência; constituem desdobramentos, oriundos e apoiados no outro, em função da sua presença ativa. O investimento pelo olhar se deriva do tocar, tornando-se um tocar à distância (Freud, 1905). A voz própria, da dor do grito, e sua contrapartida, a voz do outro, são tocares, que, em seu desdobramento à distância, associam- se, como indica Freud (1891), ao desenho das futuras letras. Nesses investimentos à distância o objeto é sobrevalorizado no cercar e avançar contíguos, “contagiosos”, da libido. Isso significa que as letras não resultam apenas das formas criadas no espaço transicional pela condução do adulto, através de seus movimentos e figuras do corpo e das palavras, mas constituem também o suporte herdado, derivado, do continente narcísico de fusão com este outro de origem. É este corpo, enquanto território de fusão, que é preciso destruir (Winnicott) e negativar (Green) para dele se separar, e, depois, voltar a investi-lo, junto a outros, como objetos externos separados, situados no espaço comum, o mundo compartilhado onde sujeitos separados circulam, trocam e conversam.

A aquisição prazerosa de registros representativos se faz, então, inicialmente no terreno do narcisismo primário, território indistinto da fusão ao objeto, instaurando o recinto edênico do amor primário. O reconhecimento da alteridade que se impõe mais tarde, demandando um botar-fora, seja do objeto, seja de si, para se lançar em um espaço compartilhado do mundo, encontra duas resistências: a primeira, da intensificação frenética da atividade perversa polimorfa, espécie de idealização da pulsão e da onipotência da libido; a segunda, decorrente já do reconhecimento da realidade da castração e da alteridade que esta imprime, atrai o sujeito ao refúgio no paraíso re-encontrado pela sobrevalorização estética em meio ao investimento libidinal do objeto, tornando-o fetiche que tampa e tampona à vista da castração (Freud, 1905). É a predominância desta última que caracteriza o aprisionamento na demanda infinita da ternura – a palavra bíblica éden significa, ao mesmo tempo, ternura e infinito –, impedindo sua integração no eu junto à acolhida da corrente sensual, marcos da separação do objeto na assunção da castração. Os derivados da pulsão tornam-se auto, “propriedade sua”, quando o sujeito percebe-se separado (Freud, 1905), na medida em que o amor primário e o seu terreno sexual infantil integram-se ao eu, pondo fim a uma demanda infinita, aos objetos exteriores, da ternura infantil.

O teste da separação do objeto primário, quando da integração da corrente terna, configura-se na aquisição do design da letra, no tornar-se letrado. A este respeito Freud evoca, em 1919, três regimes em que a insistência em repetir favorece a ligação e o estabelecer de rotas da representação, pelos quais age o princípio de prazer. O primeiro se encontra nas neuroses traumáticas, o segundo no brincar do fort-dá, e o terceiro no pedido incessante das crianças para que o adulto lesse para elas “de novo” o mesmo conto. Nos três há o esforço de ligar e domar algo traumático. A intimidade da entrega ao colo do adulto que lê permite a cobertura narcísica, terna, e a legitimação em se apoderar dos enredos violentos da fantasia. O que se assemelha à proteção e à intimidade, tão cara às crianças, na imaginada companhia dentro da arca de Noé, que balança sobre as águas tempestuosas do Dilúvio. Imersão e entrega hipnótica ao ambiente que dotam as palavras do adulto de um poder mágico. Freud descobriu muito cedo (1890) que este se deriva da condição primária de entrega, entre bebê e mãe, e cujos ecos são necessários na sujeição ao educador, ao líder, ao médico e ao encarregado do tratamento psíquico.

Hanna permanece prisioneira a este plano fusional da ternura, ao seu leitor (vorleser), ato que, em alemão, reserva-se apenas a quem lê em voz alta para o outro. O verbo vorlesen se restringe à recitação e não ao regime privado da leitura. A passagem para a leitura e a escrita encontra muitas dificuldades em crianças, pela solidão depressiva do separar-se, da alteridade que ela implica. No Totem e tabu (1913) Freud afirma que a apropriação de representações de palavra coincide com a percepção do mundo interno que antes dessa aquisição era projetado, confundindo-se com o mundo. Hanna não atingiu esse grão de alteridade. Quando começa a fazê-lo, após longos anos de prisão, em que se esforça a aprender a ler e entrar em contato com a história do Holocausto junto a autores como Elie Wiesel, Primo Levi, Tadeusz Borowski, entre vários historiadores, a solidão do reconhecimento é insustentável. Michael, de seu lado, não resiste ao fascínio nostálgico da ternura junto a Hanna, pois certa fissura ascende em sua alma, demandando o suplemento pela vitamina de ternura infantil, o que mina seu casamento e o relacionamento com sua filha. Ele nunca parou de pensar em Hanna e resolve, em meio à sua solidão, restabelecer o contato íntimo com ela, enviando-lhe fitas em que grava a leitura de obras com as quais se deleitavam junto 25 anos antes. Hanna estremece-se toda diante da volta da voz de Michael em meio a seu esforço penoso de aceder à realidade. Ela lhe escreve quando ele demora em mandar-lhe as fitas, suas trêmulas letras sobre o meio vazio da página evidenciam a imensa solidão. A regressão ao plano narcísico é inevitável. Na véspera de sua libertação da prisão ela se suicida. Um pouco antes confessa a Michael que ninguém a entende; ninguém é capaz de compreendê-la a não ser as vítimas que a visitavam todas as noites. São elas suas antigas contadoras de histórias que, em seu estado de fraqueza, representam, talvez, a criança que ela foi. O que atesta para essa lógica de transitividade especular da cena de reunião junto a uma mãe sempre ansiada. São aliás notórios os depoimentos sobre este tipo de relação íntima que alguns psicopatas estabelecem, antes e depois do crime, com suas vítimas.

O apelo exercido pela ternura, no plano do narcisismo primário, é preste a gerar um dos fenômenos mais nefastos da vida em sociedade: a indiferença a tudo e a todos que se situam fora dele. “Sua Majestade, o bebê” (Freud, 1914), nós o identificamos não só no ser que ocupa o carrinho de passeio sobre a calçada, inconfundível em seu olhar de desprezo e indiferença a quem o rodeia, mas também no desinvestimento presente, por exemplo, na fala do motorista que leva Michael, durante o julgamento de Hanna, para visitar o tombado campo de concentração: “Quem executa cumpre apenas o seu trabalho, ele não odeia as pessoas executadas, não os vinga e não os mata porque o atrapalham ou o ameaçam. As vítimas são de tamanha indiferença para ele de modo que a execução se torna uma das tarefas mais fáceis do mundo”.

Aludi para o sofrimento e o fracasso de Hanna em aceder à alteridade, que coincide com sua entrada para o universo letrado. Hanna fraqueja em avançar rumo à humanização que Freud destaca no final de sua obra: “com o desenvolvimento da linguagem... abriu-se um novo mundo da intelectualidade, em que ideias, representações, memórias e inferências são decisivas em contraste com a atividade inferior que tem como conteúdo as percepções diretas dos órgãos de sentido” (1938). No entanto, a abertura para o desdobramento do corpo na trama do universo letrado não torna o sujeito imune à força de apelo do narcisismo infantil. A própria moção de desinvestimento sublimatório que, ao querer varrer e limpar a memória da agressividade, de sua sujeira sexual, acena, como na promessa implícita ao design da fonte Helvetica, para uma nova morada – aparentemente neutra, de simetria e de arejo estético notáveis – do narcisismo ferido de outrora, como atestam os acontecimentos de indiferença violenta do mundo contemporâneo. Mostrei acima como as letras representam em linha contínua a constituição da subjetividade e que o aprisionamento no terreno primário os torna sítio de imersão e sobrevalorização estéticas fetichistas, como Freud percebe em 1905. Evoco aqui alguns pacientes, detentores de gostos e cuidados estéticos marcantes, que me remetem, no início da sessão de certos dias, à paisagem do céu azul, avistada pela varanda da sala. Uma intuição instrumentada em mim não atenta apenas para sua recusa, naquele dia, em interagir e trabalhar, mas convocam-me para cenas sábias que cineastas utilizam em que a criança, sob o peso do corpo que a assalta, recorre ao refúgio do céu, da beleza do mundo, cindindo-se de uma parte aprisionada, confundida ao outro. O que se deve, assim me parece, ao fato de não ter sido atendida em seu narcisismo da ternura infantil e, portanto, impedida de poder, mais tarde, negativar o outro de origem (enquanto tela provedora em que o bebê se instalou de início), para encontrá-lo, e seus semelhantes, no plano da alteridade. A moléstia pelo adulto é impressa na história desses dois pacientes, já com vários anos de análise. O aprisionamento na demanda terna do narcisismo infantil se atrela à ocupação pelo adulto perverso... algo que não pude investigar e verificar na história pregressa de Hanna.

Uma distorção do texto (isto é, da memória), se assemelha, diz Freud (1938), a um assassinato, uma vez que a distorção (entstellung) não é apenas um disfarce, mas é, também, deslocamento (entstell) para outro lugar, escondido. A inquietação do autor de O leitor, em seu afã de querer “tratar” e conciliar sua geração com os horrores cometidos pela geração anterior, juntando-se a semelhantes tentativas modernas, não impede a ameaça de sua reatualização.

Para concluir, lembraria apenas que a clínica psicanalítica nos orienta e nos recomenda que continuemos a conceder à letra o direito do trabalho da memória para que atinja o corpo invisível que o outro de origem teceu com as mãos e a agulha das palavras.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Daniel Delouya
Rua Capote Valente 439/104 – Pinheiros
05409-001 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3063-0018
E-mail: delouya@terra.com.br

Recebido: 30/03/2009
Aceito: 10/04/2009

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.