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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

Internet de papel

 

Paper Internet

 

 

Julio Medaglia*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor descreve a importância da escrita musical no desenvolvimento da inteligência musical, tanto do compositor quanto da própria composição, abrindo a possibilidade, em conjunto com os avanços tecnológicos atuais, da veiculação da música (e seu feitiço...) até lugares os mais longínquos.

Palavras-chave: Escrita musical, Emoção, História da música.


ABSTRACT

The author describes the importance of writing in the development of musical intelligence, concerning composites as well as the composition itself, opening up possibilities together with the current technological advances of transmitting music (and its spell…) until the most remote locations.

Keywords: Musical writing, Emotion, Music history.


 

 

Há pouco tempo, eu estava hospedado em um resort em Ilhéus, onde faria uma conferência a um grupo de empresários de uma multinacional. Rodeado de simpatia, comidas e quitutes baianos, tendo pela frente as mais belas paisagens, tinha a sensação de que o paraíso era aqui na Terra. Tranquilamente refestelado em uma rede, ouço à distância uma gravação de um adagio barroco executado por uma clarineta. Aquela simples melodia, que sonorizava discretamente o ambiente, começou a me perturbar. Cheguei a ficar arrepiado. Passou-se algum tempo, eu diria meio a um minuto, até que eu me situasse e compreendesse o motivo daquele incômodo, daquele alvoroço emocional. Lembrei-me, primeiro, que aquela música era uma ária de uma ópera de Händel, depois, que eu a havia tocado ao violino quando tinha 15, 16 anos, em uma de minhas primeiras apresentações públicas no bairro onde vivia. A igreja da Lapa paulistana havia adquirido um magnífico órgão de tubos e o padre permitiu que eu solasse algumas melodias na missa das 11 de domingo. A emoção foi enorme. Orgulhosamente eu desfilava com o violino pela nave da igreja e tinha a impressão de que todos iam me aplaudir e que, a partir de então, poderia namorar qualquer menina do bairro...

Mas o curioso dessa historieta não é o fato de essa sensação ter ficado armazenada, sem que eu soubesse, por mais de 50 anos nas profundezas de minha alma, sensação essa despertada no momento e da maneira mais inusitados. O interessante é aquele filete sonoro penetrar nos meus ouvidos sem que eu o identificasse de imediato, chegar à minha alma, provocar um rebuliço emocional e só depois de algum tempo eu me dar conta do motivo. Ou seja, ocorreu uma relação direta, um diálogo do som com minha emoção e só mais tarde com a razão. É o inexplicável feitiço do som.

É fácil, portanto, compreender por que não se tem notícia de uma civilização que não tenha cultivado a música. Sabe-se que o som, nas mais longínquas sociedades, era usado para comunicação. Inicialmente através do simples uso da voz, depois percutindo objetos uns nos outros, em seguida esticando uma pele de animal em um cilindro de madeira para criar um tambor, assoprando em um tubo, aprendendo a manipular uma corda vibrando e assim por diante. Compreendendo esse poder mágico do som, imaginou- se que, através dele, pessoas poderiam ser influenciadas. Assim, ele passou a ter “utilidade”. Com sua ajuda, motivou-se o ser humano ao trabalho, à guerra, ao amor pátrio, à religiosidade, à sensualidade, ao humor, a compreender uma narração dramática e assim por diante. Ainda hoje, em sociedades primitivas, a música é usada como objeto de utilidade comunitária. O músico brasileiro Egberto Gismonti fez, certa vez, uma experiência com nossos índios. Instalou-se no seio de uma tribo para conhecer sua música e costumes, a fim de utilizá-los em um de seus projetos composicionais. Para estabelecer um diálogo com a comunidade, Egberto levou sua trupe, montou seus instrumentos eletrônicos em uma taba e mostrou suas composições. Quando uma delas provocou interesse especial nos índios, eles se aproximaram dos instrumentistas e, tentando entendê-la, perguntavam insistentemente: “pra que serve isso aí?...”.

Ainda nos dias atuais, mesmo em sociedades as mais civilizadas, a música é muitas vezes associada a uma situação – como trilha sonora de um filme ou novela de TV, em uma solenidade religiosa ou cívica –, embora seja consumida, na maior parte das vezes, como mero entretenimento auditivo.

Em sua história, a organização dos sons em forma de música passou por várias transformações estruturais e diversas maneiras de relação com o ouvinte. Gostaria de citar três momentos e fatos, que considero os mais significativos, curiosamente todos tendo como epicentro a Itália. O primeiro deles, talvez o mais importante, se deu no século XI, quando o ser humano, que tinha as composições musicais armazenadas em sua mente e as passava boca a boca a outras pessoas, se deu conta de que elas poderiam ser colocadas em um papel. Identificando uma lógica matemática nas figuras rítmicas e melódicas das canções, o monge Guido D’Arezzo criou figuras gráficas – notas, ritmos, claves, pentagramas, sinais, nomenclaturas – que as representavam em detalhe. Pela primeira vez a música sai da mente humana e se transforma em um objeto palpável, fora dela. Assim, o compositor, tendo as ideias materializadas diante de si, semelhante a um escultor ao manipular a argila, podia trabalhar nelas, transformá- las, desenvolvê-las, corrigi-las, substituí-las, ampliá-las, guardá-las, retomá-las em outra época e assim por diante. Isso provocou uma incrível evolução técnica e artística na criação musical, que não cessou até os dias atuais.

Com a leitura e execução dos símbolos sonoros, muitos músicos podiam também conhecer uma obra e executá-la imediata e conjuntamente. E mais. A composição pode ser enviada a intérpretes distantes, a outros países, sem que alguém precisasse ir lá cantarolar uma melodia no ouvido de um músico. Com isso, as ideias musicais se disseminaram com facilidade e rapidez por todo o continente europeu e pelo mundo sem a presença do autor.

Uma verdadeira Internet de papel...

Com isso, as composições se tornaram perenes, pois ficavam documentadas. Quase tudo que se compôs antes da transformação da música em símbolos gráficos morreu. O que se criou a partir daí, permanece até os dias de hoje.

Outra contribuição importante desse fato foi que, com isso, os autores saíram do anonimato, já que seus nomes vinham grafados ao lado de suas criações. Ou seja, no início do segundo milênio, nasce a figura do compositor.

A escrita musical se transformou em uma espécie de “planta” da música. Tão completa ela é em informações que os compositores passaram a analisar esse verdadeiro “DNA da composição” alheia para se autoaperfeiçoarem, evoluírem, aprenderem novas técnicas ou não repetir o que outro já haviam feito antes. Bach mandava buscar partituras de Vivaldi, as transcrevia de várias maneiras, à exaustão, para assimilar o vigor da música instrumental dos italianos. Ainda hoje, nos grandes conservatórios do mundo e os melhores professores usam essa investigação da escrita como o melhor método de composição.

A mesma iluminada Itália foi o berço de outro fenômeno, que mudou a história das artes, este de natureza estética, exatamente no período de passagem da chamada Idade Média para a Idade Moderna: a Renascença (do século XIV ao XVI). Aí, em consequência dessa evolução das técnicas composicionais, o ser humano começou a contemplar a música independentemente de suas “funções”. Ela deixava de ter apenas “utilidade” e passava a ser ouvida por sua beleza. Isso mesmo. Nesse momento foi descoberta a “música pura”. Melhor dizendo, foi inventada a “beleza”.

Como a maior parte da música mais elaborada era financiada pela Igreja católica – aliás, data desse período a cisão entre a chamada “música erudita” e a “música popular” –, os compositores eram requisitados para compor obras musicais para os ritos religiosos. As partes fixas da missa, por exemplo, que tinham textos que se repetiam em todas as solenidades (kyrie, gloria, credo, sanctus, benedictus e agnus dei), eram musicadas pelos compositores. Com a evolução da cristalinidade e desenvoltura das vozes superpostas, que perfaziam harmonias e contrapontos belíssimos, a música começa a atrair cada vez mais os fieis às igrejas. Só que a Santa Sé passou a ter “ciúmes” do sucesso dos autores. Tinha ela a sensação de que as pessoas iam à igreja para curtir o delírio sonoro, psicodélico, daquelas criações de Palestrina, Gesualdo ou Monteverdi, e não para rezar. Depois de algum tempo chegaram a censurar os autores, obrigando- os a compor uma música “homofônica” – só de acordes sucessivos com textos paralelos em todas as vozes –, para que os fiéis se concentrassem no conteúdo das palavras da mensagem religiosa. Mas foi em vão. A beleza musical disseminou-se por todo o continente europeu, em igrejas ou não, e o feitiço sonoro, independentemente de uma possível ligação com uma ideia extramusical, triunfou – aliás, até hoje...

Outro fenômeno ocorrido logo depois da Renascença, na mesma península, mudou mais uma vez o conceito de música. Foi o advento da música instrumental. Toda a beleza da expressão musical renascentista – religiosa ou profana – era essencialmente vocal. Os primitivos instrumentos que existiam até então, e que eram proibidos de entrar nas igrejas, eram usados apenas para apoiar os efeitos vocais e, não raro, simplesmente dobrá-los. Em função da mesma evolução técnica, era desejo dos autores sofisticar mais os efeitos sonoros. A partir do século XVII e até meados do século XVIII, no chamado período barroco, a música instrumental ganhou independência e linguagem própria. A música deixava de ser idealizada e interpretada pelo ser humano (sua própria voz), mas criada em sua mente e executada por um instrumento artificialmente construído (a partir de então também nas igrejas).

O brilho instrumental a todos encantou. Construíram-se novos instrumentos de cordas, sopros e percussão. A agilidade do fraseado musical se desenvolveu de tal maneira que surgiu um verdadeiro virtuosismo de execução, que seduzia as pessoas por seu malabarismo ao instrumento. A música deixava de ser feita apenas pelo timbre vocal, mas por dezenas de instrumentos, de cores sonoras diversas. É claro que se continuou compondo para vozes. A voz chegou a se destacar como solista em meio ao conjunto instrumental. Criou-se até uma dramaturgia sonora, a ópera, em que a voz se destaca. Mas a voz passou a ser considerada um “instrumento” à parte, com sua linguagem própria.

A partir do século XIX, no romantismo, com a utilização da música como veículo de expressão das emoções individuais, o virtuosismo instrumental foi cada vez mais solicitado. O solista, querendo exibir seus dotes, sua personalidade musical em público, elevou essa instrumentalidade ao máximo, às vezes ao nível de um espetáculo quase circense. Nesse período todos os instrumentos que conhecemos hoje evoluíram tecnicamente, criou-se o piano e a paleta sonora da música ocidental ficou rica e multicolorida, inclusive com a estruturação da orquestra sinfônica, que nos deu obras-primas.

Na primeira metade do século XX explodiram todos os conceitos musicais existentes, criando-se mais “ismos” estilísticos em 50 anos que nos 500 anteriores. E foi nesse deslumbrante século XX que um quarto elemento se associou à prática musical: a gravação e veiculação eletrônica da música.

Se o símbolo gráfico impresso dispensava a presença do autor na execução musical, o registro sonoro e sua veiculação eletrônica passaram a dispensar a presença também do intérprete.

E foi essa tecnologia moderna que conseguiu transformar aquele “feitiço sonoro” em impulsos eletrônicos, me transportar da tranquilidade de um moderno resort para 50 anos atrás, à pequena igreja da Lapa, sem perder a capacidade arrebatadora daquela simples melodia. Ainda bem que Händel, há 300 anos, fez uso de uma moderna pena de ganso para registrá-la em uma lâmina de linho, permitindo que aquele Largo sonorizasse o paradisíaco mar da Bahia e provocasse tumultos no coração de um desprevenido maestro...

 

 

Endereço para correspondência
Julio Medaglia
www.juliomedaglia.com.br
E-mail: medaglia@uol.com.br

Recebido: 27/03/2009
Aceito: 08/04/2009

 

 

* Maestro, compositor e ensaísta. Autor dos livros Música impopular (Editora Global) e Música, Maestro! (Editora Globo).Participou de movimentos de vanguarda como Tropicalismo e Poesia Concreta.