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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

O corpo e o texto da cidade*

 

The body and the text of the city

 

 

Jorge Ricca Junior**

Prefeitura de São Paulo
Fundação Armando Alvares Penteado

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A cidade pode ser entendida como um corpo, que suporta o texto da sua história. Constituída pelo tecido de quadras, ruas, praças e parques, a construção da cidade, obra coletiva por excelência, resulta de seu passado, que se conserva em imagens, e dos projetos que expressam seus sonhos e desejos. Nesse processo, alguns edifícios permanecem e guardam mensagens em seu corpo. Para elaborar a ideia, a cidade de São Paulo é tomada como exemplo.

Palavras-chave: Arquitetura da cidade, Desenho urbano, História da cidade, Memória. Projeto, Tecido urbano.


ABSTRACT

The city can be understood as a body that supports the text of its history. Constituted by the tissue of blocks, streets, squares and parks, the construction of the city, collective work par excellence, derives from its past, which is preserved in images, and from designs that express its dreams and desires. In this process, some buildings remain and keep messages in its body. To further develop the idea, the city of São Paulo is taken as an example.

Keywords: Architecture of the city, Urban design, History of the city, Memory, Design, Urban tissue.


 

 

O corpo da palavra escrita apresenta diversas formas, que expressam diferentes intenções. Os criadores do tipo Helvetica deram-lhe uma forma leve, ágil e nítida. Na cultura tipográfica visual, seu desenho expressa algo desejável e reconhecível pelos milhares de pessoas que a utilizam. O texto impresso em Helvetica é muito diferente do impresso em Algerian, por exemplo; o meio é a mensagem, intuiu McLuhan com razão, pois a forma interfere no conteúdo da mensagem que suporta. A palavra falada flutua no espaço e no tempo; a escrita fixa-se na forma gráfica. Assim, imaginei traçar um paralelo da palavra escrita com a cidade.

 

O corpo da cidade

A expressão “tecido urbano” pretende significar o conjunto de construções comuns a qualquer cidade: quadras, ruas, praças, parques. De fato, os primeiros urbanistas chamavam ruas e avenidas de “artérias”, que promovem a circulação de ar, pessoas e veículos.

O “coração” da cidade é o lugar da sua fundação, geralmente a praça central. Em São Paulo, o pátio do colégio jesuíta e seu entorno, sobre a colina; nas cidades marinhas ou ribeirinhas, a praça junto ao porto, como em Lisboa. É onde o turista procura o caráter e a identidade da cidade, o centro irradiador da sua energia vital. Em Londres, a velha city; em Nova York, o downtown; em Barcelona, o barri gotic. Quando esse tecido central se degrada, as cidades se mobilizam para recuperá-lo: “revitalizar” seu centro, ou seja, oxigenar seu coração, é o que fazem as grandes cidades mundiais que desejam se manter vivas.

Os parques e jardins públicos são os “pulmões” da cidade. Árvores, gramados, lagos são a reserva de oxigênio plantada no interior do tecido urbano. Quanto maior o corpo da cidade, mais ela necessita de ilhas de vegetação capazes de atenuar a aridez. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, o parque urbano não surge naturalmente. Ele é projeto e construção, uma decisão tomada pelos dirigentes das cidades. A floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi inteiramente plantada há não mais que 150 anos; o Central Park de Nova York é um projeto erudito, instalado no centro da ilha de Manhattan; o Bois de Boulogne de Paris, lugar de caça do rei, transformou-se em imenso parque público.

Os órgãos – artérias, coração, pulmões – funcionam no corpo da cidade para realizar suas funções essenciais: morar, trabalhar, recrear, circular. O corpo de cada cidade é único, porque resulta de processos históricos particulares, produzidos pelas experiências vividas por cada um de seus habitantes. As praças, quadras, ruas e parques são construções peculiares que guardam o caráter e a personalidade de cada cidade. Esse corpo pode ter a idade de milênios, como Roma ou Barcelona; de séculos, como Nova York ou Recife; décadas, como Brasília, que nasceu do gesto de Lucio Costa, “de quem assinala um lugar ou dele toma posse” (Costa, 1995, p. 284).

Não é possível separar o corpo de uma cidade de sua alma. Roma e Nova York são o que são por causa da sua construção, não por nenhuma outra razão. As praças romanas existem como para atestar a sua individualidade e o seu caráter. Em Manhattan, a pressão imobiliária ergueu arranha-céus, e o reticulado de quadras e ruas configura uma geometria democrática, onde é possível atravessar os térreos de edifícios privados como se fossem públicos, exatamente como no Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. O eixample de Barcelona – de quadras chanfradas e regulares, pátios internos e pracinhas nos cruzamentos – expressa a civilidade local. O plano de Brasília exprime em seu desenho as teses da Ville Radieuse, de Le Corbusier. O corpo de Paris, morada de tantos artistas e filósofos, atraiu-os com sua beleza.

 

A cidade é um texto

“Um grande episódio histórico pode existir na nossa imaginação quase inteiramente em forma de arquitetura. Poucos de nós lemos antigos textos egípcios. Mas sentimos conhecer aquelas pessoas remotas quase tanto quanto nossos ancestrais imediatos, principalmente por causa de suas esculturas e arquitetura.” A frase de Sir Kenneth Clark explicita a ideia de que a cidade é um texto. Também Victor Hugo comparou cidade e texto ao escrever, no Notre-Dame de Paris, que a invenção da imprensa mataria a arquitetura. Afirmou que a arquitetura foi o grande livro da humanidade até a invenção dos tipos móveis, no século XV. O livro mataria a arquitetura. Hugo se referia aos monumentos que, como palavras impressas, gravam na pedra a história dos povos, transmitindo-a através do tempo. Ao registrar atos, fatos e batalhas, o monumento fixou o “símbolo flutuante” em uma forma visível, palpável e eterna. A arquitetura fez do pilar a letra, da arcada a sílaba, da abóbada a palavra, da pirâmide o texto. A cúpula de Santa Maria del Fiore, de Florença, por exemplo, é um discurso sobre o conhecimento das forças e da gravidade, assim como as catedrais góticas são narrativas da vida medieval. Edifícios maravilhosos eram livros maravilhosos.

A ideia de que a cidade inteira é um texto aparece também em Lévi-Strauss, ao recordar o período em que morou em São Paulo, em 1935: “Minhas especulações não seriam possíveis se o fato de viver em São Paulo e percorrer a cidade a pé em longos passeios, não me tivesse exercitado em considerar o plano de uma cidade e todos seus aspectos concretos como um texto que, para compreendê-lo, é preciso saber ler e analisar” (Lévi-Strauss, 2001, p. 16).

Giulio Argan também percebeu uma analogia entre a formação e estruturação do espaço urbano e da linguagem; e, por extensão, entre o linguista (no sentido estruturalista de Saussure) e o urbanista. A forma urbana seria o equivalente visual da língua. “Não tenho dificuldade em admitir que os fatos arquitetônicos (ruas, edifícios, praças etc.) estão para o sistema urbano como a palavra está para a língua” (Argan, 1998, p. 237). Como se vê, a cidade pode ser pensada como um texto, para ser lido e interpretado. Seu corpo é a mensagem.

A planta da cidade pode ser compreendida como um livro que nos permite ler o espaço urbano. Representação visual do espaço, ela registra a topografia, o lugar da fundação, os primeiros bairros, os locais de habitação e trabalho, os parques, jardins, praças, monumentos, as linhas de circulação. Assinalando os fatos da história no espaço, leva-nos a compreender razões, justificativas, deslocamentos, possibilidades, indecisões, erros, e interpretá-los como a um grande livro escrito coletivamente pelos seus habitantes.

 

Corpo e permanência

Na planta de uma cidade os monumentos são como substantivos, pontos luminosos que assinalam fatos capitais da história urbana. Os monumentos resumem questões essenciais da cidade. Em São Paulo, eles são vários, no tempo e no espaço; tomarei um deles para esta reflexão: o Teatro Municipal, observado como se fosse um tipo gráfico impresso no corpo da cidade.

Para a construção do Teatro Municipal de São Paulo convergiram contribuições culturais diversas, típicas da cidade naquele período histórico. Sua concepção, baseada na da Ópera de Paris, mostra a estreita ligação que as famílias ricas mantinham com aquela cidade, e também o ideário que os paulistas escolheram para transformar a sua cidade. “Paris... O resto é paisagem”, dizia Antonio Prado, o prefeito que comandou diretamente a construção do Teatro (Homem, 1996, p. 53). A arquitetura do Teatro foi minuciosamente descrita pelo engenheiro Ricardo Severo, sócio do escritório autor do projeto, em monografia publicada em 10 de setembro de 1911, véspera da inauguração.

O edifício de 86 metros de comprimento e 42 metros de largura tem sete andares. Seu corpo divide-se claramente em três partes. A primeira parte é a recepção do público, com o vestíbulo, a escadaria nobre, os salões de festas e o restaurante, ambientes que receberam o tratamento mais opulento. No vestíbulo e na escadaria desfilam as aparências, reproduz-se o movimento das ruas, o “colorido mais quente dos mármores e da pintura aumentam o brilho dos dourados e ampliam o efeito luminoso das lâmpadas e dos espelhos nas festas noturnas” (Santos, 1988, pp. 46-65). Os salões de festas têm altura maior, decoração luxuosa, grande variedade de materiais e cores e ocupam toda a extensão da fachada. Fiel ao modelo parisiense, dá a impressão de achatar o térreo, artifício que visa valorizar o andar nobre, onde as famílias se exibem. Para iluminar a escadaria externa, a Light instalou lâmpadas capazes de produzir luzes mais intensas que as lâmpadas usadas então.

A segunda parte do edifício é a assistência, ao centro da planta, sob a cúpula, com a plateia de 1.800 lugares. E a terceira é a encenação, na parte posterior: palco, bastidores, camarins e rampa para veículos e animais.

O Teatro é uma grande nave onde uma população variada ostentosamente se exibe, e em dois dos seus corpos se acantona. Uma parte, os espectadores, reclama todo o conforto e prazer de um luxuoso palácio moderno em permanente festa. A outra parte, os comediantes, vivendo num meio artificial, às vezes distante de séculos da atualidade, requer um cenário de efeitos fantásticos para reviver cenas feéricas do país dos sonhos, quadros da tragédia humana de todos os tempos. O Theatro Municipal realiza, sob este ponto de vista, uma solução perfeita, digna de uma grande Capital. (Severo, 1911, citado por Santos, 1988)

A observação de Severo exprimia a realidade social da cidade naquele momento. Sua descrição dos espaços da aristocracia e da burguesia é mais demorada e lhe desperta-lhe mais interesse que os espaços de trabalho dos artistas e dos técnicos. A divisão social da cidade está representada na divisão interna do edifício, como se este resumisse aquela. O desenho da cidade mostrava com nitidez a localização dos grupos sociais. A leste, perto da ferrovia, nas várzeas dos rios, construíam-se as fábricas e os bairros operários; a oeste, perto da Estação da Luz, e da ideia de salubridade dos lugares altos, batidos pelos ventos, as altas classes ocupavam Campos Elísios, Higienópolis e Avenida Paulista. Nos salões do Teatro Municipal o Partido Republicano Paulista realizava seus jantares e bailes. “Havia outros e mais adequados ambientes para o PRP reunir-se em convenções, mas a liderança sabia muito bem porque escolhia sempre o Municipal” (Sevcenko, 1992, p. 232).

Para Sevcenko, o edifício se “equiparava ao prodigioso poder de catalisação cultural que emanava do seu palco”, e atuava como uma caixa de emissão e repercussão de símbolos. Uma nova paisagem urbana germinava, desafiava os habitantes e impunha- se com a mesma intolerância afoita dos automóveis que arrebatavam as ruas. Ela aparece na descrição de um fim de tarde de 1919, feita pelo crítico de arte d’O Estado de S. Paulo, após a sessão em que a Orquestra Sinfônica executou a Heroica, de Beethoven, e o Balé Russo dançou O pássaro de fogo, de Stravinski:

À saída do Municipal, a multidão desce a escadaria iluminada pelas lâmpadas, e se espalha pela praça, animando o Viaduto do Chá e a entrada do Triângulo; os automóveis cruzam as imediações pondo nos vultos femininos reflexos irisados e opalescentes dos seus faróis, um rumor de conversas e risos discretos, as silhuetas acentuam, como num cinematógrafo, a nobre distinção das suas linhas, todo um quadro movimentado e impressionante, que só as cidades civilizadas podem oferecer. (Citado por Sevcenko, 1992, pp. 112-113)

A repentina riqueza do café lançava as imaginações em um vazio, onde fragmentos da vida das grandes cidades europeia catalisavam uma nova vontade de ser. Nessa paisagem de impressões fragmentadas e símbolos irresolutos exprimia-se a nova arquitetura da cidade recém-saída do seu passado rústico e colonial.

A construção do Teatro no morro do Chá, o centro novo, de frente para o eixo que une a Praça da Sé à da República pelo viaduto, revelava o potencial cenográfico do vale, que era então uma área semirrural, para onde davam os fundos das casas das ruas Líbero Badaró e Formosa, e onde o riacho Anhangabaú corria entre hortas e pomares. A cidade decidiu transformar o vale, a fim de complementar e realçar a presença do Teatro com seu extraordinário volume. A construção do parque alterou o caráter do lugar. Tomaremos, agora, o Anhangabaú como um texto escrito sobre a cidade.

O Anhangabaú foi transformado em espaço central de representação da ideia de civilização desejada pelos líderes políticos da cidade. O novo parcelamento, a edificação de palacetes, a série de novas e magníficas construções (Prédio dos Correios, Largo da Memória, Praça do Patriarca, edifícios Light, Sampaio Moreira, Martinelli e Glória), a implantação do jardim de alamedas curvas projetado por Bouvard, com as estátuas e a êxedra, tudo isso alterou radicalmente o uso e a percepção do espaço pelos cidadãos, transformando o fundo da cidade na sua frente magnífica.

Esse novo espaço simbólico não escapou aos artistas, em particular aos modernistas, que o tomaram como signo da modernização da cidade. Sua notável unidade plástica também não escapou aos fotógrafos produtores de cartões-postais da cidade. Os imigrantes recém-chegados, que enviavam as fotografias para suas pátrias de origem, talvez sentissem que aquele lugar também lhes pertencia. O Parque durou apenas 20 anos; construiu-se uma avenida em seu lugar. A decisão exprimia uma mudança cultural significativa, sentida por Lévi-Strauss nesses termos:

Para as cidades europeias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a passagem dos anos é uma decadência. No momento em que os novos bairros surgem são brilhantes demais, alegres demais. Mais se pensaria numa feira, numa exposição internacional construída para poucos meses. Após esse prazo, a festa termina e esses grandes bibelôs fenecem: as fachadas descascam, a chuva e a fuligem traçam seus sulcos, o estilo sai de moda. Não são cidades novas contrastando com cidades velhas, mas cidades com ciclo de evolução curtíssimo, comparadas com cidades de ciclo lento. Certas cidades da Europa adormecem suavemente na morte; as do Novo Mundo vivem febrilmente uma doença crônica: eternamente jovens, jamais são saudáveis, porém. (Lévi-Strauss, 1996, pp. 91-92)

Lévi-Strauss presenciou o momento em que o ainda novo Parque Anhangabaú foi destruído, para em seu lugar ser implantada uma avenida para automóveis. Da janela do Hotel Esplanada, atrás do Teatro Municipal, ele fotografou a transformação do lugar.

Em poucos anos, e por força dos arranha-céus, São Paulo saltou de meio milhão a quatro milhões de habitantes. Refletiu com eloquência a passagem de uma ideia de cidade europeia para uma de tipo norte-americana, mais triunfante, voraz e veloz. A Avenida Anhangabaú tornou-se um corredor rodoviário de ligação metropolitana, lugar perigoso, com acidentes e atropelamentos frequentes.

Em 1984, uma multidão ocupou o Vale do Anhangabaú em uma manifestação política. O Comício das Diretas interrompeu por algumas horas o trânsito na grande avenida. A maior cidade do país não tinha uma praça cívica. Naquele momento revelou-se um sonho que, três anos antes, Lina Bo Bardi já havia sonhado. Seu projeto, intitulado Anhangabaú Tobogã, transformava o desejo em desenho, recriava o Parque Anhangabaú com novo espírito.

Lina colocou os carros em cima e os pedestres e as árvores no chão. A avenida suspensa percorria o vale passando sobre os viadutos do Chá e Santa Ifigênia, suportada por uma estrutura de pilares de aço, leve e transparente. À noite, a iluminação dos pilares e sua grande altura dariam a impressão de árvores – “árvores de aço, que lembram a gameleira brava e as velhas árvores tropicais”. O máximo de fantasia, como na natureza.

No cruzamento da São João, ela pôs um lago, lembrança do antigo riacho do vale; o pesadelo das enchentes transformado em alegria. Valorizou os prédios: Light, Mappin, Korngold, Palanti, mantidos e recuperados. No topo de um deles colocou um restaurante com elevador panorâmico. Restaurou o grande Café do Teatro Municipal, com mesas ao ar livre, para as tardes ensolaradas e as noites de concerto.

Substituiu o asfalto pela grama: enorme gramado de caminhos “naturais” chega aos grandes prédios, à sombra de árvores frondosas; “nada de grupinhos baixos, nem paisagismo abstrato; será permitido pisar na grama, que será logo reposta”. Bancos de pedra sob as árvores e vendedores de pipoca, sorvete, jornais. “O Anhangabaú será o parque central da cidade. Tour Eiffel para cidadãos e turistas, para ônibus cheios de crianças. É um projeto caro, mas os sonhos são sempre a verdadeira realidade: Central Park, Hyde Park, Villa Borghese” (Ferraz, 1993, pp. 252-255).

O tobogã de Lina descartou o túnel para automóveis, “solução sinistra para pedestres”. Passar em velocidade e não permanecer, como fazem os motoristas, degrada o tecido urbano, como aconteceu. Seu projeto resolvia o problema crucial do vale: o conflito entre homem e automóvel. O júri escolheu a solução oposta. Ao assumir com radicalidade e coragem as contradições da cidade, fiel à realidade, consciente das implicações da história, ela pretendeu modificar o futuro. Seu projeto concorda profundamente com o sentido do que já existiu, estava implícito e só faltava desenvolver. Como em um sonho, figurou em desenhos o desejo da cidade; condensou a complexidade das necessidades e deslocou para o vale a praça cívica que a cidade desejou no comício de 1984. Os projetos têm algo em comum com os sonhos.

 

Memória e projeto: os sonhos da cidade

A inteligência de uma cidade se manifesta como memória e projeto; ou, se quisermos, na conservação do passado e na construção do futuro. Uma das formas de ela fixar seu passado é através do uso de imagens, porque a transformação da cidade é muito veloz. O acervo de fotografias de lugares desaparecidos é uma das formas possíveis de se religar com os cenários da vida das gerações precedentes. O desaparecimento dos lugares carregados de lembrança e afeto desfaz a tradição (no sentido de entrega de experiências). Assim, a fotografia antiga fixada na parede é o refúgio do passado da cidade, a sua memória eventual.

Desse modo, podemos pensar que a fotografia detém o passado tanto quanto o projeto contém o futuro. Os projetos são os sonhos da cidade. A palavra “desenho” tem a mesma raiz de desejo, desígnio, intenção (Artigas, 1981, pp. 39-50). O desenho da cidade expressa o desejo da cidade, que são muitos, pois são milhares seus habitantes. Mas a cidade é uma obra coletiva, e, nesse sistema de forças, a resultante é a sua forma, o desenho realizado no tempo pelas sucessivas gerações.

Assim, memória e projeto são faces da mesma atitude. Não é possível projetar o futuro sem se ligar à corrente de experiências do passado. A memória é a faculdade de aprender com os erros, de reconhecer a sua milionária contribuição, de antevê-los antes que ocorram, pelo conhecimento da experiência pretérita. O projeto é a capacidade de se lançar à frente, de imaginar soluções para novos problemas, de inventar novas formas de relações humanas, expressando-as na arquitetura da cidade. Os melhores projetos arquitetônicos expressam desejos genuínos, e por isso são realizados. A força de sua realização advém da força da sua necessidade.

 

São Paulo: corpo e alma em desacordo

A intimidade com a cidade de São Paulo me leva a procurar no seu corpo sinais das mensagens que ela carrega. Suponho que o corpo desta cidade esteja em desacordo com sua alma. Aqui, na metrópole, onde encontramos o conhecimento avançado nas ciências e nas artes, onde está presente o pensamento sofisticado, onde estão sediadas as maiores empresas, transita-se sobre um corpo degradado de calçadas e praças inóspitas, habitações insalubres, parques insuficientes. Interferir no espaço urbano, ou seja, no corpo da cidade, significa interferir nas vidas de seus habitantes e suas relações sociais. Uma das intervenções possíveis e desejáveis seria através da revalorização das praças, esses espaços vazios essenciais à cidade.

Não é possível conceber cidades sem praças. Elas são a alma de uma cidade, vide Roma. Algumas cidades, como Barcelona, recuperam a vitalidade por meio de uma série de intervenções. Se o franquismo proibiu o ensino do catalão nas escolas e maltratou a cidade, degradando edifícios e praças, a Barcelona cinzenta ressurgiu colorida e vibrante após esse período. A cidade recuperou suas praças, restaurou os edifícios nas cores originais, revalorizou a língua e a literatura catalãs, tudo se entrelaçando no desejo de recuperar a língua e a cidade.

Na Praça de Catalunha, no coração de Barcelona, deixei-me uma vez ficar até as luzes se apagarem e os empregados dos bancos e lojas do entorno se retirarem para suas casas, já tarde da noite, após deixarem os bares e cafés. Quando ia embora, o ambiente se esvaziando, deparei com grupos de jovens que traziam patins às costas. Eles começaram a brincar na praça. Senti o quanto aquela cidade lhes pertencia. E imaginei a mesma cena na Praça da Sé de São Paulo, às 11 da noite. E percebi o quanto a minha cidade não me pertence, pelo medo que temos dela.

É preciso ainda notar como é difícil a relação entre as partes antigas e novas da cidade. O estrago das esculturas romanas, expostas ao ar poluído pelos gases dos automóveis, é um exemplo dessa dificuldade. Muitas cidades terão de escolher decididamente entre os automóveis e os monumentos. É uma escolha cultural, pois não se trata de apenas estabelecer proibições, mas de dar uma nova ordem à cidade. Não é apenas um problema de arqueólogos e historiadores da arte, do mundo da cultura artística; é um problema também dos empresários, que precisam do prestígio histórico da cidade para fazer sentir seu peso político (Argan, 1998, p. 248).

O sujeito moderno, com sua bagagem conceitual sofisticada, conectado aos circuitos de informação, dirige seu carro equipado com maravilhas tecnológicas. Fechado lá dentro, com os vidros escurecidos e o ar-condicionado, ele se isola do entorno. Refratário à troca, solapa as bases da cidade e desfaz o tecido de relações longamente elaboradas. Lugar do encontro, a cidade se degrada e pode se transformar na anticidade, em um regresso inoportuno a um passado indesejável. As ruas se desumanizam; a cadeira na calçada, a conversa entre vizinhos, as brincadeiras infantis, o comércio local baseado na confiança, tudo se desfaz diante de sua inédita e única função: escoar o trânsito de máquinas velozes e mortais. Aqui, algo muito moderno transita sobre algo muito arcaico.

“Apesar da volatilidade e fluidez assombrosas das vivências de nosso tempo, reencontramos no cotidiano a inscrição forte e estável da era moderna.” Referindo-se ao tipo Helvetica, a frase me estimulou a traçar um paralelo entre o corpo da palavra e o corpo da cidade. Pensando a cidade como um texto, procurei ler no seu corpo e na sua história alguma mensagem possível. Para tanto, tratei o Vale do Anhangabaú como um texto, e o Teatro Municipal como o tipo que permanece, mesmo muitos anos depois da mensagem que carregava perder-se no tempo.

O edifício do Teatro Municipal confere solidez e espessura ao ambiente. Sua presença e permanência, apesar das profundas transformações da área em que está – na beira do Anhangabaú, limiar do centro novo –, atestam sua importância e significado para a história da cidade. Dos edifícios que resistiram à transformação da área central da cidade, o mais antigo é o Teatro Municipal. Ele funcionou como um núcleo de formação e estruturação do espaço, participou da evolução urbana no tempo e identificou-se com os fatos políticos constituintes da cidade. A união desses edifícios com as áreas onde se localizam constitui a estrutura da cidade. O Teatro Municipal de São Paulo é um elemento dessa espécie.

Subo ao segundo andar do prédio localizado na Praça do Patriarca, no centro de São Paulo. A seis metros do chão, olho através das vidraças o panorama que se abre à frente, em perspectiva. Do outro lado do Vale do Anhangabaú, ao fim do Viaduto do Chá, o Teatro Municipal domina o cenário. Atrás dele está o prédio do velho Hotel Esplanada e o edifício de Korngold; ao lado, quase esmagado pelo edifício de vidro vizinho, o Prédio Glória; à frente, o prédio da velha Light. Os carros passam.

Já vi muitas fotografias, de épocas diversas, tomadas da mesma perspectiva em que me encontrava. Por um instante, substituí mentalmente os modernos automóveis pelos velhos modelos, e senti que algo permanece na cidade. Talvez seja só a memória, carregada de afeto e lembrança. Afinal, nesses lugares viveram nossos pais e avós. Eles desapareceram, mas os edifícios permanecem, e ainda vão durar muito tempo.

Esse cenário bonito guarda uma experiência do passado, é um dos raros lugares da cidade em que se pode perceber a passagem e a profundidade do tempo. Fotografias de 80 anos atrás coincidem com o que vejo agora, confirmam a passagem do tempo. Isso é bom, e me fez ficar menos apreensivo com a transitoriedade da vida. Apesar dos problemas de seu corpo gigantesco, sempre será possível amar esta cidade e as mensagens que ela é capaz de produzir em seu corpo. Para Lewis Mumford, o grande historiador de cidades, “juntamente com a linguagem, a cidade é, talvez, a maior obra de arte do homem”.

 

Referências

Argan, G. C. (1998). História da arte como história da cidade. (P. L. Cabra, trad.). São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

Artigas, J. B. V. (1981). Caminhos da arquitetura. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas.        [ Links ]

Costa, L. (1995). Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes.        [ Links ]

Ferraz, M. C. (1993). Lina Bo Bardi. São Paulo: Empresa das Artes; Instituto Lina Bo e P. M. Bardi.        [ Links ]

Holanda, S. B. (2000). Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha.        [ Links ]

Homem, M. C. (1996). O palacete paulistano e outras formas de morar da elite cafeeira, 1867-1918. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

Lévi-Strauss, C. (1996). Tristes trópicos. (R. F. Aguiar, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

Lévi-Strauss, C. (2001). Saudades de São Paulo. (P. Neves, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

Santos, C. (1988). Teatro Municipal de São Paulo: caderno de obras. Revista Projeto, 112, 46-65. (Monografia original de Ricardo Severo, publicada na Revista de Engenharia, 5, 10 set.1911).        [ Links ]

Sevcenko, N. (1992). Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Jorge Ricca Junior
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Tel.: 11 3501-2304 (R)/ 11 3735-6504 (C)/ 11 9551-0894
E-mail: riccajunior@yahoo.com.br

Recebido: 30/03/2009
Aceito: 30/04/2009

 

 

* Escrito a partir da dissertação “Anhangabaú: construção e memória”, apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em 2004.
** Arquiteto formado na FAU-USP, trabalha na Prefeitura de São Paulo e ensina na FAAP.