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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

Escrever, ouvir: perspectivas sobre o saber entre os Aweti do Alto Xingu*

 

Writing, hearing: perspectives on knowledge among the Aweti from the Upper Xingu

 

 

Marina Vanzolini Figueiredo**

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de pesquisa de campo intensiva entre os Aweti, do Alto Xingu, o artigo apresenta uma comparação entre o sentido da escrita para a antropóloga e para os índios entre os quais trabalha. Enquanto para a primeira, de acordo com uma concepção ocidental do conhecimento, a escrita é a fixação de um saber sobre o mundo (no caso, os índios, tomados como objetos de conhecimento), para os segundos o saber sobre o mundo aparece como meio e resultado da expansão de suas relações sociais, sendo assim inseparável do modo pelo qual é adquirido, ou seja, do saber sobre as pessoas que trocam conhecimentos.

Palavras-chave: Conhecimento indígena, Conhecimento antropológico, Etnologia sul-americana, Alto Xingu, Aweti.


ABSTRACT

Following the author’s intensive field research among the Aweti, from the Upper Xingu, the paper presents a comparison between the anthopologist’s and her Indian natives’ conceptions of writing. While the former, according to a western notion of knowledge, see it as a way to register an understanding of the world (the Indians, taken as the subject of knowledge), to the latter writing appears as the means and outcome of expanding social relations. Knowledge about the world is thus embedded in the way by which it is acquired, that is, in the knowledge people have about each other while sharing information.

Keywords: Indigenous knowledge, Anthropological knowledge, South-American ethnology, Upper Xingu, Aweti.


 

 

A região conhecida na literatura etnográfica como “Alto Xingu”, no nordeste do estado de Mato Grosso, compreende a área dos principais formadores do rio Xingu – os rios Batovi, Culuene e Curisevu –, que correm do Planalto Central para o Norte, em direção à bacia amazônica. Os povos indígenas que habitam essa região são falantes de idiomas que pertencem a três dos principais grandes conjuntos linguísticos (troncos ou famílias) encontrados no Brasil: Caribe, Aruaque e Tupi, havendo também o povo Trumai, falante de uma língua isolada, isto é, não identificada a nenhum tronco linguístico conhecido. A população que venho pesquisando desde 2004 é falante da língua Aweti, de família do mesmo nome do tronco Tupi, também representado na região pela língua Kamayurá (família Tupi-Guarani). Os Aweti dividem-se hoje em duas aldeias, com cerca de 80 e 60 indivíduos cada, havendo também muitos indivíduos dispersos em aldeias vizinhas. As observações a seguir são resultado de 11 meses de convivência com essa população dentro da área indígena, como parte de minha pesquisa de doutorado em andamento1.

A diferença linguística tem sido um critério importante para a definição, pelos antropólogos, de seus “grupos” ou “tribos”, de modo a estabelecer, enfim, as fronteiras de seu objeto de estudo. O que nos interessa aqui, no entanto, é o modo como as pessoas que o antropólogo estuda, no presente caso habitantes do Alto Xingu, engajam-se em processos de diferenciação e identificação envolvendo especialmente, aqui, a variação linguística. Passa-se assim da questão “como é possível definir unidades culturais” (para deixar claro afinal de quem se está falando) para a questão “como tais pessoas definem-se em relações de identidade e alteridade, se é que se definem assim”. De quem se fala, em outras palavras, não está nem deve ficar claro demais. Essa é justamente a questão que nos colocamos, que colocamos a “eles” – um coletivo definido contingencialmente.

No Alto Xingu, povos falantes de línguas mutuamente ininteligíveis convivem dentro de padrões culturais praticamente idênticos. Por padrões culturais entenda-se a cultura material, especialmente as pinturas e os adornos corporais, bem como os objetos rituais e de uso doméstico; a mitologia; os rituais; o sistema de classificação de parentes e de atitudes prescritas entre eles. Tal uniformidade é constantemente recriada em uma rede intrincada de trocas cerimoniais, matrimoniais e econômicas, absolutamente central para a vitalidade do cosmos2. A combinação de multilinguismo e uniformidade cultural em um regime de trocas pacífico, isto é, do qual a guerra aberta entre as unidades de troca (em geral, aldeias) está idealmente banida, situa o Alto Xingu em posição singular no cenário das formas sociais ameríndias, ao lado da região do Alto Rio Negro, no noroeste amazônico.

Apesar de conviverem com gente que partilha valores, mitos e rituais praticamente idênticos aos seus, os falantes de uma determinada língua xinguana não fazem grande esforço para adquirir competência ativa nas línguas dos povos vizinhos, com os quais convivem em inúmeras e repetidas situações rituais e nas ocasiões bastante comuns de casamento interaldeão. A figura dos indivíduos um tanto deslocados, casados fora da sua aldeia natal – pessoas que vivem na aldeia do cônjuge muitas vezes sem entender, no início, e eventualmente sem jamais chegar a falar, com o tempo, a língua local –, me servirá como ponto de partida para fazer algumas considerações a respeito da escrita, e da falta dela, entre essas populações.

 

Mo’aza

Via de regra, o termo nas línguas indígenas da região para designar o conjunto daqueles que compartilham a mesma cultura (estética, moral, mitologia etc.) pode significar, em outros contextos, “pessoa, gente” – ser antropomorfo ou moral: kuge, entre os povos Caribe, mo’at, na língua aweti, putaka, em mehinaku etc. Em oposição a ele, “índio bravo”, ou simplesmente “índio” (waraju, em aweti), é a tradução comum para os termos nativos que designam não-xinguanos e não-brancos (onde branco = cara’iwa, em aweti), ou seja, designativo de populações indígenas vizinhas que não compartilham o código moral, o padrão estético, o sistema ritual etc. que ali são usados como critérios autodistintivos. Assim, mo’aza, coletivo do mo’at aweti, designa o conjunto dos outros povos (sobretudo xinguanos) a quem visitam, por quem são visitados, com quem se casam etc.

Na língua aweti, o homem ou a mulher que mora na aldeia do cônjuge, fora da sua aldeia natal, é chamado de kujãmen, termo que traduzo, literalmente, por “marido de mulher” (kujã= mulher, -men = marido). A palavra provavelmente refere-se ao ideal, normalmente respeitado, de os rapazes irem viver na casa dos sogros durante os primeiros anos de casamento. Como regra geral na região (e em diversas partes do mundo), a pessoa que se casa, seja dentro da própria aldeia ou fora dela, deve trabalhar para seus sogros e oferecer-lhes presentes, sobretudo alimentos. Caso não o faça, entre os Aweti ao menos, é muito provável que a sogra fique tão enfurecida e faça tantas fofocas contra o cônjuge inadimplente, seja marido da filha ou esposa do filho, que o casamento se torne inviável. Separações por esse motivo, ou pela dificuldade de adaptação do recém-casado à vida na casa de seus afins, são muito comuns. Além disso, o jovem marido pode ter algumas tensões com seus cunhados: caso expressem o desejo de obter algum objeto seu, o esposo vê-se obrigado a dá-lo, pois tomar uma moça em casamento significa a contração de uma dívida eterna com os parentes dela, sobretudo com seus irmãos. Homens e mulheres recém-casados, além disso, sofrem bastante com o ciúme dos (geralmente inúmeros) amantes passados e presentes do cônjuge. Se isso é verdade para aqueles casados em sua própria aldeia, que dizer dos que se mudam para viver na aldeia de estranhos? Todo recém-casado, enfim, é alguém que trabalha mais do que os outros e tem um frágil controle sobre seus próprios bens, sendo além disso comumente hostilizado pelas pessoas do mesmo sexo e faixa etária, seus concorrentes pelo parceiro sexual3. O/a kujãmen, pior que isso, em geral não conhece a língua da aldeia onde vai viver, ou conhece pouquíssimas palavras. Essa situação leva muitas vezes a um processo em que o não-falante da língua começa a presumir, erroneamente ou não, que está sendo criticado, xingado ou simplesmente que se tornou motivo de chacota dos anfitriões4.

 

Uma paz instável

Além de se frequentarem para participar de rituais intergrupais (cf. Barcelos Neto, 2008, para uma excelente análise do sistema ritual xinguano), ocasiões em que vizinhos obrigatoriamente enfrentam-se na luta conhecida como huka-huka, os xinguanos visitam-se constantemente para jogar futebol. Dito de outro modo, um dos rituais intertribais realizados frequentemente na região é o futebol – ele não é menos importante que os ritos “tradicionais” na definição das relações entre as unidades de troca. Como todos os eventos que reúnem pessoas de aldeias distintas, falantes de línguas distintas (rituais de troca, ritos funerários e outros), o encontro traz à tona altas doses de hostilidade latente (cf. Ball, 2007). Tanto na luta quanto no futebol são comuns as discussões em torno da deslealdade do adversário.

No período em que estive na aldeia, entre setembro e dezembro de 2008, os Aweti reuniram-se algumas vezes com seus vizinhos Mehinaku (Aruaque) para jogar futebol, ora visitando-os, ora sendo visitados por eles. Durante a partida todas as mulheres, os velhos e as crianças postam-se à porta de suas casas, voltados para a praça central da aldeia circular onde o jogo tem lugar. Como entre nós, o público grita, xinga, procura desestabilizar o adversário.

Em uma ocasião em que os Aweti foram jogar na aldeia Mehinaku, os jogadores retornaram para casa trazendo algumas histórias. Há uma mulher Aweti que mora na aldeia Mehinaku, pois é casada com um chefe de lá. Após a partida, ela traduziu aos jogadores Aweti tudo o que a plateia Mehinaku havia dito sobre eles, chamando-os de baixinhos e coisas do tipo. Esses xingamentos, no entanto, ela explicava, eram uma resposta dos Mehinaku a xingamentos que teriam recebido dos Aweti em uma partida anterior na aldeia destes. Ora, afirmavam minhas interlocutoras Aweti, recontando a história, os Aweti nunca tinham xingado os Mehinaku, estes é que estavam desconfiando à toa, pois, como não entendiam a língua aweti, supunham estar sendo vítimas de agressão verbal sem nenhuma base verídica. Eles estavam desconfiando injustamente que algo maldoso fora dito a seu respeito (otewãup: onde -wãup é radical de desconfiar, o prefixo o- indica terceira pessoa, e a partícula -te- indica a reflexividade do verbo – desconfiavam de algo a seu próprio respeito). A partir desse evento comecei a suspeitar de que esse deve ser também um problema para o recém-casado em terra estrangeira: otewãup, supondo que dizem as piores coisas sobre si.

Ao tentar me integrar à vida na aldeia, participando das atividades cotidianas com as mulheres, constantemente solicitada a dar ou trocar meus objetos, sem entender muito do que me diziam, e falando menos ainda, eu talvez não fosse muito diferente de uma kujãmen. Pelo menos assim diziam algumas pessoas ao me ver desastradamente trabalhando na roça: “Kujãmen, você?”, perguntava-me uma jovem, completando com ironia, “Cadê seu marido?”. Ela queria dizer, me parece, “Por que você trabalha se não tem uma sogra, uma cunhada, um marido para alimentar e nem filhos?”. Apenas dois ou três anos mais tarde, durante uma nova temporada na área indígena, ao conversar com um rapaz Mehinaku que viveu alguns anos casado na aldeia Aweti e que já há algum tempo se separou e voltou a morar em sua aldeia natal (um ex-kujãmen), comecei a pensar sobre as similaridades, mas sobretudo as diferenças, dos nossos métodos de sobrevivência e objetivos, através do aprendizado da língua, em terra estrangeira.

 

Produzindo objetos: a escrita antropológica

Talvez o único elemento que possa ser realmente chamado de método de pesquisa em antropologia, se estamos falando de uma antropologia feita in loco e não sobre material bibliográfico, é a escrita do diário de campo. Vistos a certa distância temporal, esses cadernos passam a testemunhar estágios de aprendizagem, revelam hipóteses absurdas já abandonadas e algumas intuições que ainda parecem fazer sentido. Além de garantir que o aprendido não será esquecido, a escrita tem, sugiro, uma função extremamente importante no momento mesmo da pesquisa, à medida que aquilo que é aprendido pode ser testado, confirmado ou descartado, de modo que o antropólogo normalmente retorna para casa com algumas intuições analíticas cujas referências estão perdidas em um emaranhado de anotações desconexas. Além disso, e acima de tudo, seu objetivo final é produzir um texto, do qual os bagunçados escritos de campo podem ser vistos como primeiras versões. Esse texto – uma tese, um artigo – será a condensação da sua experiência na forma de uma conversão desta em dados analisáveis; espera-se que ele reflita mais do que um punhado de impressões pessoais e seja capaz de revelar, através da exploração de incidentes presenciados, as histórias ouvidas, algumas proposições verdadeiras sobre as pessoas que constituem o objeto do qual se ocupa5.

A escrita antropológica em seus dois momentos – o diário de campo e o texto analítico – pode ser entendida de uma maneira interessante através da noção de momento etnográfico elaborada por Marilyn Strathern (1999). O conceito se refere ao fato de que a perspectiva assumida pelo pesquisador no campo contém em si a perspectiva da análise antropológica que deverá ser produzida em uma instância radicalmente diferente, o escritório do antropólogo: é com as questões antropológicas que de saída motivaram sua investigação que o pesquisador vai relatar o que foi presenciado entre os nativos, mas a essa altura suas questões já terão sido afetadas pelos problemas totalmente diferentes que seus informantes lhe apresentam. Inversamente, o antropólogo não trabalha em casa sem ter em mente a perspectiva adotada no campo – os problemas alheios –, que assim impregna o espaço da escrita fora do campo. O momento etnográfico stratherniano, em resumo, é a objetificação da relação, inerente ao método de pesquisa em campo, entre observação e análise (p. 6). A autora fala de “objetificação” no sentido de que as relações entre esses dois momentos do trabalho antropológico tomam forma em uma imagem, um objeto de análise sempre semianalisado, em que coexiste o que já foi e o que ainda precisa ser entendido no observado (por exemplo, no caso de Strathern, a troca cerimonial de conchas em um povoado das terras altas da Melanésia); mas a noção de objetificação refere-se mais amplamente ao fato de que as relações observadas em campo tornam-se, pelo olhar do observador, objeto de conhecimento, coisa a ser descrita, explicada (pp. 13-18). É importante ressaltar o caráter de “coisa” assumido pelo conhecimento nesse contexto, para marcar à frente um contraste com a forma que o saber parece tomar do ponto de vista indígena.

 

A escrita como método de aprendizagem

Certo dia presenciei uma conversa (em português, língua franca no Parque Indígena do Xingu) entre um “branco” e aquele rapaz Mehinaku, ex-marido de mulher Aweti, ex-residente na aldeia da esposa, sobre a dificuldade de se aprender um idioma estrangeiro. Em dado momento intervim para aconselhar o cara’iwa, sugerindo que a melhor maneira de aprender a língua indígena seria escrever o máximo que pudesse de vocabulário, até que o som de palavras muitas vezes repetidas se tornasse perceptível a seus ouvidos, tornando-o então capaz de apreender novas palavras. Logo o interlocutor Mehinaku alegou não ser necessário escrever nada, e que ouvir repetidamente a “língua do Aweti” seria suficiente para seu amigo estrangeiro aprendê-la. Ora, essa colocação me fez lembrar que as coisas se passam ali como se o objetivo de um xinguano não fosse falar a língua do povo de uma aldeia vizinha (cf. Basso, 1973; Franchetto, 1986; Gregor, 1977), e sim entender/escutar (duplo sentido do verbo aweti – tentup) essa outra língua de modo a possibilitar o curso das atividades diárias. Manter uma identidade étnica através da diferenciação linguística é tão aceitável e esperado nesse sistema que uma senhora Kamaiurá, moradora da aldeia Aweti há pelo menos 50 anos, não fala absolutamente nunca na língua local, sendo contudo perfeitamente capaz de compreender qualquer sentença em aweti.

Quanto a mim, precisava mesmo acumular conhecimento, e a escrita era meu instrumento principal; limitada pelo tempo da pesquisa acadêmica, precisava aprender rápido sobre o mundo aweti, enquanto um índio vindo de outra aldeia desejava apenas escutar/entender o suficiente para atuar no dia-a-dia, havendo nada ou muito pouco a aprender das concepções culturais implícitas de seus anfitriões, as quais ele de fato já conhecia, nos termos da sua própria língua. Além disso, a inicial sensação de exclusão e hostilidade do kujãmen só poderia se dissipar, ou não, com base nas relações reais de troca e trabalho que estabelecesse. Segundo me parece ser a visão do jovem Mehinaku, para conviver com os Aweti não era portanto preciso aprender sua língua, no sentido em que geralmente entendemos aprender. Era preciso escutar a ponto de tornar a relação possível ao mesmo tempo que manter a singularidade dos falantes, e tal aprendizado só era concebível em relação, e não como o acúmulo de informações impessoais.

Muitas vezes pessoas de meia-idade na aldeia usavam a expressão “eu não sei/conheço a folha (de papel) do branco” (an akwawawyka cara’iwa eop), para explicar-me seu sentimento de incapacidade de compreender e lidar com os costumes dos brancos. O verbo utilizado, kwawap, significa tanto saber quanto conhecer; “folha” aqui é sinédoque de “desenho em folha de papel”, modo como os Aweti se referem à escrita pela junção de op, folha, e tantu, desenho, padrão gráfico6. Após declarações desse tipo era comum me pedirem ajuda para resolver tal projeto, ou comentarem sobre o desempenho ativo que esperam dos professores indígenas e outras lideranças jovens da aldeia para resolver problemas com o atendimento de saúde, a aquisição de bens para a comunidade etc. A escrita, desse modo, parecia ser para meus interlocutores indígenas menos um meio de adquirir conhecimento que um meio de estabelecer relações eficazes, através das quais algo poderia ser obtido/incorporado (objetos, atendimento médico) ou cuidado, mantido (a terra indígena, os costumes indígenas).

 

A escrita como meio de ação

Minha posição é evidentemente ambígua; sendo branca e dominando a escrita, a permanência de longas temporadas na aldeia me permite aprender minimamente a escutar a língua aweti e, consequentemente, estabelecer relações mais ou menos estáveis com as pessoas da aldeia – uma posição de instrumento da aliança entre certos brancos e os índios, como uma kujãmen entre duas famílias de aldeias distintas. Meu lugar acaba sendo, como o de diversos etnólogos hoje, o de mediadora, tradutora das necessidades aweti para o mundo branco dos “donos do dinheiro” (financiadores de projetos, chefes do sistema de saúde) e tradutora das exigências destes para com os Aweti.

É, portanto, em certa medida, o domínio da escrita por mim, e sua ausência entre os Aweti, que marca e condiciona nossa relação: eu tenho o papel e preciso descrever relações para preenchê- lo (relações que eles estabelecem entre si e com o que os cerca), eles precisam do papel para se relacionar com certos brancos. Eu uso a escrita para aprender, e preciso me relacionar com eles para aprender; eles precisam aprender a escrita e precisam se relacionar comigo, que sei escrever, para fazer mais relações. Adotando o esquema conceitual de Strathern novamente, podemos dizer então que o saber antropológico assume a forma de coisa, pois é um saber sobre o mundo (sobre aquilo que o olhar define como objeto, isto é, passível e passivo de conhecimento), enquanto o saber indígena, tendo por objetivo a relação, assume a forma de pessoas, isto é, resulta em relações através das quais pessoas se definem – na medida do efeito que produzem umas nas outras – como possuidoras de determinadas capacidades e determinada potência (Strathern, 1988, 1999).

Seria possível, por outro lado, afirmar o inverso, reconhecendo que o conhecimento antropológico é tão dependente de relações quanto está a serviço delas – no trabalho de campo e na carreira acadêmica –, enquanto o conhecimento indígena visa multiplicar coisas – os objetos que, obviamente, os Aweti pretendem adquirir quando procuram ampliar suas relações com os brancos através da escrita7. Esta descrição seria tão verdadeira quanto a precedente, mas a questão é que, do ponto de vista do antropólogo, o que ele está produzindo através da escrita é um objeto (de conhecimento), mesmo que isso envolva e resulte em relações sociais. Já do ponto de vista Aweti, miçanga, motor de popa ou atendimento de saúde, coisas obtidas através da escrita, são sempre objetos de troca com outros índios e com os brancos (cf. Kelly, 2008), cujo efeito é multiplicar ou atualizar relações nas quais as pessoas se definem como donos (doadores) de certas qualidades, habilidades, propriedades (Strathern, 1999). Postos em circulação nas redes de troca cerimoniais, como as miçangas, ou servindo como instrumento mesmo da circulação, como os motores, tais objetos são sempre, além disso, duplos índices (no sentido do conceito de índice em Gell, 1998). Eles indicam ao mesmo tempo a relação mais ou menos bem-sucedida que certos índios conseguem estabelecer com os brancos, o que dá uma importante medida do seu valor pessoal a seus parceiros de troca, e a relação mais ou menos bem-sucedida dos índios com seus próprios (conhecimentos) ancestrais, medida do seu valor e moeda de troca para os brancos.

Mais do que isso, se a relação parece ser a finalidade do aprendizado entre os Aweti, seja o aprendizado da língua por um(a) kujãmen, seja o aprendizado da escrita por um professor indígena, relação é também o modo de aprendizagem ali. Para o antropólogo social, que tem por objetivo descrever as relações em que se engajam seus nativos, relação é o ponto de chegada e é visível apenas como objeto fixado no texto. Nos regimes cosmológicos do tipo Aweti que venho descrevendo, por sua vez, as relações estão no começo (Strathern, 1999, p. 257): relações são vistas como aquilo que gera mais relações, e são um objetivo do aprendizado na medida em que são o meio de sua multiplicação.

 

Dois exemplos amazônicos: saber a escrita e o saber do xamã

Nunca ouvi entre os Aweti afirmações a respeito da escrita como um conhecimento misterioso responsável pelo sucesso dos brancos na aquisição de bens e por sua posição superior na relação com os índios, como reporta Peter Gow (1991, 2001) para os Piro em relação a seus patrões não-índios na extração da borracha. Como disse, a concepção implícita em certas afirmações aweti seria a de que para alcançar uma posição razoável nas relações com os brancos é necessário dominar a escrita, não porque ela seja um conhecimento mágico superior, mas sim porque os brancos, donos do dinheiro, das armas e inimigos potenciais (sempre ameaçando tomar as boas terras dos índios, me dizem estes), se relacionam através da escrita, dos documentos oficiais, dos números impressos em notas de papel que chamamos dinheiro – a respeito do qual uma mulher Aweti me fazia lembrar: “Eu não entendo, é só uma folha… op tene…”. A história Piro, no entanto, vale a pena ser contada, pois me parece ter alguns pontos de contato com a concepção Aweti da escrita que venho tentando descrever.

Trata-se de uma história da década de 1920, recolhida por Gow no relato de uma missionária do SIL (Summer Institute of Linguistics), organização protestante bastante ativa em certas partes da Amazônia indígena. Nesse relato a missionária descrevia suas conversas com um aluno, o qual por sua vez narrava a história de um primo, já falecido, que teria sido a primeira pessoa a aprender a ler entre os Piro. Ocorre que sua leitura seguia uma concepção nada ortodoxa: consistia na transformação do papel, aos olhos do leitor, em gente. O papel seria na verdade uma jovem, de lábios vermelhos, que dizia coisas ao leitor; ler era a capacidade de enxergar a forma humana do papel e logo de escutar suas palavras – assim como o xamanismo entre os Piro (e alhures) consiste em enxergar formas humanas e estabelecer relações com seres que as pessoas normais veem apenas como animais, seres inanimados, ou simplesmente não enxergam. O que havia para ser adquirido na leitura era de fato ouvido pelo leitor, proferido pela jovem Papel; aqueles rabiscos desenhados, tão feios e pouco harmônicos para o padrão estético Piro, não poderiam ser a fonte de tanta sabedoria e poder cósmicos, aos olhos dos índios (Gow, 2001).

A história interessa aqui por descrever a escrita (a leitura, mais precisamente neste caso) e sua potência como uma questão de estabelecer as relações certas, ou capacidade de estabelecer, através de uma visão especial, alterada, mais relações do que os homens normais. Substancialmente complexificada, esta fórmula foi generalizada por Viveiros de Castro como o modelo do conhecimento xamânico nas sociedades indígena (1996, 2002). O que chamo aqui simplesmente de “estabelecer relações” constitui o que autor pretende definir com precisão a respeito do xamanismo. Pois tal relação do xamã com os espíritos implica uma transformação do xamã em espírito, ainda que nunca completa: o xamã torna-se capaz de ver como os espíritos, e portanto ver espíritos, mas vê como os humanos ao mesmo tempo, só deste modo sendo capaz de estabelecer a mediação necessária para a continuidade do mundo humano, cujo equilíbrio depende em grande medida do sucesso das relações entre humanos e não-humanos (sendo que os espíritos ou animais também têm os seus xamãs...)8.

A epistemologia descrita por Viveiros de Castro (1986) na etnografia dos Araweté – povo Tupi-Guarani que vive às margens do rio Xingu, no Pará – é exemplar da perspectiva ameríndia sobre o saber que encontramos entre os Piro. O autor nota que, entre os Araweté, dificilmente um conhecimento ou a explicação para qualquer aspecto da cosmologia seria remetido ao saber dos antigos, ao discurso mitológico “puro”, ancestral: qualquer conhecimento era sempre remetido a um sujeito real, presente, testemunha ocular do fato narrado, ou ao menos ouvinte direto daquele que testemunhou. Cabe, portanto, ao xamã araweté adquirir conhecimentos através de sonhos em que aprende cantos dos deuses (os deuses cantam através dos xamãs, dizem os índios), nos quais fica sabendo sobre o mundo celeste, mundo não humano, invisível e perigoso aos olhos humanos comuns. Aquilo que o xamã araweté canta sobre o mundo não humano, portanto, é menos um conhecimento ancestral que um saber constantemente renovado, não estabilizado; saber não fixado pela escrita, e que na repetição das experiências de indivíduos reais, e nas interpretações múltiplas dessas experiências (interpretações dos cantos pelos ouvintes), é passível de transformação e questionamento. E mais: sendo o conhecimento sempre pessoal, e dada a existência de diversos xamãs na aldeia, além da memória do discurso dos xamãs falecidos, o efeito é a relativização dos discursos. Não existiria entre os Araweté, sugere o autor, ao contrário do que se sustenta na literatura sobre outros povos Tupi-Guarani, uma dependência do grupo em relação à palavra do xamã, havendo antes um controle do grupo sobre a autoridade xamânica. Resta dizer que o saber revelado nos cantos xamânicos é ainda bastante democratizado: mulheres e crianças falam tanto quanto ou até mais do que os xamãs do mundo sobrenatural por eles descrito em seus cantos, sobretudo porque as mulheres são notoriamente comentadoras/intérpretes dos cantos xamânicos. O xamã, assim, nunca fala de uma experiência pessoal em seus cantos, já que é o deus que canta através dele; assim como mulheres e crianças o citam nas exegeses dos cantos, ele também cantando cita entidades sobrenaturais, em uma “recursividade infinita”, como descreve Viveiros de Castro. Até mesmo a autoridade da testemunha ocular parece ser estranha aos Araweté, que, como os Aweti do Alto Xingu, preferem o discurso direto acompanhado da expressão “diz-se que ele disse” (na ‘etu ti, na língua aweti), remetendo o saber sempre a outras relações.

Nessa economia do conhecimento, na qual todo saber é resíduo de relações entre humanos e destes com não-humanos, não se trata de depurar a informação pessoal para alcançar o verdadeiro universal. Ao contrário do que faz o antropólogo, escrevendo, fixando descrições no papel, buscando pontos de convergência em relatos distintos para escrever, de preferência, apenas sobre aspectos generalizáveis (definindo objetos do saber), os Araweté parecem estar mais interessados em conseguir descrições particulares confiáveis ou interessantes, ainda que sempre mutáveis ou passíveis de questionamento (definindo pessoas que sabem). Seria, imagino, menos o caso de depurar aquilo que foi apresentado por fontes diversas que de averiguar a confiabilidade de uma fonte particular pela força tanto da relação entre ouvinte e falante quanto da relação entre a fonte humana e suas próprias fontes não-humanas. Relações entre esposas-tradutoras de cantos e seus maridos xamãs-cantores, entre o casal e seus ouvintes coaldeãos, entre os xamã e os entes invisíveis ao olho humano comum com os quais se comunica.

 

Tomowkap

A pesquisa de Gow demonstra que entre alguns povos sul-ameríndios é preciso entender qualquer técnica de conhecimento à luz das práticas xamânicas, modo por excelência de adquirir poder e saber ali. Entre os Aweti e outros povos que habitam o Alto Xingu, no entanto, o xamanismo não desempenha exatamente a função de produtor de informações cosmológicas: os xamãs veem ou escutam seus espíritos auxiliares para resolver questões pontuais, sempre ligadas à cura de doentes. Os conhecimentos do mundo, por sua vez, tanto o mundo dos antigos e o modo como veio a se tornar o que é hoje, quanto o mundo atual e as relações que o compõe, são remetidos a “histórias”. Os Aweti traduzem a palavra tomowkap por história, sem diferenciar histórias contadas pelos antepassados e transmitidas através das gerações do relato de um parente que acaba de chegar de viagem. Literalmente, a palavra designaria “coisa de orientar, orientador”, pois a raiz -mowka compõe também o verbo aconselhar, orientar ou dar conhecimento, dependendo do contexto (amowka = “eu aconselho/oriento”, imowka = “me aconselhe, oriente, explique”), enquanto a terminação -p indica tratar-se de um instrumento. Tomowkap, em suma, explica o que foi e o que é, e rege o que será: pais e avôs estão sempre orientando o comportamento dos filhos através dessas histórias, sobretudo aquelas dos antigos, assim como o chefe da aldeia idealmente orienta seus coaldeãos, a quem se dirige coletivamente usando o termo “criançada” (kaminu’aza), todo dia ao alvorecer.

Não resulta desse modo de conceber o conhecimento do mundo que as informações transmitidas sejam inquestionáveis: não o é uma história atual, muitas vezes desprezada como fofoca (tyj popy’i, literalmente “queixo bem-disposto” para se movimentar, ou seja, falar) ou mentira (temo’em), e muito menos as narrativas das sagas dos antigos, comumente desqualificadas como versões pobres, falsas ou mentirosas de histórias que só outro determinado narrador sabe contar verdadeiramente. Em minha experiência como ouvinte de mitos entre os Aweti, além de notar divergências consideráveis quanto ao rumo dos acontecimentos, nomes de personagens, existência ou inexistência de certos personagens etc., era comum ouvir críticas de um narrador contra a narração alheia, problematizando desde a incompletude de uma narrativa até a ordem pela qual as histórias eram contadas uma após a outra. Ao mesmo tempo em que com plácido relativismo os velhos Aweti podiam afirmar para mim “minha história é assim, a história dele é diferente” – em que história ganhava o sentido fraco de versão da história –, pareciam se engajar em uma disputa velada buscando definir em quem eu acreditaria como dono da história verdadeira. O que implicava uma escolha minha sobre quem, dentre eles, seria mais meu parente que os outros.

Ao contrário do que acontecia comigo, nas relações cotidianas entre os Aweti a proliferação de (versões das) histórias não constitui um grande dilema: filhos escutam histórias de seus pais, avós, às vezes sogros – normalmente a narração das histórias dos antepassados é uma atribuição masculina – sem se preocupar em cotejar com a história do vizinho que, aliás, deve estar errada ou incompleta. Em outras palavras, em uma narração todo o contexto passa a ser informação; verdade e relações de parentesco são reconstruídas em retroalimentação contínua. Estou sugerindo que, como entre os Araweté, para os Aweti o saber é inseparável de quem sabe, de quem o transmite, e como. Ao mesmo tempo, algumas concepções básicas são compartilhadas por todos e os detalhes são pouco importantes, mais material de manobras políticas que de disputas científicas sobre como as coisas realmente são. Em qual narrador do mito você acredita é inseparável de com quem você partilha sua comida, a quem você apoia, de que lado você está.

 

De volta ao modelo xamânico da escrita

Os Aweti não me parecem, portanto, contar com a escrita para adquirir conhecimentos sobre o mundo à sua volta. A escrita entre eles, ao menos por enquanto – quando a maioria dos habitantes da aldeia mal fala português –, teria mais a ver com o poder de torná-los capazes de interferir no mundo branco, falar a língua do branco, cuja presença e força, no entorno da área indígena, na televisão, nos órgãos governamentais e não governamentais com que os índios são obrigados a dialogar, é inegável. A escrita, se extrapolamos para imaginar uma visão indígena desse processo, poderia operar como as substâncias alucinógenas que permitem a transformação corporal do xamã, possibilitando a incorporação de novos pontos de vista. Se é preciso ver como os espíritos para lidar com eles – lembro que através do transe provocado pela ingestão de altas doses de tabaco o xamã xinguano vê o mundo dos seres sobrenaturais causadores de doença e pode assim lidar com tais entidades –, será também preciso ver como os brancos para negociar com eles. Importa menos o que a escrita permite saber do que saber a escrita, conhecimento que permite olhar momentaneamente o mundo que os brancos veem. Nesse mesmo sentido, porém, saber o que os brancos sabem também é importante. Se o mundo visto define quem está vendo, ver o mundo visto pelo branco pode ser uma forma de adquirir certa potência do branco, como o atesta a proeminência política atual dos professores indígenas.

Agora talvez seja possível entender melhor a perspectiva do rapaz Mehinaku que aconselhava seu interlocutor cara’iwa a não escrever nada, ouvir apenas, para aprender a língua nativa. O que estava em jogo ali não era a língua como objeto de conhecimento, matéria inerte a ser apreendida em sua totalidade. Escutar/entender a língua, como se escuta uma história, tanto pressupõe quanto compõe uma relação. Quando a língua é o objeto de troca – a reificação da diferença dos afins –, o que está marcado não é a filiação ou a identificação, como na transmissão/ narração de histórias dos antigos, mas a afinidade e a alteridade que se materializam na figura do kujãmen. Enquanto estive negligenciando até aqui a distinção, fundamental às culturas amazônicas, entre relações de afinidade e relações de consanguinidade, este foi o lugar para onde as considerações sobre a perspectiva indígena do saber nos conduziu, e me parece ser o problema que merece desenvolvimento adiante: afinal, que tipo de pessoas são constituídas entre os Aweti, enquanto participantes de um eterno circuito de trocas, de acordo com o que é trocado – ora histórias, ora línguas?

 

Referências

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Endereço para correspondência
Marina Vanzolini Figueiredo
Rua Sorocaba, 736/303 – Botafogo
22271-110 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: 21 2286-5787 21 8131-8641
E-mail: marinavanzolini@gmail.com

Recebido: 30/03/2009
Aceito: 12/04/2009

 

 

* Agradeço a Eduardo Viveiros de Castro pela leitura atenciosa deste trabalho e pelas importantes sugestões.
** Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional, UFRJ.
1 Minhas visitas à aldeia Aweti teriam sido impossíveis sem o apoio financeiro do projeto Pronex-2003 através do Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI). Contei, além disso, ao longo dos anos de doutorado, com bolsas de estudo concedidas pela CAPES e pela Faperj, sem as quais dificilmente teria podido me dedicar a esta pesquisa. Agradeço também aos colegas do NuTI e do Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi) com quem tenho tido a oportunidade de discutir os desenvolvimentos de meu trabalho.
2 O exemplo mais evidente da importância do sistema ritual xinguano para a continuidade da sociedade humana e do cosmos em que ela se insere é o Kwarup, cerimônia funerária realizada cerca de um ano após a morte de um indivíduo importante da aldeia, executado somente com a participação ativa dos diversos grupos que se reconhecem mutuamente como xinguanos. Esta “festa”, “reunião” ou “coisa de alegrar”, como designam o ritual as línguas nativas, garante tanto que a alma do falecido realizará seu destino alcançando a aldeia dos mortos no céu quanto a saúde dos vivos, que cessarão então o longo período de lamentações entre a morte de um parente e a realização do rito. A cerimônia dá ainda lugar a um rito de iniciação masculino, a furação de orelha de meninos, e ao fim da reclusão pubertária feminina (para uma análise exaustiva do Kwarup, ver Agostinho, 1974).
3 Esta é uma descrição bastante livre de um tema clássico e caro à antropologia de inspiração estruturalista, a saber, a relação entre aliados por casamento. Seria impossível citar a bibliografia sobre o assunto, dada sua extensão; o que me interessa por ora é menos discutir as propriedades das relações de aliança entre os Aweti que criar um cenário para situar a figura do kujãmen e sua ignorância linguística.
4 Viveiros de Castro (comunicação pessoal) reporta para os Yawalapití, entre os quais fez uma breve pesquisa de campo na década de 1970, que certo indivíduo de outra aldeia era chamado jocosamente pelos homens da aldeia Yawalapití, onde se casara, de “cunhado”, mesmo por aqueles que as regras de extensão dos termos de parentesco deveriam considerá-lo “irmão” ou “filho”. Isso demonstra que a distância geográfica pode irmanar todos os homens de uma aldeia em relação a seu afim estrangeiro, em relação a quem se enfatiza a alteridade potencialmente hostil que define as relações entre cunhados em geral.
5 Há uma vasta discussão na disciplina, ligada à chamada antropologia pósmoderna, a respeito da não-representatividade do texto etnográfico, ou de seu caráter ficcional (cf. Clifford, 1998). A comparação proposta a seguir em certa medida ignora o debate, exagerando uma imagem da antropologia associada ao modelo das ciências naturais. Noto apenas que, ao criticar a noção de que o texto antropológico fosse representativo dos Outros que constituem seu objeto, a crítica pós-moderna sugeria que a etnografia fosse representativa das concepções inatas do antropólogo (ainda que inconscientemente para os autores, é claro). Assim, permanece certa ideia do texto como representação que supõe uma separação entre sujeito e objeto à qual o pensamento indígena parece ser refratário, como será argumentado a seguir.
6 Peter Gow (2001) relata para os Piro da Amazônia peruana uma mesma associação entre a escrita e seu suporte material, a folha de papel. Segundo o ideal estético Piro, o padrão gráfico da língua escrita não obedece às regras que tornam um desenho (yonchi) poderoso. A escrita se parece mais com desenhos malfeitos, feios, e portanto ineficazes. Se não são esses desenhos que conferem poder ao homem branco, tal poder deve residir no suporte mesmo da escrita, no papel. Seria preciso investigar se há ideia semelhante por parte dos Aweti.
7 Agradeço a Eduardo Viveiros de Castro por esta observação.
8 Note-se que nesta formulação a questão do conhecimento é situada em um plano ontológico: o que se sabe, ou o que se vê, está diretamente relacionado ao sujeito do conhecimento, não pode ser apreendido a não ser de um ponto de vista específico. E se o ponto de vista, nas culturas amazônicas, observa Viveiros de Castro, está situado no corpo de quem vê, são igualmente manipulações corporais que permitem seja a manutenção do ponto de vista próprio de uma espécie, seja a adoção de um ponto de vista alheio. É impossível mudar de ponto de vista sem passar por um processo transformativo do ser; além disso, só se pode saber quem está vendo (de que ponto de vista) a partir do que é visto: o objeto define o sujeito de conhecimento. O tema será abordado novamente à frente.