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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

Ponto, vírgula, ritmos...

 

Full stop, comma, rhythm...

 

 

Raya Angel Zonana*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A pontuação, esses sinais gráficos que dão sentido a um texto escrito, é tomada como um semáforo que orienta os movimentos que surgem na produção de outras tessituras do humano.

Palavras-chave: Pontuação, Texto, Sonho, Escrita, Palavra, Letra, Linguagem.


ABSTRACT

The punctuation, these graphic signs that give meaning to a written text, is taken as a semaphore guiding the movements that occur in the production of other human constructs.

Keywords: Punctuation, Text, Dreams, Writing, Word, Letter, Language.


 

 

O livro que me inspirou esta escrita se impôs a mim por um contraste. Passeava meus olhos por uma vitrine quando o vi: O olho mais azul.

Ao lado do título, a fotografia de duas crianças negras. A ideia do olho mais azul e de crianças negras apresentou-se como inusitada, um contraste. Abri-o, e seu início insólito me capturou.

Apresento todos os passos que me levaram ao livro, pois o caminho pelo qual nos aproximamos dos objetos é sempre misterioso, pleno de pequenos sentimentos que vão se encadeando em nossa mente, e, neste caso, esta aproximação se fez pela imagem de uma capa, um apelo estético que tocou em delicados pontos pessoais1. A atração se fez pela imagem da capa e pela emoção que o encadeamento do texto inicial, que reproduzo a seguir, me provocaram.

Esta é a casa. É verde e branca. Tem uma porta vermelha. É muito bonita. Esta é a família. A mãe, o pai, Dick e Jane moram na casa branca e verde. Eles são muito felizes. Veja a Jane. Ela está de vestido vermelho. Ela quer brincar. Quem vai brincar com Jane? ... Brinque, Jane, brinque.

Esta é a casa é verde e branca tem uma porta vermelha é muito bonita esta é a família a mãe o pai dick e jane moram na casa branca e verde eles são muito felizes veja a jane ela está de vestido vermelho ela quer brincar quem vai brincar com jane ... brinque jane brinque

Estaéacasaéverdeebrancatemumaportavermelhaémuitobonitaestáéafamíliaamãeopaidickejanemoramnacasabrancaeverdeelessãomuitofelize vejaajaneelaestádevestidovermelhoelaquerbrincarquemvaibrincarcomjane... brinquejanebrinque

Transcrever estas últimas linhas me trouxe certa confusão. Por diversas vezes, automaticamente, inseri espaços entre as letras, formando palavras. Uma ordem consciente exigia ser cumprida, um sentido se fazia necessário. A lógica do inconsciente, com sua energia livre, me deixava confusa.

Todo texto, assim como uma música, tem um ritmo, uma cadência que lhe dá a entonação, significando-o. Através da retirada da pontuação e em seguida dos espaços entre as palavras, percebemos o que pode ser uma representação gráfica de um processo do esvaziamento de sentido de uma ideia. Sem pausas não se faz música, assim como não há, sem pausas, um pensamento. Ironicamente, um texto cheio de letras, de sinais não articulados por espaços, é um texto sem leitura possível, vazio de significado, porém ao mesmo tempo representativo como imagem do inefável.

Nesta apresentação singular do livro, a autora faz uma síntese do que virá a contar a seguir, em 216 páginas.

A história de uma menina negra, feia e pobre com 11 anos de idade, que tem um único desejo: possuir olhos azuis!

A história se passa em Lorain, Ohio, em 1941, e esta menina, Pecola, vivendo em uma família desestruturada, em um país que hostiliza os negros e em um mundo que hostiliza os feios e os pobres, imagina que tudo poderá se transformar se conseguir ter olhos azuis.

A criança símbolo da América naquela época, Shirley Temple, com cachos emoldurando um rosto de pele rosada onde brilhavam dois olhos azuis, tinha para Pecola os olhos mais azuis. E eram estes os olhos a que ela aspirava. Com eles, claro, um olhar que lhe concedesse existência, pertencimento. Mas sua vida se preenche de tons mais contundentes. Seu pai é preso após espancar sua mãe e pôr fogo na casa miserável onde viviam. Ela e o irmão são postos em lares temporários de outros negros da comunidade, e sua mãe fica com a família branca e rica para a qual trabalha. Nesta casa, aliás, a mãe de Pecola, a Sra. Brown, como é chamada por todos, inclusive pelos próprios filhos e marido, cuida primorosamente de uma menina branca, suave e linda em seus olhos azuis. E para os brancos e belos habitantes desta casa a Sra. Brown é simplesmente Polly.

Pecola, por sua vez, passa a morar temporariamente na casa de uma família negra, pouco menos pobre que a sua, e lá descobre uma caneca na qual está estampado o rosto de Shirley Temple. Encanta-se, e passa a tomar leite sempre nesta caneca. Toma leite em demasia, segundo se queixa a dona da casa. Mas como poderia Pecola deixar de alimentar-se daqueles olhos azuis que a transformariam?

Esta menina excluída, que sente que poderá vir a ter um lugar, ser aceita, somente se for outra, vai lentamente perdendo o contato com o mundo dos significados.

A leitura do livro é impactante, mas gostaria aqui de me ater ao pequeno texto da introdução e, nele, à maneira como a autora, articulando as palavras, dá a cada uma das três formas de escrevê-lo uma condição de ideograma.

O texto é tomado da cartilha usada nos Estados Unidos na época em que se passa esta história. É uma cartilha para crianças brancas, cujas famílias e casas ali descritas são muito diferentes daquelas do mundo de Pecola.

 

Pontuando

É possível que todas as histórias já tenham sido escritas. É possível...

E, ainda assim, há sempre outra maneira de se escrever ou de se ler uma história.

A paisagem – montanhas, casas, árvores – pode ser a mesma, mas a luz que ilumina, o olhar que capta, ou a mão que pinta são transformadores e fazem-na sempre diferente. Observamos de maneiras diversas cada uma das 50 telas que Monet pintou da Catedral de Rouen, ora pela mudança do ângulo de visão do pintor, ora pelo diferente momento do dia e sua luz, ora porque o nosso olhar nunca é o mesmo. E aquela mesma catedral se transforma em várias outras. Assim é também a escrita, que se abre a diversas leituras e maneiras de compreensão.

O crítico literário Anatol Rosenfeld (2002) fala dos vários planos que compõem um texto, “dos quais, o único real, sensivelmente dado, é o dos sinais tipográficos impressos no papel” (p. 13). A forma, tipos de letra, caracteres escolhidos para compor o texto, embora essenciais para a fixação da obra literária, continua Rosenfeld, não teriam função específica em sua constituição, a não ser em se tratando de um texto concretista. Seria um aspecto mais objetivo e não muito privilegiado pelos críticos, que se atêm mais ao conteúdo do texto.

É interessante notarmos que texto significa tecido, e textura se dá não só pela qualidade dos fios (conteúdo), mas também pela maneira de tramá-los, o que remete à forma.

Cecília Meireles (1989) nos conta, em um texto comovente, como escreveu o Romanceiro da Inconfidência, que, afirma, não foi composto, mas foi-se compondo, sussurrado aos seus ouvidos pelas pedras, pelas sombras e fantasmas de outros tempos, restantes na cidade de Ouro Preto, pelas suas brumas e montanhas. Diz Cecília que a obra de arte não é feita de tudo, mas de algumas coisas essenciais, e cabe ao artista a busca deste essencial expressivo. Ao dizer a verdade da história, o artista escolhe caminhos diferentes do historiador: “... seus caminhos são outros para atingir a comunicação. Há um problema de palavras. Um problema de ritmos. Um problema de composição”. Dessa maneira, continua, a expressão de determinadas emoções se faz “... até pela disposição gráfica dos versos, e pela diferença dos tipos de impressão” (p. 21).

Há na forma uma expressividade que fala além do que está dito, uma estética que provoca, emociona.

Este preâmbulo que faço tem um sentido de alerta. Procurarei iluminar algo que, muitas vezes, pode passar despercebido em uma leitura, mas que é seu semáforo, aquilo que carrega o sentido do texto.

Assim como podemos perceber a “descrição” do nascer do sol e de seu poente em Rouen através das tintas de Monet ao pintar sua catedral, podemos entender a perda do mundo dos significados para Pecola pela maneira como a autora altera ou retira totalmente a pontuação do texto e a separação entre as palavras.

Que significado podem ter para Pecola as palavras da cartilha, ainda que encadeadas? Em seu mundo, todo esse texto, palavra por palavra, tem o significado de estrangeiro, desconhecido, pois os objetos nele designados são somente itens de fantasia e desejo, nunca foram experimentados.

Pecola talvez tivesse uma pré-concepção (Bion, 2004) do que seria uma família feliz vivendo em uma casa bonita, e na qual as crianças pudessem brincar. A transformação de pré-concepções em concepções, sua realização, necessita de uma experiência viva, o que Pecola nunca teve. Sua família não é feliz. Na verdade, nem mais família é. Sua casa é feia e pobre, descolorida, e ela não brinca, sonha um sonho delirante. As palavras daquela cartilha são para ela vazias. Não tem significado a não ser como delírio. E é este movimento, de uma escrita ordenada pela lógica do pensamento consciente para uma escrita feita de letras como representação de coisa e não como representação de palavra, escrita delirante, que é mostrado pela autora através do que chamei de ideogramas.

Esta perda – a passagem de uma forma minimamente ordenada para outra desordenada e delirante – se dá para Pecola quando os limites, a pouca pontuação existente em sua vida, lhe é retirada através do incesto. Porém, talvez sempre tenha faltado a esta menina alguma “pontuação” que ordenasse sua vida emocional, que a cobrisse pela libido materna e lhe desse o limite de um amor paterno.

O sentido de uma frase é dado pela pontuação. É o ritmo que introduz os afetos, o que dá o tom do texto e também da vida.

Este tom é oferecido para a criança durante a mamada, em seus pequenos intervalos, quando a troca de olhares entre a mãe e o bebê estabelece tempos, peridiocidade, vírgulas. Ou nas reticências que acompanham o movimento das mãos da mãe ao banhar e demarcar o corpo de seu bebê. E há também os intervalos maiores, separações, os cortes que impõem um final. Pontos de exclamação ou interrogação, pontos finais que delimitam espaços e que balizam os terrenos incestuosos, necessariamente proibidos. Se esta pontuação não se dá, surge a confusão de línguas entre adulto e criança, dificultando a criação do simbólico.

Também a violenta e necessária imposição de uma linguagem da cultura traduzida pela mãe através de gestos e sons, nuances de voz, olhares, pontuações, portanto, cria o simbólico, ou o impede. Ainda, muitas vezes, espaços significando o silêncio de expectativas não cumpridas, de olhares ressentidos criam o mal dito, ou outra qualidade de silêncio denotando uma presença que pode acolher, dá uma representação à criança.

A partir daqueles três parágrafos, cujo conteúdo é tão simples e cuja estrutura é tão fomentadora de ideias, podemos tecer alguns pensamentos.

Não é difícil percebermos no jogo de cena criado pela escritora, no encadear das frases, a ideia do que seria o trabalho da função alfa (Bion, 2004), exercido pela rêverie da mãe ou de um analista.

O mundo caótico e pulsional que se explicita por um amontoado de sinais sem sentido, perturbador, causador de turbulência que só é possível expressar por blocos de letras que jorram, pode ser tomado pelo adulto ou pela escuta analítica, e separado em palavras que passam a nomear sensações, dores, angústias, fazendo um arranjo que tenha significado. A pontuação se faz então na vinculação que se estabelece nesse encontro, modulada pelo grau de conhecimento, amor ou ódio que impregnam a dupla.

Sartre (1963) conta que, quando criança, durante uma viagem com sua mãe e sua avó, recebe de seu avô cartas escritas em rima. Tenta escrever-lhe uma resposta versificada e, com a ajuda de sua mãe, consegue fazê-lo, para deleite de seu avô que lhe envia um poema exaltando-o. Diz Sartre: “O hábito estava adquirido, avô e neto haviam se unido por um novo laço; falavam-se como os índios, como os caftens de Montmartre, numa linguagem proibida às mulheres” (p. 102).

A comunicação entre ele e seu avô o faz homem, destaca-o. A rima pontua e dá forma de poesia ao corte que se faz entre homens e mulheres.

É muito interessante seguirmos Sartre em seu embate com as letras, com a escrita, que o aproximava e também distanciava de seu avô exigente e autoritário, dono da biblioteca na qual, garoto, se perdia em seu imaginário. Ao aprender a escrever, percebe: “meus garranchos trocando pouco a pouco seu brilho de fogos fátuos pela pálida consistência da matéria: era a realização do imaginário” (p. 103).

O imaginário se realiza na escrita que, no caso de Sartre, dirige- se a seu avô, à sua mãe e também a ele mesmo, pois “filho único, podia brincar com isso sozinho” (p. 104).

A escrita é um brincar, como também percebe Freud (1911), e a criança Sartre toma a escrita por companheira em seu brinquedo, já que as letras são o outro, agora, para sempre incluído em sua vida, ainda que solitária.

Assim também, como nos ensina Freud, após tentar inutilmente recuperar a vivência de satisfação através da alucinação, o pequeno ser, ainda não completamente humanizado, troca o grito de dor e a agitação da falta pelo que ele percebe ser um chamamento capaz de lhe trazer alguém que o retira da sensação de desprazer. Este adulto, ao responder ao chamado do infante (o que não tem fala), dá ao grito deste um significado, transformando um som de angústia em uma palavra, em um sinal representativo com o qual se faz uma comunicação. Do grito à palavra cria-se a linguagem. Também aí há um salto: do imaginário para o simbólico.

Com esses elementos desenha-se no escuro da noite o texto do sonho. Trama imagética formada por restos acústicos, sensações táteis, lembranças veladas, odores e texturas que se entrecruzam pela lógica do inconsciente, onde não e sim tem o mesmo valor, onde tudo se superpõe e nada se suprime, onde não há tempo, não há ritmo. No inconsciente falta pontuação. Mais ainda, falta a palavra. As letras andam à solta, livres e incompreensíveis.

A aurora traz consigo a elaboração secundária, uma necessidade de luz, de nascimento de sentido, e assim necessitamos juntar letras, buscar ligações que possam representar em palavras as imagens oníricas.

Mais tarde, já com a luminosidade do sol, procuramos, como aquele infante, alguém que nos ouça e nos ajude a falar nossos sonhos, alguém para quem traduzimos em outro tipo de texto nossos sonhos. Tingimos de cores as imagens noturnas, tão obscuras, e estas cores surgem com os afetos com os quais as pintamos e pontuamos, dando ênfase a certas partes que escrevemos em negrito, suavizando outras que deixamos entre vírgulas, e dizendo sempre algo nas entrelinhas. Ao umbigo do sonho não se chega com palavras.

A palavra é a possibilidade de dizer e também é um corpo onde ficamos aprisionados em nosso dizer. Ao falarmos, ao escrevermos, dizemos sempre parte do que pensamos, pois sempre uma parte do pensar é colorida pelo sentir corporal e, para este, muitas vezes faltam palavras.

Assim, escrevendo um texto ou contando um sonho experimenta- se uma limitação. Só se diz o que cabe em palavras. Faz-se um luto na fala, na escrita, no que não alcança ser dito. O umbigo do sonho se estende para além do sonho, avança por toda a linguagem falada e escrita. Há sempre um resto, faltam palavras.

O que se experimenta corporalmente (a pulsão?), nem sempre encontra representação. Aprisionamos no corpo um sentir que escapa ao corpo da palavra.

Sartre fala, ainda, da plenitude que sentia ao passar seus dias na biblioteca do avô, que era um mundo no qual viajava em aventuras. “... meu olhar trabalhava as palavras: era preciso experimentá- las, decidir sobre seu sentido; a Comédia da cultura, no fim das contas, me cultivava” (p. 53).

Mas, passeando um dia com sua mãe, ao deparar-se, em uma banca de revistas da qual nunca se esqueceu – na esquina do Boulevard Saint-Michel com a Rue Soufflot –, com revistas e não com livros, é que conhece a beleza2. Vê imagens maravilhosas, cores que o fascinam. “Devo a estas caixas mágicas – e não às frases equilibradas de Chateaubriand – meus primeiros encontros com a Beleza. Abrindo-as, eu esquecia tudo: isto era ler? Não, mas morrer de êxtase ... Eu era visão...” (pp. 54, 55).

O belo, tão significativo para Sartre, que o deixa em êxtase, o faz escrever a palavra visão em itálico, certamente por não ter palavras com as quais pudesse expressar o quanto fora perturbador para ele o encontro com a beleza. Assim também, ao aprendermos a escrever, desenhamos cuidadosamente as letras, estes sinais gráficos, e desejamos que fiquem belos, não somente para que sejam compreendidos, mas para que possam também servir de presentes ofertados aos pais e professores, dos quais esperamos, em troca, narcisicamente, nada menos que amor.

Serão então esses tipos gráficos tão objetivos no nosso encontro com a escrita, com a leitura?

Todos esses movimentos do escrever – letras, pontuações, alinhamentos de texto, sublinhados e negritos – não os vivem analistas e analisandos em conversas nas quais, muitas vezes, ao analista cabe a função de propor um novo olhar para o sempre mesmo velho texto? Uma possibilidade de revisão de um texto pessoal?

Não seria o momento psicanalítico um momento de transformação, de tradução, no qual um texto conhecido e repetido sempre da mesma forma pelo analisando, ao encontrar a escuta do analista, sofre uma transformação? Muitas vezes, na troca de um ponto final por um ponto de interrogação faz-se uma virada na rota infinitamente repetitiva do sintoma. Ou, quem sabe, quando só há interrogações e queixas exclamativas, uma vírgula pode fazer uma ruptura de campo (Herrmann, 2001), propondo um silêncio e a reflexão.

A indiferença de um paciente cuja fala me chega do divã, marcada por frases sem entonação, como proteção diante da dor, me provoca, me leva a colocar a potência de um ponto de exclamação, em um movimento de indignação que ele necessita tornar meu para, em algum momento, poder dele se apropriar.

 

Concluindo

Na Teogonia, Hesíodo conta que é do casamento da Memória (Mnemosine) com Zeus (o Poder Supremo) que nascem as Palavras Cantadas (Musas). Por milênios, antes da adoção da escrita, a poesia era transmitida oralmente em cerimônias religiosas, festivas e mágicas, o eixo da vida espiritual dos povos. A Palavra Cantada tinha o poder de tornar presentes o passado e o futuro, renovando a vida, escreve Jaa Torrano em seu comentário à Teogonia. A palavra falada que usamos na sessão de análise continua tão encantatória quanto o era para os gregos. A Palavra Escrita em textos que ao longo de milênios transportam a memória e a história da humanidade é a possibilidade de, em uma folha de papel (ou em uma tela de computador), deitarmos nossos pensamentos, nossas emoções e, com eles, através da impressão que os perpetua, manter o encantamento.

Se, no entanto, a palavra e a escrita não dizem tudo, dizem muito. A força da palavra cantada pelo poeta na música Futuros amantes nos apresenta uma cidade submersa pelo tempo, na qual o futuro descobre um passado, uma memória que manterá sempre a vitalidade do humano.

... Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você3

Escrevemos para nos apropriar de nossa história, não deixá-la submersa, dar-lhe um ritmo próprio. À Pecola faltou o ritmo. Faltaram os olhos azuis.

 

Referências

Bion, W. R. (2004). Elementos de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Freud, S. (1969). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911).        [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Hesíodo. (2006). Teogonia: A origem dos deuses (J. Torrano, trad.). São Paulo: Iluminuras.        [ Links ]

Meireles, C. (1989). Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.        [ Links ]

Morrison, T. (2003). O olho mais azul. São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

Rosenfeld, A. (2002). Literatura e personagem. In A. Rosenfeld, A personagem de ficção (pp. 11-49). São Paulo: Perspectiva.        [ Links ]

Sartre, J. P. (2000). As palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Raya Angel Zonana
Rua João Moura 627 / 134 - Pinheiros
05412-911 São Paulo - SP
Tel.: 11 3064-7302
E-mail: rayaz@uol.com.br

Recebido: 30/03/2009
Aceito: 15/04/2009

 

 

* Psicanalista membro da SBPSP.
1 Em A câmara clara (1984), Barthes conta que ele, como spectator (aquele que olha uma foto), é tomado pelo sentimento, e ao tentar se aprofundar no tema, o faz “como uma ferida: vejo, sinto, portanto noto, olho e penso”.
2 Estando um dia em Paris, ansiosamente procuro esta esquina para ver o lugar onde Sartre encontrou o Belo. Busco ali traços, vestígios de sua passagem, de seu olhar, de seu júbilo.
3 Holanda, C. B. Futuros amantes. In Chico Buarque, Cidade submersa. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2006.