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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

De como as ostras produzem as suas pérolas* ou As flores também ficam instáveis e podem ferir**: a vida da palavra na poética visual de Ana Miguel***

 

From how do oysters produce their pearls or The flowers became unstable too and can hurt: the life of the world in the visual poetic of Ana Miguel

 

 

Cláudia Fazzolari****

Associação Internacional de Críticos de Arte, AICA
Pós-doutoranda pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo, USP
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nas diversas circunstâncias de cada projeto estético, a artista Ana Miguel cultiva a presença da palavra como estratégia constante para a formulação de uma ética particular. A trajetória construída, a partir da poética visual da artista, move-se entre significativas vivências retomadas, no mais íntimo de sua existência, para erigir o edifício de narrativas assentadas sobre as realidades de um entorno sempre objetual.

Palavras-chave: Arte contemporânea, Instalação, Narrativa.


ABSTRACT

From the most various circumstances the artist Ana Miguel cultivates the presence of the Word as Constant strategy to the formulation of a particular ethic. The path built from the visual poetic of the artist moves itself between significant experiences of life retaking in the most internal of her existence to the building of narratives based on the realities of a surrounding always with objects.

Keywords: Contemporary art, Installation, Narrative.


 

 

Em qualquer aproximação com os lugares do contemporâneo não se busca uma formulação estável1 ou reconhecimento, mas alternativas plurais de ação, legíveis além da esfera artística, contextualizadas entre a dinâmica de realidades construídas, desconstruídas e reconstituídas pelo necessário olhar do outro.

Esse outro convertido em objeto de interlocução se move criteriosamente, entre a matéria inventada por Ana Miguel. Para a artista, todos os desejos possíveis serão ativados por um olhar de estranhamento lançado à obra que, partindo de uma posição calculada, se apresenta formalmente ao interlocutor, deixando desde o contato inicial evidente a sua vocação: dizer de si quase tudo em off e diretamente nada revelar sem que haja comprometimento, de parte a parte.

Ana Miguel vive e trabalha na capital fluminense. Reinventa cotidianamente os recursos de uma interlocução que há tempos estabeleceu para conviver com as diversas vidas que povoam seu ateliê. Objetos movidos pela atenção recebida, corpos em construção, resíduos recriados para fazer pensar.

De toda sorte são os objetos emancipados pela artista, que surgem como parte de um elenco de personagens dispostas para um próximo ato: alfinetes, luvas de látex, botões, fitas de veludo, lã, penas, cabeças e olhos de bonecas, fragmentos de brinquedos, forminhas de papel, dados, todos acionados pela vida que lhes cabe, a partir de cada hipótese lançada sobre eles pela artista que passa, então, a habitar suas existências quase imperceptíveis.

A trajetória construída pela poética visual da artista move-se entre significativas vivências tomadas no mais íntimo de sua existência para erigir o edifício de narrativas assentadas sobre as realidades de um entorno sempre objetual.

Ana Miguel, em sua criação, considera a instalação tanto espaço de investigação como recurso idiomático e também a estabelece como registro e continuidade de um processo iniciado com a “significação deslocada” – essa marca específica em suporte variável que é inevitavelmente infinita em seu alargamento conceitual – no ambiente, que é considerado obra; ela propõe suas hipóteses para o imaginário contemporâneo.

Dentre as diversas hipóteses cultivadas pela artista uma delas é a quase incontornável presença da palavra, que se apresenta como uma constante estratégia para a formulação de uma ética particular. A palavra, para a artista, pode estar presente quando em instalações, os livros se manifestam como seres que expõem seu ponto de vista2, quando os títulos sussurram ou ainda quando os textos narrados – em imagem editada, invariavelmente com a voz da própria artista – são os testemunhos de sua relação com o texto.

Em texto crítico sobre a forma como a “arte pensa com palavras”, a teórica Anne Cauquelin comenta o caráter e o funcionamento da língua como “um ready made, pronto para o emprego”, “... as palavras são signos impalpáveis, pouco pesados, que a cadeia de comunicação pode fazer circular dentro dessa leveza. Elas servem simultaneamente de lugar e de tempo aos objetos aos quais dão título, e substituem a matéria: o título é uma cor” (Cauquelin, 2005, p. 101).

De todas essas cores-títulos trata ainda a poética visual de Ana Miguel. Entre os diversos “textos e quase-textos” manifestos em seus projetos, são muitas as marcas da vocação de sua obra para o encontro idiomático, especialmente quando ele se dá como um relato cultural emancipado. Trazia as mãos frias, Terrivelmente culpada, A posteriori, De como as ostras produzem as suas pérolas, As flores também ficam instáveis e podem ferir e O sentimento dos docinhos ante seu destino representam marcos de uma sensibilidade que à palavra coube reconhecer e se materializar na trajetória de uma artista perversamente delicada.

 

 

O título, esse gesto carregado de sentido, no qual o enunciado elabora sua margem de manobra para que possamos sucumbir diante do inevitável, encontra em Ana Miguel espaço de ação privilegiado e coeso.

Seja desde as mãos frias, ou ainda em flores esquizofrênicas de um jardim secreto em veludo criado pela artista, todos os rumos conduzem a uma forma de texto, à palavra pensada, à palavra impressa, à palavra percebida, à palavra ouvida.

Cada palavra pronunciada pela artista – como um incontestável testemunho de uma curadoria incorporada ao texto – avança em direção ao espaço reencontrado pelo suposto eco de uma dimensão alterada, no contexto de sua fala comprometida. ... de sua pronúncia que colocada em evidência desvia o andamento de uma narrativa essencial. Ana Miguel antecipa, interrompe e reconduz ao silêncio inaugural de nosso olhar. (Fazzolari, 2008, p. 2)

Das séries criadas pela artista percebe-se o rigoroso cuidado com uma meticulosa composição material – olhos de boneca, pérolas, alfinetes, dentes infantis, fios de algodão – toda pensada para monopolizar o olhar e seduzir dramaticamente nossas expectativas quando somos confrontados pela existência comum do cotidiano.

 

 

A poética visual da artista reinaugura o lugar de estranheza do cotidiano quando produz objetos de toque macio, aveludado e que, dispostos entre infinitos alfinetes, altera espaços em seda e lã e provoca inquietação pela “frágil configuração”3 de suas obras pensadas para se oferecerem à convivência com o outro.

De acordo com texto crítico de Marília Panitz, percebemos o caráter de cada intervenção criada pela artista: “... Ana sonha uma obra que se constitua em um coração narrativo da exposição... Ana, talvez, tecerá sua teia de matérias/palavras que fará pulsarem as outras vozes...”4 para que os interiores repletos de carretéis de linha, de dados, de pérolas, de contas de vidro e de outros tantos pequenos objetos dispostos cuidadosamente digam suas verdades, todas as vezes que se dispuserem a interagir com o entorno.

Dentre todos os artifícios criados para o confronto contemporâneo, aqueles relacionados ao espaço de articulação da palavra se estabeleceram junto ao itinerário da poética visual de Ana Miguel como marca quase indelével, permanente.

Seus recursos são os mais variados e a artista propõe a sensação como síntese idiomática de uma ética contemporânea. Pela via inaugural de um incontornável encontro com o corpo exposto em hipótese alargada – recriado em vídeo, inventado como instalação, sugerido pelo tato, pelo olfato –, o maravilhoso, como espasmo e como estranheza com uma dimensão anônima de si, reassume sua vocação original.

Corpo que se oferece recortado pela palavra que o redimensiona e o reconduz ao seu estatuto original como se fora um campo expandido para interlocução e chamamento. Quer seja ele instalado pela obra Labirinto de palavras, contendo fios de palavras bordadas em etiquetas, fragmentos de brinquedos e mecanismo elétrico, quer seja pela peça intitulada Toda ouvidos, elaborada como vestido em lã com orelhas de plástico espalhadas em uma composição de pequeno formato, ele está sempre presente.

O projeto da artista para a obra As flores também ficam instáveis e podem ferir de 1990, testemunha o desnorteado encontro proposto pela obra quando inadvertidamente nos vemos perseguidos pelas suas intenções.

Entre almofadas de veludo verde e mecanismos de corda estão as flores – citadas pela artista –, com seus pistilos desviados de suas originais condições de atuação, revestidos de alfinetes, intocáveis, determinados a dizer tantas e tantas vezes o quanto podem ferir, ainda que, na totalidade, suas dimensões pouco nos fazem crer em seu real poder destrutivo.

Quantos veludos verdes serão necessários para que as palavras, logo ao nomear a obra e a suportar sua nova existência, movam as peças deste complexo quadro de interações dolorosas?

Da instalação podemos entrar em contato com as irregularidades de um acelerado compasso mecânico de atuação de pistilos que se apresentam completamente alterados. Todas as vezes que os mecanismos de corda – postos em ação – acionam tais artefatos, surge uma movimentação frenética que coloca em evidência a carga instável do corpo das flores vermelhas de veludo que compõe a obra.

Pensada e criada para inquietar o apreciador, cada peça elaborada manualmente pela artista encontra o seu lugar em um sem-fim de possibilidades abertas pela imediata aproximação com o título que acompanha a obra. De que flores trata Ana Miguel? De que forma somos conduzidos pelo veludo verde, ou pela existência de tantos alfinetes cuidadosamente colocados em pistilos de metal recobertos de veludo vermelho?

Conduzidos pelo enunciado5 proposto por essa mulher artista nos vemos expostos – corpo a corpo – a esta escuta necessária que em todas as suas obras se elabora, desde o quase toque inicial até o fio metálico recoberto de veludo que incorpora uma outra vida que não exatamente vida, mas obstinação, e nos permite, nos força a pensar na evidência por meio das palavras.

 

Referências

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Panitz, M. (2001). O riso da aranha. In M. Panitz, R. Gehre & E. Rocha. Gentil Reversão. [Catálogo]. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Cláudia Fazzolari
Avenida Pavão, 471/31 – Indianópolis
04516-011 – São Paulo – SP
E-mail: cfazzolari@gmail.com

Recebido: 30/03/2009
Aceito: 19/04/2009

 

 

* De como as ostras produzem as suas pérolas é o título de uma das obras de Ana Miguel. Foi criada em tecido, pérolas, alfinetes e estrutura de ferro entre 1992 e 1994. Coleção da artista.
** As flores também ficam instáveis e podem ferir é outra das obras de Ana Miguel. Esta foi criada em estrutura metálica, mecanismos de corda e alfinetes no ano 2000. Coleção da artista.
*** Este texto é parcela integrante de investigação de pós-doutorado desenvolvida na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA-USP, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, acerca de estratégias ficcionais criadas por mulheres artistas na contemporaneidade.
**** Professora, curadora e membro da Associação Internacional de Críticos de Arte, AICA. Pós-doutoranda pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo, USP.
1 De acordo com o pensamento de Anne Cauquelin sobre a saturação dos lugares da arte e as exigências de um novo modelo para sua compreensão, em sua obra Arte contemporânea: uma introdução (2005).
2 Merleau-Ponty, Fenomenología de la percepción (1957).
3 De acordo com o texto “As flores também ficam instáveis e podem ferir”, de autoria de Fernando Cocchiarale, em março de 2001. Destaque em Textos Críticos para o site da artista: www.anamiguel.com.
4 O texto “O riso da aranha”, de autoria de Marília Panitz, compõe o catálogo da mostra coletiva intitulada Gentil Reversão, organizada por Marília Panitz, Ralph Gehre e Elder Rocha, com a participação de Ana Miguel, Chico Amaral, Elder Rocha, Ge Orthof e Ralph Gehre, para o Centro Cultural Banco do Brasil em 2001 (p. 79).
5 Enunciado como essa composição em que a palavra intransigente se manifesta em constante negociação.