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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS

 

Ferenczi – Budapeste

 

Ferenczi – Budapest

 

 

Anna Verônica Mautner*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se alinhar alguns dos prováveis motivos para a psicanálise ter encontrado terreno fértil na Hungria. A proximidade de Budapeste de Viena, a capital do Império Austro-Húngaro, conferiu-lhe vantagens e desvantagens. O não-abandono do húngaro, somado ao uso do alemão nos cursos superiores, configurará um conflito para a burguesia: orgulho da língua e de ser bilíngue. A terapia da palavra, legitimando o húngaro como língua do afeto, veio a calhar para resolver esse conflito. Pretende-se também focalizar as contribuições do trabalho de Ferenczi, cujo pano de fundo é o clima de fé no homem, reinante nas primeiras décadas do século XX, quando surge a noção de “sentir com”, também presente em outros pensadores, e também a noção de simpatia, vista como uma etapa do desenvolvimento humano, segundo os fenomenologistas.

Palavras-chave: Língua do afeto, Terapia da palavra, Psicanálise, Ferenczi.


ABSTRACT

This work intends to outline some of the probable reasons for Psychoanalysis to have found fertile grounds to flourish in Hungary. The fact that Budapest was near Vienna, the capital of the Austro-Hungarian Empire, had its advantages and disadvantages. The fact that the Hungarian language was not abandoned, adding to it the use of German in the Universities, represented a conflict for the bourgeoisie: the pride in their language and in both languages. The therapy of the word, legitimizing Hungarian as the language of affection, came to solve this conflict. It also intends to focus on the contributions of Ferenczi’s work, whose background is faith in the human being, an idea which prevailed in the early decades of the 20th century. At that time the concept of “feeling with” appears, also present in other thinkers. The same occurred with the concept of affinity, considered by the phenomenologists as a phase in human development.

Keywords: Language of affection, Therapy of the word, Psychoanalysis, Ferenczi.


 

 

Budapeste, capital da Hungria – uma dentre todas as províncias do Império Austro-Húngaro –, era possivelmente a mais próxima de Viena, a gloriosa capital. Se por um lado essa proximidade foi atraente, por outro gerou algumas tantas dificuldades.

Os húngaros nunca abandonaram a sua língua – estranha, difícil e solitária –, embora o alemão fosse a língua dos cultos, refinados e cosmopolitas. Tanto era assim que até o século XIX estudava-se em alemão nas universidades húngaras: todo o mundo letrado era bilíngue. Ferenczi é dessa geração; surgiu como pessoa nesse universo tomado por esse conflito surdo: orgulho da língua e orgulho de ser bilíngue.

Como toda a burguesia precisava de ajuda para resolver esse conflito inerente à sua existência, a psicanálise encontra na Hungria um berço fértil. Uma terapia da palavra – no caso em húngaro, a língua do afeto, do lar, da infância – vinha a calhar. De certa forma, a psicanálise legitimou, deu status, à palavra húngara. Em várias partes da sua obra, Ferenczi dissertou longamente sobre a importância da língua do afeto. A língua húngara, sem guerra e sem luta, se instituiu nobre por meio do Grupo Húngaro de Psicanálise de Budapeste. Sua importância oficial como parte de uma nova ciência da alma resgatou nacionalidades e relegitimou culturas até então subjugadas pelo poder do Estado. Pela terapia da palavra, as relações face a face, íntimas, familiares, foram realinhadas às nações e seus idiomas afetivos...

 

Budapeste ou Viena, 1932

O ar está cheio de paradoxos. A Primeira Grande Guerra não foi o que se queria que tivesse sido: um ruído que tão-somente teria cortado a inexorável evolução da civilização na direção do aperfeiçoamento social. Por um lado, negras nuvens no horizonte germânico. Por outro, o comunismo, a socialdemocracia, o liberalismo, os filósofos, os psicólogos, os antropólogos, pesquisando e elaborando acerca do potencial da humanidade para a felicidade; e os psicanalistas também.

Da mesma forma, Ferenczi tortura-se na busca de técnicas para abreviar e tornar mais eficiente a tarefa de eliminar a dor psíquica: em 17 de março de 1932, no texto “Diários clínicos”, Ferenczi (1990), no último parágrafo, destaca a importância de encurtar a duração da análise e indica o “sentir com” como uma condição para tanto.

No fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a Europa é palco do surgimento de grandes ilusões: a luz do fim do túnel parece forte e atraente. Há fé em muitos instrumentos de ação e pensamento criados pelo Homem. Portanto, fé no Homem.

No Ocidente, acredita-se na Ciência e na Política. Pesquisa-se, luta-se e até se mata por ideias. É nesse clima de quase-euforia, em que quase todos estão engajados em alguma fé, que a ideia do “sentir com” plana junto com muitas outras. Muitos pensadores lidam com essa aptidão, além de outras, como próprias e naturais do ser humano. Na Europa, trata-se a subjetividade com familiaridade. Encontra-se o “sentir com” em Husserl, Heidegger e, de uma forma extremamente didática, em Max Scheler (1971).

Ferenczi capta a ideia e, em seus últimos trabalhos, começa a empregar a noção de simpatia, vista como uma etapa do desenvolvimento humano, segundo os fenomenologistas. Sublinhe-se que essa ideia – a ser retomada adiante, junto com as consequências acarretadas por ela em Ferenczi – nasce e pertence a um universo conceitual que não se confunde com a origem médico-biológica das etapas de desenvolvimento da psicanálise: é aí um corpo estranho.

O pensamento fenomenológico, assim como a psicanálise, nasce nessa Europa cheia de fé. Uma fé que vai se organizar pelo menos em dois campos de destinos diferentes (hoje vistos claramente, mas na época seguramente faziam parte de uma confusão): a Germânia e seus simpatizantes, dividindo os homens em raças hierarquicamente concebidas e sonhando com um mundo bom somente para os melhores; os outros sonhando com um mundo onde todos os Homo sapiens se integrassem e pudessem constituir o reino global do Homem.

A Psicanálise ficou do lado de cá. As ideias científicas ou filosóficas foram sendo tiradas de seu contexto e postas a serviço das ideologias, como costuma ser feito. O direito de todos à conquista da cultura e da tecnologia obrigou a um repensar da Pedagogia, da Medicina, com profundas influências do planejamento social e político. A ideia do “sentir com” estava ali. Servia para embasar a organização do movimento de massas e poderia servir, como se faz agora, para esclarecer a respeito da relação entre pessoas ou a respeito da intersubjetividade, conforme será retomado adiante.

Ferenczi, discípulo – quase companheiro – de Freud, complementava- o. Enquanto o mestre pesquisava e construía a imagem, o funcionamento, as possibilidades da mente, Ferenczi lutava para desenvolver a técnica de curar. Mas as funções do mestre eram invejadas: encontra-se no texto já citado uma fala sobre sua esperança de que, uma vez terminadas suas pesquisas e experimentos da técnica, pudesse dedicar-se à teoria. A vida fará com que isto fique com o Pai, pois pouco depois Ferenczi morre.

Afinal, o que é este “sentir com” tão presente no ar? Como foi visto, pode-se imaginar o homem e a sociedade tendo de passar obrigatoriamente por etapas de desenvolvimento. O médico descreve as etapas biológicas; o pedagogo, as etapas de aprendizagem; e o filósofo observa que a relação da pessoa com o outro não se apresenta pronta, sofre várias transformações no decorrer da vida, apesar de serem dadas condições para que as etapas ocorram.

A compaixão não pode se manifestar em um homem que não sabe imitar, reproduzir. Nem todos são capazes, nem é o caso, de desenvolver todas as etapas descritas, por exemplo, por Scheler, para chegar ao amor cósmico de Deus. Mas, assim como todas as etapas de desenvolvimento, essas e outras se baseiam no fato de a anterior ser necessária para a implantação da próxima. Essa construção – etapas – está perfeitamente inserida no clima de fé da humanidade, no progresso e na possibilidade da felicidade. Nesse clima inserem-se fenomenólogos, marxistas, neopositivistas e também psicanalistas. Se bem que seja importante apontar que a psicanálise tem outros esquemas de desenvolvimento e outros pontos de chegada.

“Sentir com” participa de uma escola de pensamento que desembocaria em Deus. As etapas freudianas desembocariam na genitalidade, as kleinianas, no estado depressivo etc. Fenomenologia e psicanálise são, pois, plantas diferentes, nutridas tão-somente por um mesmo solo: “sentir com”.

Não se pode esquecer que na Europa dessa época vagueiam as ideias vindas do Oriente: as viagens de Hermann Hesse, Gurdjieff, o orientalismo que tomava formas ocidentais na ênfase ao trabalho corporal, à relação corpo e mente. E tudo ocorrendo enquanto o Terceiro Reich se organizava, Stalin dominava, o Comintern lançava suas garras pelo mundo.

A psicanálise, recém-nascida, tocava em assuntos muito controvertidos e obscuros como intimidade, sexualidade, amor. Era preciso cuidar dessa plantinha com menos de 30 anos. E Ferenczi era muito mais solto (ou quem sabe tinha sua pena mais solta) que outros discípulos. Ao mesmo tempo, mantinha uma relação ambígua, porém muito forte, com o mestre. Se Ferenczi leu Heidegger, Max Scheler, ou não, não se sabe. Mas sabe-se que ele se correspondeu com Groddeck, cuja visão da relação corpo e mente era completamente diferente da ocidental, e foi cliente dele. E que buscava em qualquer canto instrumentar-se para melhor curar. Era um clínico e seu papel diplomático na Sociedade Internacional de Psicanálise subordinava-se à sua clínica. Enfatize-se que ele pensava primeiro no cliente e depois nas conveniências da organização. Outros discípulos davam mais atenção à sobrevivência da organização. Ernest Jones, por exemplo, acredita-se que tenha querido defender a Sociedade da Psicanálise da “infiltração” fenomenológico-orientalista, posta na roda por Ferenczi. Sabe-se que a história é também movida por fatos aparentemente corriqueiros. Ferenczi queria curar, outros queriam manter viva a organização psicanalítica: os dois estavam certos...

E a situação da jovem árvore não era das melhores. O perigo estava à vista. As ondas bárbaras germânicas avolumavam-se. A maioria dos psicanalistas era de judeus e alguns anglo-saxões não eram amados pelos nazistas. A Igreja tampouco oferecia apoio. Dali a pouco tempo, na Alemanha, livros de psicanálise seriam queimados e seu ensino seria proibido.

Em seus experimentos clínicos, Ferenczi notava que a teoria do trauma, esquecida nos últimos anos, aparecia em seu consultório todo dia e a trazia de volta aos congressos e simpósios, subordinando as técnicas à procura do trauma. “... acompanho os meus pacientes o mais longe possível e, com a ajuda de meus próprios complexos, posso chorar com eles, por assim dizer. Se adquiro, ademais, a capacidade de represar, no momento certo, a emoção e a descontração, então posso prever o êxito com segurança” (1990).

De que êxito fala? Provavelmente da aproximação do trauma. Testa relaxamento, quase uma herança da hipnose, a catarse, a análise mútua, elabora as condições da contratransferência, dando a esta um lugar privilegiado. Mas esses recursos comparecem para poder chegar ao trauma, sem cuja elucidação não terminaria uma análise exitosa.

“Sentir com”, conforme nota de rodapé da edição brasileira, é mitfühlen. Na Enciclopédia Britânica, encontra-se empatia como einfühlen. Portanto, já de início, empatia e simpatia não têm o mesmo significado. Diz-se que empatia seria compartilhar sensações e simpatia seria compartilhar sentimentos. É uma simplificação funcional das ideias existentes a respeito. Empatia, pois, seria condição para a simpatia, etapa anterior. É na empatia que se encontram os pontos cegos do analista e é na simpatia que encontramos a perigosa contratransferência à qual Ferenczi atribui importância técnica e ética.

É preciso reconhecer quando se erra e é preciso que o cliente saiba que é possível se reconhecer e corrigir. A ideia da análise mútua nasceu do reconhecimento de que errar não anula a análise. O analista capta pela empatia, digere, elabora pela capacidade simpática, e constrói o vínculo que leva à etapa que se segue do amor universal pela reparação, genitalidade etc. Pelo amor, etapa posterior à empática e simpática, o analista constrói sua dedicação, o sacrifício da autocrítica. Exerce a compaixão, uma condição que se instaura na simpatia. Isso tudo não quer dizer que analista e analisando chorarão juntos; isso quer dizer que um ser humano é capaz de imaginar, reproduzir, captar o outro, seu semelhante, e que a vivência dessas semelhanças permite “sentir com”. Sem que esse fato seja o fim da tarefa do analista, é a condição, que fique bem claro. Quando a relação analítica permanece no nível da empatia, a relação fica como que destituída de pulsão. As ideias, as etapas, todas as observações, ficam reificadas. É preciso, pois, de acordo com Ferenczi, dar maior ênfase à análise do analista para que ele, senhor do seu mundo interno, possa acompanhar, dois passos à frente, o analisando. Não é um absurdo. O analista, pela sua capacidade empática e simpática, enxerga no cliente o que as resistências deste não lhe permitem enxergar, mas já foram comunicadas ao analista. Por isso, repitase a imagem... acompanha, dois passos adiante.

Além das reflexões inspiradas pelo texto, cabe tecer comentários sobre a ablação sofrida por grande parte da obra de Ferenczi durante tantos anos. Nesse ensaio, foi sugerido que teria sido diplomaticamente inadequado divulgar as experiências técnicas de Ferenczi, que lançou mão de esquemas fenomenológicos, orientalistas etc. Foi inclusive sugerido que pudesse ser uma inadequação filosófica. Como se a fenomenologia adotada pelos “outros” pudesse ser veneno para psicanalistas. Agora, decorridos muito mais de cem anos, já não há mais esse perigo, se é que alguma vez houve e não fora apenas uma fantasia. Mas, como se diz, tratando-se de vida, todo cuidado é pouco. Mas por que enrustir ideias e processos por tanto tempo é outra questão. Devese continuar benevolente com os censores.

A Segunda Grande Guerra, o stalinismo, separando a Hungria, terra de Ferenczi, do Ocidente, deve ter contribuído para o alongamento do tempo em que a psicanálise se manteve inacessível às contribuições de Ferenczi e sua controvérsia com Freud e a IPA. Mas, quando Ferenczi pôde então voltar e encontrou solo fértil, floresceu. A influência do Middle Group que o diga. Dá vontade de acreditar que, acima das briguinhas, foram todos bem-intencionados. Na década de 1930, quem era do lado de cá não podia nem olhar para o lado de lá. Mas os gênios, os obcecados atravessam fronteiras e rompem barreiras. E assim Ferenczi usou o mitfühlen.

 

Referências

Ferenczi, S. (1990). Diário clínico (A. Cabral, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1932).        [ Links ]

Scheler, M. (1971). Nature et formes de la sympathie (M. Lefebvre, trad.). Paris: Payot. (Petite Bibliotèque Payot). (Trabalho original publicado em 1923).        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Anna Verônica Mautner
Rua Tupi, 267/102 - Santa Cecília
01233-000 - São Paulo - SP
Tel.: 11 3667-8234
E-mail: amautner@uol.com.br

Recebido: 30/03/2009
Aceito: 25/04/2009

 

 

* Psicanalista membro da SBPSP.