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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

RESENHAS

 

O apagar do pai na clínica psicanalítica contemporânea

 

The vanishing father in contemporary clinic

 

 

Regina Selma Moura Marinho* , I, II, III ; Mônica do Amaral**, I, IV

I Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
II Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
III Núcleo Psicanalítico de Aracaju, em Salvador, BA
IV Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

André, J. e Chabert, C. (Orgs.). O esquecimento do pai. (A. P. B. Arruda, B. Stuchi, C. M. Reis, L. Tarelho, M. Amaral, S. M. C. Marchini e V. G. Garcia, trad.). São Paulo: Edusp, 2008. 170 p.

 

Esquecer... o que isto significa? Nas relações amorosas, o esquecimento pode denunciar uma mudança de desejo ou de sentido do objeto amado. Na psicanálise, representa um ato falho que oculta com sutileza as artimanhas do inconsciente. Na língua portuguesa, entre outras coisas, define-se o esquecimento como “falta de lembrança, omissão, perda da sensibilidade”.

O título dado à coletânea – O esquecimento do pai – parece uma provocação dos autores para apontar o “vazio” que surgiu na obra psicanalítica após o afastamento do pai do cenário analítico. Um esquecimento que representa uma falta, um descaso ou um ato falho? Para uma sociedade que paradoxalmente vem sendo caracterizada como narcísica, porém tão carente de delineamento do eu, o que representaria este afastamento? Senão a manutenção do sistema narcísico de referência no campo teórico- clínico e a consequente exclusão de toda e qualquer diferença para se pensar a constituição do sujeito. Conhecido, vulgarizado e desvalorizado, o papel fundamental do complexo de Édipo na obra freudiana é retomado nessa coletânea, ensejando novos ângulos para o debate da clínica contemporânea.

Com o objetivo de renovar a discussão acerca do lugar do pai no interior do debate psicanalítico, o Laboratório de Psicologia Clínica e de Psicopatologia da Universidade René-Descartes (Paris V) e o Centro de Estudos de Psicopatologia e Psicanálise da Universidade Denis-Diderot (Paris VII) organizaram em março de 2003 uma jornada científica sobre o tema “O Esquecimento do Pai”, sob a coordenação de Régine Waintrater. Os resultados desse evento ensejaram a organização de um livro por Jacques André e Catherine Chabert sob o mesmo título – L’oubli du père –, publicado na França como parte da Petite Bibliothèque de Psychanalyse. A tradução do livro, sob o título O esquecimento do pai, realizada graças ao empenho e à dedicação de um grupo de tradutores psicanalistas, permitiu ao leitor o acesso a essa interessante coletânea em língua portuguesa. Trata-se de uma importante contribuição para alimentar os debates sobre o tema junto ao público especializado, mas também junto a segmentos de outras áreas do conhecimento que buscam na psicanálise uma interlocução privilegiada.

Depreende-se da leitura dessa coletânea que, a título de “complementação” aos estudos empreendidos por Freud acerca da gênese do psíquico, assiste-se hoje a uma substituição não apenas da função paterna, mas da própria figura do pai, pela função materna, empreendida por autores e linhas teóricas que se debruçam sobre o estudo dos transtornos narcisistas. Muitos deles tendem a dar ênfase apenas às falhas do investimento materno, em detrimento de um olhar multifacetado, excluindo, desse modo, o pai da cena analítica. Os autores se propõem a fazer uma discussão do pensamento e da clínica de Winnicott, Fairbain, Kohut, que, ao priorizarem as relações de objeto em detrimento da triangulação edipiana, na verdade teriam promovido a dessexualização da psicanálise.

Importantes questões teóricas são apontadas no manejo clínico de alguns conceitos, sobretudo a propósito da clínica dos casos-limite. A substituição frequente do termo “arcaico” pela expressão “precoce” sugere, por exemplo, que, ao mesmo tempo em que se ignora toda a teorização freudiana acerca das pulsões, a diferença entre os sexos e a angústia de castração, a própria regressão analítica é abandonada. Faz-se alusão ao risco de, em nome da oposição ao falocentrismo freudiano, acabar-se gerando um sistema psicanalítico puramente narcísico. Este, ao pretender eliminar as diferenças, acena para uma pseudoestabilidade, livre de ameaças, em sua “completude” teórico-clínica, ... da invasão das pulsões.

No artigo de Régine Waintrater, “O self ainda tem um sexo?”, as críticas à dessexualização da psicanálise aparecem de forma mais incisiva: “O interesse de Winnicott pela função materna implica, ele também, uma referência onipresente à tranquilidade pulsional” (p. 51). Por meio de uma revisão teórica, feita de forma resumida, porém consistente, as diferenças e os cuidados no campo teórico são retomados no debate com os diferentes autores da escola britânica: “sua habilidade (Winnicott) terá consistido em evitar teorizar às pressas o lugar do pai, contrariamente a Kohut, que, mais desajeitadamente ou mais francamente, tentará por muito tempo poupar a cabra pulsional com a couve do self, antes de se engajar a fundo na psicologia do self generalizada” (p. 51).

Não poderia o esquecimento do pai na clínica contemporânea ofuscar e limitar a análise mesmo dos considerados “casos difíceis”?, perguntam os autores. E os questionamentos continuam. Alguns casos clínicos são apresentados em uma tentativa de apontar para a possibilidade de conduzir o analisando a um deslizamento que permita a ressignificação do olhar do pai, mesmo diante da ausência real da figura paterna na vida do sujeito, como o faz o interessante artigo de Cyssau, “A construção do pai na clínica dos casos-limite”, em que retoma a ideia da “obra do sepultamento”, de Fédida, para pensar sobre os ecos e as ressonâncias contratransferenciais do objeto ausente.

Como desfecho dessa coletânea, temos um pequeno ensaio de Jacques André, sob o título “A escada”. Valendo-se da metáfora da escada, apresenta uma diversidade de cenários para representar a importância do lugar do pai na vida e em sua ressignificação no campo analítico. Como em uma peça de teatro, em que as cenas se superpõem, ele inicia relatando o sentimento de alegria de um pai que se emociona e se surpreende ao ver a confiança do filho que salta em seus braços, para logo em seguida referirse a Jung e a Freud em suas referências ao pai. Nesta direção, destaca que o lugar do pai foi uma conquista da civilização, uma “conjetura” edificada sobre uma “dedução” e um “postulado”, algo que demanda mais que as certezas sensíveis, registro em que se inscreveria a maternidade. Daí a incerteza que surpreende o pai quando este acolhe o filho na escada, sugerindo ser o amor e a responsabilidade paterna uma conquista, uma escolha. Em uma referência ao falocentrismo edipiano, deduz: “De todas as teorias, o ‘pai’ é a primeira a ponto de marcar o empreendimento intelectual em sua totalidade ...” (p. 162). Finaliza o breve ensaio, a propósito do desfecho da análise de uma paciente de Winnicott, com a intrigante pergunta: “Pode uma análise encontrar seu fim no sentido consistente de um desfecho, pode ela se tornar história sem que o pai, sob sua dupla face, ser de desejo e princípio de diferenciação, ocupe o seu lugar da parte de baixo da escada?” (p. 164).

Ao fazer uma leitura atenta dos sucessivos artigos, contudo, não saímos com a impressão de estarmos diante de uma crítica pura e simples aos autores que destacam a importância do ambiente na constituição do psíquico, mas fica nítido o convite a uma reflexão que desafia o analista a integrar as diferentes contribuições resgatando o lugar do pai no seio da psicanálise. Sem defender uma posição falocêntrica no campo psicanalítico, os autores apontam para os riscos que uma postura teórica unilateral pode trazer para a clínica, chamando a atenção para que não se promova a substituição do simbolismo fugidio da presença paterna pela presença massiva da figura materna, instigando no leitor o cuidado criterioso de circular de forma integrada pelo edifício da psicanálise, desde Freud aos autores contemporâneos. Apontam para o risco do analista se deixar prender pelas malhas da identificação de uma mãe onipresente, ou uma mãe que não deixe lugar a nenhum outro, nem ao pai nem ao sujeito.

Acreditamos, portanto, que o apelo dos autores desse livro é pelo “retorno ao pai”, mesmo na clínica dos casos-limite. Longe de uma posição dogmática, ressalta-se a importância de se resgatar o lugar do pai em sua função diferenciadora como uma “segunda chance” dada ao paciente, ao analista e à análise.

 

 

Endereço para correspondência
Regina Selma Moura Marinho
Avenida Antonio Carlos Magalhães, 2671/1204
40280-000 – Salvador – BA
Tel.: 71 3491-5866
E-mail: selmamarinho@yahoo.com.br

Mônica do Amaral
Rua Maranhão,598/61 - Higienópolis
01240-000 São Paulo - SP
Tel.: 11 3662-1057
E-mail: monicagta@hotmail.com, monicagta@usp.br

Recebido: 05/04/2009
Aceito: 15/04/2009

 

 

* Psicóloga e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, FEUSP. Coordenadora de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, EBM-SP. Coordenadora da Pós-Graduação “Psicanálise – Investigação Teórica e Prática Clínica”, programa realizado com o Núcleo Psicanalítico de Aracaju, em Salvador, BA.
** Psicanalista, Membro associado da SBPSP, Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da FEU-SP. Doutora em Psicologia pelo IPU-SP. DEA em Psychanalyse em Paris VII. Autora do livro O espectro de Narciso na modernidade: de Freud a Adorno (Estação Liberdade, 1997). Coautora de diversas coletâneas, entre elas Pesquisando com o método psicanalítico (Casa do Psicólogo, 2004) e A psicanálise e a clínica extensa (Casa do Psicólogo, 2005).