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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

RESENHAS

 

Sob as adicções: a incapacidade de estar só

 

Under addictions: the inability to be alone

 

 

Pedro Luiz Ribeiro de Santi*

Centro de Altos Estudos de Propaganda e Marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing
Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Audibert, Catherine. L’incapacité d’être seul. Essai sur l’amour, la solitude et les addictions. Paris: Payot, 2008. 256 p.

[Os adictos] tentam fazer o vazio uma vez que o outro preencheu tudo, por sua presença ou por sua ausência mortífera, mas este vazio é um vazio necessário, aquele da área de solidão da qual a psique tem uma necessidade absoluta. O preenchimento tem por função se proteger do outro, impedir-se de ser sua presa e permitir a existência de um vazio sereno. (p. 126)

Nos últimos anos, tem surgido vasta literatura no campo da psicanálise na França sobre as adicções. Duas características parecem ser recorrentes nesta produção: ela procura se centrar no mecanismo das adicções e não em seus objetos específicos (drogas, jogo, consumo etc.), e ela é orientada predominantemente pelas relações de objeto como modelo explicativo.

Assim, a ênfase está na concepção de dependência.

L’incapacité d’être seul, de Catherine Audibert, pertence a esta orientação recente. Escrito de forma quase poética e com grande densidade teórica, o livro ainda insere a questão das adicções em uma temática que lhe seria anterior. Sob as adicções estaria a incapacidade de estar só.

A proposta da autora é a de que se tome a capacidade ou incapacidade de estar só como uma nova linha divisória entre o normal e o patológico. O próprio sentimento de ser estaria condicionado à possibilidade de se gozar uma solidão serena, por oposição a uma solidão mortífera. Há uma grande afinidade entre as ideias de Audibert e as de Bernardo Tanis em Circuitos da solidão. Entre a clínica e a cultura (2003), embora o último não trate especificamente das adicções.

Como o título já permite inferir, o modelo primário do livro é a transicionalidade de Winnicott. Se o espaço da ilusão não é criado na relação mãe-bebê, ele estará entregue ao desamparo do vazio ou do excesso de presença do outro.

A presença do desejo do adulto não propicia o espaço seguro de que a criança precisa para a constituição de uma interioridade confortável, à qual cada pessoa precisa poder recorrer ocasionalmente e com a qual deve poder contar.

Sobre o ambiente que não permite que este espaço se constitua, diz a autora:

... alguns adultos não permitem o bastante à sua criança gozar momentos de solidão, pois eles são por demais presentes, estimulantes, excitantes, angustiantes ou por demais dependentes desta criança que tem por vezes por função inconsciente evitar a solidão de seu (seus) pai. (p. 22)

A ideia é a de que o desejo do adulto é vivido como invasivo e produz uma efração traumatizante.

Reconhecemos aqui a referência à “confusão de línguas” de Ferenczi, assim como, ainda que de forma velada, à sedução generalizada de Laplanche (com a intromissão não metabolizável da sexualidade adulta), e mesmo ao modelo de Piera Aulagnier para a constituição da paranoia em A violência da interpretação (1979). Voltarei a este ponto a seguir.

Também em 2008, Audibert organizou e prefaciou um livro chamado Sur les addictions, que reúne cinco textos de Ferenczi que tratam da questão. De Ferenczi, ela extrai a noção de que as adicções são formas paliativas de lidar com as consequências de sofrimentos psíquicos antigos, derivados de traumatismo. É uma estratégia de sobrevivência que encontra pela fuga na doença uma forma de não sucumbir totalmente. E se trata também de uma forma de buscar prazer em objetos externos pela impossibilidade de encontrá-lo internamente.

Retomando agora a questão da paranoia que evoquei acima, Audibert alinha-se a vários autores que estudam as adicções ao propor que estas podem ser pensadas como estratégias paradoxais de sobrevivência. Elas se colocariam como uma última tentativa de defesa antes da loucura ou mesmo da morte psíquica. O uso de determinadas drogas seria uma forma de buscar aquela solidão serena, um resguardo com relação ao objeto, a construção de um espaço de proteção que não pode ser desfrutado de outra forma.

A adicção seria uma tentativa de passar sem o outro, evitar a intersubjetividade vivida como insuportável. A alteridade constrange o sujeito a sair de sua reserva protegida e a embriaguez seria um recurso para fazer calar a angústia e reencontrar a quietude invulnerável.

A dependência de um objeto (droga, jogo etc.) seria a procura desesperada por não depender mais do outro humano, cuja presença é insuportável. Os objetos de investimento passam a funcionar segundo o modelo da perversão: eles são efetivamente desconsiderados em sua alteridade e reduzidos a simples e controláveis objetos de gozo. Esta dependência é então uma resposta (reação) à primeira dependência, não um simples prolongamento dela.

Isto valeria inclusive para o paradigma das adicções: a paixão. Também nela, o outro enquanto tal é desconsiderado e a busca é por uma dependência fusional primária. Teríamos a situação surpreendente na qual se apaixonar por uma pessoa seria uma forma de se defender do impacto potencial do encontro com a outra pessoa.

O que torna a estratégia adictiva paradoxal é, naturalmente, que, na ânsia por não depender do outro, corre-se o risco de se passar a depender de forma primária de um objeto externo, do qual a pessoa se torna escrava. Este é o sentido primitivo do termo “adicto”. A relação com o objeto transita do campo do desejo e do prazer para o da autoconservação, com a criação do que já se convencionou chamar de neonecessidade.

O autismo é evocado como modelo das adicções. Em ambos haveria a mesma busca pelas “coisas sempre iguais”, aquilo que seja imutável e pareça controlável. Tenta-se criar um envelope protetor para barrar a efração provocada pela solidão-aflita. Há a busca do que Audibert chama de autossensualidade, o que me pareceu uma das contribuições mais interessantes da autora:

A autossensualidade ... é a procura por uma sensação corporal criada pelo próprio sujeito graças a seu corpo ou com a ajuda de objetos exteriores e que, diferentemente do autoerotismo, não se associa a nenhum fantasma, mas se caracteriza melhor por uma espécie de “alucinação tátil”, que se poderia chamar de “alucinação corporal” no adicto. Estas sensações autossensuais têm por fim manter a sensação de continuidade da existência. (p. 111)

Assim, em um recurso bastante distinto do neurótico, o adicto recuaria a um estado de pura sensação: a busca por uma sensação de tal qualidade/intensidade que lhe obture a sensibilidade/ abertura ao outro. A confusão e o ruído do mundo são afastados em um entorpecimento apaziguante. Aquilo que é sempre apontado como um dos grandes prejuízos sofridos pelo adicto – o empobrecimento do espectro dos interesses variados da vida e a redução de tudo à busca pela “próxima dose” – parece ser especificamente o que é buscado pela narcose. Ela parecerá organizadora, muito precariamente estruturante.

É como se houvesse uma redução geral da experiência e o mundo ficasse mais simples, com menos “itens” a controlar. A contrapartida é fácil de perceber: o falo, como registro da falta no funcionamento neurótico, presta-se à simbolização. Ou seja, a tentativa fracassada de reencontro com o objeto perdido dá início ao movimento de busca por substitutos simbólicos, indefinidamente. Uma satisfação parcial pode ser obtida mesmo através da fantasia. A neonecessidade não permite a simbolização de seu objeto, como acontece, de resto, com tudo o que se refere à autoconservação. A indisponibilidade do objeto de que se depende gera a dor pavorosa da abstinência, a passagem da dependência de um objeto a outro é ainda mais custosa do que no já doloroso processo do luto. E nessa passagem não haveria a possibilidade de elaboração do luto, mas simples substituição.

Em todos os autores que tratam da adicção observa-se a ambiguidade do termo “droga”, pharmakon, que é ao mesmo tempo remédio e veneno. Audibert diz que o adicto é o “farmacêutico autocrata do psíquico”, contra a “intoxicação” produzida pelo outro:

Uma substância exterior (álcool) viria agir como contrassubstância (anestesiante ou repressora) uma vez que a ideia obsessiva torna-se tóxica para o sujeito por seu excesso? ... [a adicção] visa neutralizar uma intoxicação pela administração de certas substâncias externas. (p. 121)

Diferindo da paixão, o amor representaria para Audibert aquilo que escapa ao circuito compulsivo. Alteridade, capacidade de estar só, relação que propicia a vida criativa dos parceiros. Voltamos a Freud: o amor cura. Mas o que fazer se o remédio é aquilo que só se torna acessível como resultado da cura?

Uma das chamadas “novas adicções” que têm recebido atenção crescente é a compulsão ao consumo. Audibert relaciona esta modalidade de compulsão quer à expulsão (hemorragia) de recursos simbólicos, quer a uma busca por acumulação protetora, equivalente à alternância anorexia-bulimia.

Nesta questão, podemos encontrar um ponto de contato entre as dinâmicas adictivas e as modalidades de subjetivação contemporâneas. Em Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria (2007), o sociólogo Zygmunt Bauman trata de forma extremamente afinada com as concepções psicanalíticas exatamente o aspecto de que tratamos. Contemporaneamente, todos tenderíamos a tomar o consumo como modelo para todas as relações. Uma vez que aprendemos a lidar com bens de consumo de forma objetiva e pragmática, teríamos transplantado o modelo para as relações humanas.

Isto vem ao encontro, de forma dramática, do que observamos sobre as adicções e sua busca compulsiva e exclusiva por sensações prazerosas, a tentativa de evitar a intersubjetividade, a redução do outro a uma dimensão de simples objeto de uso e gozo.

As adicções e compulsões certamente são um importante caminho para a compreensão de como se constitui e estrutura (ou mal se constitui e mal se estrutura) a subjetividade contemporânea.

 

Referências

Audibert, C. (Org.). (2008). Sur les addictions. Paris: Payot. (Petite Bibliotèque Payot).

Aulagnier, P. (1979). A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1975).

Bauman, Z. (2007). Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria (C. A. Medeiros, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 2007).

Tanis, B. (2003). Circuitos da solidão. Entre a clínica e a cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo.

 

 

Endereço para correspondência
Pedro Luiz Ribeiro de Santi
Rua Haddock Lobo, 144/111
01414-000 São Paulo - SP
Tel.: 11 3129-7105
E-mail: plrsanti@uol.com.br

Recebido: 10/04/2009
Aceito: 20/04/2009

 

 

* Psicanalista. Professor e pesquisador do CAEPM da ESPM e da Especialização em Teoria Psicanalítica da Cogeae/PUC-SP.