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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

Instantâneos

 

Instantaneous

 

 

“Já se vão décadas desde que eu próprio tive um verdadeiro sonho de angústia, mas recordo-me de um que tive aos sete ou oito anos e submeti à interpretação cerca de trinta anos depois. Foi um sonho muito vívido, e nele vi minha querida mãe, com uma expressão peculiarmente serena e adormecida no rosto, sendo carregada para dentro do quarto por duas (ou três) pessoas com bicos de pássaro e depositada sobre o leito. Acordei aos prantos, gritando, e interrompi o sono de meus pais. As figuras estranhamente vestidas e insolitamente altas, com bicos de pássaro, provinham das ilustrações da Bíblia de Philippson1. Imagino que fossem deuses com cabeça de falcão de um antigo relevo de uma tumba egípcia. Além disso, a análise trouxe-me à lembrança um menino mal-educado, filho de uma concierge, que costumava brincar conosco no gramado em frente da casa quando éramos crianças e que me inclino a pensar que se chamava Philipp. Parece-me que foi desse menino que ouvi pela primeira vez o termo vulgar que designa a relação sexual, em cujo lugar as pessoas cultas utilizam sempre uma palavra latina, ‘copular’, e que foi indicado de maneira bastante clara pela escolha das cabeças de falcão2. Devo ter adivinhado o significado sexual da palavra pelo rosto de meu jovem instrutor, que estava bem familiarizado com os fatos da vida. A expressão do rosto da minha mãe no sonho foi copiada da visão que eu tivera do meu avô poucos dias antes de sua morte, quando ressonava em estado de coma. A interpretação feita no sonho pela ‘elaboração secundária’, portanto, deve ter sido que minha mãe estava morrendo; o relevo da tumba combinava com isso. Despertei com uma angústia que não cessou enquanto não acordei meus pais. Lembro-me de ter-me acalmado de repente, ao ver o rosto de minha mãe, como se precisasse ser assegurado de que ela não estava morta. Mas essa interpretação ‘secundária’ do sonho já se produziu sob a influência da angústia desenvolvida. Não que eu estivesse angustiado por ter sonhado que minha mãe estava morrendo, mas interpretei o sonho nesse sentido em minha visão pré-consciente porque já estava sob a influência da angústia3”.

 

 

1 Die israelitische Bibel, edição do Velho Testamento em hebraico e alemão, Leipzig, 1839-1854 (2a ed., 1858). Uma nota de rodapé ao quarto capítulo do Deuteronômio mostra diversas xilogravuras de deuses egípcios, vários deles com cabeças de pássaro.
2 O vulgarismo alemão aqui referidoé “volgeln”, de “Vogel”, a palavra comum para “pássaro”.
3 Freud, S. (1987). In S. Freud, A interpretação dos sonhos, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (2a ed.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).