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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

Os caminhos da imaginação material1

 

Material Imagination’s Paths

 

 

Silvana Rea*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os caminhos da imaginação material Este artigo trata da teoria da imaginação material postulada pelo filósofo francês Gaston Bachelard e de suas possibilidades para a leitura de certos aspectos do universo poético da artista plástica Flávia Ribeiro. Para isso a autora, à maneira da atenção flutuante da escuta psicanalítica, vale-se de recortes por ela efetuados na fala da artista, obtida em entrevistas concedidas por ela em seu ateliê e entendida como exercício poético, e na seleção de trabalhos de sua vasta obra.

Palavras-chave: Artes plásticas, Estética, Imaginação material, Devaneio.


ABSTRACT

This paper deals with Gaston Bachelard’s material imagination theory and its possibilities for a reading of certain aspects of the plastic artist Flávia Ribeiro’s poetic universe. For this, the author, like the free floating attention as utilized in psichoanalysis, clips the artist’s discourse, as a poetic manifestation, and selects certain works of her universe.

Keywords: Plastic arts, Aesthtetics, Material imagination, Rêverie.


 

 

O filósofo francês Gaston Bachelard dedicou-se, ao longo de sua vida, ao inconformismo intelectual. Figura marcante para as gerações estruturalista e pós-estruturalista vindouras, combateu a ortodoxia das escolas filosóficas e as premissas cartesianas, movido pela convicção de que a história das ideias se faz por rupturas e cortes epistemológicos.

Entretanto, conforme nos lembra Motta Pessanha (1988), o filósofo manteve, como influências fundamentais em seu pensamento, o surrealismo e a psicanálise. É certo que, coerente com sua posição contrária aos sistemas fechados, utiliza-os de maneira muito pessoal e transfigurada. A psicanálise surge com acento arquetípico, fundada nos quatro elementos que Empédocles apresenta como raízes primitivas da realidade. E o surrealismo vem atender à sua preocupação com a instauração de um novo espírito científico. É esse interesse que leva Bachelard a se reaproximar, pela via onírica, da psicanálise.

Sabemos que Freud, apesar de mencionado com destaque por Breton no Manifesto de 1924, rejeitou com veemência a utilização de seu trabalho pelos surrealistas. O reconhecimento pelo poeta de que a psicanálise teria permitido à imaginação recuperar seus direitos não foi correspondido. Mas o movimento, interessado em se posicionar como o subterrâneo das aspirações utópicas da modernidade, centra seus esforços na delimitação de uma área de arbitrariedade. E, nesse sentido, a dívida com Freud é inegável, pois os surrealistas buscam um lugar para um modo de conhecimento não apenas consciente; uma região de fusão de dois estados aparentemente opostos, no qual sonho e realidade constituam uma “realidade absoluta” (Fabris, 1998). Para isso a utilização dos sonhos torna-se fundamental, especialmente pelos sentidos poéticos que a elaboração onírica permite. Trabalhar do ponto de vista do inconsciente é ao que visam as técnicas automáticas de produção, como a frottage de Max Ernst e o uso do sono hipnótico por Eluard, entre outros.

Assim, o surrealismo e, ainda que indiretamente, a psicanálise, são tomados livremente pelo filósofo como fundamentos para uma nova racionalidade. Para ele, os fenômenos são uma trama de relações e exigem uma forma de pensar que não seja estática, mas aberta e por vir a ser. Toma, então, a experiência do poeta dada Tristan Tzara, que introduz o sonho como elemento organizador da liberdade poética, para formular em 1936 o conceito de surracionalismo. Em suma, chega a um racionalismo que considera o mundo material no pensamento, assim como o surrealismo busca revitalizar o realismo por meio do sonho (Lechte, 2002).

Interessante notar que na obra bachelardiana, ciência e arte &– como o dia e a noite &– são dois mundos distintos que devem se manter incomunicáveis, como garantia para a objetividade do conhecimento científico. Aqui se configura o aspecto diurno do filósofo, que luta contra as ciladas da linguagem. Na elaboração dos conceitos, as metáforas são obstáculos epistemológicos e as imagens, características do pensamento pré-científico. Ora, esta mesma crítica, por outro lado, revela o fascínio que o Bachelard noturno sente pela sedução que combate, uma vez que considera as metáforas fenômenos fundamentais da alma poética. Assim, as imagens passam a ser o foco de seus trabalhos dedicados à exploração do imaginário. Mais especificamente, o estudo da imaginação artística &– ponto que nos interessa neste momento.

Reivindicando a legitimidade do devaneio &– o sonho do homem desperto, ativo e lúcido &– como tema de estudo e método, Bachelard (2006) distingue a imaginação formal, intelectualmente fundamentada na visão, da imaginação material, tributária da mão. Baseada na vontade e no poder de transformação, a imaginação material por ele postulada atua na manipulação da matéria. É, desse modo, uma atividade que se submete à vontade criativa do homem. E é essa manipulação que, em parte, permite um ponto de intersecção entre ciência e arte. Pois, ainda que inicialmente por ele consideradas “opostos complementares”, a aproximação se dá pelo fato de ambas instituírem o sujeito demiurgo, seja pela via artesanal, seja pela onírica.

A imaginação material, portanto, atua pela resistência e pela operatividade da mão em confronto com a materialidade do mundo, entendido como provocação concreta. Ao demandar a intervenção do homem, a matéria torna-se oportunidade para realização e incentivo à própria imaginação. Em outras palavras, a imaginação produz imagens e se configura nessas imagens. Na arte, os quatro elementos solicitam o devaneio do artista. Desse modo, a imaginação material liga-se às forças oníricas que, agindo sobre a matéria, dão à imaginação uma função artesanal. Toda poética possui uma essência material e é justamente esse componente que permite o estabelecimento de uma tipologia de temperamento artístico, conforme o “onirismo ativo” vincule-se à terra, ao fogo, à água e ao ar (Bachelard, 1988). Como o próprio Bachelard (1991) afirma, sua obra consagra a imaginação dos quatro elementos materiais que a filosofia e a ciência antigas, assim como a Alquimia, colocaram na base de todas as coisas. Aí estão as fontes do imaginário poético, que permitem uma leitura das diferentes poéticas.

Cabe agora pensar certas questões do processo criativo e da poética de Flávia Ribeiro, artista plástica que pude acompanhar em visitas frequentes a seu ateliê. Nascida em São Paulo em 1954, Flávia fez sua formação na Escola Brasil nos anos 1970 e na Slade School of Fine Arts, em Londres, cidade onde viveu por cinco anos. Seu percurso artístico envolve a participação em inúmeras exposições nacionais e internacionais, sendo a mais recente “Paisagens”, na Estação Pinacoteca, em São Paulo, em 2008. Dediquei-me à leitura de sua poética e, para a compreensão de certos aspectos, a teoria da imaginação material de Bachelard foi oportuna. Assim, à maneira da atenção flutuante da escuta psicanalítica, elaboro um recorte das entrevistas que me foram por ela concedidas, na compreensão de sua fala como exercício poético. Efetuo também um recorte em sua vasta obra, selecionando a sala para a xxiii Bienal Internacional de São Paulo (1996), os trabalhos da série Floribus Explere (1995), Mundos desorbitados (1999) e desenhos da série Fogo (2003).

 

A mão obreira de Flávia Ribeiro2

Esta é uma exigência do processo criativo da artista: uma mão manufatureira e um envolvimento físico total na feitura de sua obra. Sua mão é um elo importante com o trabalho; é por meio dela que se dá a transformação do material. Como afirma:

Acho que a ação, o fazer, o executar, é pouco intelectual. O trabalho intelectual vem depois. Eu sinto que a minha mão é a junção do racional com o emocional. Parece que a mão é que liga os dois; junta. E tem essa coisa obreira mesmo.

A mão de Flávia pensa, sonha, realiza. Guiada por seu devaneio, atua sobre a matéria que resiste e cede. Assim, a artista modifica, transforma o mundo quando transforma a matéria, e, construindo sua obra, transforma-se. Pois, para a mão que trabalha por seus sonhos, a matéria é oportunidade de realização pessoal (Bachelard, 1991).

De fato, seu processo criativo não envolve um projeto. Pensar e me articular, só depois. Tem que fazer o trabalho; vivê-lo. Depois que eu faço trabalho é que eu fico: Ah, então aconteceu isso... É algo que se dá no próprio processo de construção da obra, e, nesse sentido, o momento da execução é o “momento santo”.

Para Bachelard (1991), a imaginação material opera no confronto direto com a materialidade do mundo, pela ação dinâmica e transformadora da mão trabalhadora, instrumento da vontade e do poder. Retomando os preceitos da Alquimia, a poética da mão obreira de Flávia celebra a ideia da transmutação alquímica, que se funda na fé na possibilidade de modificar a natureza pelo trabalho humano (Eliade, 1979). Celebração que cabe em suas palavras:

Eu acho que tem essa coisa da mão que para mim é muito importante, porque isso é real para mim. Essa energia que você põe. É uma Alquimia, eu acho. Acho que tem uma coisa da transformação do material, da matéria.

 

Devaneios de terra e de fogo

Flávia Ribeiro define seu universo poético nos domínios da gravura, técnica cujos procedimentos pesquisou e aprofundou nos anos vividos em Londres. Ainda que utilize materiais diferentes, de dimensões variadas e linguagens plásticas que vão da pintura, ao desenho, da gravura à escultura, a questão que a interessa é o registro do contato.

No pensamento de Bachelard (1994, pp. 41-106, 183-189) a gravura remete-nos ao processo de criação. O gravador, afirma, reencontra a pré-história da mão, pois ela, no seu ato de gravar, inaugura a existência da matéria, que, por sua vez, inaugura na mão a consciência da ação. Flávia usa o bronze, o zinco, o cobre, o papel com seu grão e fibra, e a madeira como provocações à sua mão sonhadora. Cava, risca, entalha, como um lavrador arando a terra.

Desse modo, na obra e no processo criativo de Flávia Ribeiro, percebemos imagens de terra. Na busca da ascensão ao ar, a imagem sugerida por Bachelard (1990) é a raiz. Situada na fronteira entre o ar e a terra, é síntese da oposição entre morto e vivo. No subterrâneo, vai trabalhar entre os mortos, encontrando aí a sua força de manutenção. E, perfurante, leva aos céus o suco da terra, na imagem da Alquimia como uma agricultura celeste, geradora da flor celeste, simultaneamente o espírito que se tornou denso e a matéria que se tornou sutil.

Na ideia arcaica de que os minerais crescem no ventre da terra como se fossem embriões, Eliade (1979) considera a tarefa do mineiro e do metalúrgico acelerar o ritmo de crescimento dessa embriologia subterrânea. A agricultura, que também envolve a fecundidade da terra-mãe, cria no homem um sentimento de orgulho, pois ao apressar o processo, ele substitui o tempo, tanto para a obra mineral, quanto para a obra agrícola.

As flores são elemento de forte presença na poética da artista. Ela vai frequentemente ao Ceasa para comprá-las e se dedica à construção de um jardim em seu ateliê.

Eu comecei um trabalho com flores há um tempão. A minha ideia é fazer esse jardim para o trabalho. De repente, o ateliê é o jardim também. Mas a ideia é de plantar coisas que eu estou querendo desenhar. Você planta, nasce. É bacana essa coisa, que é um pouco como a obra. Porque essa obra é assim, nunca termina, aí cava, cava, cava, até lá embaixo, para colocar as fundações. É como plantar uma semente. Coloca aqueles ferros lá embaixo, tampa tudo e aí começa a crescer a casa. Achei tão bonito isso: você tem um plano e aí você enterra lá dentro, daí nasce.

A dialética da putrefação e da geração, segundo Bachelard (1991), foi tese central da botânica durante séculos. Desse modo, a flor é uma imagem dinamizada por quem já manipulou o esterco. O devaneio da vontade jardineira, portanto, liga-se ao ato de florescer, de produzir a luz do lírio com a lama escura. É o negro que, alimentado de lama, ativa uma vida vegetal rejuvenescida. Tal como nos processos de construção da Grande Obra alquímica, nos quais o estágio inicial, a nigredo, parte da pedra negra e se refere à putrefação e ao corpo que se decompõe. Na sequência torna-se branca, a albedo, que possibilita a transmutação dos metais em prata e é relativa à ressurreição e à recomposição do decomposto. E por fim a obra em vermelho, a rubedo. Simbolizada pela fênix, completa a realização da matéria em ouro. Do ponto de vista da Alquimia prática, a pedra também é fabricada em forma líquida &– a Panacea, o elixir da longa vida (Hutin, 1992). Do ponto de vista místico, o destino da matéria leva, no plano espiritual, à iluminação e à imortalidade do praticante (Eliade, 1979). Para Bachelard (1991), a prata só pode ser convertida em ouro se primeiramente passar pelo precipitado químico “lama de prata”, que o faz afirmar que o valor supremo do ouro surge do valor diminuído da terra lamacenta.

Bachelard (1990) registra que a palavra “raiz” nos ajuda a ir à raiz de todas as palavras, reforçando a sua imagem como um eixo de profundidade que remete a um passado longínquo e universal. É uma imagem de verticalidade que se expande para baixo pela ação da raiz e para o alto enquanto caule, até chegar à flor, elemento caro à poética da artista. Flávia busca, por sua vez, a raiz na origem das palavras. Recorre a dicionários etimológicos ou dicionários de latim, para que seu trabalho encontre a própria fala. É fundamental, para ela, fundar, pela palavra, a raiz de sua obra. Assim, Floribus Explere (cobertos com o sumo das flores), é uma série de gravuras cuja matriz é a própria flor. No caso, o lírio é passado na prensa e o seu suco fica impresso no papel (figura 1).

 

 

Na obra de Flávia Ribeiro, os devaneios de fogo e de terra encontram-se na imagem alquímica ferreira e na construção de uma botânica imaginária; na oxidação provocada no papel pelo sumo da flor espremida, ou nas flores de ouro da Bienal de 1996. Ou ainda nos galhos que retira de seu jardim e deixa secar nas paredes do ateliê, e que ressurgem no trabalho Mundos desorbitados. Elaborado para a exposição Corpus Consociatus, em 1999, ele recobre as paredes da Galeria Millan com sementes metálicas e galhos de estanho retorcidos, na criação de uma natureza própria (figura 2).

 

 

A terra e o fogo também constituem um espaço aéreo, no devaneio de metalurgia. Para Eliade (1979) os meteoritos referem- se à união do céu e da terra, pois, sendo oriundos de cima, compartilham a sacralidade celeste. O que configura a sua valorização religiosa. Do mesmo modo, o metal celeste é, por sua origem, considerado transcendente. O ferreiro celeste desempenha papel de herói civilizador, pois traz do céu as sementes cultiváveis, revelando a agricultura aos seres humanos. O que leva Bachelard (1999) a afirmar, citando o poeta romântico Novalis, que o mineiro é o astrólogo invertido.

As flores estão presentes na sala de exibição da xxiii Bienal Internacional de São Paulo (figura 3). Fazendo as vezes de uma parede, uma folha de látex, pendurada docilmente em um varão, dobra-se sobre si mesma. A qualidade translúcida da peça possibilita a passagem da luz pela dobra do trabalho. No látex são impressas flores, resultado do percurso artístico que parte do desenho de flores até o uso da própria flor como material de impressão. Do lado oposto, outra folha, esticada como uma tela no chassi.

 

 

Nas outras duas paredes, a terra e o fogo. Flores com caules extremamente longos e finos, de latão fundido banhado a ouro. O nome é Ouro, arma de luz. Elemento presente em seus trabalhos anteriores, o ouro passa agora a ser o foco de sua pesquisa. É este também o momento no qual utiliza os procedimentos de fundição pela primeira vez.

Estou apaixonada por fundição. É medieval. Ficam dois caras com o cadinho, que é um balde com um cabão de ferro bem comprido, aí joga dentro do balde, vai os dois caras e “brrr”. É Idade Média. Aí o cara vem na boca, “puf, puf”, joga a areia em cima, espera. Bom, para tirar cera de peça grande tem que fazer uma fogueira em cima do molde. Fogueira! Uma poeira, uma fumaça... Põe os paus, acende o fogo com jornal e fica a noite inteira no fogo. Então vai com maçarico. É assim: o chão inteiro é um mar de areia preta, fumegando. Aí põe aquela areia em cima não sei nem para quê, tira para chegar no molde. Para mim é mais legal. Se o meu trabalho é uma coisa assim mais tecnológica, mais avançada, não ia dar certo.

Ora, sabe-se que o postulado fundamental dos alquimistas é a existência da pedra filosofal que, atuando como catalisador, converte os metais impuros em ouro (Vidal, 1995). Retomando as tradições mineiras do século xv, Eliade (1979), por sua vez, sustenta que a concepção arcaica da embriologia mineral faz parte da pré-história da Alquimia. Tal como o metalúrgico que transforma os embriões minerais em metais, acelerando o crescimento iniciado na terra-mãe, o alquimista sonha em prolongar essa aceleração até transmutar os metais ordinários em ouro. Como os outros metais são comuns por estarem crus, concluise que a nobreza do ouro é fruto da sua maturidade. E, como a finalidade da natureza é levar o mundo mineral à sua maturação última, o papel assumido pelo alquimista é o de ajudar a natureza a alcançar o seu ideal até chegar à maturidade suprema. Ou seja, à imortalidade e à liberdade absoluta, simbolismo espiritual atribuído ao ouro.

Assim, a poética de Flávia Ribeiro remete às imagens de realização alquímica, a busca do ouro como uma obra de ligação entre os mundos divino e humano, segundo o paralelismo entre o processo de aperfeiçoamento dos metais e a ascensão espiritual do homem. Mas a obra da artista vai além da Alquimia, como ela mesma diz:

O ouro sempre foi presente e agora ele também vem como luz. Ele não tem mais aquela simbologia do trabalho desse outro período. Uma simbologia, uma coisa alquímica... Eu acho que o que muda aí é que agora tem uma coisa mais espiritual, mesmo.

Partindo da ideia de que todo reino mineral é semente, Bachelard (1991) mostra que o metal possui um devir vegetal cujas raízes buscam no centro da terra o segredo da vida vertical. Apoiando-se na teoria alquímica da unidade da matéria, refere-se à matéria primeira, que origina todas as formas de ser, chamada de caos ou semente (Hutin, 1992). Considera, assim, que a menor parte de um mineral é germe deste mesmo mineral. Desse modo, a força germinativa está em toda parte do metal homogêneo. O mineiro encontra na mina a árvore inteira da mina, que suscita a imaginação viva e que almeja a totalidade da imagem. A imagem de maturação mineral, portanto, é a continuação da imagem da germinação e do crescimento. Como diz Bachelard (1991, p. 197): “Dentro da terra, o ouro amadurece como a trufa”.

E o ouro, que amadurece dentro da terra, é o grande fruto mineral dos alquimistas. Nesse sentido, Flávia não transige:

Mas é claro que todo mundo acha maluco. Ah, é escultora, mas por que tem que ser ouro? Porque, para mim, conceitualmente, tem que ser ouro. Não pode ser esse outro que não é ouro. Pode até dar o mesmo efeito, mas para mim tem que ser ouro.

Se o metal implica o confronto com a dureza, a lama e o barro valorizam a moleza. No devaneio de terra, no encontro com a água, o barro é massa primordial. O procedimento de impressão executado para a xxiii Bienal começa pela preparação do barro, misturando água e amassando. O barro pronto, a artista faz um longo tubo, no qual pressiona as flores que, ao serem retiradas, deixam sua forma impressa. Essas marcas são preenchidas por injeções de cera quente que a artista efetua com uma seringa. Depois de fria a cera, o barro é retirado e o molde vai à fundição. Trata-se de uma variação do processo de cera perdida, no qual o modelo de cera é montado em canaletas e envolto em gesso. No forno, a cera derrete, deixando uma cavidade que será preenchida pelo metal fundido.

Outro procedimento utilizado por Flávia é substituir a parafina, material mais duro, e procurar a maciez do barro que, desse modo, torna-se matriz. Como a intenção é a de imprimir, o objeto a ser registrado é inserido no barro, cuja sensibilidade receptiva agrada à artista. Pode usar sementes, galhos ou as próprias mãos. Em outros momentos, desenha diretamente na superfície. Ela passa, então, o pigmento misturado ao óxido de ferro nos sulcos formados. Depois, o látex é esparramado por cima. A qualidade que a interessa é a sensibilidade de contato que a consistência dócil do barro oferece.

Nas aventuras espirituais e de modificação da matéria nas quais o homem das sociedades arcaicas se viu envolvido, Eliade (1979) ressalta a experiência demiúrgica do oleiro primitivo. É ele quem descobre a primeira potência para a transmutação, seu poder de mudar a essência das substâncias. O oleiro foi o primeiro que modificou o estado da matéria, endurecendo as formas que deu à argila. Ou seja, antes do ferreiro e do alquimista, o oleiro é o primeiro senhor do fogo, pois é pelo fogo que se opera a passagem da matéria de um estado a outro. O oleiro que pela primeira vez conseguiu, graças ao calor das brasas, endurecer as formas que dera à argila, descobriu um agente de transmutação. O fogo revela-se não só um meio de trabalhar mais depressa, mas também de fazer algo que não existia anteriormente na natureza; manifestação de uma força mágico-religiosa que podia modificar o mundo, mas que não pertence a esse mundo.

Nesse sentido, a busca “mais espiritual” da artista, ao utilizar o ouro, faz pensar no fogo como elemento sagrado. Para Bachelard (1999) o alquimista atribui valor ao ouro porque ele é o receptáculo do fogo elementar. Eliade (1979), por sua vez, registra que a tarefa dos alquimistas de modificar a matéria, prolonga a tarefa do artifex das idades pré-históricas, o qual se servia do fogo para transformar a natureza. O fogo como agente de modificação e de transmutação, no domínio do que posteriormente se chamaria espiritualidade. O fogo, a chama e o calor exprimem experiências espirituais de incorporação do sagrado e de proximidade de Deus.

E, assim, Bachelard (2006) apresenta os devaneios de lareira, construídos diante de um fogo de raízes. É o lugar do sonhador solitário, observando o fogo primordial. O fogo de raízes é experiência de profundidade; pelo poder da integração onírica, leva o sonhador a regiões mais profundas da alma.

Desse ponto de vista, surge o desenho, técnica utilizada por Flávia Ribeiro em diversos trabalhos. Ele também é parte de seu processo criativo: quando surge em momentos de parada de produção, destina-se à entrega do corpo e à experimentação do olhar, por permitir um estado que seja contrário a qualquer interesse que interfira no devaneio. O “transe” no qual a artista entra é provocado pelo ato de desenhar, efetuado de forma obsessiva. As flores continuam presentes em seu universo poético. Mas, diante de um fogão a lenha, o convite é para o desenho do fogo (figura 4).

 

 

Mas aí eu sei lá, eu fiquei uma noite inteira... Fiquei impregnada de fogo, incêndio. Impregnada de fogo, obsessivamente, sabe: pá, pá, pá... Mas é assim, é uma noite que eu enlouqueço, que fica aquela coisa obsessiva, o que é legal, por que você risca aqui, risca aqui... Então é essa coisa do pensar mesmo, por que parece que, quando eu desenho, ainda mais nessa coisa do fogo, é um mergulho profundo.

O homem sonhador, diante da lareira, é o homem das profundezas e o homem de um devir (Bachelard, 1999). Melhor dizendo, o fogo dá ao homem que sonha a lição de uma profundidade que contém um devir, pois sugere o desejo de mudar, de levar a vida além. Pelo fogo, tudo muda. Como afirma a artista: E é legal porque ele não para nunca; você olha, já mudou; mudou, já mudou; é uma coisa dinâmica.

Desse modo, a sua entrega ao desenhar torna-se um valor para captar no efêmero, o “elemento temporal primordial” que habita a realidade e se revela em seu trabalho (Pessanha, 1993). Desenhar o fogo, que muda incessantemente, é instrumento para a instauração do instante que amarra numerosas simultaneidades. Momento único, no qual o Ser mais disperso conquista unidade.

O devaneio diante do fogo, assim, é o sonho que se transforma em pensamento, posto que para Bachelard (2006) o calor, para o corpo, é uma maneira de sonhar. Como coloca, se o fogo, “fenômeno em verdade bastante excepcional e raro, foi considerado um elemento constituinte do universo, não será porque é o elemento do pensamento, o elemento de predileção para o devaneio?” (Bachelard, 1999, p. 29). Nas palavras de Flávia:

Desenho é muito direto! Tem uma clareza, acho que ia me ajudar a pensar. Você faz um, outro, outro, até você entrar em uma sintonia. Faz um mantra. Aí a hora que você está quente, você fica super à vontade. Aí vai, é outra sintonia.

Mas o fogo também pode se ligar à sexualidade. Para Bachelard (1999, p. 77), a conquista do fogo primitivamente é uma conquista sexual. Ele afirma ainda que no devaneio de potência e imortalidade da Alquimia nota-se um intenso devaneio sexual. E, como o processo alquímico se dá com o fogo encerrado em um forno, poder-se-ia dizer que a Alquimia “realiza pura e simplesmente os caracteres sexuais do devaneio de lareira”.

Nesse sentido, os elementos alquímicos fogo masculino e feminino, assim como o casamento do fogo e da terra proposto pela doutrina, apresentam o fogo sexualizado como princípio de uma ambiguidade essencial, que inclui matéria e espírito. Delineia-se, então, um universo ambíguo de fusão do dualismo sexual, de trânsito entre corpo e alma, físico e sagrado, concreto e simbólico. No trabalho para a xxiii Bienal, se a luz do látex e do ouro sugere uma sensualidade espiritual, o fogo pode sugerir a sacralidade da paixão.

Do ponto de vista do calor, o sentido do devaneio alquímico é a distinção sexual como complementar. Como diz Bachelard:

O princípio feminino das coisas é um princípio de superfície e de invólucro, um regaço, um refúgio, uma tepidez. O princípio masculino é um princípio de centro, um centro de potência, ativo e repentino como a faísca e a vontade. O calor feminino ataca as coisas por fora. O fogo masculino as ataca por dentro, no coração da essência (1999, p. 79).

E assim, no devaneio diante da lareira, Bachelard (2006, p. 186) afirma que “o calor é realmente, em toda a profundidade do termo, o fogo no feminino”. Nas palavras da artista:

Eu também acho que o meu trabalho sempre é feminino, não tem como. Eu acho que tem trabalhos de mulheres que não essencialmente aparecem como uma coisa feminina. Não é uma coisa que você detecte. Por exemplo, a fundição é uma coisa extremamente primitiva. Aquele trabalho que eu fiz para a Bienal de 1996, eu passava o dia todo lá, tá, tá, tá... Então, já tem aquela coisa do fogo, mulher é muito cozinha.

Eliade (1979) descreve a importância dos tabus sexuais durante o trabalho de fusão do metal, ou a abertura de uma mina. Esses ritos criam garantias para que se penetre uma zona sagrada e inviolável: a vida subterrânea. Pois se trata de uma tarefa que implica entrar em contato com um tipo de sacralidade que não pertence ao universo religioso familiar; mais profunda, mas também mais perigosa. As precauções são necessárias para aventurar-se em um domínio que não pertence ao homem de direito: o mundo subterrâneo com seus mistérios da lenta gestação mineral que se processa nas entranhas da terra-mãe.

Mas o autor também relata canções que mostram o trabalho de fusão dos metais pelo fogo como o ato sexual. Dessa maneira, os tabus sexuais dos mineiros e dos metalúrgicos devem ser respeitados. Pois, como a fusão representa uma união sexual sagrada, exige que a energia sexual dos trabalhadores seja poupada para assegurar magicamente o seu êxito. À ideia de minerais embriões que completam a gestação nos fornos, une-se a ideia de que a fusão, por ser uma criação, implica a união prévia entre os elementos masculino e feminino, respectivamente o enxofre e o mercúrio.

Terra e fogo, portanto, são elementos do devaneio de Flávia Ribeiro. Nesse onirismo, encontram-se certos elementos de sua poética: o desenho do fogo e as flores, desenhadas ou espremidas para impressão de seu sumo e que passam a ter a “seiva” solidificada nos procedimentos de fundição, em Ouro, arma de luz. Assim como na criação de uma botânica metalúrgica, em Mundos desorbitados.

 

O cogito onírico

Em sua luta contra o cogito cartesiano, Bachelard propõe o cogito onírico, no qual a imaginação criadora atua livremente e com autonomia. Se, por um lado, o surracionalismo define o Ser do homem por um novo paradigma epistemológico, por outro, ao propor o estudo ontológico da imagem, Bachelard fornece os fundamentos para uma ontologia da imaginação. De fato, observando alguns trabalhos no ateliê de Flávia Ribeiro, noto que os desenhos do fogo ficam muito parecidos com os desenhos das flores. Ela confirma:

Mas tem a ver. Porque na verdade, acho que tanto faz se começo desenhando fogo ou flores. Vai virando outra coisa, você vai transformando, já não é mais o fogo que interessa.

Bachelard (2006) afirma que é preciso sonhar muito com um objeto para que ele possa determinar, naquele que sonha, uma espécie de órgão onírico que estabeleça ligações de existências entre aquele que sonha e o que é sonhado. Diante do fogo, a artista encontra a imagem que a desperta e esse despertar anuncia- se no cogito do devaneio. A flor, enquanto objeto familiar, o fogo, os galhos e as sementes, convidam à aproximação, a que se sonhe perto deles e, desse modo, Flávia encontra o seu cogito de sonhador. E, sendo artista, ao escolher o objeto, promove-o à condição de objeto poético. Assim, o devaneio poético é sempre novo, pois mostra um sentido em estado nascente e, simultaneamente, a abertura a novas associações. O objeto também não é o mesmo; ele se renova a cada devaneio, enquanto se renova também aquele que sonha.

Por isso Bachelard distingue, de forma tão marcada, o sonho do devaneio. Porque só este, por ser fruto da alma solitária, pode tornar-se poético. E porque, diferentemente do sonho do indivíduo adormecido, o sonhador de devaneio encontra-se presente na construção de um cogito. Ele se presentifica enquanto sujeito porque se reconhece como sujeito que sonha. Para o filósofo, o homem concebe-se como cogito onírico e é ontologicamente fundado dessa maneira. Há, portanto, uma ligação de existência na fidelidade do eu sonhador com o objeto que acolhe o seu devaneio. Na poética de Flávia Ribeiro, a flor ou o fogo, nascidos do devaneio poético, são o próprio Ser da artista, posto que o cogito do sonhador faz-se da união do Ser que sonha ao Ser do mundo. Ser difuso porque o Ser do sonhador invade aquilo que toca, tornando-se difuso no mundo, “o cogito difuso do sonhador de devaneios recebe dos objetos de seu devaneio uma serena confirmação de sua existência” (Bachelard, 2006, p. 160).

 

Referências

Bachelard, G. (1988). A poética do espaço. In Bachelard (Os Pensadores, R. F. Kuhnen et al., trads., 4a. ed., Vol. 38, pp. 93-266). São Paulo: Nova Cultural.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Silvana Rea
Av. São Gabriel, 149/ 1104
01424-001 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3165-6214
E-mail: silvanarea@uol.com.br

Recebido: 31/08/2009
Aceito: 11/09/2009

 

 

* Psicanalista, membro filiado da SBPSP, Mestre e Doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1 Este artigo retoma questões abordadas na dissertação de mestrado e livro Transformatividade. Renina Katz, Carlos Fajardo, Flavia Ribeiro: aproximações entre psicanálise e artes plásticas e na tese de doutorado Pelos poros do mundo: uma leitura psicanalítica da poética de Flávia Ribeiro.
2 Os trechos grafados em itálico referem-se ao texto-fala da artista trabalhado pela autora.